Francisco Góes
Francisco Góes: Biden traz os EUA de volta ao ‘velho normal’
Brasil corre o risco de ficar isolado se não rever suas posições de política externa
A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos criou a expectativa de uma nova abordagem do governo americano em relação às instituições multilaterais e aos acordos de comércio. Se espera que o presidente eleito ajude o país a voltar a uma situação de “normalidade” quando se trata da inserção dos EUA em um sistema de cooperação internacional que eles mesmos ajudaram a criar e que foi sistematicamente torpedeado por Donald Trump nos últimos quatro anos.
O papel ativo de Biden em favor do multilateralismo, para fortalecer o trabalho conjunto dos países em áreas como sustentabilidade ambiental, saúde e comércio, não vai evitar, porém, que os Estados Unidos continuem a aplicar medidas pontuais de proteção para setores da economia americana.
“É preciso ter clareza de que, independentemente de o governo ser republicano ou democrata, os EUA sempre vão defender o que é percebido como interesse comercial do país, o que leva em conta lobbies de setores”, diz a economista Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes).
Uma diferença importante agora, no entanto, é que os EUA vão fazer a transição de um governo declaradamente protecionista e antiglobalização, sob o comando de Trump, para uma administração que tem apreço pelos mecanismos de concertação internacional, visão essa reforçada nos próprios discursos de Biden.
“Não é que o Brasil e o comércio exterior brasileiro vão ter vida fácil com Biden”, diz Sandra. Mas, na visão dela, o presidente eleito americano pode ajudar a criar novas condições para o sistema multilateral e para o comércio global, mudanças essas que também podem ser positivas para o próprio Brasil.
Historicamente, nos EUA, os democratas sempre foram vistos como mais protecionistas em matéria de comércio que os republicanos. Essa ideia se vincula ao fato de que a visão de economia dos republicanos sempre foi mais liberal e menos intervencionista, o que combinava com uma política mais “pró-comércio”, diz Sandra. Mas mesmo em governos republicanos houve medidas de proteção a determinados setores como no caso do alumínio e do aço. Também houve casos de aplicação de medidas antidumping e de direitos compensatórios para setores independentemente do viés político (democrata ou republicano).
A novidade com Trump foi ter incorporado o protecionismo ao discurso. Passou a ideia de que exportar era bom e importar era ruim, uma vez que contribuía para destruir empregos da indústria americana. Houve também a adoção de medidas unilaterais, muitas delas em desacordo com compromissos assumidos na Organização Mundial do Comércio (OMC). Prevaleceu o uso da força, do poder econômico, para implementar essa agenda, diz Sandra.
Com Biden, espera-se uma guinada a começar, por exemplo, pelo retorno dos EUA ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do qual o país saiu por decisão de Trump. Outro tema pendente é a reforma da OMC, que deve avançar a partir da chegada de Biden ao poder. Os americanos têm interesse em mudar alguns dos instrumentos da organização com os quais não se sentiam confortáveis já no fim da administração de Barack Obama, como é o caso do Órgão de Solução de Controvérsias.
Também há expectativa de que os EUA voltem ao Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês), o que pode ter impactos negativos para os produtos brasileiros uma vez que a exportação do Brasil para os países do acordo, sobretudo no agronegócio, concorre com itens vendidos pelos EUA.
Ainda será preciso ver como o Brasil se posiciona frente a essas mudanças esperadas pela comunidade internacional e também diante da própria administração Biden, sobre a qual Bolsonaro “calou” desde que os resultados eleitorais mostraram a vitória do democrata no fim de semana. Desde o início da gestão, em 2019, o governo Bolsonaro adotou retórica antiglobalista, seguindo os passos de Trump.
“O Brasil deveria fazer a releitura das suas posições de política externa à luz dos novos desdobramentos [a eleição de Biden]. Em contexto em que se fica isolado, não faz sentido manter a posição. Só faz sentido quando se está seguindo um líder, do contrário seremos conduzidos a uma posição de isolamento ainda maior. O Brasil vai tocar essa música sozinho agora?”, questiona o embaixador Marcos Caramuru, que esteve à frente da embaixada brasileira em Pequim entre 2016 e 2018.
Caramuru acredita que ainda há muitas indefinições. Por exemplo, os EUA, na gestão Biden, vão retirar de forma seletiva tarifas impostas a países na administração Trump? Vão reduzir tarifas para produtos chineses, o que poderia levar a China a fazer o mesmo? Qual será a postura em relação à tecnologia e ao 5G? O que está claro, diz o embaixador, é que com Biden haverá mais espaço para diálogo e cooperação incluindo temas como ambiente e proliferação de armas nucleares.
O embaixador José Alfredo Graça Lima pensa de forma semelhante. Diz que, com o tempo e com maior respeito para com os organismos multilaterais, existe a esperança de que os EUA se insiram novamente em uma “normalidade” dentro desse sistema em que foram cofundadores. “Sustento que os americanos não se tornaram protecionistas nos últimos quatro anos, mas recorreram via presidente e USTR [representante comercial dos EUA] a medidas que eram típicas da pré-rodada Uruguai do GATT [instância que antecedeu a OMC] em que os Estados Unidos aplicavam medidas unilaterais e não tinham propensão para o diálogo sobre regras multilateralmente acordadas”, diz Graça Lima.
O embaixador vê as mudanças de forma positiva para o Brasil porque obrigam o governo a tratar com a contraparte americana dando prioridade a relações institucionais. “Leva a atuar de forma protocolar, o que é bom na relação entre Estados. Relação entre Estados tem que ser feita por estadistas, indivíduos que tenham objetivos específicos, o que é feito por diplomacia. A diplomacia presidencial pode dar muitos frutos, mas depende de como o diálogo é tocado”, diz Graça Lima. Um dos desafios do Brasil será se inserir mais no comércio global. “Ainda somos muito voltados para dentro”, diz o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro.
Francisco Góes: Um Plano ‘Marshall’ que divide opiniões
Programa Pró-Brasil aprofunda debate sobre uso de recursos públicos para investimento em infraestrutura
O debate sobre o uso de recursos públicos para obras de infraestrutura no pós-pandemia ganhou força com o lançamento do programa Pró-Brasil, coordenado pela Casa Civil da Presidência, na semana passada. Sob o apelido de Plano Marshall, em referência ao apoio à reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra, o programa é tido, pelas alas política e militar do governo, como instrumento importante na recuperação da economia. Mas a iniciativa vem sendo alvo do bombardeio de economistas e da própria área econômica, liderada pelo ministro Paulo Guedes, pelo potencial destrutivo das contas públicas em momento em que os gastos estão concentrados no combate ao coronavírus e seus efeitos.
Embora seja desejável planejar investimentos setoriais para permitir aos investidores, por exemplo, calcular a taxa interna de retorno, há ceticismo entre economistas que seja possível tirar do papel número considerável de projetos em curto espaço de tempo. “Achar que o investimento em infraestrutura vai ser a base para a recuperação pós-pandemia, no contexto institucional do Brasil, esquece”, diz um economista.
A crítica faz referência à dificuldade do Brasil de executar obras no prazo e no custo originais ou, o que é pior, deixá-las incompletas por anos ou décadas a fio. Essa tradição, da qual ninguém pode se orgulhar, se explica por falta de planejamento, pelo desenho mal feito de concessões de obras públicas, por lacunas regulatórias e pela falta de bons projetos de engenharia. O Pró-Brasil prevê aportes de recursos públicos de R$ 30 bilhões até 2022 e a criação de 1 milhão de empregos no período.
Assim que foi apresentado, o programa expôs divergências entre um pensamento mais intervencionista, representado por políticos e militares do Planalto, e a ala liberal, comandada por Guedes. A área econômica do governo tem chamado a atenção para a necessidade de que gastos públicos que vão além do combate à pandemia respeitem as regras fiscais, entre as quais está o chamado teto de gastos, que limita as despesas não financeiras da União à inflação do ano anterior.
O economista Fabio Giambiagi diz que investimentos de longo prazo, como é o caso dos em infraestrutura, dependem de uma taxa de juros também longa, que subiu. Essa taxa, acrescenta, depende da percepção de solvência do setor público, da dívida pública, que é afetada em casos de “contabilidade criativa”. O termo, também chamado de “pedalada”, ficou conhecido do público no governo de Dilma Rousseff e se refere a operações que buscam garantir um ganho artificial para o resultado primário das contas públicas.
Em 2019, Gambiagi e Guilherme Tinoco, ambos economistas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), publicaram artigo no qual defendiam a revisão do teto do gasto público para preservar a capacidade do Estado de investir, e executar políticas públicas, sem deixar de lado o compromisso com a sustentabilidade fiscal. A proposta, hoje sepultada, foi feita em contexto muito diferente do atual, logo depois da aprovação da reforma da Previdência, que teve como um dos artífices o agora secretário do Desenvolvimento Regional do governo Bolsonaro, Rogério Marinho. Menos de um ano depois, Guedes e Marinho estão aparentemente rompidos, pois o ministro da Economia considera o deputado potiguar um dos mentores do Pró-Brasil, que aumenta os gastos públicos.
Um economista que participou do governo de Michel Temer entende, porém, que faz sentido promover um aumento no investimento público em infraestrutura, cujo retorno se dá pela ótica social. Já o investimento privado no setor olha o binômio risco-retorno. O problema, reconhece o técnico, é que não há espaço no Orçamento para mais despesas, o que vai levar a ampliar o déficit público. Mas isso não seria necessariamente um problema, na sua visão: “O custo-benefício para fazer obras com recursos públicos nunca foi tão barato”, argumenta. Na visão dele, não estaria se falando de “muito” dinheiro dada a baixa capacidade do Estado de executar os projetos de infraestrutura a cada exercício fiscal.
“As coisas demoram a acontecer no Brasil”, afirmou. Um exemplo dessa situação, segundo outro economista, é que as primeiras concessões do governo Bolsonaro começaram a ser preparadas na gestão Temer. A visão desses economistas é que o investimento privado em infraestrutura é pouco plausível agora e os desembolsos em concessões existentes serão unicamente os programados, com risco, inclusive, de prorrogação por causa dos efeitos da covid-19.
O BNDES tem em carteira projetos que somam R$ 188 bilhões (ver tabela) em investimentos, dos quais R$ 70 bilhões podem ser realizados em cinco anos, diz Fabio Abrahão, diretor de infraestrutura, concessões e PPPs do banco. São empreendimentos novos, em fase de modelagem, que vão estar prontos para ir a mercado até 2022. A participação do banco no financiamento dos projetos vai variar dependendo do ativo e do setor, diz Abrahão. O objetivo é envolver cada vez mais os bancos privados nas operações. “Se o BNDES, por meio de boa estruturação, conseguir emprestar menos, mas atraindo outros [bancos], vamos conseguir viabilizar mais projetos.”
Francisco Góes: O Brasil e o imposto sobre os combustíveis
Greve dos petroleiros é o motivo mais recente de preocupação na área de energia no país
A greve dos petroleiros chegou ontem ao 17º dia com novas adesões. No começo da noite, porém, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra da Silva Martins Filho, declarou a greve ilegal. Uma vez conhecido o despacho, os sindicalistas se reuniram para avaliar os rumos do movimento, sem decisão até a conclusão desta edição. Pela manhã, o diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Décio Oddone, reiterou que não havia impactos na produção e no abastecimento.
Ele descartou que a continuidade da greve possa levar ao aumento dos preços dos derivados. Afirmou que em uma eventual hipótese de redução da oferta nacional, o que não está previsto, e do aumento da importação os preços nas refinarias da Petrobras seguiriam a paridade com o mercado internacional e a variação do câmbio, como acontece hoje, e concluiu: “Não há expectativa de qualquer impacto em preço”. Na semana passada, em ofício ao TST, Oddone havia alertado para o risco de a greve levar ao desabastecimento caso perdurasse por mais tempo.
A greve dos petroleiros tornou-se motivo de preocupação da ANP, que regula o setor de combustíveis no país, sujeito, desde o começo do ano, a alguns solavancos. Nos primeiros dias de janeiro, a crise entre Estados Unidos e Irã, motivada pela morte do general Qasem Soleimani, provocou incertezas sobre possível disparada nos preços do petróleo. Depois, o mundo tomou conhecimento da epidemia de coronavírus na China e os preços da commodity recuaram. Nesse período, a Petrobras fez quatro reajustes nas refinarias, mas a queda nos preços não chegou até as bombas dos postos.
No começo de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro estrilou: “Estou aqui fazendo papel de otário. Quando é que vai baixar na bomba para o consumidor?.” Ele desafiou os governadores a zerar o ICMS sobre os combustíveis dizendo que faria o mesmo com os tributos federais. Houve reação negativa dos governadores, uma vez que o ICMS sobre os combustíveis é a principal fonte de receita de muitos Estados às voltas com a crise fiscal (no Rio, representa 12,7% da arrecadação).
Embora tenha errado na forma sugerindo algo impossível de se fazer (zerar os tributos), Bolsonaro acertou ao levantar um tema importante: o peso dos impostos sobre o preço dos combustíveis. Coube ao ministro Paulo Guedes acrescentar, dias depois, que a questão será tratada na reforma tributária. Oddone costuma dizer que os preços dos combustíveis são formados por três variáveis: a commodity, a margem de distribuição e de revenda, incluindo custos logísticos, e os impostos (ver tabela). A Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom) inclui um quarto elemento: a adição de etanol e de biodiesel à gasolina e ao diesel, respectivamente.
Oddone disse que a solução para o problema dos combustíveis no Brasil passa por ter competição na commodity e na distribuição e por enfrentar a questão tributária com “inteligência”. Na commodity, a Petrobras passou a seguir os preços internacionais. A petroleira usa dados da GlobalPetrolPrices para demonstrar que os preços da gasolina e do diesel no Brasil estão abaixo da média mundial. No diesel, entre 163 países pesquisados, o Brasil ocupa a 58ª posição (105 países possuem preços mais elevados). Na gasolina, o Brasil está na 80ª posição (outros 83 países têm preços mais altos).
Na distribuição, Oddone defende o fim de restrições, como a proibição da venda direta de combustível da refinaria para os postos. Essa proibição não faz sentido pois os volumes de venda direta não seriam relevantes, disse. A proposta enfrenta resistência das distribuidoras. Para o consultor Adriano Pires, a venda direta de combustível causaria insegurança no abastecimento, provocaria perda de qualidade do produto e estimularia a sonegação. “Defendo uma maior competição na distribuição de combustíveis”, rebateu Oddone.
Tanto ele como importadores e distribuidores estão de acordo em um ponto: seria melhor que o ICMS fosse cobrado na forma de um valor fixo em reais por litro, em vez de um percentual sobre o preço do produto na bomba, como é hoje. Essa fórmula garantiria estabilidade na arrecadação e não seria fator de volatilidade no preço final, disse Oddone. Outro problema, afirmou, está na diferença do ICMS cobrado pelos Estados, o que seria “convite” à sonegação.
O secretário da Fazenda do Rio, Luiz Claudio Rodrigues de Carvalho, disse que não há possibilidade de o Brasil ter alíquota única de ICMS porque cada Estado tem uma realidade. Ele mostrou-se cético sobre eventual mudança na sistemática de cálculo do imposto. Lembrou que na crise do Irã, em janeiro, o Rio manteve inalterada a base de cálculo sobre os combustíveis e, mesmo assim, o preço subiu na bomba. “O fato de a refinaria reduzir seu preço de venda para a distribuidora não significa que o preço vai cair na bomba porque os elos intermediários podem se apropriar da margem.” Para ele, a tributação sobre os combustíveis tem que ser tratada na reforma tributária como um todo, e não separadamente. Adriano Pires acredita que o governo seria favorável, na reforma, à redução de impostos sobre a gasolina e o diesel. Para ele, porém, o imposto sobre o combustível não pode seguir o padrão europeu, mais alto como forma de atender exigências ambientais, nem a tributação dos Estados Unidos, mais baixa do que a praticada no Brasil. “Para onde queremos ir? É uma opção de país”, questiona.
*Francisco Góes é chefe da redação no Rio.