França
Revista online | Godard, o gênio exausto
Vladimir Carvalho*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)
A morte consentida de Jean-Luc Godard pode sinalizar para muitos o final de uma era cinematográfica marcada desde a primeira vanguarda, nos anos 1920, por uma incessante busca de legitimação de uma atividade artística que, de cara, se autodenominava de Sétima Arte, com técnica e linguagem próprias. Cedo seria respaldada pela formação de uma mentalidade que nasceu com os cineclubes, os críticos e as revistas especializadas – o que hoje é conhecido de forma generalizada por cinefilia. Teorias e posturas estéticas renovadoras já se faziam sentir ao tempo do cinema soviético com Sergei Eisenstein, Dovijenko, Dziga Vertov e outros até a explosão que foi o Cidadão Kane, de Orson Welles, nos anos de 1940.
Na década posterior, os franceses jogaram papel importante a partir da ação desenvolvida pela Cinemateca Francesa e com o aparecimento do grupo liderado por André Bazin, grande influenciador e principal crítico da revista Cahiers du Cinéma, que se tornaria célebre e em cujo agitado seio surgiria o até ali desconhecido franco suíço. Ao lado de outros, como François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer e Claude Chabrol, compondo a tendência que seria conhecida, ou apelidada, de “jovens turcos”. Mais tarde, alguns deles se renderiam aos encantos da prática cinematográfica como ativos diretores que defendiam a todo custo a autonomia de um cinema autoral, desde ali, em confronto com o poderio dos produtores que condenavam por princípio o filme clássico francês e valorizavam uma política de autores.
Nesse clima de camaradagem solidária, o futuro autor de Acossado (1960) pontificou-se como um ferrabrás da crítica atento à condução moderadora de Bazin, mas em franco contraste com Georges Sadoul, um marxista militante, que sempre defendeu o cinema soviético não só do período eisensteiniano como também os das gerações posteriores. Godard foi desde sempre um anarquista, pontificando-se na avaliação e cotação dos filmes, no famoso Conseil des Dix, da revista.
Em 1960 Godard vai à “guerra” com uma narrativa desconcertante e uma linguagem inédita até aquele momento. O público delirou com Acossado, e a crítica foi obrigada a reconhecê-lo. Segue-se com igual liberdade estética, Uma Mulher é uma Mulher (1962) e O Desprezo (1963). Depois a política faz a festa em Masculino, Feminino (1966); a moda godardiana continua em Made in USA (1966) e em A Chinesa (1967), que radicaliza em termos de desdramatização e nos aspectos políticos. É um cinema diametralmente oposto aos clássicos americanos, mas que tinha muito da simpatia que os “jovens turcos” nutriam pelos filmes B, nos Cahiers. Porém, ainda não era, claro, o Godard radical e em mutação do Grupo Dziga Vertov, do final dos anos 1960, e que, em Maio de 68, se confunde com os estudantes revoltados, filmando nas barricadas de Paris.
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E foi nessa rumorosa onda de 1968, num veemente protesto contra a demissão do carismático Henri Langlois, da curadoria mor da Cinemateca Francesa, que o Festival de Cannes foi atropelado e quase não aconteceu. Godard protagonizou a cena principal, pendurado nas cortinas do Palais, impedindo que as sessões começassem, com ampla cobertura da imprensa. Em Paris, a redação dos Cahiers, na rua Marbeuf, virara um comitê de agitação em favor dos estudantes; e a temperatura subiu quando o filme de Jacques Rivette, A Religiosa, foi proibido. Novamente é um empedernido Godard que toma as dores e defende Rivette e seu filme, rompendo com o grande André Malraux, então ministro da Cultura, em carta que passou aos anais como uma irrespondível peça de condenação do Estado gaullista.
Entretanto, no âmbito de certa crítica, “a sua utopia de um cinema marxista, de parceria autoral com a classe trabalhadora, resultou tão frustrada quanto a aliança dos estudantes com os proletários da Renault”, como argutamente observou o crítico e escritor Sergio Augusto.
A propósito do perfil muitas vezes contraditório do autor de Je Vous Salue Marie (1985), podemos recordar aqui episódio ocorrido durante o Festival Internacional do Filme, o histórico FIF, do Rio de Janeiro. Godard compareceria ao mesmo para a apresentação do seu filme Alphaville. Tudo acertado, pouco depois ele mandou um telegrama desistindo de participar, num gesto de protesto e condenação da ditadura militar no Brasil. Instalada a confusão, surpreendeu a todos, negando peremptoriamente a autoria da mensagem, e atribuindo-a a terceiros. Quando tomou conhecimento da negaça, o crítico Robert Benayon, da revista Positif, rival dos Cahiers, presente ao evento brasileiro, desabafou para quem quisesse ouvir. Para ele, tratava- se de “mais uma daquele fascista!”. Nesse tempo, andava o autor dessas notas, trabalhando como assistente de Arnaldo Jabor, num filme que realizou sobre o FIF, Rio, Capital do Cinema, e ouviu os comentários acerca desse lance, nos bastidores da sede da mostra, no Copacabana Palace.
Essa época no Rio foi muito marcada pelos filmes e paixão pelos diretores da Nouvelle Vague. Uma pequena multidão de cinéfilos não arredava o pé das sessões do Cinema Paissandu, no Flamengo. Ali enturmei-me levado pelas mãos de Cosme Alves Neto e assisti, imerso na euforia da rapaziada, a quase todos os filmes de Godard lançados ali naquele ano de 1968. A cidade tomada pelo alvoroço político e pela revolta em virtude da morte de Edson Luiz, secundarista assassinado pela polícia no restaurante Calabouço, no aterro do Flamengo, estava transtornada. O clima era de insegurança e medo, mas filmes como Tempo de Guerra, de Godard, nos convocavam à ação, e, portanto, era também do Paissandu que partíamos para engrossar as fileiras da célebre Passeata dos Cem Mil. O Maio de 68 estava fresquinho em nossas agitadas cabeças. Mesmo sabendo das restrições ao autor de Masculino, Feminino, taxado até de fascista pelo pessoal da revista Positif, numa linha editorial que confrontava com os Cahiers du Cinéma, eu pouco ligava. Já havia lido os elogios de Georges Sadoul à Aruanda, o filme de Linduarte Noronha, em que atuei como roteirista e assistente, e num rompante juvenil pouco me interessava que Godard o achasse um stalinista superado pelo tempo, que já era tomado pelo revisionismo que resultou das sérias denúncias feitas por Kruschev; nem tomáramos conhecimento das restrições de Lévi Strauss ao franco suíço; tampouco da ojeriza que Jeanne Moreau lhe dedicava. Godard vivia agora a sua febre maoísta junto ao Grupo Dziga Vertov. E era nosso herói.
Muito depois é que tomaríamos conhecimento das peripécias do nosso ídolo quando da realização de seu filme Vento do Leste. Ele proporia a Glauber Rocha, que fazia importante participação na obra, que juntos destruíssem o cinema como arte. O brasileiro, sagaz como sempre, logo sacou que Godard começava a sucumbir à depressão e militava numa espécie de autodestruição, e a sua resposta foi a de que ele, Glauber, ao contrário, optava pela construção de um cinema inovador e de salvação, no Brasil e no Terceiro Mundo.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
Gênio consumado, mas profundamente contraditório e iconoclasta, talvez naquele momento já se manifestasse no espírito de JLG o quadro psíquico que o dominou no fim da vida, depois da realização de filmes não tão brilhantes e plenos de vigor, como os daquela fase em que fez sombra a toda uma geração do cinema francês da Nouvelle Vague. Oriundos quase todos dos Cahiers, o qual terminou, é bom lembrar, por apoiar o Cinema Novo brasileiro, especialmente promovendo seus autores mais importantes e mais afinados com o ideário da revista, como é o caso de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl.
Embora tumultuada, a existência de Godard foi profícua e intensa, mas sua morte assistida parece se justificar pelo cansaço e esgotamento que o vitimou, e sua descida se deu também pela inexorável ação, digamos assim, da força da gravidade em vista do peso de seus 91 anos. Que descanse em paz!
Sobre o autor
*Vladimir Carvalho é um cineasta e documentarista brasileiro de origem paraibana.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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RPD || Lilia Lustosa: Belmondo, Nouvelle Vague e cia
Movimento cinematográfico mostrou uma França mais moderna, dinâmica. Jean Paul Belmondo era seu grande ícone
Em setembro, o mundo perdeu um de seus grandes atores, Jean-Paul Belmondo. Símbolo maior da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico francês revolucionário que, inspirado no neorrealismo italiano e no cinema-verdade de Jean Rouch, acabou por influenciar diversos novos cinemas em todo o mundo.
Desde o lançamento de Acossado, naquele março de 1960, o cinema mundial nunca mais seria o mesmo. Não por ter sido esta a pedra fundamental do movimento, mas, mais precisamente, por ter se convertido em uma espécie de manifesto da Nouvelle Vague, ao apresentar na telona estética e temática totalmente novas. O filme, dirigido por Jean-Luc Godard e baseado em argumento de François Truffaut, mandou às favas as regras já consolidadas do cinema comercial, trocou o tripé pela câmera na mão, usou película fotográfica ultrassensível para escapar da obrigatoriedade dos estúdios e ainda transformou bandidos em protagonistas, levando plateias inteiras a torcerem para que Michel (Belmondo), mesmo depois de ter roubado um carro e matado um policial, escapasse para Roma com a bela Patricia (Jean Seberg).
A partir dali, o mundo começava a entender que já não era mais preciso se render à predatória indústria cinematográfica norte-americana, nem à francesa, nem a qualquer outra. E que era possível, sim, realizar bons filmes com poucos recursos, câmeras leves, ao ar livre, equipe reduzida, tratando de temas moralmente questionáveis. Foi a retomada do “cinema de autor”, preconizado pelos vanguardistas dos anos 1920/30.
No Brasil, um dos herdeiros da Nouvelle Vague foi o Cinema Novo, que adotou a câmera na mão como slogan e levantou a bandeira da independência dos grandes estúdios, nacionais e internacionais. A liberdade era o grande lema dos jovens cinemanovistas que viam nessa nova maneira de fazer cinema uma forma de descolonizar também sua cultura. Filmes como Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, beberam diretamente da fonte do movimento francês, sendo vistos com admiração até mesmo pelos próprios críticos do Cahiers de Cinéma, berço da Nouvelle Vague. No filme de Guerra, Norma Bengell protagonizou o primeiro nu frontal da história do cinema brasileiro. Um escândalo para a época!
Mas o Cinema Marginal também assimilou características da “marginalidade” do movimento francês, levando-os, porém, a um paroxismo nunca visto no Brasil. O crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet aponta várias influências de Godard em O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, filme-marco deste movimento que sucedeu o Cinema Novo. Para ele, Acossado teria sido o filme que mais influenciara o cineasta paulista em sua obra. O anti-herói Jorge (Paulo Villaça) tinha muito de Michel-Belmondo, seu suicídio tendo sido moldado, porém, a partir da morte de outro personagem de um filme de Godard, Ferdinand de O Demônio das Onze Horas (1965), também interpretado por Belmondo.
Já nos Estados Unidos, a Nouvelle Vague impulsionou o nascimento da New Hollywood, deixando como herança a liberdade temática adotada a partir de então, com tramas que passavam a dialogar mais diretamente com o contexto sociopolítico daqueles rebeldes anos 60. Tópicos como igualdade racial e de gênero, pacifismo e liberdade sexual passaram a aparecer sem pudor nas telas de cinema. Anti-heróis viraram protagonistas e foram ganhando espaço no coração dos espectadores. Algo impensável até a estreia de Bonnie e Clyde (1967), de Arthur Penn, filme que abriu portas para uma nova geração de cineastas, composta por Scorsese, Coppola, Spielberg, Georges Lucas e outros. Diretores que mergulharam Hollywood em outra dimensão estética, sendo até hoje venerados e idolatrados por um sem-número de cinéfilos mundo afora. Cineastas que influenciaram, por sua vez, outras gerações que seguem trabalhando em busca de novas inspirações e tecnologias que possam revolucionar ainda mais a sétima arte.
Mas, voltando à França e ao grande ícone da Nouvelle Vague, Belmondo nunca hesitou em assumir que não era lá muito fã daquele tipo de cinema que ele considerava “intelectual” demais… Um dos filmes em que mais gostou de atuar foi O Homem do Rio (1964), de Philipe de Broca, uma aventura nada nouvellevaguiana, rodada em Paris e no Brasil, uma espécie de live-action de Tintim, em que Adrien (Belmondo) viaja por terras tupiniquins para salvar sua amada Ignès (Françoise Dorléac), raptada por índios sul-americanos. Certamente, um retrato-clichê de nosso país, mas que serviu para conquistar espaço nas telas e nos corações dos franceses e de todo o mundo.
Merci et au revoir, Belmondo!
*Lilia Lustosa é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.
Luiz Carlos Azedo: Naufrágio em dique seco
O projeto de construção do submarino nuclear brasileiro, uma parceria com a França, nunca agradou aos Estados Unidos e ao Reino Unido
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Jair Bolsonaro participou, ontem, de reunião bilateral com o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, em Nova York, onde estão para participar da 76a Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), hoje. Em vídeo divulgado nas redes sociais do presidente da República, o premier afirma que havia prometido visitar o Brasil, mas a pandemia da covid-19 impediu a viagem. O tema da covid-19 dominou o encontro.
Entretanto, quem quiser que se engane, o pano de fundo das relações estratégicas entre o Reino Unido e o Brasil são a forte presença comercial chinesa no continente, o controle do Atlântico Sul, área de influência dos ingleses, e o acordo militar com a França para construção do submarino nuclear brasileiro. Além disso, o Brasil apoia as pretensões da Argentina no sentido de recuperar a soberania sobre as Ilhas Malvinas (Falkland Islands), arquipélago localizado na plataforma continental da Patagônia, porém um território ultramarino britânico.
De abril a junho de 1982, a Argentina tentou recuperar o controle do território, mas levou uma surra da Marinha inglesa, com apoio logístico dos Estados Unidos e constrangida neutralidade brasileira. A derrota na Guerra das Malvinas colocou em xeque a doutrina de segurança nacional dos países da América do Sul, inclusive o Brasil, pois supunha-se que o aliado principal contra qualquer outra potência de fora do subcontinente eram os EUA. O conceito de “Amazônia Azul” e a decisão de construir um submarino nuclear em parceria com a França, para aumentar o nosso poder de dissuasão em águas territoriais, têm tudo a ver com o petróleo da camada pré-sal e a Guerra das Malvinas.
Na semana passada, Reino Unido e EUA protagonizaram um novo acordo militar com a Austrália, ou seja, no Pacífico e no Índico, no qual se comprometeram a fornecer submarinos nucleares àquele país da Oceania. Parlamentarista, a Austrália faz parte dos Reinos da Comunidade de Nações (Commonwealth realms), cuja chefe de Estado é a Rainha Isabel II (Elizabeth II). O acordo detonou o contrato de US$ 65 bilhões da Austrália com a França para compra de 12 submarinos franceses com propulsão convencional.
Após o anúncio do acordo militar entre Austrália, EUA e Reino Unido, a China também reagiu e considerou a aliança uma ameaça “extremamente irresponsável” à estabilidade regional. Pequim reivindica soberania sobre parte do Mar da China Meridional, muito rico em recursos naturais e importante rota comercial. Por isso, rejeita as pretensões territoriais de outros países da região, como Vietnã, Malásia ou Filipinas.
Submarino brasileiro
Acontece que o projeto de construção do submarino nuclear brasileiro, uma parceria com a França, nunca agradou aos EUA e ao Reino Unido. Os franceses forneceram tecnologia para construção do casco do submarino, um grande desafio. O reator nuclear, porém, foi todo desenvolvido pela Marinha brasileira (usará combustível com apenas 6% de urânio, contra um mínimo de 15% dos franceses e 90% dos norte-americanos).
O Almirantado “economiza arroz” para viabilizar o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub) e o Programa Nuclear da Marinha (PNM), mas o projeto está naufragando em dique seco, com cortes de 31% e 49%, respectivamente, no seu orçamento. Para garantir a continuidade mínima do projeto, a Marinha precisa recuperar R$ 267,5 milhões que seriam destinados ao Prosub, mas foram vetados por Bolsonaro.
O Brasil possui quatro submarinos da classe Tupi (Tupi, Tamoio, Timbira, Tapajó), um da série Tikuna e o Riachuelo, da classe Sporpene, o primeiro do Prosub. O Humaitá, em fase de testes, é o segundo. Terceiro e quarto, respectivamente, o Tonelero estava programado para ser lançado em dezembro deste ano, enquanto o Angostura, em dezembro de 2022. O valor total dos quatro submarinos convencionais é de 100 milhões de euros, o equivalente a R$ 630 milhões em câmbio atual. Somados, é mesmo valor do submarino movido por energia nuclear, cujo nome será Álvaro Alberto, o almirante que liderou o programa nuclear brasileiro. O cobertor, porém, é curto. A esquadra está sucateada e precisa de novas fragatas e navios-patrulha também em construção.
Demétrio Magnoli: Vírus verde e amarelo
Entrou na moda proclamar que o Brasil converteu-se em risco biológico global
Sob a hashtag #VariantBresilien, a xenofobia contra brasileiros espalha-se pelas redes sociais e as ruas da França. Na nossa língua comum, difunde-se também em Portugal (Folha, 17/4). O vírus tem pátria?
No auge da nossa segunda onda pandêmica, entrou na moda proclamar que o Brasil converteu-se em risco biológico global. “O Brasil é uma ameaça à humanidade e um laboratório a céu aberto”, disse Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz, obtendo eco entre divulgadores científicos pop e comentaristas de jornais e TV. É asneira —mas uma daquelas asneiras que se quer inteligente.
A fogueira da pandemia chegou ao Ocidente pelo túnel da Lombardia. Na época, ninguém teve a ideia de rotular a Itália como “ameaça à humanidade”. Depois, o incêndio tomou a Europa, antes de atingir níveis assombrosos nos EUA —e, felizmente, o rótulo repulsivo permaneceu sem uso. Por que o Brasil, não os outros?
Vírus sofrem mutações. As mutações surgem por acaso, fixando-se segundo as regras da seleção natural. Variantes mais contagiosas, possivelmente mais letais, do coronavírus emergiram no Reino Unido, na África do Sul, nos EUA. O Brasil é o berço da P.1, que circula também no Chile, na Argentina e no Uruguai. Nas ilhas britânicas, identificou-se a B.1.1.7, hoje predominante na Europa e, talvez, nos EUA. A sul-africana B.1.351 parece resistir à vacina da AstraZeneca. O que há de singular com o Brasil?
As variantes se difundem sem precisar viajar em aviões, navios ou automóveis, pelo fenômeno da convergência evolutiva que propicia o aparecimento independente de mutações similares em regiões geográficas diferentes. A Índia ultrapassou o Brasil e lidera as estatísticas globais de contágio. Lá, identificou-se a B.1.617, que carrega 13 mutações. #IndianVariant, vamos brincar de xenofobia?
No rastro dos atentados jihadistas do 11 de setembro de 2001, o Ocidente aprendeu a lição abominável de associar o terror à figura do estrangeiro muçulmano. Duas décadas depois, sob a pandemia, estreia uma versão adaptada do filme antigo que associa um letal inimigo invisível aos estrangeiros. Trump escreveu o roteiro básico; discípulos distraídos o imitam, introduzindo mudanças ajustadas às suas próprias agendas políticas.
O ex-presidente americano inventou o “vírus chinês”, correlacionando uma nação a um agente infeccioso submicroscópico com a finalidade de cobrir o fracasso sanitário de seu governo. No Brasil, o cordão de puxa-sacos liderado por Bolsonaro e Ernesto Araújo reproduziu, à exaustão, o álibi xenófobo trumpiano. Um ano depois, antibolsonaristas operam com o mesmo bisturi, apelando à deturpação do discurso científico para identificar uma nação a variantes daquele agente infeccioso.
Trump disseminou a tese conspiratória de que o vírus foi fabricado num laboratório chinês, do qual teria escapado para contagiar o mundo. O tema do Brasil como ameaça biológica planetária bebe na mesma fonte e repete um refrão similar. “O Brasil é um laboratório a céu aberto para o vírus se proliferar e eventualmente criar mutações mais letais. Isso é sobre o mundo.” (Miguel Nicolelis). “O país está se tornando uma ameaça global à saúde pública.” (Pedro Hallal).
Se o fim é virtuoso, por que se preocupar com os meios? Que tal proceder como Trump, quando se trata de alertar sobre a onda epidêmica avassaladora no Brasil, denunciar o negacionismo sem fim do governo federal, salvar vidas? A resposta é que, depois da pandemia, ainda haverá um mundo —e seus contornos políticos serão largamente definidos pelos conceitos cristalizados nesses meses sombrios.
Uma coisa é marcar a testa de Bolsonaro com o sinete da vergonha; outra, bem diferente, é traçar um círculo sanitário ao redor dos brasileiros. O vírus não tem pátria. Pandemias não têm hino ou bandeira. #IndianVariant, é por aí que queremos ir?
El País: França suspende voos com o Brasil para evitar variante brasileira do coronavírus
Com a medida, que não tem prazo para acabar, país busca impedir a entrada da cepa de Manaus no país. “Notamos que a situação está piorando”, afirmou o primeiro-ministro francês
A França suspenderá “até novo aviso” todos os seus voos com o Brasil devido a preocupações geradas pela variante brasileira da covid-19, anunciou o primeiro-ministro Jean Castex nesta terça-feira. “Notamos que a situação está piorando e, portanto, decidimos suspender todos os voos entre o Brasil e a França até novo aviso”, disse. A medida vale tanto para voos que partem do Brasil como para os que saem do território francês e atende a pedidos de especialistas do país europeu, que alertavam para o perigo da entrada do vírus no país.
A crise de saúde no Brasil não para de se agravar desde fevereiro, especialmente pelo aparecimento da variante de Manaus do vírus, conhecida como P1, considerada mais contagiosa e perigosa. O país tem batido seguidos recordes de mortes diárias e já acumula 354.617 óbitos e 13,5 milhões de casos confirmados desde o início da pandemia. Nesta terça, é possível que um novo recorde de mortes seja registrado, já que houve represamento de informações por parte de Estados nesta segunda.
A nova variante brasileira já se tornou fator de preocupação em outras partes do mundo, como o Canadá, que registra o maior número de casos da P1 fora do Brasil. Na França, ainda que a variante brasileira seja minoritária, os profissionais de saúde vêm alertando há alguns dias para a disseminação da cepa. A oposição chegou a exigir que o Governo interrompesse os voos com o Brasil.
De acordo com informações do jornal Le Monde, na segunda-feira o ministro dos Transportes, Jean-Baptiste Djebbari, afirmou que o Governo havia decidido manter algumas linhas com o Brasil por respeito à liberdade de ir e vir dos franceses. Os viajantes que chegavam ao país vindos do Brasil tinham que apresentar um teste PCR negativo e se isolar por dez dias.
A situação de descontrole da pandemia vivida no Brasil causa preocupação no mundo não apenas pela existência da variante de Manaus. Mas a grande replicação do vírus torna o terreno fértil para o aparecimento de novas variantes cada vez mais contagiosas e, possivelmente, resistentes à vacina —o que a P1 ainda não é.
Míriam Leitão: O que a turma do Planalto não faz
Na frente de quatro chefes de Estado, o presidente do Brasil disse algo do qual recuou 24 horas depois. O fato mostra que não houve assessor, ministro, qualquer pessoa no gabinete ou na estrutura do Palácio que o alertasse de que ele não deveria ameaçar revelar uma lista de países supostamente cúmplices do desmatamento, porque não teria capacidade de sustentar o que dizia. O episódio mostra que o país não tem apenas um presidente irresponsável, tem uma presidência irresponsável.
Em qualquer governo há uma estrutura em torno do chefe de Estado que o alerta, informa e assessora. O Brasil de Bolsonaro não tem isso. Ou é falta de qualificação de quem está em torno dele ou é falta de coragem de enfrentar um presidente temperamental. Não se sabe se aquela estultice estava escrita no texto que ele lia ou se foi um improviso inconsequente. Mas o fato é que dois anos depois de assumir a presidência ele continua desrespeitando o papel de representante do país nos seus encontros internacionais.
Ele falou para os governantes da China, Índia, Rússia e África do Sul que em breve revelaria os nomes dos países que compram madeira ilegal do Brasil, mostrando entre eles “alguns que muito nos criticam”. No dia seguinte, em rede social, disse o oposto. “A gente não vai acusar país A, B ou C.” Ou seja, o presidente do Brasil mentiu. De novo. E diante daquelas testemunhas, quatro chefes de Estado.
Bolsonaro foi um deputado irresponsável, que se especializou em acusar sem provas ou dizer coisas que chamavam atenção pelo absurdo, como ameaçar fuzilar o ex-presidente Fernando Henrique, dizer que a ditadura deveria ter matado 30 mil, e que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia.
Os três fatos narrados acima são crimes. Foram vários outros. A Câmara optou, em seguidos mandatos, por deixar ele cometer esses crimes e jamais o puniu. A deputada Maria do Rosário o processou, mas a Justiça foi tardia e falha. Foi assim que Bolsonaro chegou à presidência, ficando impune de crimes de ameaça de morte, defesa da tortura, atentado à democracia, homofobia, ataques às mulheres e racismo. Ele levou esse estilo para a presidência. Mente e faz bravatas diante de seus apoiadores no cercadinho do Alvorada, mente e faz bravatas diante de chefes de Estado.
Não há qualquer anteparo. Nada que proteja o Brasil dos absurdos do presidente da República. Esse caso deixa nua a própria presidência, dado que ninguém o impediu de falar o que falou. O que disse mostra que ele é um desinformado, como já escrevi aqui. Mais de 80% do que o Brasil extrai de madeira da Amazônia é vendido para o próprio mercado brasileiro, segundo estudo do Imazon. Os empresários do setor também confirmaram isso e disseram que atualmente não chega a 15% o que é exportado. Países não importam, empresas, sim. E se sabemos quem compra então sabemos quem vende, como lembrou uma servidora do Ibama num telefonema para a CBN. Empresas que exportam legalmente, que cumprem as leis do país serão punidas agora com o fechamento do mercado para o Brasil. É gravíssimo insinuar que existe em poder da presidência brasileira uma lista de países receptadores de crimes ambientais.
Há erros seriais na declaração de Bolsonaro no Brics. E isso para ficar só num pequeno trecho do discurso cheio de equívocos que leu. A política ambiental é um atentado à economia. Diariamente o presidente dá razões para que se fechem mercados, que não se confirmem acordos, que o Brasil seja isolado comercial e economicamente. As empresas, os bancos, os fundos, o agronegócio exportador, todos estão alertando sobre isso. Mas o ministro da Economia quando fala sobre a questão ambiental repete a visão calamitosa do presidente da República.
Bolsonaro comete essas barbaridades e a estrutura da presidência não o impede, o ministro das Relações exteriores o estimula, o ministro da Economia confirma, o ministro da Justiça senta-se ao lado dele, com a Polícia Federal, para tentar, depois do fato, consertar o que não tem conserto. Foi um caso exemplar de desgoverno. Esta administração dá provas diárias de que é um perigo para o país em todos os sentidos, na gestão interna e nas relações internacionais. Uma presidência totalmente irresponsável.
Hélio Schwartsman: 'Je suis Samuel Paty'
Liberdade de expressão faz parte das inovações que puseram Europa na rota da tolerância
Estou com Emmanuel Macron. O Ocidente não pode desistir de princípios como a liberdade de expressão só porque certas palavras e desenhos ferem suscetibilidades religiosas. A liberdade de expressão faz parte do pacote de inovações, primeiro cognitivas e depois institucionais, que colocaram a Europa na rota da ciência, da prosperidade e da tolerância.
Uma das coisas que mais me chocou quando do atentado contra o semanário satírico francês Charlie Hebdo, em 2015, que deixou 12 mortos, foi que várias vozes respeitáveis da sociedade civil condenaram o ataque, mas fizeram questão de acrescentar que o estilo excessivamente irreverente e provocativo da publicação havia chamado a tragédia para si.
A nova crise, que já contabiliza um saldo de dois atentados, o assassinato do professor Samuel Paty e o ataque a uma Igreja Católica em Nice, mostra os limites do raciocínio contemporizador. O professor Paty não tinha a intenção de provocar ninguém. Ele estava apenas explicando o conceito de liberdade de expressão. Antes de exibir as charges retratando o profeta Maomé, alertou os alunos muçulmanos para o potencial ofensivo dos desenhos e os convidou a deixar a sala, se quisessem. Tal cuidado não o impediu de ser decapitado por radicais islâmicos.
O problema, portanto, não está na atitude daqueles que criticam religiões, mas no fato de certos grupos não aceitarem o mais básico dos princípios do pacto civilizatório, segundo o qual diferenças são resolvidas sem recurso à violência física.
Ninguém pede que os muçulmanos aplaudam as charges. Eles têm todo o direito de criticá-las e os seus autores. Podem xingá-los. Podem até, como estão fazendo, promover boicotes a produtos franceses, mas não podem matar uma pessoa porque não gostam do que ela diz ou desenha. Quer dizer, até podem, como mataram, mas, ao fazê-lo, saem do pacto civilizatório para tornar-se terroristas.
Segredo da mão impressa na gruta de Lascaux instiga historiador Ivan Alves Filho
Em artigo na revista Política Democrática Online, autor se debruça sobre o assunto e aponta hipóteses
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“O que significa, exatamente, aquela mão impressa numa gruta de Lascaux, no interior da França? Será que alguém sabe dizer ao certo? Estamos diante de mais um daqueles mistérios insondáveis da humanidade?”. As perguntas são do jornalista e historiador Ivan Alvez Filho, em artigo que ele produziu para a revista Política Democrática Online. A publicação é produzida a editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), e todos os seus conteúdos são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade.
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Em todo caso, diz o autor no artigo, a questão sempre o fascinou. “Penso em várias hipóteses. Primeiro, o homem teria percebido que a mão o diferenciava dos animais. Daí o destaque dado a ela. Afinal, ele era o único ser a ficar de pé, com as mãos liberadas, portanto. E o raio de visão consideravelmente ampliado”, afirma, para continuar: “As datas calculadas pelos arqueólogos para a idade das pinturas rupestres de Lascaux se aproximam dos 30 mil anos, época em que o homem já era perfeitamente homo sapiens erectus. Faz certo sentido”.
Outra hipótese, de acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática Online, implicaria aceitar que o homem quis legar para a posteridade um testemunho de sua passagem pelo mundo. “Como se, subitamente tomado de uma consciência de indivíduo, ele se dispusesse a comunicar, transmitir, registrar sua humanidade àqueles que fatalmente lhe sucederiam”, diz ele.
A consciência humana em gestação revelava, segundo o historiador, que o homem não era imortal. “E a pintura o teria auxiliado a expressar isso, a deixar sua marca para o futuro. Ou seja, nós. É razoável pensar assim. Nascia o mundo do simbólico, que também nos diferencia dos animais. Karl Marx chegou a dizer que o pior dos arquitetos é superior a melhor das abelhas por fazer uso de sua imaginação”, acentua.
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RPD || Ivan Alves Filho: A mão e o mistério
Considerada Patrimônio Mundial da Unesco, a Gruta de Lascaux possui pinturas rupestres com cerca de 20 mil anos, acreditam alguns cientistas. Ela foi descoberta em 12 de setembro de 1940 por quatro adolescentes
O que significa, exatamente, aquela mão impressa numa gruta de Lascaux, no interior da França? Será que alguém sabe dizer ao certo? Estamos diante de mais um daqueles mistérios insondáveis da Humanidade?
Em todo caso, a questão sempre me fascinou. Penso em várias hipóteses. Primeiro, o homem teria percebido que a mão o diferenciava dos animais. Daí o destaque dado a ela. Afinal, ele era o único ser a ficar de pé, com as mãos liberadas, portanto. E o raio de visão consideravelmente ampliado. As datas calculadas pelos arqueólogos para a idade das pinturas rupestres de Lascaux se aproximam dos 30 mil anos, época em que o homem já era perfeitamente homo sapiens erectus. Faz certo sentido.
Vamos prosseguindo. Outra hipótese implicaria aceitar que o homem quis legar para a posteridade um testemunho de sua passagem por esse vasto mundo de Deus. Como se, subitamente tomado de uma consciência de indivíduo, ele se dispusesse a comunicar, transmitir, registrar sua humanidade àqueles que fatalmente lhe sucederiam. Por que não? A consciência humana em gestação revelava, assim, que o homem não era imortal. E a pintura o teria auxiliado a expressar isso, a deixar sua marca para o futuro. Ou seja, nós. É razoável pensar assim. Nascia o mundo do simbólico, que também nos diferencia dos animais. Karl Marx chegou a dizer que o pior dos arquitetos é superior à melhor das abelhas por fazer uso de sua imaginação.
Mais uma hipótese seria buscar no gesto do homem que estampava sua mão nas paredes de uma rocha a necessidade de compreender, ainda que de forma confusa ou embrionária, sua exterioridade em relação ao meio. O homem e sua imagem ganhavam então o mundo. Razoável também, não é? É possível imaginar ainda que, com seu gesto, o homem pretendesse fazer arte, isto é, embelezar o ambiente que o cercava. A coisa também faz algum sentido.
Ou, então, descartaríamos todas essas possibilidades. Nesse caso, poderíamos imaginar que a mão de Lascaux era simplesmente a mão de Lascaux. E nada mais.
Confesso que essa última hipótese é a que mais me atrai – mesmo que não seja, forçosamente, a mais consistente. Ainda que não faça lá muito sentido.
Mas será que o mistério faz?
Clóvis Rossi: Contra o ódio, é preciso conversar
Macron mostrou o caminho; será seguido aqui?
Duas iniciativas do presidente da França, Emmanuel Macron, talvez devessem ser replicadas no Brasil.
A primeira foi a convocação de um grande debate nacional: durante dois meses, desde meados de janeiro, se realizaram mais de 10 mil reuniões em todo o país. Macron participou de uma dúzia delas.
Objetivo: dar voz aos franceses, para entender a insatisfação popular. Que há insatisfação, é só ver a quantidade de gente que participa, todos os sábados, das manifestações dos "coletes amarelos".
A propósito: não vale confundir os protestos, quando pacíficos, com o vandalismo promovido pelos chamados "casseurs", que saem quebrando o que encontram pela frente. Não é civilizado.
Segunda iniciativa de Macron, levada a cabo na segunda-feira (18) e que avançou pela madrugada de terça (19): chamar ao Palácio do Eliseu 64 acadêmicos (filósofos, historiadores, sociólogos, economistas, cientistas), como se fosse o epílogo do grande debate nacional.
Por que acho que são iniciativas que deveriam ser imitadas?
Primeiro, porque o Brasil precisa conversar. O que há hoje é um monólogo dentro de cada tribo, não uma conversação entre uma tribo e outra (ou entre diferentes tribos).
Segundo, porque há no Brasil uma situação razoavelmente parecida com a que o filósofo Pascal Bruckner descreveu para Macron sobre a França. Lamentou, no Eliseu, "esta anarquia crescente, que faz da França um país em um estado de quase guerra civil latente, na qual o ódio de todos contra cada um parece triunfar".
Que há uma guerra civil mais que latente no Brasil é óbvio, embora de características diferentes. Que há ódio no ar (e nas redes sociais) é igualmente evidente.
Nessas condições, o brasileiro é hoje mais infeliz que nunca, a julgar pelo Relatório Mundial de Felicidade, divulgado há uma semana.
A média brasileira para 2018 era de 6,1, a mais baixa desde que se iniciou esse tipo de levantamento, em 2006. O país ficou no 32º lugar entre 156 países.
Para comparação: a França ficou em 24º, por mais que os franceses sejam tidos como resmungões o tempo todo, ao passo que os brasileiros são considerados risonhos.
Se a França, menos infeliz que o Brasil, se dispõe a conversar e se seu presidente chama acadêmicos para completar a conversa, não há razão lógica para que o Brasil se tranque em bolhas que não se comunicam.
Afinal, a eleição de 2018 revelou dois colossais blocos: os 57 milhões que votaram por Jair Bolsonaro e os 89 milhões que preferiram ou Fernando Haddad ou o voto branco/nulo ou nem sequer compareceram para votar.
Como parece altamente improvável que um bloco ou o outro seja subitamente tragado pela terra e, em consequência, o outro possa fazer o que bem entender, ou se decidem a conversar ou o ódio de todos contra cada um vai mesmo triunfar, como teme Bruckner no caso da França.
Lá como cá, a iniciativa tem que partir do chefe de governo. O presidente Jair Bolsonaro precisa ser convencido de que não adianta ficar conversando só com os seus.
Vale o que escreveu na sexta-feira (22) Brian Winter, editor-chefe de Americas Quarterly, após viagem ao Brasil e conversas com inúmeras pessoas que podem não ter votado por Bolsonaro, mas lhe disseram que "o país não pode aguentar outro fracasso".
Cultivar o ódio é namorar com o fracasso.
Mark Lilla: Dois caminhos para a direita francesa
Marion Maréchal e a vanguarda do conservadorismo europeu
Em fevereiro de 2018, ocorreu em Washington D.C. a convenção anual da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla em inglês). É uma espécie de Davos da direita, em que iniciados e interessados se reúnem para inteirar-se das novidades. O orador da abertura, que estava longe de representar algo novo, foi o vice-presidente americano Mike Pence. A segunda pessoa a falar, esta sim, foi uma grande novidade: uma elegante francesa de 28 anos, chamada Marion Maréchal-Le Pen.
Marion, como é amplamente conhecida na França, vem a ser neta de Jean-Marie Le Pen, o fundador do partido de extrema direita Front National (Frente Nacional), e sobrinha de Marine Le Pen, atual presidente da agremiação. Os franceses conheceram Marion ainda criança, sorrindo no colo do avô nos cartazes da campanha presidencial deste, e ela nunca mais sumiu das vistas do público. Em 2012, aos 22 anos, tornou-se a pessoa mais jovem a se eleger para a Assembleia Nacional [equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil] desde a Revolução Francesa. Decidiu, porém, não concorrer à reeleição em 2017, a pretexto de dedicar mais tempo à família. Na verdade, vem cuidando de projetos bem ambiciosos.[1]
Seu desempenho na CPAC foi fora do comum – imagina-se qual terá sido o impacto na plateia daquela manhã. À diferença de seu avô e de sua tia, conhecidos pelo temperamento exaltado, Marion se mostra sempre calma e contida, transmite sinceridade e demonstra inclinações intelectuais. Com um leve e encantador sotaque francês, começou o discurso em inglês contrastando a independência dos Estados Unidos com a “sujeição” da França à União Europeia. Na qualidade de país-membro da UE, afirmou ela, a França não pode escolher as próprias políticas econômica e externa nem defender suas fronteiras contra a imigração ilegal e a presença de uma “contrassociedade” islâmica em seu território.
A partir daí, porém, seu discurso tomou um rumo inesperado. Falando para uma plateia republicana de absolutistas da propriedade privada e fanáticos do porte de armas, atacou o princípio do individualismo, proclamando que o “primado do egoísmo” estava na base de todos os males da nossa sociedade. Exemplo disso, apontou, é a economia global que escraviza estrangeiros, roubando empregos de trabalhadores locais. Encerrou louvando as virtudes da tradição e invocando uma frase geralmente atribuída a Gustav Mahler: “A tradição não é o culto das cinzas, mas a transmissão do fogo.” Nem é preciso dizer que essa foi a primeira vez que um orador da CPAC fez alusão a um compositor austríaco da passagem do século XIX ao XX.
Há algo de novo na direita europeia e envolve mais que rompantes de populistas xenófobos. Ideias vêm tomando corpo, com a criação de redes transnacionais para a sua disseminação. Os jornalistas tendem a encarar como arroubos exibicionistas de Steve Bannon os esforços que ele vem fazendo no sentido de congregar os partidos e pensadores populistas da Europa no que chama de “O Movimento”. Mas a intuição de Bannon, tanto em relação à política europeia como à americana, está bem sintonizada ao nosso tempo. (E, de fato, um mês depois do pronunciamento de Marion na CPAC, Bannon viria a discursar na convenção anual da Frente Nacional.) Em países tão diferentes quanto França, Polônia, Hungria, Áustria, Alemanha e Itália, registram-se esforços no sentido de desenvolver uma ideologia coerente capaz de mobilizar os europeus contrariados com a imigração, as grandes mudanças econômicas, a União Europeia e a liberação dos costumes, e então recorrer a essa ideologia para governar. É tempo de começarmos a prestar atenção às ideias do que parece ser uma Frente Popular de direita em evolução. E a França é um bom lugar para isso.
A esquerda francesa, aferrada ao secularismo republicano, nunca teve muita sensibilidade para a vida católica e às vezes nem percebe que cruzou uma linha divisória. No início de 1984, o governo do presidente François Mitterrand [do Partido Socialista] propôs um projeto de lei que pretendia aumentar o controle do Estado sobre as escolas católicas privadas, pressionando seus professores a se tornarem funcionários públicos. Em junho daquele ano, quase 1 milhão de católicos marchou nas ruas de Paris em protesto, e muitos outros no resto do país. O primeiro-ministro de Mitterrand, Pierre Mauroy, foi forçado a renunciar, e retiraram a proposta. Foi um momento importante para os católicos laicos, que puderam perceber o quanto continuavam a ser, a despeito do secularismo oficial do Estado francês, uma força cultural e às vezes política.
Em 1999, o governo do presidente gaullista Jacques Chirac aprovou uma lei criando uma nova situação jurídica chamada Pacto Civil de Solidariedade (PaCS, na sigla em francês), que beneficiava casais que estavam juntos havia muito e pediam proteção legal ao direito de herança e a outras questões relacionadas ao fim da vida, mas não queriam se casar formalmente. Adotado pouco depois da epidemia de Aids, o PaCS foi concebido sobretudo em apoio à comunidade gay, mas logo se tornou popular entre casais heterossexuais interessados numa relação que poderia ser dissolvida com maior facilidade. Entre os casais heterossexuais, o total de pacsés, ou seja, dos que aderiram ao PaCS, aproxima-se hoje do número dos que se casaram. Para gays e lésbicas, a lei foi uma conquista inquestionável.
Decidido a capitalizar esse sucesso, o socialista François Hollande, durante a sua campanha à Presidência em 2012, prometeu legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e facultar o direito de adoção, entre outros, aos casais homossexuais. O slogan que usava era Mariage pour tous – Casamento para todos. Hollande tentou cumprir a promessa de campanha assim que se tornou presidente, mas repetiu o erro de Mitterrand ao não antever a forte reação da direita. Pouco depois de sua posse, começou a se formar na França uma rede de leigos apoiada fortemente em grupos de oração de católicos carismáticos. Essa rede foi chamada La Manif pour tous – A manifestação para todos.
Em janeiro de 2013, pouco antes da aprovação do casamento gay pelo Parlamento francês, La Manif conseguiu atrair mais de 300 mil pessoas a um comício em Paris, deixando atônitos o governo e a imprensa. O que mais surpreendeu foi a atmosfera lúdica do evento, mais parecido com uma parada gay do que com uma peregrinação a Santiago de Compostela. Havia muitos jovens presentes, mas, em vez de arco-íris coloridos, eles exibiam faixas azuis e cor-de-rosa, representando meninos e meninas. As palavras de ordem nos cartazes tinham um tom de Maio de 68: “François, resista! Prove que você existe!” Como se não bastasse, a porta-voz do movimento era uma espalhafatosa atriz e artista performática conhecida como Frigide Barjot, solista de uma banda chamada Les Dead Pompidou’s.[2]
De onde saíam essas pessoas? Afinal, a França, pelo menos ao que se diz, não é mais um país católico. É verdade que cada vez menos franceses batizam seus filhos e comparecem regularmente à missa, mas quase dois terços da população ainda se identificam como católicos, e cerca de 40% destes se declaram “praticantes”, seja lá o que isso signifique. E o mais importante: como constatou um estudo feito em 2017 pelo Pew Research Center,[3] os franceses que se identificam como católicos – em especial os que vão com regularidade à missa – têm opiniões políticas significativamente mais à direita do que os que se identificam de outra maneira.
E esses achados são consistentes com as tendências observadas no Leste Europeu, onde pesquisas do Pew Research constataram que, na verdade, a auto-identificação dos indivíduos como cristãos ortodoxos vem crescendo em paralelo com o nacionalismo, ao contrário do que indicavam as expectativas do pós-1989. Isso pode indicar a reversão, na Europa, da relação entre as identidades religiosa e política: não é mais a filiação religiosa de cada um que ajuda a definir sua posição política, mas a posição política que ajuda a definir se cada indivíduo se autoidentifica como religioso. Podem estar sendo definidos os pré-requisitos para o surgimento de um movimento nacionalista cristão europeu, como prevê há muito tempo o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán.
Qualquer que tenha sido a motivação dos muitos milhares de católicos que participaram da Manif original, além de outras manifestações semelhantes por toda a França, os primeiros frutos logo começaram a surgir.[4] Alguns de seus líderes formaram em pouco tempo um grupo de ação política chamado Sens Commun [senso comum], que, apesar de pequeno, quase decidiu a eleição presidencial de 2017. O candidato do grupo era o antipático François Fillon, ex-primeiro-ministro conservador e católico praticante que apoiou La Manif e mantinha laços estreitos com o Sens Commun. Fillon declarou abertamente suas opiniões religiosas durante as primárias do seu partido, Les Républicains, no fim de 2016 – opondo-se ao casamento, ao direito de adoção e ao uso de barrigas de aluguel por casais homossexuais – e surpreendeu a todos ao vencer a disputa pela candidatura. Saiu das primárias com boa vantagem nas pesquisas e em razão da profunda impopularidade dos socialistas depois do governo de François Hollande, bem como da incapacidade da Frente Nacional para conquistar o apoio de mais de um terço do eleitorado francês, era visto por muitos como o favorito à Presidência.
Entretanto, assim que Fillon iniciou sua campanha nacional, Le Canard Enchaîné, um semanário que combina a sátira ao jornalismo investigativo, revelou que, ao longo dos anos, sua mulher havia recebido mais de meio milhão de euros de salário por empregos aos quais nem comparecia, e que o próprio candidato havia aceitado uma série de favores de empresários, entre eles – ao estilo de Paul Manafort[5] – o presente de ternos no valor de dezenas de milhares de euros. Para um homem cujo lema era “a coragem da verdade”, a revelação foi um desastre. Fillon foi indiciado em inquéritos e abandonado por seus assessores, mas recusou-se a deixar a disputa, possibilitando o avanço do centrista Emmanuel Macron, que acabaria vencendo as eleições. Ainda assim, devemos ter em mente que, apesar de todo o escândalo, Fillon conquistou 20% dos votos no primeiro turno, enquanto Macron teve 24% e Marine Le Pen, 21%. Não fosse a implosão de sua candidatura, podia ter sido eleito; e a história do que realmente acontece na Europa de hoje seria bem outra.
A campanha da direita católica contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo estava fadada ao fracasso, e afinal fracassou. Uma grande maioria dos franceses apoia o casamento homossexual, embora não mais que 7 mil casais recorram anualmente a ele. Todavia, temos motivos para achar que a experiência de La Manif ainda pode afetar a política francesa nos próximos tempos.
O primeiro motivo é que o movimento revelou a existência de um vácuo ideológico entre os republicanos tradicionais, de um lado, e de outro a Frente Nacional. Muitos jornalistas tendem a descrever com excesso de simplicidade o populismo na política europeia contemporânea. Imaginam que existe uma linha clara separando os partidos conservadores tradicionais, como Les Républicains, conformados com a ordem neoliberal europeia, dos partidos populistas de ideologia xenofóbica, como a Frente Nacional, que propõem o fim da União Europeia, a destruição das instituições liberais e a expulsão do maior número possível de imigrantes, especialmente muçulmanos.
Esses jornalistas têm dificuldade para imaginar que possa haver uma terceira força à direita, sem representação nos partidos mais tradicionais nem entre os populistas xenófobos. E essa visão estreita torna difícil, mesmo para os observadores mais experientes, entender os partidários de La Manif, mobilizados em torno das chamadas questões sociais e convencidos de não terem endereço próprio na política atual. Os Republicanos não têm ideologia dominante fora a visão econômica globalista e o culto ao Estado; mantendo a coerência com seu legado secular gaullista, sempre tenderam a tratar as questões morais e religiosas como um assunto estritamente pessoal, pelo menos até a candidatura anômala de François Fillon. A Frente Nacional é quase tão secular quanto eles, e dotada de ainda menos coesão ideológica, servindo mais como refúgio para o refugo da história – os colaboracionistas de Vichy,[6] os ressentidos pieds-noirs[7] expulsos da Argélia, os românticos à la Joana d’Arc, gente que odeia os judeus e/ou os muçulmanos, e os skinheads – do que como um partido com um programa afirmativo para o futuro da França. Um prefeito que já foi próximo a esse grupo hoje prefere defini-lo, com muita propriedade, como “a direita Điên Biên Phu”.[8]
O outro motivo que contribui para que La Manif continue a fazer diferença é ter sido uma experiência formadora para a consciência de um grupo de ativos jovens intelectuais, em sua maioria católicos conservadores, que se enxergam como a vanguarda dessa terceira força. Nos últimos cinco anos, tornaram-se uma presença nos meios de informação, escrevendo em jornais como Le Figaro e em revistas semanais como Le Point e Valeurs Actuelles, criando novas publicações impressas e virtuais (Limite, L’Incorrect), lançando livros e aparecendo regularmente na televisão. Muita gente os observa com atenção, e um livro alentado e imparcial a seu respeito acaba de ser publicado na França.[9]
É difícil saber se alguma consequência política mais significativa irá resultar de toda essa atividade, dado que na França as modas intelectuais costumam ser trocadas com a mesma frequência do plat du jour [prato do dia]. No último verão, passei algum tempo lendo e entrevistando esses jovens escritores em Paris, e o que encontrei pode ser mais bem descrito como um ecossistema do que um movimento coeso e disciplinado. Ainda assim, fiquei impressionado com a seriedade deles e o que os distingue dos conservadores americanos. Todos compartilham duas convicções: que um conservadorismo vigoroso é a única alternativa coerente para o que definem como o cosmopolitismo neoliberal do nosso tempo, e que esse conservadorismo pode contar com recursos provenientes dos dois lados da divisa tradicional entre esquerda e direita. E o mais surpreendente: todos são admiradores de Bernie Sanders.[10]
O ecumenismo intelectual desses escritores é visível em seus artigos, todos repletos de referências a George Orwell, à escritora mística e ativista Simone Weil, a Pierre-Joseph Proudhon, anarquista francês do século XIX, a Martin Heidegger e Hannah Arendt, ao jovem Marx, ao filósofo católico e ex-marxista escocês Alasdair MacIntyre e, especialmente, ao historiador americano Christopher Lasch, politicamente de esquerda, mas culturalmente conservador, cujas boas tiradas – “A perda das raízes nos deixa sem raiz alguma, salvo a necessidade de raízes” – são repetidas como mantras. Previsivelmente, recusam a União Europeia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a imigração em massa. Mas também rejeitam a desregulamentação dos mercados financeiros globais, a austeridade neoliberal, as modificações genéticas, o consumismo e a AGFAM (Apple-Google-Facebook-Amazon-Microsoft).
Essa mistura pode soar meio estranha aos nossos ouvidos, mas é muito mais consistente que as posições atuais dos conservadores americanos. O conservadorismo da Europa continental data do século XIX e sempre se baseou numa concepção orgânica da sociedade. Vê a Europa como uma única civilização cristã composta de diferentes nações com variados idiomas e costumes. Essas nações compõem-se por sua vez de famílias, que também são organismos em que papéis e deveres diferentes mas complementares cabem às mães, aos pais e aos filhos. Desse ponto de vista, a tarefa fundamental da sociedade é transmitir o conhecimento, a moral e a cultura às gerações vindouras, perpetuando a vida de todo o organismo da civilização, e não se submeter a um aglomerado de indivíduos autônomos dotados cada um dos seus direitos.
Quase todos os argumentos desses jovens conservadores franceses se fundamentam nessa concepção orgânica. Por que consideram a União Europeia um perigo? Porque ela nega a base comum cultural-religiosa da Europa e tenta forjar um pacto continental baseado no interesse econômico pessoal dos indivíduos. Para piorar a situação, eles sugerem, a União Europeia ainda estimulou a imigração de massas oriundas de uma civilização diferente e incompatível (o Islã), esgarçando ainda mais laços já gastos. Além disso, em vez de fomentar a autodeterminação e uma saudável diversidade entre as nações, vem promovendo um lento golpe de Estado em nome da eficiência econômica e da homogeneização dos países-membros, centralizando em Bruxelas todo o poder de decisão. Finalmente, à medida que impõe aos países-membros onerosas políticas fiscais que só favorecem os mais ricos, a União Europeia impede que os Estados se responsabilizem pelos cidadãos mais vulneráveis e pela solidariedade social. Hoje, na opinião desses autores, a família está abandonada à própria sorte num mundo econômico sem fronteiras, num meio cultural que teima em ignorar as necessidades dela. À diferença de seus equivalentes americanos, que enaltecem forças econômicas ainda mais ameaçadoras para a “família”, que eles imaginam sob pressão, os jovens conservadores franceses aplicam sua visão orgânica também à economia, afirmando que esta deveria subordinar-se aos imperativos sociais.
O mais surpreendente para o leitor americano são as fortes convicções ambientalistas desses jovens escritores, para os quais os conservadores, como a palavra indica, deviam justamente preocupar-se com a conservação. O melhor periódico que publicam é a revista trimestral Limite, colorida e bem diagramada, cujo subtítulo é “revista de ecologia integral”. Ela traz críticas tão severas à economia neoliberal e à degradação ambiental quanto as formuladas pela esquerda americana. (Na França, ninguém nega a mudança climática.) Alguns dos autores defendem o crescimento zero; outros leem Proudhon e apoiam uma economia descentralizada de coletivos locais. Há ainda os que abandonaram as grandes cidades e relatam suas experiências no cultivo de lavouras orgânicas, ao mesmo tempo que denunciam o agronegócio, a manipulação genética de sementes e a intensa suburbanização do campo. Todos parecem inspirados pela encíclica Laudato si’ [Louvado sejas, 2015], do papa Francisco, um abrangente apanhado dos ensinamentos sociais católicos em relação ao meio ambiente e à justiça econômica.
Como têm sua origem em La Manif, as opiniões sobre a família e a sexualidade desses jovens conservadores são as mesmas do tradicionalismo católico. Mas os argumentos que enumeram para defendê-las são estritamente seculares. Em sua proposta de um retorno a normas mais antigas, chamam a atenção para problemas reais: um número decrescente de novas famílias, a geração de filhos em idade mais e mais avançada, a proporção cada vez maior de mães e pais solteiros, os adolescentes imersos em pornografia e confusos quanto à própria sexualidade, além de pais e filhos estressados que fazem as refeições em separado, com os olhos grudados no celular. Tudo isso, afirmam eles, deve-se ao individualismo radical que nos torna cegos para a necessidade social de famílias fortes e estáveis. O que esses jovens católicos não conseguem perceber é que os casais homossexuais que planejam casar-se e ter filhos desejam constituir famílias assim, transmitindo seus valores para a próxima geração. Não pode haver instinto mais conservador.
Muitas mulheres mais jovens vêm propondo um “alter feminismo”, como dizem, rejeitando o que chamam de “fetichismo da carreira” do feminismo contemporâneo, que acabaria por reforçar, involuntariamente, a ideologia capitalista segundo a qual a liberdade é mourejar sob as ordens de um patrão. Por outro lado, não acham que as mulheres deviam ficar em casa se não quiserem; na verdade, consideram que elas precisam de uma autoimagem mais realista que a formulada pelo feminismo e o capitalismo contemporâneos. Marianne Durano, em seu livro recente Mon Corps Ne Vous Appartient Pas [Meu Corpo Não lhes Pertence], descreve assim a situação:
Somos vítimas de uma visão de mundo segundo a qual devemos aproveitar a vida até os 25 anos, depois trabalhar loucamente dos 25 aos 40 (a idade em que chegamos ao fim da vida profissional), evitando filhos e relações mais profundas antes dos 30. E isso contraria totalmente o ritmo de vida das mulheres.
Eugénie Bastié, outra alter feminista, responde a Simone de Beauvoir em seu livro Adieu, Mademoiselle. Presta homenagem à primeira onda da luta feminista pela conquista da igualdade de direitos, mas critica Beauvoir e as feministas francesas que vieram depois por afastar as mulheres de seus próprios corpos, ao considerá-las criaturas pensantes e desejantes, mas não seres reprodutores que, no fim das contas, possam almejar um marido e uma família.
Qualquer que seja nossa opinião sobre elas, essas ideias conservadoras a respeito da sociedade e da economia integram uma visão de mundo coerente; o mesmo já não se pode dizer da esquerda e da direita tradicionais na Europa de hoje. A esquerda combate a fluidez descontrolada da economia global, e quer contê-la em nome dos trabalhadores, ao mesmo tempo que enaltece a imigração, o multiculturalismo e uma fluidez maior dos gêneros, coisas que boa parte dos trabalhadores rejeita. A direita tradicional assume as posições opostas, denunciando a livre circulação de pessoas como causa de instabilidade social, enquanto defende a livre circulação do capital que produz justamente esse efeito. Já esses conservadores franceses criticam a fluidez excessiva em suas formas tanto neoliberal quanto cosmopolita.
Mas o que exatamente propõem no lugar disso? Como os marxistas do passado, que só se referiam em tom muito vago às implicações concretas do comunismo, esses autores parecem menos preocupados em definir a ordem por eles imaginada do que em trabalhar para o advento dela. Embora constituam apenas um pequeno grupo sem expressivo apoio popular, já se preocupam em formular grandes questões estratégicas (pequenas revistas existem justamente para publicar grandes ideias). Será possível restaurar as conexões orgânicas entre os indivíduos e as famílias, as famílias e as nações, as nações e a civilização? De que maneira? Por meio da ação política direta? Tentando conquistar logo o poder político? Ou encontrando algum modo de transformar lentamente a cultura ocidental em seu cerne, como prelúdio à instauração de uma nova política? A maioria desses escritores acredita que, antes de tudo, é preciso mudar a mentalidade dos seus leitores. E é por isso que parecem incapazes de terminar um artigo, ou mesmo uma refeição, sem mencionar o nome de Antonio Gramsci.
Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, morreu em 1937 depois de um longo período detido nas prisões de Mussolini, e deixou pilhas de cadernos com férteis reflexões sobre a política e a cultura. É mais lembrado nos dias de hoje pelo conceito de “hegemonia cultural” – a ideia de que o capitalismo não é sustentado apenas pelas relações de produção, como queria Marx, mas também por certo consenso cultural que funciona como facilitador, enfraquecendo a disposição à resistência. A experiência com os trabalhadores italianos convenceu Gramsci de que, a menos que estes fossem libertados de suas crenças católicas relacionadas ao pecado, ao destino e à autoridade, jamais poderiam insurgir-se e fazer a revolução. Era necessária uma nova classe de intelectuais engajados que pudesse funcionar como uma força contra-hegemônica atuando no sentido de minar a cultura dominante e dar forma a uma cultura alternativa passível de ser adotada pela classe trabalhadora.
Tenho a impressão de que esses jovens escritores não leram os vários volumes dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Na verdade, ele é invocado como uma espécie de talismã retórico, a garantia de que a pessoa que fala ou escreve é um ativista cultural, e não um mero observador. Do que precisa, então, uma contra-hegemonia? Até aqui, identifiquei entre esses jovens, talvez com um excesso de certeza, a mesma visão geral e um conjunto comum de valores. Acontece, porém, que, assim que surge a velha pergunta de Lênin – Que fazer? –, tornam-se aparentes entre eles divergências importantes e com sérias implicações. O que parece estar em desenvolvimento são dois estilos diversos de engajamento conservador.
A leitura de uma revista como Limite deixa a impressão de que a contra-hegemonia conservadora implicaria trocar a cidade grande por algum povoado ou lugarejo rural, envolver-se nas escolas locais, nas paróquias e nas associações de defesa do meio ambiente, e especialmente criar os filhos segundo os valores conservadores – em outras palavras, tornar-se exemplo de um modo de vida alternativo. Esse conservadorismo ecológico parece aberto, generoso e ancorado na vida cotidiana, bem como nos ensinamentos sociais da tradição católica.
Mas a leitura de publicações como o diário Le Figaro, a revista semanal Valeurs Actuelles ou, especialmente, o mensário L’Incorrect, que tem um tom bem mais belicoso, produz uma impressão muito diversa. Aqui, o conservadorismo é agressivo e rejeita a cultura contemporânea, concentrando-se em travar uma verdadeira Kulturkampf [luta cultural] com a geração de 1968, uma obsessão permanente. Como afirma o editor de L’Incorrect, Jacques de Guillebon, 40 anos, nas páginas da revista: “Os herdeiros legítimos de 68 […] acabarão por afundar nas latrinas do tédio pós-cisgênero, transracial, com os cabelos azuis […]. O fim está próximo.” Para acelerar sua chegada, sugere outro autor, “precisamos de um projeto real de direita que seja revolucionário, identitário e reacionário, capaz de atrair tanto a classe média quanto os trabalhadores”. Esse grupo, embora não professe um racismo declarado, manifesta uma profunda desconfiança em relação ao Islã, jamais mencionado pelos articulistas de Limite. E desconfia não apenas do islamismo radical, do tratamento dado às mulheres pelos muçulmanos, da recusa de alguns estudantes que seguem esse credo de estudar a evolução – todas elas questões procedentes –, mas até mesmo dos muçulmanos moderados e assimilados.[11]
Todas essas conversas sobre uma guerra cultural declarada nem mereceriam ser levadas muito a sério caso a ala mais combativa desse grupo não contasse agora com a atenção de Marion Maréchal.
Era difícil situar Marion em matéria de ideologia. Ela mostrava-se mais conservadora nas questões sociais que a liderança da Frente Nacional, mas bem mais neoliberal no que diz respeito à economia. Só que isso mudou. Em seu discurso na CPAC, falou de guerra cultural, apresentando La Manif como um exemplo da disposição dos jovens conservadores franceses para “retomar o país”. E descreveu suas metas usando a linguagem da organicidade social:
Sem a nação, sem a família, sem os limites do bem comum, desaparecem a lei natural e a moral coletiva e mantém-se o primado do egoísmo. Hoje, mesmo as crianças foram transformadas em mercadoria. Ouvimos, em debates públicos, que temos o direito de encomendar uma criança num catálogo, temos o direito de alugar o ventre de uma mulher… Será essa a liberdade que queremos? Não. Não queremos esse mundo pulverizado de indivíduos sem gênero, sem pai, sem mãe e sem nação.
E prosseguiu, numa veia gramsciana:
Nossa luta não pode se limitar ao momento das eleições. Precisamos divulgar nossas ideias na mídia, na cultura e na educação, a fim de conter o domínio dos liberais e dos socialistas. Precisamos formar os líderes de amanhã, que terão a coragem, a determinação e o talento para defender os interesses do seu povo.
Mais adiante, Marion surpreendeu todo mundo na França ao anunciar, para uma plateia americana, que estava fundando uma escola de pós-graduação com essa exata finalidade. Três meses depois, seu Instituto de Ciências Sociais, Econômicas e Políticas (Issep, na sigla em francês) foi inaugurado em Lyon, com o objetivo de, nas palavras de Marion, desalojar a cultura que domina nosso “sistema liberal errante, globalizado e desenraizado”. É basicamente uma escola de negócios, mas que deverá oferecer cursos teóricos de filosofia, literatura, história e retórica, além de cursos práticos de administração e “combate político e cultural”. O responsável pelo currículo é Jacques de Guillebon.
Entre os escritores e jornalistas franceses que conheço, poucos são os que levam muito a sério essas iniciativas intelectuais. Preferem descrever os jovens conservadores e suas revistas como soldados voluntários ou involuntários da campanha de Marine Le Pen para “desdemonizar” a Frente Nacional, e não como uma possível terceira força. A meu ver, enganam-se ao não lhes dedicar a devida atenção, assim como se enganaram ao não levar a sério, na década de 80, a ideologia do livre mercado promovida por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. A esquerda tem o velho e mau costume de subestimar seus adversários e explicar as ideias deles como simples camuflagem para atitudes e paixões desprezíveis. Essas atitudes e paixões podem de fato estar presentes, mas as ideias têm um poder próprio de dar-lhes forma e passagem, de moderá-las ou torná-las mais inflamadas.
E essas ideias conservadoras poderiam repercutir além das fronteiras francesas. É possível, por exemplo, que um conservadorismo orgânico renovado e mais clássico acabe atuando como força moderadora nas democracias europeias hoje em crise. Muitas delas sentem-se acossadas pelas forças da economia global, frustradas pela incompetência dos governos em conter o fluxo da imigração ilegal, ressentidas com as regras da União Europeia e desconfortáveis com a rapidez das mudanças nos códigos morais em relação a questões como a sexualidade. Até hoje, essas preocupações só foram tratadas e exploradas por demagogos populistas de extrema direita. Se existe uma parte do eleitorado que simplesmente sonha com um mundo mais estável e menos fluido, tanto econômica quanto culturalmente – pessoas cuja motivação primária não seria um antielitismo xenofóbico –, então um movimento conservador moderado poderia servir como um anteparo contra as fúrias da direita alternativa[12], ao enfatizar a tradição, a solidariedade e o cuidado com a terra.
Outro desdobramento possível é que o conservadorismo agressivo que também vemos na França acabe servindo como um instrumento poderoso para a construção de um nacionalismo cristão reacionário e pan-europeu, ao estilo proposto no início do século XX pelo escritor e líder político francês Charles Maurras, antissemita e propagandista do “nacionalismo integral”, mais adiante principal pensador do regime de Vichy. Uma coisa é convencer os líderes populistas atuais da Europa, tanto Ocidental quanto Oriental, que eles têm interesses práticos comuns e deviam trabalhar juntos, como vem tentando Steve Bannon. Coisa muito diferente, e bem mais ameaçadora, é imaginar esses líderes dispondo de uma ideologia desenvolvida para o recrutamento de jovens quadros e elites culturais, capaz de conectar a todos em nível continental tendo em vista uma ação política conjunta.
Nem todos os franceses têm os olhos fixos em Marion, mas deveriam ter. Marion não é o avô dela, embora na telenovelesca família Le Pen tenha o costume de defendê-lo. E tampouco é a tia dela, uma política grosseira e corrupta cujos esforços para passar um batom novo no partido da família não deram resultado. E nem, acredito eu, sua sorte estará associada à da Reunião Nacional, née Frente Nacional. Emmanuel Macron demonstrou que um “movimento” que desdenhe os partidos consagrados pode vencer as eleições francesas (mas não necessariamente governar ou ser reeleito). Se Marion lançasse um movimento semelhante girando em torno dela própria, a exemplo do que fez Macron, poderia muito bem unificar a direita dando, ao mesmo tempo, a impressão de pessoalmente transcendê-la. Em seguida, estaria em boa posição para cooperar com os partidos de direita no governo em outros países.
A história moderna nos ensina que as ideias defendidas por intelectuais obscuros em pequenos periódicos tendem a ir além dos propósitos muitas vezes bem-intencionados de seus propagandistas. Quando lemos os jovens intelectuais franceses de direita, há duas lições a extrair dessa história. A primeira é que não se pode confiar em conservadores apressados. A segunda, que é melhor tirar a poeira dos livros de Gramsci da sua biblioteca.
Notas
[1] Em meados do último ano, tanto ela quanto o Front National mudaram de nome. Ela deixou de usar o sobrenome Le Pen e agora insiste em ser chamada apenas de Marion Maréchal. Enquanto isso, sua tia trocava oficialmente o nome do partido para Rassemblement National (Reunião Nacional). Rassembler, no jargão político francês, significa reunir e unificar um grupo em prol de uma causa comum. [Nota do autor]
[2] Georges Pompidou foi primeiro-ministro da França de 1962 a 1968 e presidente do país de 1969 até sua morte, em 1974, aos 62 anos.
[3] O Pew Research Center é um instituto norte-americano de pesquisas de opinião e estatísticas.
[4] Também inspirou o espetacular suicídio à la Mishima [escritor japonês que cometeu haraquiri] de um de seus mais conhecidos partidários, o historiador nacionalista Dominique Venner, que poucos dias depois da aprovação da lei do casamento gay deixou um bilhete de suicida no altar da Catedral de Notre Dame e em seguida estourou os miolos diante de mais de mil turistas e frequentadores da catedral. [Nota do autor]
[5] Paul Manafort, lobista e ex-assessor da campanha de Donald Trump, foi condenado em 2018 por fraudes bancárias e fiscais. Chamou a atenção da Justiça que tivesse uma vida luxuosa, não condizente com a renda apresentada em seu imposto de renda – descobriu-se que gastou mais de 1 milhão de dólares em roupas. Manafort é também um dos principais envolvidos no processo que investiga a influência dos russos no pleito que elegeu Trump.
[6] Após o armistício franco-alemão em 22 de junho de 1940, o território francês foi dividido em duas zonas. Os nazistas ocuparam o norte, incluindo Paris, e o sul foi destinado ao Estado francês, nominalmente soberano. O governo da França instalou-se em Vichy, comandado pelo marechal Philippe Pétain, que manteve estreita colaboração com Hitler. Em 1942, quando os alemães ocuparam todo o país, extinguiu-se a pouca autonomia de que dispunham os franceses. O regime de Vichy, porém, só foi abolido em 1944, com a libertação da França pelas forças aliadas.
[7] A expressão Pied-noir (pé negro) designa as pessoas de origem francesa nascidas nos protetorados e colônias da França no norte da África (Tunísia, Marrocos e Argélia).
[8] Referência à última batalha da Guerra da Indochina, ocorrida na região de Điên Biên Phu, no noroeste do Vietnã. Em 7 de maio de 1954, os franceses (que ocupavam o país desde o final do século XIX) sofreram humilhante derrota para as forças comunistas de Ho Chi Minh.
[9] Le Vieux Monde Est de Retour: Enquête sur les Nouveaux Conservateurs [O Velho Mundo Está de Volta: Estudo sobre os Novos Conservadores], de Pascale Tournier (editora Stock, 2018). [Nota do autor]
[10] Bernie Sanders (1941), que se autodefine como “socialista democrático”, é senador norte-americano. Em 2015, filiou-se ao Partido Democrata com o objetivo de lançar-se candidato à Presidência nas eleições do ano seguinte, mas foi derrotado por Hillary Clinton nas primárias do partido.
[11] Certa noite, eu jantei com alguns jovens escritores num bistrô cujo proprietário, obviamente partidário da Frente Nacional, queixava-se em voz alta de que uma estação pública de tevê tinha programado um especial sobre as festividades do Eid al-Fitr, que assinala o fim do Ramadã. Curioso, assisti ao programa quando voltei para casa. Era totalmente banal, uma celebração que parecia uma festa comum de casamento, com os convidados em suas mesas assistindo a shows de música popular. A apresentadora caminhava em meio aos presentes, perguntando-lhes que significado o Ramadã tinha para eles, e a resposta de uma jovem foi bem típica: “Quero levar minha vida como mulher, e obter o que desejo.” Uma esforçada empresária muçulmana, cujo sucesso nos negócios era evidente, foi entrevistada e falou de sua fé… em si mesma. Era o assimilacionismo dos sonhos. [Nota do autor]
[12] Em inglês, alternative right ou alt-right: grupo não organizado de pessoas de extrema direita nos Estados Unidos, com grande atividade na internet, que milita contra a globalização, a imigração, a sociedade multiétnica, o politicamente correto e o feminismo, entre outras bandeiras. Prega o nacionalismo e a hegemonia da raça branca.
*Mark Lilla, ensaísta e professor na Universidade Columbia, é autor de O Progressista de Ontem e o do Amanhã, da Companhia das Letras
Gilles Lapouge: Dias perigosos em Paris
A terceira jornada de protestos na França, no fim de semana, será incerta, talvez perigosa
Ainda os “coletes amarelos” e novamente a França. Gostaríamos de falar sobre outras coisas para lá do Sena e do Arco do Triunfo. Dê uma olhada na Alemanha, onde Merkel vacila, para o Reino Unido, onde May luta como um tigre para salvar tanto Brexit como ela mesma. Hoje, todos os olhos convergem para sábado na França. Essa data será fatídica: ela tanto pode trazer o fim dos distúrbios, ou ao contrário, se as ruas se lançarem novamente, então, a França vai se parecer com um cavaleiro bêbado montado em um cavalo louco.
Lembre-se dos delírios de Maio de 68. O pretexto era trivial: o câmpus de uma das faculdades de Paris decidiu garantir a castidade dos alunos, pois se um rapaz quisesse receber uma garota em seu quarto, ele deveria levar sua cama para o corredor. Podemos imaginar algo mais estúpido, mais insignificante? Um mês e meio depois, a França queima.
O poderoso general de Gaulle quase é mandado de volta para casa. O espetáculo fascina os países vizinhos. Se a França não é a primeira em todos os esportes, é inigualável na fabricação de dramas, tragédias, incêndios, com poucos fósforos.
Assim, hoje, os “coletes amarelos” fascinam o mundo inteiro. Inicialmente, alguns trabalhadores pobres, vestiam esses coletes refletores, e faziam barulho nas ruas. Três meses depois, o presidente francês, Emmanuel Macron, jovem que fascinou o mundo, sem grande esforço, sorrindo, sem experiência política, refugiou-se no pico mais elevado do Estado e ficou em silêncio porque não soube como sair da armadilha.
Ontem, Macron foi quase surreal. Estava andando sobre a água. Então, de repente, de um dia para o outro, ele perde todos os seus volteios, cai do seu trapézio. Ele escorrega e quase se afoga em cinco centímetros de água. Como o “Pequeno Príncipe” de ontem se metamorfoseou em um homem comum?
Lembre-se de onde estávamos há três ou quatro dias. Os “coletes amarelos” haviam bloqueado as estradas e, especialmente, realizado dois eventos espetaculares em Paris. O segundo foi assustador, com profanação desprezível de lugares sagrados da França, o túmulo do soldado desconhecido sob o Arco do Triunfo.
Mas durante aquelas semanas, enquanto crescia a febre em torno dos “coletes amarelos”, Macron, montado em suas esporas, tinha recorrido ao desdém. Ele estava acima dessas mediocridades. Que imprudência! Um estadista é aquele que consegue ouvir os rumores que acompanham a história, aquele que adapta as suas decisões à forma inesperada que toma a história.
E Macron, na terça-feira, recuou. Ele mostrou ao seu povo que é generoso. Ele está disposto a conceder as pequenas reformas que os “coletes amarelos” reivindicam há dois meses. O problema é que nesses dois meses os “coletes amarelos” se metamorfosearam.
Espantados com seu próprio sucesso e informados de que seu “grande teatro de rua” é acompanhado por todo o mundo, seja com reprovação, raiva, esperança ou admiração, seu apetite aumentou dez vezes. Eles hoje são insaciáveis. Parecem ogros. E os pequenos presentes que lhes deu Macron, que os teriam encantado há três meses, são considerados inadequados. Eles querem mais.
É por isso que essa terceira jornada de protestos, no sábado, será incerta, talvez perigosa. E mesmo se, como se espera, o pior seja evitado, ele permanecerá no campo de batalha como um inválido: Macron, terá passado da condição prestigiosa de “homem que jamais recua” para o status mais modesto de “o homem que recua”. / Tradução de Claudia Bozzo