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Morre Jean-Luc Godard, o grande mestre da nouvelle vague no cinema, aos 91
Inácio Araujo*, Folha de São Paulo
Jean-Luc Godard, o ícone da nouvelle vague, morreu nesta terça-feira. Ele teria recorrido ao suicídio assistido, não por estar doente, mas muito cansado, de acordo com o relato de um familiar ao jornal francês Libération. A prática é permitida na Suíça, onde Godard vivia.
O diretor por trás de uma revolução no cinema veio de uma família de banqueiros riquíssima, mas procurou se afastar por completo dessa riqueza e foi como operário que financiou seu primeiro curta-metragem.
Mais tarde, já morando em Paris, ele roubou do avô um exemplar de um livro autografado por Paul Valéry especialmente para o avô, de quem era muito amigo. Godard podia ter pedido dinheiro em casa, mas preferiu o furto. Era sua forma de mostrar o desejo de independência.
Quando escreve seu primeiro artigo para a já mundialmente famosa revista Cahiers du Cinéma, há 70 anos, deu ao seu texto o nome de "Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica". Expunha ali as virtudes dos filmes feitos e montados à maneira clássica, pois, como explicitaria quatro anos mais tarde, a montagem e a direção de um filme são a mesmíssima coisa.
Isso ele fez na revista daquele que foi "o pai espiritual" dos jovens redatores da revista —André Bazin, o criador da teoria realista do cinema moderno, para quem a montagem era não mais do que uma trapaça.
Jean-Luc Godard foi assim desde sempre —iconoclasta. Gostava de pôr tudo em questão, até ele mesmo.
Confira filmes de Jean-Luc Godard
Em 1959, questionaria o cinema inteiro, com "Acossado", sua retumbante estreia. Tudo era improvisado. Não havia roteiro. Pela manhã, o diretor tomava as notas sobre o que pretendia filmar naquele dia. Encerrava as filmagens quando entendia que a inspiração tinha acabado.
A classe cinematográfica tradicional, tão atacada nos Cahiers pela turma da nouvelle vague, se regozijava com aquele filme que, diziam, seria impossível de montar.
Doce ilusão. Não só "deu montagem", como a mais moderna do mundo. Aquela em que cada "raccord" —isto é, o encontro entre dois planos— parecia desafiar os postulados do "bom cinema" e anunciar o futuro de sua arte.
Desde então mudaram os parâmetros da montagem. Mas também os da filmagem. Com seu fotógrafo, Raoul Coutard, criou um estilo de reportagem, cinema com câmera na mão, sem luz artificial, ou quase, captação das ruas ao vivo, longe dos estúdios, um tanto de ficção e um tanto de documentário no mesmo filme.
Godard libertou o cinema de todas as convenções que o prendiam a um determinado tipo de forma. Sacudiu a poeira da sua arte com tal ênfase que com um único filme se tornou um diretor essencial para o conhecimento do cinema.
Sua arte era "a verdade em 24 quadros por segundo", disse. Era também a mais próxima do homem, pois a única que o captava por inteiro em seu tempo e espaço, sem intermediários. Mestre das frases de efeito (mas não só de efeito), postulou, com seu amigo Eric Rohmer, a superioridade de sua arte —"o cinema é um pensamento que toma forma, bem como uma forma que permite pensar".
Godard gostava da liberdade. Inclusive da de mudar de filme para filme. Cada filme era um novo experimento. Gostava, por isso mesmo, do cinema mudo, aquele de um tempo "em que o cinema ainda não sabia o que era" e se buscava, filme após filme. Antes de ser arte ou modo de expressão, o cinema se confundia então com a liberdade e a descoberta permanente.
Quando passou da crítica à direção, Godard desafiou todas as regras estabelecidas. Se as regras diziam que não se faz um primeiro plano com lente grande angular, ele fazia. Se diziam que não se pode usar branco para evitar o brilho, ele usava. Cada filme parecia ir em um sentido diferente do anterior. A contradição não deixa de ser uma forma de arte.
Além de Raoul Coutard, o fotógrafo, sua companheira nessa primeira fase foi a atriz dinamarquesa Anna Karina, por quem se encantou vendo um filme publicitário e com quem se casaria pouco depois, lançando seu rosto, já, em "Uma Mulher É u ma Mulher", de 1961.
O casamento duraria menos que a parceria. "Alphaville", de 1965, é o primeiro filme que eles fizeram depois da separação —e em não poucos momentos uma declaração de amor do cineasta por sua musa. Fariam ainda "Made in USA", de 1966.
A única fidelidade de Godard, desde então e até agora, foi à atualidade. Podemos vasculhar sua filmografia. É sempre do presente, de algo que o atrai ou inquieta que seus filmes estão falando. Além disso, se permitiu sempre ser contraditório.
A contradição atingiu também sua vida pessoal, como relata sua segunda ex-mulher, Anne Wiazemsky. Tão revolucionário na arte, podia ser doentiamente ciumento em casa. Casa que, por sinal, podia usar como locação. É Wiazemsky, de novo, quem relata a dureza de ser forçada a retomar pelo diretor, em cena, na manhã seguinte, a mesma discussão que tivera com ele, e no mesmo lugar, na noite anterior.
Para o bem e para o mal, assim construía sua arte. Seu amigo Eric Rohmer, também diretor, dizia que Godard era como um ladrão, que pilhava uma imagem aqui, uma citação literária ali, depois um trecho de música, depois a imagem de um outro filme, juntava tudo e transformava numa ideia própria. Assim montava seus painéis, colando pedaço a pedaço, às vezes desorientando o espectador que por vezes procurava ali uma profundidade que Godard mesmo nunca procurou. Sua arte era a do olhar, a da pele.
Era, também, do momento. Cada filme de Godard é uma espécie de documentário sobre o momento em que é feito —"O Pequeno Soldado", a Guerra da Argélia; "Alphaville", o totalitarismo informativo; "O Demônio das Onze Horas", a sociedade de consumo; "Weekend", a sociedade automobilística e seus congestionamentos-monstro; "A Chinesa" e a ascensão do maoísmo.
A esse último, por sinal, Godard aderiu nos idos de 1968. Renegou sua obra anterior, deixou o cinema comercial, passou a fazer filmes coletivos destinados à classe operária, que, verdade seja dita, não se sensibilizava muito com eles.
Godard passou daí às séries em vídeo, quando nenhum cineasta ousava usar essa tecnologia. Que importa? Godard experimentava. Foi experimentando que chegou à TV, com as séries "Seis Vezes Dois", de 1976, e "France, Tour, Détour, Deux Enfants", de 1977.
A partir daí, seus filmes podem ser definidos, cada vez mais, por um novo gênero —o ensaio cinematográfico. Nem ficção, nem documentário, às vezes os dois, às vezes nenhum. Voltou ao circuito comercial com "Salve-se Quem Puder (A Vida)".
Ora trouxe grandes estrelas, como Johnny Halliday e Isabelle Huppert, ora lançou talentos, como Marushka Detmers. Cada vez mais solitário, ele se recolheu à sua casa na Suíça e, não raro, apenas juntando pedaços de filmes de outros, soube impor, pela montagem, sua visão das coisas. Falou das guerras na Europa, da ascensão do neoliberalismo, da América, do socialismo.
Desde "Acossado", que sedimentou também o poder de seu ator-fetiche Jean-Paul Belmondo, até os mais recentes filmes-ensaio, é possível gostar ou não de sua arte, "entender" ou não o que está lá, achar chato ou não. Mas três coisas não se poderá negar: a primeira é que se contam nos dedos os artistas com a inteligência e a inquietude de Godard; a segunda, cada vez que ele pôs a câmera para filmar, combinou cores, moveu seus atores e produziu beleza; a terceira, desde que começou a filmar o cinema nunca mais foi o mesmo.
O solo em que pisamos, quem o fecundou foi Godard. Com chatices e erros, mas também e sobretudo com gênio e grandeza.
*Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.
El País: Centenas de fotos inéditas da Guerra Civil Espanhola vêm à luz em Barcelona
Museu Nacional de Arte da Catalunha exibe as imagens do conflito feitas por Antoni Campañà, que as escondeu em uma caixa até que seu neto as descobriu em 2018
Um terceiro C se uniu, há apenas três anos, às grandes imagens feitas por Agustí Centelles e Robert Capa durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39): trata-se do catalão Antoni Campañà (Arbúcies, 1906 – Sant Cugat del Vallès, 1989), autor de milhares de fotos daquele conflito. Longe do caráter épico do trabalho de Centelles e Capa, as imagens de Campañà se centram no cotidiano da retaguarda e representam uma nova contribuição ao patrimônio fotográfico espanhol.
Três décadas depois da sua morte, um de seus netos encontrou duas caixas vermelhas na garagem da casa dele na cidade de Sant Cugat, vizinha a Barcelona, que estava prestes a ser vendida 2018. Dentro, junto com placas de vidro e outros negativos, havia 1.200 cópias, ampliadas no formato 13 x 18 centímetros. Estavam coladas a cartões com legendas que permitiam identificar mais de 5.000 negativos guardados em outra caixa, que Campañà tinha pedido a seus filhos que nunca tocassem.
O fotógrafo ―republicano, catalanista e católico (sempre levava no bolso uma imagem de Nossa Senhora do Carmo) – os tinha escondido por se sentir magoado com o uso propagandístico e repressor que as autoridades franquistas lhe tinham dado. Serviram como prova de crimes dos vencidos contra o novo regime. Novamente, como ocorreu com as malas de Centelles e Capa, uma caixa guardada zelosamente documentava parte de passado espanhol mais recente.
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Campañà tampouco era um desconhecido antes de 2018. Dele eram conhecidas 200 imagens publicadas em jornais e revistas. No ano da sua morte, a Fundação La Caixa lhe dedicou uma exposição na qual, entre 90 fotos selecionadas, só havia três sobre a Guerra Civil. As demais refletiam seu vasto trabalho em corridas de automóveis, jogos de futebol e dias de festa, seus temas preferidos. Agora, e até 18 de julho, a exposição La guerra infinita. Antoni Campañà. La tensión de la mirada. 1906-1989 reúne no Museu Nacional de Arte da Catalunha (MNAC) 367 fotografias inéditas, muitas das quais jamais haviam saído do negativo, e material documental que repassa a trajetória deste fotógrafo cabal, que registrou os dois lados do conflito, mas também soube se adaptar à normalidade trazida pelo fim da guerra.
Esta primeira retrospectiva, com curadoria de Arnau González i Vilalta, Plàcid García-Plainas e do neto que descobriu as imagens, Toni Monné, apresenta Campañà como um homem-banda da fotografia: artista, fotojornalista, especialista em revelação, gerente de várias lojas, agente da marca Leica, correspondente da edição espanhola da revista Galería e difusor da teoria fotográfica em artigos e livros. Apesar de seu extenso e elogiado trabalho, Campañà ficou de fora dos livros de história.
Com sua Leica, captou os milicianos que lutavam pela república, como a jovem e sorridente anarquista que, no meio das Ramblas de Barcelona, segura uma bandeira do sindicato CNT. É uma imagem célebre da guerra, porque o próprio sindicato a difundiu, mas até 2019 não havia sido atribuída a Campañà, porque ninguém o considerava um fotógrafo da Guerra Civil. Ele também registrou os refugiados que chegavam da Andaluzia a Barcelona em 1937, como uma mãe malaguenha retratada com seu filho, que recorda a mítica imagem de Dorothea Lange da crise de 1929, e que um jornal de Praga erroneamente situou no cenário da localidade basca de Guernica, bombardeada pela aviação nazifascista durante a guerra espanhola.
Também fez imagens dos devastadores efeitos dos bombardeios em Barcelona, as filas em busca de comida e os refeitórios sociais, o gigantesco enterro do líder anarquista Buenaventura Durruti, o macabro espetáculo das freiras mumificadas expostas na entrada das igrejas, como efeito do saque iconoclasta feito pelos anarquistas, e retratos de libertários tão chamativos que os próprios anarquistas fizeram cartões-postais com eles.
Campañà criou imagens em que não escondeu os vergonhosos protestos de mulheres por falta de alimentos diante de La Pedrera, célebre edifício do arquiteto Antoni Gaudí, onde então funcionava a sede da Secretaria de Abastecimento do Governo regional catalão; nem a enorme violência, refletida nos primeiros cadáveres ou inclusive nos cavalos sangrando em plena praça Catalunya, marco zero da cidade. “Em algumas se nota que Campañà se sente incômodo com o que retrata e, além de fotografar cadáveres, prefere mostrar a vida cotidiana, o sofrimento das pessoas e como elas se adaptam às circunstâncias”, diz seu neto, Toni Monné, para quem seu avô, “de aspecto risonho e dinâmico”, ficou “traumatizado para sempre” pela guerra, “o que o levou a esconder o material, que não falasse dele e não quisesse explorá-lo economicamente”.
Campañà fotografou os dois lados do conflito, sem estar comprometido com nenhum deles. Se em 1936 registrou os anarquistas rumando pela avenida Diagonal em direção à Frente de Aragão, em 1939 também imortalizou a retirada do exército republicano e os desfiles triunfais das tropas vencedoras franquistas pela mesma artéria urbana. Tudo com os contra-plongées (visão de baixo para cima) que tanto apreciava, como fez com sua famosa miliciana.
Ao final da guerra, Campañà trilhou o caminho do exílio, mas, ao passar pela cidade catalã de Vic decidiu voltar e se entregar em um quartel de Barcelona. Lá servia o engenheiro Ortiz Echagüe, grande fotógrafo pictorialista, com quem tinha colaborado no começo de carreira. Assim conseguiu evitar qualquer represália e continuar trabalhando, voltando aos mesmos cenários de antes da guerra.
Em uma de suas imagens de fevereiro de 1939, dias depois da ocupação de Barcelona pelas tropas do general franquista Yagüe, é uma jovem falangista quem, novamente nas Ramblas, tenta colocar um broche em um jovem de terno, que o aceita com um sorriso. Campañà continuou atuando como fotojornalista, apesar de ter tido sua inscrição negada no Cadastro Oficial de Jornalistas. Em 1944, depois da publicação do livro El Alzamiento, la Revolución y el Terror en Barcelona, de F. Lacruz, com fotos dele, decidiu esconder todo o seu material, condenando-o ao esquecimento. “Campañà poderia ter sido Agustí Centelles antes de Agustí Centelles, mas não quis ser a referência gráfica da Guerra Civil”, diz Arnau González.
Apesar de tudo, continuou a retratar com sucesso a nova Espanha, mostrando por exemplo a industrialização do país representada pela inauguração da fábrica de automóveis Seat, por encomenda do seu diretor, novamente Ortiz Echagüe, que queria divulgar as instalações industriais e os carros lá produzidos. Conseguiu ser um grande fotógrafo esportivo. Entre 1954 e 1957, acompanhou a construção do Camp Nou e, ao lado de Joan Andreu Puig, fundou o selo CYP, o primeiro a produzir cartões-postais turísticos coloridos em escala industrial.
Coincidindo com a exposição, o MNAC recebeu em seu acervo, depois da doação da família, 62 bromóleos (um tipo de impressão a óleo) da sua etapa pictorialista – movimento fotográfico que busca aproximar as imagens da pintura. Trata-se de uma técnica que ele aperfeiçoou em 1933 durante um curso que fez na sua viagem de lua-de-mel à Baviera (Alemanha), quando se impregnou da nova visão de Rodchenko e da estética centro-europeia. São imagens, inquietantes e vaporosas, com as quais Campañà conseguiu se tornar um dos fotógrafos artísticos espanhóis mais difundidos e premiados internacionalmente, como duas de suas imagens mais conhecidos até agora: Tração de Sangue, adquirida pelo Governo catalão em 1994 e Espantalho, as duas de 1933, em que une sua paixão pela beleza de um mundo rural e agrário prestes a desaparecer a enquadramentos atrevidos e linhas de composição em vertiginosas diagonais, influenciadas pelas correntes estéticas da Nova Visão alemã e do construtivismo soviético. São os mesmos enquadramentos que manteve em suas fotos da guerra, nas quais sempre procurava um aspecto artístico. Porque, em Campañà, a estética prevaleceu sobre o relato narrativo explícito, mesmo em meio à crueldade da guerra.