Forças Armadas

Merval Pereira: O pós-Bolsonaro

Diante da polêmica sobre o papel das Forças Armadas num regime democrático, o que deve um presidente de origem civil fazer com a questão militar? Esse é o tema sobre o qual se debruça o cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio Octavio Amorim Neto, num artigo para o boletim do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre). Ele leva em conta o pós-Bolsonaro, seja com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE, ou com a derrota de Bolsonaro, ou Mourão ( em caso de impeachment) em 2022.

Como até hoje não houve força política para retirar da definição do papel das Forças Armadas a responsabilidade pelas “garantias dos poderes constitucionais”, como sugere o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras, Octavio Amorim Neto vislumbra outras possibilidades "de mais rápida e fácil implementação, todas tendo como norte a retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação das Forças Armadas para atividades relacionadas à defesa nacional”.

O cientista político lembra que na Estratégia Nacional de Defesa havia a promessa de realizar “estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar, de forma a constituir-se numa força de trabalho capaz de atuar na gestão de políticas públicas de defesa, em programas e projetos da área de defesa, bem como na interação com órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e técnico”.

Passados doze anos, o país dos concursos públicos ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa, critica Octavio Amorim Neto, que no longo prazo, “permitiriam democratizar as relações civis- militares em seu ponto nevrálgico, o Ministério da Defesa”.

Haverá certamente, admite Octavio Amorim Neto, muita resistência ao quadro de especialistas civis por parte das Forças Armadas, “uma vez que o Ministério da Defesa deixará de ser quase que completamente mobiliado por oficiais da Marinha, Exército e Força Aérea, tal qual se verifica hoje". Para aplacar essa resistência, o cientista político da FGV-Rio diz que um novo presidente de origem civil não deverá contingenciar o orçamento de investimento da Defesa, “de modo que as Forças Armadas possam ter a garantia de que conseguirão concluir seus principais projetos dentro dos prazos planejados”: aquisição de caças pela FAB – Projeto FX-2; programas de desenvolvimento de submarinos e o programa nuclear da Marinha – Pro-sub e PNM; despesas com a aquisição de cargueiros táticos de 10 a 20 toneladas e o programa de desenvolvimento de cargueiro tático de 10 a 20 toneladas – Projetos KC e KC-X; despesas com o programa de implantação do sistema de defesa estratégico – Astros 2020; despesa com a aquisição de blindados Guarani pelo Exército; e as referentes à implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – Sisfron.

“Será uma conta salgada, sobretudo para um país que estará em profunda crise econômica e social, mas pagá-la é condição necessária para que a Forças Armadas possam se concentrar em suas funções precípuas”, ressalta Amorim Neto, que recorda uma afirmação recente de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa, segundo quem cabe ao poder político definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, estrutura e meios das nossas Forças Armadas.

Mas, ressaltou Jungmann, “o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era Ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas, debates e por órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e voto simbólico”.

Octavio Amorim Neto afirma em seu trabalho que os líderes do Congresso deverão imprimir plena chancela parlamentar ao emprego das Forças Armadas em atividades intimamente relacionadas à defesa nacional. Para ele, “é absolutamente vital” que as lideranças democráticas do país comecem a pensar seriamente sobre a questão militar no pós-Bolsonaro, sob pena de termos que conviver com os fantasmas do pretorianismo por um longo tempo. “É ingenuidade ou desconhecimento da história achar que o encerramento dos mandatos de Bolsonaro e Mourão resolverá o problema”.


‘Não creio que Bolsonaro produzirá conflito que leve à ruptura’, diz Nelson Jobim

Ex-ministro da Defesa concedeu entrevista à revista Política Democrática Online e diz que horizonte de solução da crise política passa pelas eleições de 2022

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em entrevista exclusiva concedida à revista Política Democrática Online, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República. “É equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores”, afirma. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo”, diz, em outro trecho.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. “Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo”, afirma.

Jobim foi ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do governo Dilma. Ele também foi deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto.

O horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente, segundo Jobim, passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento.

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José Murilo de Carvalho: O grande mudo

A doutrina da mudez política do Exército não prosperou entre nós

O jornalista Larry Rohter, que acaba de publicar excelente biografia de Rondon, citou com admiração em sua coluna na revista “Época” uma frase dita pelo marechal em 1956: “O Exército deveria ser o grande mudo”. Zuenir Ventura, aprovando, repercutiu a citação em sua coluna do GLOBO. Como o assunto é atual, vou espichá-lo um pouco.

A frase chegou ao Brasil em 1920 com os componentes da Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Gamelin, que fora contratada pelo ministro Calógeras, o único civil a comandar o Exército na República. Existia na França a expressão: L’Armée est la grande muette, referindo-se, naturalmente, a seu caráter apolítico. Antes, entre 1906 e 1912, por sugestão do barão do Rio Branco, três turmas de jovens oficiais brasileiros tinham estagiado no Exército alemão, que adotava o mesmo princípio. De volta ao Brasil, criaram a revista “Defesa Nacional”, de caráter exclusivamente profissional e que lhes valeu o apelido de jovens turcos. A revista só se referiu uma vez à primeira revolta tenentista de 1922. O autor, um oficial da Missão, insistiu em que a neutralidade política dos oficiais era a marca das democracias liberais. Rondon, então com 55 anos, estava no Rio nessa época e foi seguramente quando tomou conhecimento da expressão que transmitiu a Rohter.

A doutrina da mudez política do Exército, no entanto, não prosperou entre nós. Entre os líderes dos “turcos”, talvez o único que a manteve consistentemente por toda a vida foi o general Leitão de Carvalho. Suas ideias foram expostas no livro “Dever militar e política partidária”, publicado em 1959; sua atuação está descrita nas memórias que deixou. Ele se recusou a apoiar a Revolução de 1930 e todos os muitos movimentos militares das décadas de 1920 e 1930. Outro “turco” de destaque, o futuro general Bertoldo Klinger, fez suas adaptações. Já no primeiro número da “Defesa nacional”, dizia que o Exército deveria ter uma função “conservadora e estabilizante”. Para isso, as intervenções militares não podiam vir de baixo para cima, como em 1922 e 1924, tinham que vir de cima para baixo. Em 1930, vitoriosa a revolução, um Movimento Pacificador depôs o presidente W. Luís. Nomeado chefe do Estado-Maior, o então coronel Klinger propôs uma solução de Estado-Maior. Segundo ele, o destino do Brasil deveria ser o naquele momento entregue aos generais de terra e mar, que convocariam nova eleição.

Dos ex-alunos da Missão Francesa, quem mais se projetou foi o general Góis Monteiro. Depois de ter combatido os rebeldes de 1924, renegou toda ideia de mudez e aceitou a chefia militar da Revolução de 1930. Era, então, um tenente-coronel. Vitoriosa a revolta, foi logo promovido a general e publicou um livro intitulado “A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército”, com prefácio de José Américo de Almeida. Nele escancarou as teses de Klinger. O Exército é “um órgão essencialmente político”. Lançou mão dos ensinamentos militares da Missão Francesa para usá-los contra a doutrina da mudez. Era preciso, escreveu, “fazer a política do Exército e não a política no Exército”. Só à sombra do Exército e da Marinha se poderiam organizar as outras forças nacionais. Durante o período de 1930 a 1945, dedicou-se a aplicar a ideia de Klinger: fazer do Exército um ator político unido, eficaz, falante. Os 88 movimentos militares de protesto de 1930 a 1939 foram reduzidos a seis entre 1940 a 1945.

Entre 1937 e 1945, Góis e Dutra monopolizaram o posto de ministro e a chefia do Estado-Maior. Em 1945, as Forças Armadas, em decisão conjunta dos três Estados-Maiores, derrubaram Getúlio Vargas. Adeus Missão Francesa, adeus Exército grande mudo.

*José Murilo de Carvalho é historiador


Rubens Barbosa: Relações entre civis e militares

Seria importante comandantes das FFAA se dissociarem de atos contra as instituições

As relações entre civis e militares ao logo da História republicana nunca foram bem resolvidas. O pensamento e as atitudes de cada lado se aproximam ou se distanciam por interesses comuns ou por questões ideológicas momentâneas.

Não faltam exemplos de cada uma dessas situações, a começar da Proclamação da República, passando pelo tenentismo, pelo período Vargas, pelo movimento de 64 e, agora, com a forte presença militar num governo civil eleito democraticamente. Nos últimos 35 anos, cabe ressaltar, as Forças Armadas cumpriram exemplarmente seu papel constitucional, mas não se pode negar a ocorrência de tensões, de tempos em tempos, em grande medida por desconhecimento da sociedade civil de suas atividades, prioridades e ações.

No tocante à política interna, do lado militar ainda não foi claramente resolvida a diferença da ação política entre militares da ativa e da reserva. Do lado civil, para ficar nos tempos mais contemporâneos, desde as “vivandeiras de quartéis” até hoje, com os que pedem a intervenção das Forças Armadas e o fechamento do Congresso e do STF, prevalece a tentativa de ignorar os limites do papel dos militares na política.

Do lado militar, não está explicitada claramente a separação entre o profissionalismo das Forças Armadas como instituição do Estado, sem manifestação de apoio a partidos ou grupos políticos, e a atuação política de militares que, ao passarem para a reserva, incorporam valores civis e deixam de representar a instituição.

Do lado civil, Congresso e sociedade deveriam ter maior presença nas discussões sobre questões de interesse das Forças. A Estratégia e a Política Nacional de Defesa, que deverão ser submetidas a exame do Congresso, deveriam ser discutidas em profundidade e merecer a atenção da classe política, ao contrário de até aqui.

A ideia de um centro para o estudo das relações civis e militares, de defesa e segurança, sugerida pelo ministro Raul Jungmann e apoiada pelo Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), viria a preencher uma lacuna com a criação de um fórum privado para exame e discussão de temas relacionados com a despolitização das Forças Armadas, fortalecimento do controle civil e papel dos militares no processo decisório do Estado brasileiro.

No atual governo surgiu uma situação diferente dos governos anteriores a partir de 1985. Superado o período de governos militares, nos últimos 30 anos podem ter surgido tensões esporádicas, mas recentemente elas se acentuaram pela participação de grande número de militares da reserva e da ativa em cargos públicos no governo federal (mais de 2.900) e pelo estímulo de setores governamentais a ataques a instituições democráticas. No início julgou-se que os militares no governo poderiam servir de anteparo e de fator de moderação de políticas extremadas com forte viés ideológico, em especial na política externa, com graves e potenciais repercussões para os interesses brasileiros. Com o passar do tempo cresceu a dubiedade de afirmações de militares ministros (“consequências gravíssimas”, “esticar a corda”, “não cumprem ordens absurdas, como a tomada de poder por outro Poder da República por conta de julgamentos políticos”, sempre ressaltando o respeito à Constituição) e a percepção de que as Forças Armadas estão associadas ao governo e o apoiam. Isso resultou no desgaste da instituição e na crescente rejeição de ideias antidemocráticas.

Diferentes interpretações sobre o papel das Forças Armadas, estimuladas tanto por setores civis como por militares, trouxeram a público a discussão sobre o poder moderador dos militares, à luz do artigo 142 da Constituição. O presidente do STF, Dias Toffoli, havia se manifestado no sentido de que “as FFAA sabem muito bem que o artigo 142 da Constituição não lhes confere o papel de poder moderador”. O voto do ministro Luiz Fux, ao fixar regras e limites de atuação das Forças Armadas, conforme a Constituição, tudo indica, deverá ser respaldado pelo plenário do STF. A nota assinada pelo presidente da República, pelo vice-presidente e pelo ministro da Defesa aceita essa interpretação, ao lembrar que “as FFAA destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. A decisão da Suprema Corte poderá ser a pedra angular do novo relacionamento entre civis e militares.

Militares em funções políticas de ministros e altos funcionários do governo observam seguidamente que as atitudes políticas de militares com postos no governo são de lealdade e não podem ser confundidas com a postura isenta das Forças Armadas como instituições de Estado. É do vice-presidente, militar da reserva, a afirmação de que “precisa acabar essa história de que as FFAA estão metidas na política”.

Essas afirmações seriam corroboradas pelo silêncio dos comandantes das três Forças, militares profissionais em função no Ministério da Defesa. Para encerrar de vez esse capítulo seria importante que os comandantes das três Forças se manifestem publicamente, dissociando-as de demonstrações contra as instituições, caso venham a se repetir. Com isso ficaria claro o não envolvimento da instituição na política interna e seu total respeito à Constituição.

*Embaixador, com tese de mestrado sobre as relações entre civis e militares na London School of economics (1972)


Gustavo Binenbojm: As Forças Armadas e a Constituição

Juristas delirantes ressurgiram com teses heterodoxas sobre exercício de poder moderador pelas Forças Armadas

Jair Bolsonaro certamente não sabe quem foi Carl Schmitt. Então, para ficarmos na mesma página, vou apresentá-lo brevemente. Schmitt foi um jurista alemão que inspirou as concepções totalitárias do Estado hitlerista, contribuindo para jogar por terra os fundamentos liberais e democráticos da Constituição de Weimar. Para Schmitt, o estado de direito seria suspenso em momentos de crise, não havendo aí senão que o poder da força.

Neste estado de exceção, as decisões seriam livremente tomadas pelo soberano, sem qualquer limitação das leis. Às Forças Armadas cumpriria o papel de atuar como fiel da balança do jogo político, dando respaldo às decisões do ditador até que restabelecida a normalidade institucional. O resto da história é conhecido. Milhões de seres humanos inocentes foram assassinados pela fúria bestial do regime nazista.

Do segundo pós-guerra para cá, a democracia constitucional espalhou-se pelo mundo ocidental, retomando as noções de estado de direito e governo limitado. No Brasil, a Constituição de 1988 representou a vitória desses ideais, sem qualquer espaço para hiatos ditatoriais. A distribuição de funções entre distintos Poderes constituiu uma espécie de poliarquia na qual nenhum deles é soberano, mas todos devem igual reverência à Constituição. Para situações de grave abalo institucional, há regras excepcionais que preveem a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio, condicionados a controles exercidos pelo Legislativo ou pelo Judiciário.

Quando todos achávamos que o ideário totalitário havia sido jogado na lata de lixo da História, eis que alguns juristas delirantes ressurgiram com teses heterodoxas sobre o exercício de um poder moderador pelas Forças Armadas. Mais exótico ainda: sustentam que o art. 142 da Constituição daria guarida a esse suposto papel dos militares de árbitros dos conflitos entre Poderes. Alinho, a seguir, quatro razões pelas quais a tese não resiste a um sopro de bom senso.

Primeiro: a Constituição não se interpreta em tiras. Ela é uma unidade. O art. 142 está inserido num sistema normativo que prevê a independência e harmonia entre os Poderes, sem que haja um Poder Moderador que exerça supremacia sobre os demais. Os controles recíprocos são a forma de composição de eventuais conflitos. As Forças Armadas não são um Poder da República, mas uma instituição à disposição dos Poderes constituídos para, quando convocadas, agirem instrumentalmente em defesa da lei e da ordem.

Segundo: a chefia suprema das Forças Armadas cabe ao presidente da República (art. 84, XIII e art. 142), sendo elas subordinadas, ainda, ao ministro da Defesa (EC 23/1999). O presidente da República, a seu turno, deve obediência às leis e às ordens judiciais. Tanto assim que, no seu eventual descumprimento, o presidente comete crime de responsabilidade, podendo perder o mandato por impeachment (art. 85, VII). Como instituição baseada na hierarquia e disciplina (art. 142), não faria sentido que as Forças Armadas pudessem se sobrepor aos demais Poderes, uma vez que nem o chefe do Poder Executivo goza de tal prerrogativa.

Terceiro: o art. 102 atribui ao Supremo Tribunal Federal o papel de guardião da Constituição, cabendo-lhe, como órgão máximo do Poder Judiciário, interpretar as normas constitucionais em caráter final e vinculante para os demais Poderes. Só o Poder Legislativo tem a possibilidade de aprovar emendas à Constituição, superando decisões do Supremo, assim mesmo quando isto não contrariar cláusulas pétreas do texto constitucional.

Quarto: por último, mas não menos importante, o art. 1º proclama que o Brasil é um Estado democrático de direito, no qual todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição. Qualquer instituição que pretenda tomar o poder fora desses canais de legitimação estará agindo contra o texto e o espírito da Constituição.

*Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Uerj


Raul Jungmann: A responsabilidade que nos cabe

Ao poder político cabe definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, estrutura e meios das nossas Forças Armadas. Mas ele, o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era Ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas, debates e por voto simbólico.

Política e Estratégia contêm as mais altas decisões referentes à defesa da nação, do seu território, da nossa soberania, povo, recursos e interesses nacionais. Fui o relator da Lei Complementar 136 de 2010, e autor das emedas que introduziram tanto a Política quanto a Estratégia, além do Livro Branco da Defesa Nacional dentre as competências do Congresso, de comum acordo com o então Ministro da Defesa, Nélson Jobim.

Nossa expectativa era a de que com base naqueles documentos, o Congresso Nacional iniciasse um diálogo histórico com a sociedade, os partidos e, sobretudo, com as Forças Armadas, sobre o seu papel, estrutura, composição, organização e formação, vis a vis a defesa da nação e o seu papel em um projeto nacional de desenvolvimento. Isso jamais aconteceu.

Hoje somos demandados para responder perguntas recorrentes sobre nossas Forças Armadas em infindáveis “lives”. Sobretudo, o que pensam, qual seu papel no atual governo e se embarcariam num atalho autoritário ou golpe. A todos respondo, com convicção, que nossas Forças Armadas são disciplinadas, capacitadas e não se afastarão do respeito à Democracia. Que os generais palacianos não falam por elas, e que elas não estão com o atual Presidente, nem com nenhum dos seus antecessores, mas com a Constituição.

Em tempos normais, pouca atenção é dada às Forças Armadas por parte da nossa elite civil e política, salvo quando temos desastres, grandes eventos ou crises na segurança pública. Usualmente, se atribui esse alheamento de responsabilidades das nossas elites ao fato de há 150 anos não termos guerras, sendo a última a do Paraguai; nossas fronteiras não serem objeto de litígio e nossas dimensões, população e economia desestimularem conflitos ou ameaças em nosso entorno. Nada disso, porém, é justificativa para que o Congresso Nacional e nossos representantes se omitam de suas responsabilidades de definir a Política Nacional de Defesa e das nossas Forças Armadas.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


DW: 'Militares não mudaram modo de pensar depois da ditadura', diz João Roberto Martins Filho

Estudioso das Forças Armadas afirma que militares ainda estão presos na lógica da Guerra Fria e creem na ameaça de um "marxismo cultural". Mourão, porta-voz desse conservadorismo, é "lobo em pele de cordeiro", diz

"Quanto mais baixa a hierarquia militar, mais apoio a Bolsonaro", afirma pesquisador

A maioria dos militares brasileiros, de alta e baixa patentes, está hoje engajada numa versão renovada da luta contra o comunismo que guiava a ditadura militar (1964-1985). Em vez de defender o país da influência da União Soviética, extinta em 1991, caberia agora às Forças Armadas proteger a nação do marxismo cultural, que seria uma nova forma de ação do comunismo, expressa em movimentos por direito de minorias, contra o racismo e em defesa das mulheres. É o que aponta o sociólogo João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) que pesquisa as Forças Armadas há quatro décadas.

Essa ideologia começou a fazer a cabeça de militares nos anos 1990, mas eles se mantiveram relativamente silenciosos até o governo Dilma Rousseff, enquanto aparentavam se adaptar aos novos limites da democracia. Quando veio a crise de 2015, porém, "começou a brotar aquilo que estava recalcado", e em 2018 os militares aproveitaram a vitória de Jair Bolsonaro para voltar ao poder e implementar seu projeto, afirma Martins Filho em entrevista à DW Brasil.

O sociólogo aponta que um dos maiores porta-vozes desse novo conservadorismo militar é o vice-presidente, general Hamilton Mourão, que, na visão do pesquisador é "um lobo em pele de cordeiro" e não representa garantia de que, se vier a ocupar a Presidência da República, fará um governo diferente do de Bolsonaro.

Martin Filho cita um artigo do vice-presidente publicado nesta quarta-feira (03/06) no jornal O Estado de S. Paulo, no qual Mourão afirma que as manifestações do último fim de semana contra o governo não eram democráticas, mas compostas por "deliquentes" ligados ao "extremismo internacional" que deveriam ser reprimidos pelas polícias.

A tese bolsonarista de que o Supremo Tribunal Federal (STF) estaria realizando uma intervenção indevida no Poder Executivo tem apoio "quase unânime" nas Forças Armadas, diz Martins Filho. E há entre os militares simpatia à interpretação do presidente sobre o artigo 142 da Constituição, que o autorizaria a usar as Forças Armadas para "restabelecer a ordem" no país, inclusive contra o Poder Judiciário – tese rechaçada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e em um manifesto assinado por cerca de 700 juristas e advogados.

Com cerca de 3 mil militares cedidos ao governo federal e generais ocupando cinco cargos de primeiro escalão da gestão Bolsonaro (Secretaria de Governo, Gabinete de Segurança Institucional e ministérios da Casa Civil, Defesa e Saúde), os integrantes das Forças Armadas costumam dizer que foram convocados para uma missão e, por sua formação militar, devem obediência ao seu chefe, o presidente da República. Esse argumento é falacioso, e oculta uma identidade de propósito entre a caserna e Bolsonaro, diz Martins Filho.

Ele lembra que, no governo Dilma, houve casos de insubordinação à presidente, como do próprio Mourão – que na época era comandante militar do Sul e fez críticas ao governo e convocou oficiais da reserva a um "despertar de uma luta patriótica", sendo em seguida punido com a transferência para um cargo burocrático.

Questionado sobre os protestos de rua contrários ao governo convocados para o próximo final de semana, o professor da Ufscar diz ver risco de que as polícias militares – consideradas forças auxiliares das Forças Armadas, mas com um maior efetivo e ainda mais bolsonaristas – ajam com violência desproporcional contra os manifestantes.

DW Brasil: O que aconteceu com as Forças Armadas brasileiras após o regime militar?

João Roberto Martins Filho: Eu compararia com o que aconteceu na Argentina. Lá, a ditadura desmoronou dada a escala da repressão, que atingiu 30 mil mortos e desaparecidos, enquanto no Brasil foram menos de 500. As Forças Armadas da Argentina saíram do governo repudiadas pela opinião pública e com seus principais chefes julgados e condenados. No Brasil, houve um processo de dez anos de retirada controlada dos militares, que saíram do governo praticamente ilesos e até com certo prestígio.

A partir dali, houve um processo lento de avanço do controle democrático sobre as Forças Armadas. O [Fernando] Collor extingue o Serviço Nacional de Informações, em 1999 é criado o Ministério da Defesa, e em 1996 sai a primeira Política de Defesa Nacional, depois uma Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa, que foram elaborados com a participação de civis.

Aparentemente, os militares tinham se adaptado aos limites da democracia, todos os ministros da Defesa eram civis. Mas não houve mudança no modo de pensar deles – eles só não estavam expressando sua forma de pensar. Com a crise política, começou a brotar aquilo que estava recalcado. E, de repente, nos surpreendemos com esse afã de voltar a participar da política, e com ideias muito ultrapassadas. Isso numa sociedade que não tinha incorporado a crítica à ditadura, como se fez, por exemplo, na Alemanha com relação ao nazismo. Não houve aqui uma política de construção de uma memória crítica em relação à ditadura.

Quais são as ideias hoje predominantes entre os militares?

Eles ainda consideram que existe um comunismo disfarçado, como na época da Doutrina de Segurança Nacional. A marca da Guerra Fria era o anticomunismo, e isso não mudou. Se você ler hoje [03/06] o artigo do vice-presidente no jornal O Estado de S. Paulo, você fica horrorizado. Como é que, depois de duas manifestações de oposição, ele já está falando em polícia, prisão, conspiração internacional? Esse tipo de coisa não mudou.

O que mudou foi que os militares conservadores, na época da ditadura, eram portadores de um nacionalismo autoritário e estatista. Nos últimos cerca de 20 anos, os militares começaram a ter cursos oferecidos pela Fundação Getúlio Vargas e pela Fundação Dom Cabral, MBAs nos quais eles se preparavam para o que poderiam fazer depois que fossem para a reserva – quando eles não se tornam general, vão para a reserva cedo, com 48, 50 anos. Esses cursos fizeram surgir algo que nunca existiu na mentalidade militar brasileira, uma visão liberal e ultraliberal da economia, e eles se afastaram daquele nacionalismo estatista e desenvolvimentista.

Como os militares puderam manter essa ideologia anticomunista se não existe mais a "ameaça" do comunismo no mundo?

Não existe mais o comunismo, mas há mais de 20 anos os militares passaram a acreditar que há uma ideologia do marxismo cultural, sobre a qual se fala muito hoje no Brasil. A ideologia do marxismo cultural seria a nova forma de atuação do comunismo, que teria se disfarçado em uma série de novas frentes, como no movimento pelas minorias, contra o racismo, pelos direitos da mulher e assim por diante. Essa seria uma forma nova do insidioso comunista atuar no mundo. Por isso, quando o [então] comandante do Exército [general Eduardo Villas Bôas] passou o comando [ao general Edson Leal Pujol] no começo do governo, em janeiro do ano passado, ele saudou o Bolsonaro por encerrar a era do politicamente correto, onde todos pensam igual. E falou que, de acordo com Walter Lippmann, onde todos pensam igual, ninguém pensa. Para ele, foi uma vitória o bolsonarismo, porque acabou com uma época supostamente de pensamento único. E esse pensamento único é a esquerda, é uma uma alusão a um comunismo disfarçado, apesar de ser algo inexistente na realidade. É um pouco absurdo, mas é o que eles pensam. 

Não há nas Forças Armadas uma ala moderada, com um pensamento mais moderno?

Estamos procurando essa ala hoje, mas ainda não a encontramos. No caso do confronto artificial criado entre o governo e o Supremo, vários generais se manifestaram dando lição de direito constitucional ao Supremo. Imagine isso na Alemanha, um general falando para um membro da Alta Corte alemã como ele deve interpretar a Constituição alemã. Isso gerou um apoio, quase unânime, nas Forças Armadas à ideia de que está havendo uma intervenção do Poder Judiciário na liberdade do Poder Executivo. Complementada com a leitura de que o artigo 142 da Constituição permitiria que o Executivo chamasse as Forças Armadas para atuar como Poder Moderador, o que foi já recusado por um manifesto de 650 juristas. Me parece que esse caráter conservador, neoliberal e a defesa do governo Bolsonaro são mais ou menos unânimes, independente da Força ou de ser da reserva ou da ativa.

E o general Santos Cruz, que foi ministro da Secretaria de Governo e saiu em junho de 2019, após virar alvo de ataques virtuais de apoiadores de Bolsonaro, e vem fazendo críticas ao governo? Ele também é alinhado a esse pensamento?

Tem dois generais, o general [Sérgio] Etchegoyen, que foi chefe do Gabinete de Segurança Institucional no governo Temer, e o general Santos Cruz, que têm dado entrevistas. Se você analisar as entrevistas, vai perceber que o que unifica o discurso deles é o antiesquerdismo, mesmo considerando que a centro-esquerda ficou no poder por 13 anos e não representou nenhuma ameaça concreta à democracia. O Santos Cruz tem uma mágoa profunda do entorno do governo, dos filhos do presidente, e você encontra críticas dele ao governo, mas não uma recusa ao governo em si e ao Bolsonaro. O presidente é poupado, porque no fundo para eles é um governo de direita e conservador que tem que ser apoiado, apesar dos seus problemas. Tanto o Etchegoyen quanto Santos Cruz falaram quase a mesma frase: o governo tem alguns erros, mas o tem mais acertos. É como se falassem: esse governo é ruim, mas é o nosso governo.

Como o senhor interpreta o vice-presidente Hamilton Mourão, que também tem publicado artigos e dado entrevistas com frequência?

O general Mourão foi um dos generais mais insubordinados durante a democracia. Inclusive pelas manifestações que fez, e que não poderia ter feito porque estava na ativa. Ele até prejudicou sua carreira por causa disso e foi sutilmente punido com perda de comando no Exército [em 2015, Mourão fez críticas à classe política e ao governo e convocou oficiais da reserva a um "despertar de uma luta patriótica", e em seguida perdeu o comando Militar do Sul e foi transferido a um cargo burocrático].

Não existe diferença nenhuma entre o que pensa o bolsonarismo e o que pensa o general Mourão. O Mourão é um lobo em pele de cordeiro. Ele não representa nenhuma garantia de que, se vier a ocupar a Presidência, o governo será diferente. Ele é um dos porta-vozes desse conservadorismo militar que venho definindo.

"Lobo em pele de cordeiro": para pesquisador, não há garantia de que vice-presidente faria um governo diferente do de Bolsonaro

Existe diferença de orientação política entre o Alto Comando e os oficiais de baixa patente?

Conforme vai baixando na hierarquia militar, há ainda mais apoio e identificação com Bolsonaro. Não por acaso, porque ele tem o ethos de capitão, e não o de general. O Alto Comando, muito sutilmente, já expressou uma insatisfação com a demissão do general Santos Cruz e com o fato de que há um general da ativa na Secretaria de Governo, o general Ramos. Há uma certa sensibilidade com atitudes do general Ramos, que está negociando com o Centrão cargos em troca de apoio para impedir o impeachment. Também pegou mal uma fala do Bolsonaro de que se ele mandasse os generais irem com ele a uma manifestação, eles teriam que ir. Mas foi isso mesmo que aconteceu, na manifestação do último domingo (02/06) ele exibiu, dentro do helicóptero em que estava, o ministro da Defesa [general Fernando Azevedo]. Filmaram a presença dele e usaram como propaganda.

O ministro da Defesa estava no helicóptero por um dever de obediência ao seu chefe ou por comungar da pauta da manifestação?

Os militares têm usado esse argumento de que, uma vez no governo, são obedientes, têm o dever de obedecer. Mas isso é falacioso, porque durante o governo da Dilma eles realizaram uma série de atos de insubordinação, inclusive do Mourão, mas também do general [Augusto] Heleno. Se o ministro da Defesa tivesse outra posição, ele poderia ter dito ao presidente que não ficaria bem para ele ir a uma manifestação dessas. Aí o Bolsonaro poderia demiti-lo, mas ele teria que arriscar.

O atual comandante do Exército, general Pujol, tem sinalizado algum distanciamento do presidente. Ele se diferencia dos demais generais do governo?

O general Pujol é um general profissional, é considerado um general não político. Isso até espanta, porque hoje em dia passou a ser uma exceção o general não político. Ele tem procurado manter uma certa distância. O Bolsonaro ameaçou tirar o Pujol e colocar o Ramos em seu lugar, mas pegou tão mal dentro da Força que ele continua lá. O Pujol representa talvez a mais leve esperança de profissionalismo diante de uma situação como essa.

O senhor vê alguma chance de Bolsonaro dar um autogolpe enquanto é presidente?

Sim, vejo. Não vejo chance de os militares tirarem o Bolsonaro dando um golpe clássico, mas, se seguir com o apoio dos militares, ele continuará com sua estratégia de corroer as instituições lentamente por dentro, agora trazendo esse debate sobre o artigo 142 da Constituição, o papel das Forças Armadas e as críticas ao Supremo. Quais são as instituições principais em uma democracia? O Congresso, o Poder Judiciário, a imprensa livre, os sindicatos e os partidos políticos. Nenhum dessas deixou de ser alvo de ataques violentos do presidente. Estamos correndo o risco de ter uma espécie de meia democracia, o que seria já um caminho para o autoritarismo.

O que seria um autogolpe? Invocar o artigo 142 da Constituição e as Forças Amadas encamparem a interpretação do presidente sobre esse artigo?

Uma vez que ele acertou a situação com o Congresso, fazendo o que se chama de "toma lá, dá cá", o Congresso está tranquilo. Agora o único poder que está se opondo é o Supremo. Se o Supremo ceder, já teremos uma espécie de regime híbrido. Mas atualmente o Supremo não está mostrando disposição para ceder, está enfrentando. O Supremo virou uma espécie de último reduto de defesa da democracia.

Se ocorrer um recrudescimento dos protestos de rua, como as Forças Armadas e as polícias tendem a agir?

A polícia militar é uma base perigosa do bolsonarismo, é muito mais numerosa, em termos de efetivo, do que as Forças Armadas, e mais bolsonarista. As polícias têm uma tradição de desobedecer os governadores, e na lei brasileira elas são consideradas forças auxiliares das Forças Armadas. O que está se esboçando agora é um crescimento dos protestos, que ficaram muito tempo contidos, e uma ação descontrolada das polícias militares. Pelo artigo que o general Mourão publicou hoje [03/06], ele já está anunciando que essas manifestações de oposição são ilegítimas e que não se pode comparar essas manifestações, que mal começaram, com as manifestações legítimas dos bolsonaristas, que seriam um pouco exageradas, mas democráticas.


Míriam Leitão: Bolsonaro usa recursos e símbolos

Bolsonaro usa recursos públicos, símbolos das Forças Armadas e o cargo para estimular protesto antidemocrático e fazer campanha fora de hora

O presidente Jair Bolsonaro tem usado recursos públicos e símbolos militares para fazer campanha política. A eleição é só em 2022, mas ele jamais saiu do palanque. A ida a manifestações não é um ato da administração do país, é de um candidato. A armadilha em que o Brasil está é que ele, como presidente, pode requisitar helicópteros para fazer seus deslocamentos, mas teria que ser para o exercício do cargo. Evidentemente ele quer usar isso como símbolo de força e poder para estimular seus apoiadores, tanto que nesse domingo usou não um dos veículos da Presidência, mas da Aeronáutica.

Ele usa esses símbolos deliberadamente. Não é necessário helicóptero entre o Alvorada e o Planalto, pouco mais de quatro quilômetros distantes um do outro, cerca de cinco minutos de carro. Mas ele quis fazer sobrevoos exibicionistas. A bordo, levou o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo, presença absolutamente inconveniente neste momento em que o país está diante de velhos fantasmas de rupturas institucionais que este governo reavivou. O general Azevedo tem dado sinais muito ruins.

A propósito da coluna de domingo, em que o historiador José Murilo de Carvalho disse que “os erros (do governo Bolsonaro) terão a cor verde-oliva”, um oficial general me disse o seguinte: “A imagem das Forças Armadas (do verde-oliva, mas não exclusivamente) foi afetada? Sim. Indelevelmente? Não.” Ele acha que a geração que chegou aos comandos agora aprendeu a conviver com a suposta “dubiedade” do artigo 142 da Constituição. “E saiu-se bem quando confrontada com os antagonismos naturais ocorridos no amadurecimento da democracia brasileira.” É verdade. Saiu-se bem. Até agora.

Os militares que estão no governo costumam minimizar as ameaças que o presidente tem feito às instituições falando em “arroubos” e “figuras de retórica”, ou então que “ele é assim mesmo”. Tomado ao pé da letra, significa que não se deve levar a sério o presidente da República. Para o vice-presidente Hamilton Mourão, na entrevista ao “Valor”, as ameaças que fez na semana passada — de não respeitar ordens judiciais — foram “um desabafo”. A nota do general Heleno, uma “retórica inflamada dos dois lados”.

Cada ato do presidente é filmado e divulgado para a sua rede social. Quem filma? Um servidor público. O helicóptero usado gasta combustível. Onde será debitado? No cartão corporativo secreto da Presidência. Toda a segurança tem que ser reforçada em torno dele no seu contato com os manifestantes. Quem paga todo esse aparato? O contribuinte. Domingo, ele montou cavalo da Polícia Militar. Queria passar a informação de que também as PMs estão ao seu lado.

As manifestações das quais o presidente participa fazem defesa de crimes. Pedem fechamento do Congresso e do Supremo e intervenção militar. A presença dele significa apoio. Os atos estão sendo investigados pela Procuradoria-Geral da República. Em resumo, Bolsonaro usa dinheiro público, símbolos das Forças Armadas e da Polícia Militar, o poder da Presidência para estimular manifestações contra a democracia, manter sua militância estimulada e fazer campanha eleitoral fora do seu tempo.

Os contra o presidente foram para a rua também no domingo. Não é aconselhável aglomeração, mas o presidente tem ido há sete semanas em atos que o reforçam. A resposta viria. Era previsível que haveria confronto. O temor que está no ar é o de que a Polícia Militar, diante de grupos em conflito, não tenha neutralidade. O deputado federal, ex-PM do Rio, Daniel Silveira (PSL-RJ), vice-líder do governo, postou uma mensagem com ameaça explícita. Depois de xingar os manifestantes contra o governo, ele disse que “tem muito policial armado, e um de vocês vai achar o de vocês. Na hora que vocês vierem, e tomar um no meio da testa ou no meio do peito e cair o primeiro…”

Na entrevista ao “Valor”, o vice-presidente Hamilton Mourão disse: “deixa o cara governar”. Bolsonaro não tem governado porque não quer. Ninguém o impede, a não ser ele mesmo. Poderia ter somado as forças políticas na luta contra o inimigo comum, o coronavírus. Mas politizou e escalou. Criou conflitos com governadores, ministros do Supremo, o presidente da Câmara e com seus ministros. Já tirou três nesta pandemia. Ele não quer governar, ele quer o conflito, a agitação e a propaganda. E o faz com dinheiro público.


Demétrio Magnoli: Arapuca

Militares pagam, agora, o preço de posicionar suas tropas em terreno incógnito

A fogueira acendeu-se no 19 de abril, Dia do Exército, quando Jair Bolsonaro e seus devotos manifestaram-se diante do QG do Exército, em meio a faixas pela restauração do AI-5, contra o Congresso e o STF. Suas labaredas espalharam-se um mês depois, no rastro da demissão de Sergio Moro.

Sexta, 22 de maio, o general Augusto Heleno, chefe do GSI, divulgou uma “nota à Nação brasileira” classificando como “interferência indevida de outro Poder” o ato burocrático do ministro Celso de Mello de encaminhar para análise um pedido de apreensão do celular do presidente. Nos dias seguintes, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, apoiou o gesto de Heleno, e 89 oficiais da reserva, quase todos coronéis, ameaçaram o STF com o espectro de uma “guerra civil”. A artilharia verbal seguiu, com o agradecimento “emocionado” de Heleno à carta dos coronéis e uma “carta aberta” do Clube Naval repudiando a “arbitrária decisão” de Celso de Mello de divulgar a gravação da reunião ministerial tarja-preta de 22 de abril.

Os militares caíram na arapuca no 5 de agosto de 2018, data em que o então candidato Bolsonaro anunciou o nome do seu companheiro de chapa. Hamilton Mourão, o vice, uma das figuras icônicas da geração de oficiais formados durante a “lenta, gradual e segura” abertura política de Geisel, selou a aliança entre as Forças Armadas e o ex-capitão turbulento, rejeitado pelo Exército por indisciplina. O pacto rompeu a fronteira que, desde 1985, separava os quartéis da política. O vírus da anarquia militar, moléstia crônica do Brasil República, voltou a circular na caserna.

Desde o início, o plano de batalha estava crivado de equívocos fatais. Os militares avisaram, ingenuamente, que os altos oficiais engajados no governo operavam individualmente, não em nome das Forças Armadas. Acreditaram na ilusão de que, por meio de um cordão sanitário de ministros-generais, neutralizariam os excessos de Bolsonaro para produzir um governo pragmático, assentado nos pilares da Economia (Guedes) e da Justiça (Moro). Não entenderam a natureza do movimento bolsonaro-olavista, que se orienta por uma estratégia de ruptura institucional. Pagam, agora, o preço de posicionar suas tropas em terreno incógnito.

O movimento bolsonaro-olavista acalenta o sonho delirante de uma “marcha sobre Brasília”. Para isso, multiplica suas ações em rede destinadas a cooptar oficiais militares e sargentos, cabos ou soldados das PMs. A tática atenta contra a disciplina nos quartéis, desgastando os fios da hierarquia castrense. Os manifestos de Heleno, dos coronéis e do Clube Naval conferem nova dimensão à agitação subversiva da ultradireita.

O bombardeio das redes bolsonaro-olavistas não poupou o círculo de generais do Planalto. A queda de Santos Cruz, em junho de 2019, evidenciou que, na ordem de prioridades de Bolsonaro, o núcleo ideológico sempre está acima dos conselheiros militares. Aquele evento assinalou a derrocada da linha de resistência interna. A mira dos canhões voltou-se, então, para o Congresso e o STF.

Há anos, num ritmo ditado pela crise do sistema político, o STF extrapola seus limites constitucionais, operando como Poder Moderador. Nessa moldura, a fábrica de ofensas do bolsonaro-olavismo provocou uma reação em cadeia, iniciada pelo inquérito das fake news e acirrada após as denúncias de Moro. O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para a PF, a ordem de divulgação da reunião ministerial e a operação policial de devassa das redes de propagação do ódio explodiram as pontes remanescentes. Hoje, um presidente sitiado pelas instituições civis busca proteção na casamata dos militares.

“Saia de 1964 e tente contribuir com 2020”, pediu Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ao ministro Heleno. Mesmo o destinatário da mensagem, um dos poucos generais do Planalto que dá ouvidos aos desvarios do núcleo ideológico, não chega ao ponto de desejar a ruptura institucional. Mas, junto com seus camaradas mais sensatos, ele conduziu suas forças à guerra errada, entregando-as ao comando clandestino de um capitão sem farda nem bússola.


Joaquim Falcão: Militar da ativa e militar da reserva

Por quem falam, afinal, os militares no governo?

Existe o militar da ativa e o militar da reserva. Os militares da ativa e da reserva que trabalham no governo. E os que não trabalham. Existe a elite militar, e a tropa militar. E por aí vamos. Militar é gênero de múltiplas espécies.

Muitos tendem a perceber os militares como um só todo. Com obrigações, valores, missões, benefícios, ideologias, limites únicos. Como bloco uniforme e monolítico.

Não são, não. Diferem, e muito.

Toda a carreira do militar da ativa é formalizada, previsível e institucionalizada por critérios objetivados, diria o ministro Ayres Britto. Etapas adequadas ao mérito e treinamento que tiveram. O soldo é predeterminado. A hierarquia profissional prevalece. São obrigados ao silêncio obsequioso. São proibidos de se manifestar politicamente.

Já com o militar da reserva que vai para o governo, não. É opção individual. Depende de sua vontade e do convite político. O cargo no governo, seja no primeiro, segundo ou qualquer escalão, necessariamente não corresponde ao treinamento que receberam na ativa. Ao ir para o governo, a renda individual do militar da reserva, em geral, aumenta.

A hierarquia é outra. Às vezes, generais da reserva disputam publicamente posições dentro do governo. Falam, debatem e discordam em público. Mais ainda. Quando militar na ativa comete alguma falta, é julgado na Justiça Militar. De legislação e critérios próprios. Quando em cargo de governo, não. Generais vão depor diante de delegados. E, às vezes, são contraditados.

A evidência destas diferenças de posicionamento entre militar da ativa e militar da reserva, dentro do mesmo governo, está ficando cada vez mais nítida. Para o brasileiro, em geral. Globalmente também.

E, com certeza, gera tensões internas. E externas.

Como ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno enviou o seu alerta ao ministro Celso de Mello. Mas não assinou somente como ministro. Sua letra mostra que assinou como general. Qual, afinal, a identidade dos militares em cargos de governo? A que são obrigados? Por quem falam? É o que o Brasil quer saber.

Desde 1988, as Forças Armadas fizeram claro esforço para recuperar a imagem dos militares desgastada pela ditadura. Nacional e internacionalmente. Não somente por causa dos limites constitucionais. Mas por voluntária autolimitação.

Conseguiram. O que tem sido extremamente saudável para o Estado democrático de Direito.

Construíram confiança e legitimidade ao adotarem comportamento democrático diante do poder. Todas as pesquisas de opinião e de confiança nas instituições demonstraram o sucesso dessa política por anos.

As Forças Armadas, as igrejas e a imprensa são instituições em quem os brasileiros mais confiam.

Essa conquista das Forças Armadas é um ativo que não precisa correr nenhum risco. Mas deve estar passando agora por um “stress test”. Devido ao crescente número de militares da reserva assumindo cada vez mais cargos e responsabilidades no governo federal.

Os militares da reserva no governo não têm responsabilidade direta sobre a imagem da corporação como um todo. Mas interferem. Queiram ou não. A responsabilidade direta pela imagem é dos militares da ativa fora do governo.

Será que essa imagem vai passar imune a este período de extrema radicalização política?

Difícil saber. As tensões e diferenças internas entre militares movem-se como placas tectônicas. Mas é certo que política e governo são um risco às Forças Armadas.

Lembro muito de um episódio simbólico, no final do governo João Baptista Figueiredo. Houvera reunião de ministros da Cultura de vários países em Veneza. Representando o Brasil, foi, então secretário de Cultura, o designer pernambucano Aloísio Magalhães. Que sofreu um acidente vascular cerebral em pleno discurso que fazia.

Faleceu lá mesmo. Uma tragédia.

Dias depois, alguns membros do Conselho da Fundação Pró-Memória foram a Brasília conversar com o ministro de Educação e Cultura, o general Rubem Ludwig. Que os surpreendeu ao dizer: “Quem deveria ter ido a Veneza era eu. Mas mandei o Aloísio. Não achei que a cultura brasileira deveria se apresentar ao mundo através de um general”.

Ou seja, há limites. Existem valores intangíveis para os militares ocuparem cargos no governo. E se politizarem.

Militar é carreira de Estado. Não de governo.

*Joaquim Falcão, doutor em educação pela Universidade de Genebra, mestre em direito pela Universidade Harvard, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da Escola de Direito do Rio da FGV


Eliane Brum: Brasil sofre de fetiche da farda

Sem superar os traumas da ditadura, parte das instituições e da imprensa se comporta como refém diante do Governo militar liderado por Bolsonaro, demonstrando subserviência e alienação dos fatos

O bolsonarismo revelou em todo o seu estupor um fenômeno cujos sintomas podiam ser percebidos durante a democracia, mas que foram apenas timidamente diagnosticados. Vou chamá-lo de “fetiche da farda”. Trata-se de uma construção mental sem lastro na realidade que faz com que algo se torne o seu oposto no funcionamento individual ou coletivo de uma pessoa, um grupo ou mesmo de um povo. O mecanismo psicológico guarda semelhanças com o que é chamado de “Síndrome de Estocolmo”, quando a vítima se alia ao sequestrador como forma de suportar a terrível pressão de estar subjugada a um outro que claramente é um perverso, seguidamente imprevisível, do qual depende a sua vida na condição de refém. O fetiche da farda tem se mostrado em toda a sua gravidade desde o início do Governo de Jair Bolsonaro e, durante o mês de maio, tornou-se assustador: mesmo à esquerda e ao centro, os militares são descritos como aquilo que os fatos provam que não são ― nem foram nas últimas décadas ―, e tratados com uma solenidade que suas ações ― e suas omissões ― não justificam.

O fetiche da farda não é uma curiosidade a mais na crônica política do Brasil, já repleta de bizarrices. O fenômeno molda a própria democracia e está determinando o presente do país. Criou-se uma narrativa fantasiosa de que, no Governo Bolsonaro, os militares são uma “reserva moral”, uma “fonte de equilíbrio” em meio ao “descontrole” de Bolsonaro. O debate se dá em torno de o quanto os generais seriam capazes de conter ou não o maníaco que ajudaram ― e muito ― a botar no Planalto.

Categorizou-se o Governo em “alas”, em que existiria a “ideológica”, composta pelo chanceler Ernesto Araújo e outros pupilos do guru Olavo de Carvalho, e a “ala militar”, entre outras, forjando assim uma fantasmagoria de que os militares no Governo não tivessem ideologia e que a palavra “militar” já estivesse qualificada em si mesma e por si mesma. A cada flatulência do antipresidente, a imprensa espera ansiosamente a manifestação da “ala militar”. Não pelo que efetivamente são e representam os militares, mas porque seriam uma espécie de “oráculo” do presente e do futuro.

Colunistas por quem tenho grande respeito, ao se referir às Forças Armadas, penduram nelas adjetivos como “honrosas” e “respeitáveis”. Quando algum dos generais diz algo ainda mais truculento do que o habitual afirmam que está destoando da tropa, porque as Forças Armadas supostamente se pautariam pela “honra” e pela “verdade”. Ao longo do Governo desenhou-se uma imagem dos militares como algo próximo dos “pais da nação” ou “guardiões da ordem”, e tudo isso confundido com a ideia de que seriam também uma espécie de pais do incorrigível garoto Bolsonaro.

Como é possível? Qual é o mecanismo psicológico que produz essa mistificação em tempos tão agudos? O fenômeno é fascinante, não estivesse nos empurrando para um nível ainda mais fundo do poço sem fundo.

Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, mas sim seu fiel produto

Tenho escrito desde o início do Governo, e mesmo antes, que Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, algo que deu errado e que nega a sua origem. Ao contrário. Desde sua gênese, ele é tanto o produto quanto a expressão daquilo que os militares representam no Brasil das últimas décadas ― ou possivelmente em toda a história republicana do país. Bolsonaro contém toda a deformação do papel e do lugar dos militares numa democracia. (Leia em Mourão, o Moderado).

Bolsonaro é o garoto de classe média baixa que adorava fardas e viu no Exército uma possibilidade de ganhar posição e importância. Como a história mostrou, entendeu tudo certinho. Sua trajetória é muito bem contada no livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel (Todavia), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, morto por câncer em 16 de maio. Na obra, o repórter mostra, a partir de rigorosa pesquisa nos autos, como o julgamento de Bolsonaro por planejar colocar bombas em quartéis ignorou provas inequívocas. O Superior Tribunal Militar absolveu-o num julgamento constrangedor, desde que ele deixasse a corporação. Bolsonaro assim o fez, já eleito vereador do Rio de Janeiro com o voto de seus colegas, que depois o reelegeriam também como deputado federal durante os quase 30 anos que passou no Congresso. (Leia em Por que Bolsonaro tem problemas com furos).

Bolsonaro existe politicamente e está no poder porque a cúpula militar absolveu um membro da corporação que trabalhava na execução de um plano terrorista para chamar a atenção para uma reivindicação salarial. Tivesse sido condenado pelo que de fato era e fez, a história seria outra. Foi a impunidade que os militares seguiram autorizados a cultivar, em função de seus interesses corporativos, mesmo após a redemocratização, que gestou o personagem Bolsonaro.

Ele, que tanto fala em impunidade, é produto da impunidade que supostamente critica. Já está mais do que claro que, para Bolsonaro, seus filhos e seus amigos, a impunidade é a própria razão de ser do poder. Responsabilização é para os outros. Não tenho informação para afirmar que aprendeu essa lição com seus pais, mas há informação suficiente para afirmar que a aprimorou com seus superiores. Se um plano terrorista não é motivo suficiente para condenar alguém, então nada é.

Durante todos os seus anos como parlamentar, Bolsonaro sempre defendeu a ditadura (1964-1985), não só normalizando o sequestro, a tortura e a morte de civis, mas defendendo que os militares deveriam ter matado “pelo menos uns 30 mil”. Votou pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando o único torturador reconhecido pela Justiça como torturador, o coronel facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra. E naquele momento lançou simbolicamente a sua candidatura ― e mais uma vez foi beneficiado pela impunidade garantida tanto pelos seus pares como pelo judiciário brasileiro.

A candidatura de Bolsonaro tinha por vice um general, Hamilton Mourão, que em várias ocasiões expressou sua vocação golpista, inclusive durante a campanha. Não é possível afirmar ou não que Bolsonaro foi eleito devido ao apoio de uma parcela estrelada de militares à sua campanha, mas é possível afirmar que esse apoio foi importante e deu legitimidade a Bolsonaro. Em troca, ele militarizou o Governo, que hoje tem nove ministros militares e quase 3 mil militares ocupando o segundo escalão. E crescendo. Bolsonaro tornou possível que os militares voltassem ao poder num país em que ainda há mais de duas centenas de corpos de pessoas desaparecidas pela ação criminosa do Governo dos generais durante o regime de exceção.

Bolsonaro e os generais que o sustentam não são feitos de matéria diferente. Não há uma e outra coisa. É a mesma coisa e o mesmo projeto de poder. Por que razão foi feita essa dissociação mental é tema para historiadores e sociólogos. Talvez mais ainda para a psiquiatria e para a psicanálise. Bolsonaro é criatura do militarismo brasileiro. E não como o monstro de Frankenstein, que na obra de ficção de Mary Shelley foi renegado pelo criador. Não. Bolsonaro é o rebento bem sucedido que foi estimulado e apoiado para virar o presidente do Brasil e então redimir seus pais inconformados, que queriam não só voltar ao poder, mas também eliminar a mancha histórica de assassinos e ditadores.

A perigosa operação mental que dissocia a imagem dos militares de seus atos

Mais grave que a dissociação entre Bolsonaro e os generais de sua entourage, porém, é a dissociação entre o que os militares efetivamente fizeram e fazem no poder ― e a forma como essa ação é descrita e convertida em imagem pública. Não é necessário analisar todo o período republicano, desde 1889. Se olharmos apenas para as últimas décadas, em 1964 os militares deram um golpe na democracia. Tiraram do poder um presidente eleito democraticamente. João Goulart era vice-presidente até 1961. Com a renúncia de Jânio Quadros, assumiu a presidência. E então veio o golpe. Jango, como era chamado, viveu no exílio até a sua controvertida morte.

Os militares tomaram o poder pela força, num golpe clássico, e permaneceram no poder pela força por 21 anos, com o apoio de parte do empresariado nacional. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5, hoje amplamente revivido como ameaça explícita nos discursos dos bolsonaristas, o Governo de exceção endureceu. O AI-5 eliminou o que ainda restava dos instrumentos democráticos e inaugurou a época mais violenta do regime, tornando o sequestro, a tortura e a morte de opositores instrumentos de Estado, executados por agentes do Estado.

Durante esse período tenebroso, há amplas provas e depoimentos mostrando que, além dos milhares de adultos, vários deles mulheres grávidas, pelo menos 44 crianças foram torturadas (leia em Aos que defendem a volta da ditadura). Uma delas, Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, torturado quando tinha 1 ano e oito meses de vida, não suportou as marcas psicológicas e se suicidou em 2013, depois de uma existência muito penosa. Há famílias de brasileiros que ainda não conseguiram encontrar os cadáveres dos mais de 200 desaparecidos pela ditadura. São pais, mães, irmãos e filhos que há décadas procuram um corpo para sepultar. “A Ponta da Praia”, para onde Bolsonaro ameaçou mandar os opositores em discurso durante a campanha de 2018, era um desses lugares de tortura e de desova de civis no Rio de Janeiro.

Durante a ditadura militar, a imprensa foi censurada; filmes, livros e peças de teatro foram proibidos; as universidades sofreram intervenções; milhares de brasileiros foram obrigados a viver no exílio para não serem mortos pelo Estado. Durante a ditadura, houve ampla corrupção nas obras públicas, como há farta bibliografia para comprovar. Foi também durante a ditadura que as grandes empreiteiras, que mais tarde estariam nas manchetes pelo esquema de corrupção conhecido como “mensalão”, cresceram, multiplicam-se e locupletaram-se em obras megalômanas do “Brasil Grande” e em seus esquemas nos Governos militares.

A ditadura torturou e matou milhares de indígenas. As “grandes obras” na Amazônia, que mais tarde seriam conhecidas como “elefantes brancos” do regime, foram construídas por essas empreiteiras sobre cadáveres da floresta e sangue de seres humanos. A ditadura militar inaugurou o desmatamento como projeto de Estado e tornou o extermínio dos indígenas uma política ao ignorar sua existência na propaganda oficial da Amazônia, como no slogan “terra sem homens para homens sem terra”. O Exército promoveu alguns dos mais cruéis massacres da história, como o dos Waimiri Atroari, que quase foram dizimados nos anos 1970.

Como é possível que alguém que viveu ou estudou esse período possa tratar a crescente ocupação militar do Governo Bolsonaro como algo remotamente semelhante a uma “reserva moral” ou a uma “fonte de equilíbrio” ou a um “exemplo de honradez”? Sério? Além do fetiche da farda devemos investigar um possível estresse pós-traumático no fenômeno. Ou talvez uma parcela dos brasileiros tenha tanto medo que o horror se repita que distorça o que enxerga porque a realidade alcançou o nível da insuportabilidade.

Alguns vão afirmar, como têm afirmado, que os militares hoje no poder, diferentemente de seus antecessores e mestres, são amantes da democracia. Qual é o lastro nos fatos para fazer tal afirmação? Há inúmeros exemplos de comportamentos golpistas por vários dos personagens do militarismo, começando pelo general Eduardo Villas Bôas, uma mistura de conselheiro e fiador do atual Governo, e terminando no vilão de quadrinhos chamado Augusto Heleno, que se houver justiça um dia responderá pelo que as tropas brasileiras comandadas por ele fizeram no Haiti. Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, é um nome que provoca tremores ao ser pronunciado em alguns círculos. Mourão, por sua vez, antes de se tornar vice-presidente, já era uma metralhadora giratória de declarações golpistas.

Em qual momento do Governo Bolsonaro os militares deram um exemplo de respeito à democracia? Basta examinar um episódio seguido do outro. A relação entre crescimento dos militares e aumento das manifestações golpistas é diretamente proporcional. O número de militares só aumenta e o Governo só piora seu nível de boçalidade, de autoritarismo e também de incompetência. Tudo isso culmina no momento atual, no qual Jair Bolsonaro se tornou o vilão número um da pandemia e os brasileiros passaram a ser recusados até nos Estados Unidos de Donald Trump. E o que temos hoje? A militarização da Saúde. Dois ministros civis, médicos, recusaram-se a ceder à pressão de Bolsonaro para usar cloroquina, medicamento sem eficácia científica comprovada para tratar de covid-19. Deixaram o Governo. Bolsonaro colocou então um militar como ministro da Saúde e conseguiu empurrar a cloroquina, jogando com a saúde de 210 milhões de pessoas. Em vez de quadros técnicos, com experiência na área, na crise sanitária mais séria em um século, o Brasil transforma o Ministério da Saúde num quartel do Exército.

Antes da pandemia, o Governo militar de Bolsonaro provocava o horror do mundo pela destruição acelerada da Amazônia. Com a covid-19, os alertas apontam que o desmatamento explodiu. É visível que os grileiros se aproveitam da necessidade de isolamento daqueles que sempre combateram suas ações, seus pistoleiros e suas motosserras colocando seus corpos na linha de frente.

E o que temos hoje? A militarização das ações de fiscalização ambiental na Amazônia. O Ibama e o ICMBio passaram a ser subordinados ao Exército, como numa ditadura clássica. Na primeira investida, segundo relatório obtido pela Folha de S. Paulo, mais de 90 agentes em dois helicópteros e várias viaturas foram mobilizados para uma operação no Mato Grosso contra madeireiras e serrarias que terminou sem multas, prisões ou apreensões. O Ibama havia sugerido outro alvo na região que, segundo fiscais, contava com fortes evidências de ilegalidades. Foi ignorado. O recém-criado Conselho Nacional da Amazônia, comandado por Mourão, tem 19 integrantes: todos militares.

A realidade mostra os grileiros atuando com desenvoltura só vista na ditadura, todos eles apoiadores entusiásticos de Bolsonaro e dos militares no poder. Invadem, destroem e pressionam pela legalização do roubo de áreas públicas de floresta, legalização anunciada pela MP da grilagem de Bolsonaro, no final de 2019, e agora pelo PL da grilagem em discussão no Congresso. O projeto dos militares para a Amazônia é o mesmo da ditadura e todos nós já sabemos como acaba. Ou, no caso, como continua.

Se alguém ainda pudesse ter alguma dúvida sobre o caráter dos militares no governo, o show de horrores exposto na reunião ministerial de 22 de abril escancarou o nível do generalato que lá está. O vídeo da reunião, apresentado por Sergio Moro como prova de que Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal, teve o sigilo retirado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Só ser conivente com aquela atmosfera e com aqueles pronunciamentos já seria uma overdose de desonra capaz de fazer uma pessoa com níveis medianos de honestidade pessoal vomitar por dias. Mas, não. Os militares são patrocinadores da meleca toda de baixíssimo nível intelectual e moralidade abaixo de zero. A reunião ministerial expõe um cotidiano de desrespeito à democracia em ritmo de boçalidade máxima. Não daria para aturar o nível de estupidez daqueles caras nem no boteco mais sórdido.

A deformação da democracia instalada nas últimas três décadas tem as digitais dos militares

A qualidade da democracia que o Brasil obteve entre o final dos anos 1980 e o impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, é resultado das negociações que costuraram o fim da ditadura e a redemocratização do país. Diferentemente de outros países que amargaram ditaduras militares, como a Argentina, o Brasil não julgou os crimes do regime de exceção. Assim, assassinos, torturadores e sequestradores a serviço do Estado seguiram impunes, ocupando funções públicas e ganhando salários públicos. Suas vítimas podiam encontrá-los tanto no elevador como na padaria da esquina como na escola dos filhos, e encontros macabros como estes aconteceram mais de uma vez.

Mesmo após a redemocratização, o Brasil seguiu também tolerando a anomalia que é uma polícia militar. Hoje, parte dela se transformou em milícia, controlando e explorando comunidades pobres, nas periferias das cidades. No Rio de Janeiro, onde as milícias e o Estado se confundem, Bolsonaro e sua família já provaram ter relações íntimas com alguns milicianos famosos, uma das razões pelas quais o presidente tanto quer controlar a Polícia Federal. O assassinato de Marielle Franco, vereadora do PSol no Rio de Janeiro, segue não solucionado há mais de 800 dias, com indícios de envolvimento de milícias próximas de Bolsonaro e seus filhos.

Outra parte dos policiais militares tem se tornado cada vez mais autônoma, respondendo apenas a si mesma. A recente greve de PMs no Ceará revelou a gravidade desse fenômeno. Em 2017, o cenário já tinha ficado evidente na greve dos PMs do Espírito Santo, quando a população se tornou refém das forças de segurança do Estado.

A polícia militar tem seu DNA cravado no genocídio da juventude negra e pobre das favelas, em massacres de presos como o do Carandiru, em 1992, e em chacinas de camponeses como o de Eldorado dos Carajás, em 1996. Nos protestos de junho de 2013, a ação violenta da polícia militar contra os manifestantes tornou-se visível também para uma parcela da classe média brasileira.

É claro que há policiais militares honestos, competentes e bem intencionados. Mas não é uma questão apenas da qualidade dos indivíduos ― e sim da incompatibilidade entre um regime democrático e uma polícia militarizada atuando junto aos cidadãos.

A democracia instalada no Brasil sempre tolerou tanto os abusos das polícias, civil incluída, quanto o genocídio do negros e dos indígenas, e isso mesmo durante os Governos de centro-esquerda de Lula e de Dilma Rousseff (PT). Essa mesma democracia pós-ditadura convive com as torturas nas prisões e as condições torturantes das prisões superlotadas de jovens negros, hoje morrendo também por covid-19.

Em parte, a democracia brasileira é deformada porque não foi capaz de julgar os crimes da ditadura e eliminar as excrescências da ditadura, mantendo uma relação de temerosa subserviência com os militares. A mesma que hoje faz o país inteiro esperar a manifestação desses generais no poder, como se dependesse do humor deles cumprir a lei ou não, apoiar ou não o golpismo, manter ou não a democracia. Claramente as elites, uma parcela da imprensa incluída, se comporta como se fosse normal que os militares tivessem a última palavra sobre o destino da democracia no Brasil, como se fosse natural um tipo de manchete como as que têm destacado os humores verde-oliva como se fossem o oráculo de Delfos.

É subserviência embrulhada em liturgia e travestida de respeito. Não são os militares que precisam “enquadrar” Bolsonaro, algo que já ficou provado que não podem nem querem fazer. São as instituições democráticas que precisam enquadrar os militares e botá-los no seu lugar. E todas as instâncias de poder, imprensa incluída, têm de parar de se curvar como se fosse levar uma botinada na testa a qualquer momento. Vejo camponeses pobres e desamparados na Amazônia enfrentarem os fardados com muito mais firmeza. No final do ano passado testemunhei uma liderança comunitária enfrentar de peito aberto um coronel armado de fuzil que queria censurar seus cartazes durante uma audiência pública em Altamira. Ele disse que não admitia uma cena como aquela porque o Brasil ainda era uma democracia. E não admitiu. Isso é dignidade.

Em artigo na Folha de S. Paulo de 24 de maio, o cientista político Jorge Zaverucha mostrou o quanto “a forte presença militar no Estado reflete a fragilidade da democracia no Brasil”. Mesmo a Constituição de 1988, a carta-magna que marcou a retomada do processo democrático depois da ditadura, foi solapada pela subserviência aos militares, determinada pelo entendimento de líderes constituintes como Ulysses Guimarães de que não seria possível retomar a democracia sem tais concessões. Ainda que seja possível eventualmente concordar com as dificuldades do momento, houve mais de três décadas para que os autoritarismos sobreviventes fossem deletados, como foi feito em países vizinhos, mas nada disso foi levado adiante no Brasil. Nesse sentido, em alguns momentos a democracia pareceu uma concessão dos generais ― e não uma conquista da sociedade civil, o que é péssimo para a cidadania.

artigo 142 da Constituição determina que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Como é possível, questiona o pesquisador Jorge Zaverucha, se submeter e garantir algo simultaneamente? E, citando o filósofo italiano Giorgio Agamben: “O soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, coloca-se legalmente fora da lei”.

Para pesquisadores do período, como Jorge Zaverucha, a elite brasileira “não possui um ethos democrático”. Ela aposta, desde o princípio, em um governo democrático eleitoral, mas não em um regime democrático. “No Brasil, as Forças Armadas deixaram o Governo, mas não o poder”, afirma o cientista político. E, hoje, como qualquer um é capaz de constatar, voltaram também ao Governo.

E agora?

A ambiguidade do artigo 142 da Constituição resulta nesses dias em ambiguidade alguma. Claramente gente demais se comporta no país como se os militares não apenas estivessem fora da lei, mas teriam o direito de estar fora da lei. A ambiguidade da Constituição, no que se refere ao papel das Forças Armadas, se desfez na prática dos dias. Guardadas as exceções, o cotidiano mostra que em todas as instituições e também em uma parcela da imprensa há predominância de lambe-botas de generais, como se a ditadura nunca tivesse acabado. Se faz obrigatória a pergunta: a democracia então começou? Votar a cada eleição é suficiente para fazer um país ser considerado democrático?

O fetiche da farda pode nos levar a muitos caminhos de investigação. Tem qualquer coisa mais prosaica, também, de homenzinhos que gostam da mística da masculinidade, a estética da testosterona pelo uso de armas e pelo monopólio do uso da força costuma ficar em alta em momentos de grande insegurança. Quando leio a carta dos militares de pantufa em solidariedade a Augusto Heleno, o ameaçador-mor da República, parece mesmo que eles acreditam serem, como arrotam, os guardiões da honra. Que se ponham no seu lugar. “Chega” dizemos nós.

Nosso dinheiro paga suas aposentadorias e a reforma da Previdência deles foi de filho para pai. Quem esses homens pensam que são para ameaçar o Supremo Tribunal Federal, a instituição? São funcionários públicos aposentados e não ungidos por nenhum deus para decidir o destino de ninguém, muito menos de um país. Tampouco foram formados por “SAGRADA CASA” nenhuma, como ostentam em caixa alta, confundindo conceitos básicos. Se depois de mais de 30 anos de democracia temos que aguentar esse tipo de declaração golpista daqueles que deveriam estar servindo à democracia é porque a democracia que o Brasil conseguiu fazer derrete.

Ao apoiar Bolsonaro, os generais queriam muito fraudar a história do golpe de 1964, garantir que a lei de anistia, de 1979, nunca fosse reformada, e se assegurar de que os crimes cometidos durante a ditadura seguissem impunes. Quando Bolsonaro tentou festejar o 31 de março, data do golpe militar, como efeméride patriótica, no primeiro ano do seu mandato, houve protestos de diferentes áreas da sociedade. O problema, porém, era muito mais grave. E o risco, muito maior.

fraude da história está se dando na prática, na subjetividade que constitui cada um, na naturalização dos militares determinando destinos, proferindo ameaças e colocando-se acima da lei. Essa é a pior fraude, porque se infiltra nas mentes, altera os comportamentos e se converte em verdade. Fica cada vez mais evidente que a ditadura nunca saiu de nós, porque ao deixarmos os assassinos impunes, seguimos reféns dos criminosos que nos subjugaram por 21 anos.

Não vejo no mundo um país mais desafiado que o Brasil. Precisa lutar contra uma pandemia com um perverso no poder que contraria todas as leis sanitárias, que está levando o país ao pódio em número de casos e de mortes por covid-19, que está destruindo a Amazônia, da qual depende o futuro de todo o planeta, como se realmente não houvesse amanhã, e que está convertendo os brasileiros em párias globais. Ao mesmo tempo, o Brasil tem que restaurar a democracia que nunca se completou e, em plena crise, vestir as pantufas nos generais que foram infectados pela febre messiânica do poder e do autoritarismo.

Na penúltima vez que os generais estivaram no poder, deixaram um rastro de desaparecidos, torturados e mortos por assassinato. Isso sem contar a inflação explodindo e a corrupção vicejando. Na atual, deixarão um rastro de dezenas de milhares de mortos por covid-19, um número que poderia ser consideravelmente reduzido tivesse o governo seguido as normas sanitárias da Organização Mundial da Saúde, mantivesse no Ministério da Saúde um quadro técnico composto por profissionais experientes em saúde pública e epidemiologia e estivesse concentrando todos os seus melhores esforços para construir um plano consistente para enfrentar a pandemia. Poderão ainda, caso se mantenha o atual ritmo de destruição, levar a floresta amazônica ao ponto de não retorno. Abraçados, claro, com os vendilhões do Centrão, no que já é chamado de Centrão Verde-Oliva.

Lamento. Mas ou desdobramos a espinha agora ou peçam desculpas aos seus filhos porque seus pais são, como diria elegantemente Bolsonaro, uns bostas.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Cora Ronai: Que papelão, Forças Armadas

A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil

É madrugada de quarta-feira, dia 20 de maio de 2020. O dia começou há pouco: digito essa frase às 00h37. Há oficialmente 271.885 casos confirmados de Covid-19 no Brasil e 17.983 mortes, mas o que o Ministério da Saúde diz não se escreve, até porque não temos ministro, não temos equipe no segundo escalão, não temos políticas federais minimamente confiáveis, não temos testes suficientes, não temos nada, nada, nada — além de alguns milicos brincando de médico e da certeza absoluta de ter o pior governo possível no pior momento imaginável.

A situação é tão desesperadora que, nesse momento, o coronavírus é o menor dos problemas do Brasil. Já se prevê uma vacina em futuro razoável, adivinham-se possíveis anticorpos aqui e ali, a Ciência funciona e, mais cedo ou mais tarde, estaremos livres disso, assim como ficamos livres de outras doenças — a peste bubônica, várias gripes, a paralisia infantil, a meningite, a Aids. Elas não desapareceram, mas já as conhecemos e as combatemos com eficiência suficiente para não temê-las mais (ou não temê-las tanto).

Mais difícil vai ser encontrar uma cura para a maldição que rege Brasília. E que não, não vem de 2018, embora nesse ano tenha chegado a um patamar nunca antes atingido na História desse país. Saímos cheios de esperança da ditadura — para cair em Sarney e Collor. Elegemos Fernando Henrique — mas ele nos legou a reeleição, essa sim a verdadeira Herança Maldita, que fez com que todos os que se sentassem depois naquela cadeira desgraçada sonhassem em se fincar no poder até o fim dos tempos (ou, pelo menos, até o fim das reeleições possíveis).

De desastre em desastre viemos dar aqui: um sociopata genocida apoiado por militares.

Não é difícil entender Bolsonaro. Ele é um Napoleão de hospício com poder real, com a caneta que é, afinal, o sonho de todo Napoleão de hospício. Numa sociedade saudável, porém, Napoleões de hospício estão, obviamente, no hospício, e não na Presidência da República.

O Napoleão de Hospício é doido, mas as pessoas que estão ao seu redor não são.

Por isso, paradoxalmente, é tão difícil entender o fenômeno Bolsonaro, sobretudo para além das eleições. Eleitores desesperados (ou seja, quase todos, sempre) fazem qualquer coisa, de entregar países a tiranos ou cidades a rinocerontes. Mas uma coisa é entregar uma cidade a um rinoceronte, outra deixá-lo governar e, ainda por cima, incentivar os seus arroubos.

Cacareco continuou no zoológico; Jair Bolsonaro é presidente.

Os militares passaram os últimos 35 anos tentando mudar a imagem sombria que conquistaram durante a ditadura. Ainda que não possam reescrever a História, tiveram êxito. Respeitaram a constituição, trabalharam muito e falaram pouco. As pesquisas de opinião mostram que reconquistaram a confiança da população.

Agora, como se 1964 não tivesse acontecido nunca, começam a sair dos quartéis e se aliam a um homem que foi afastado das Forças Armadas por indisciplina e deslealdade.