Forças Armadas
Bernardo Mello Franco: A República e os quartéis
A República faz aniversário. Cento e trinta e um anos e ainda não tomou juízo. Começou instável, pela espada do Deodoro, e continua aí na corda bamba.
Essas frases foram escritas por Otto Lara Resende, em 1991. O diagnóstico continua certeiro. Só atualizei a contagem dos anos.
Em 15 de novembro de 1889, o país passou a ser governado por um marechal. Hoje está nas mãos de um capitão. Não foi só nisso que regredimos.
Na semana das eleições municipais, os holofotes se deslocaram dos candidatos para o comandante do Exército. O general Edson Pujol afirmou que as Forças Armadas “são instituições de Estado”. A obviedade não deveria chamar a atenção numa democracia.
“Não somos instituição de governo, não temos partido. Nosso partido é o Brasil”, disse o general. Ele cometeu um ato falho. A última frase estampava a camiseta de Jair Bolsonaro quando ele foi esfaqueado em Juiz de Fora.
Na sexta, o vice-presidente Hamilton Mourão endossou as palavras de Pujol. “Política não pode entrar dentro do quartel. Se entra política pela porta da frente, a disciplina e a hierarquia saem pelos fundos”, afirmou.
O general não costumava pensar assim. Antes de passar à reserva, ele foi punido duas vezes por se meter na política. Em 2015, Mourão afirmou que o impeachment de Dilma Rousseff significaria “o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. Em 2017, disse que Michel Temer promovia um “balcão de negócios” para não cair.
Nas duas ocasiões, o general sabia o que estava fazendo. Ao atacar presidentes, ele quebrou a hierarquia para se projetar na política. Deu certo. Em 2018, seria convidado a integrar a chapa de Bolsonaro.
A declaração de Pujol também não combina com a atuação de seu antecessor. Às vésperas da eleição, o general Eduardo Villas Bôas pressionou o Supremo Tribunal Federal a negar um habeas corpus ao ex-presidente Lula.
A interferência da caserna no Judiciário empolgou o então candidato Bolsonaro. “Estamos juntos, general”, tuitou o capitão, que seria o maior beneficiário do julgamento.
Ao vestir a faixa, o presidente premiou o militar com um cargo no Planalto. A filha dele está pendurada no gabinete da ministra Damares Alves.
No início do mês, surgiram novas informações sobre a atuação política de Villas Bôas. Nos meses que antecederam o impeachment de Dilma, ele teve “vários encontros” com o então vice-presidente Michel Temer, segundo relato do professor Denis Rosenfield.
O comandante do Exército reclamava da Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes da ditadura. Na mesma época, o senador Romero Jucá foi gravado dizendo que os chefes militares prometeram “garantir” a derrubada da presidente.
Ao assumir a cadeira de Dilma, Temer deu ministérios a dois generais ligados a Villas Bôas. Um deles assumiu a pasta da Defesa, que só havia sido ocupada por civis.
Começava ali o retorno dos militares ao centro do poder. Com a vitória de Bolsonaro, os generais pensaram que voltariam a mandar no país. Agora alguns se dizem arrependidos, mas não o suficiente para deixarem os cargos.
Eliane Cantanhêde: Haja pólvora
Sem Trump, Mourão, governadores, prefeitos e parte dos militares, quem sobra para 2022?
Se o presidente Jair Bolsonaro insistir nesse ritmo de metralhadora giratória contra tudo e todos, quem estará com ele na reeleição em 2022? Bolsonaro não deve eleger um único prefeito de capital hoje, joga o vice Hamilton Mourão ao mar, cria tensões e cisões desnecessárias nas Forças Armadas, não entrega reformas e privatizações ao empresariado e ao mercado, não gera empregos, irrita médicos, professores, o pessoal da cultura e qualquer um que defenda o verde e a vida.
Quem sobra? Por questões ideológicas, interesses diretos, conveniências pontuais ou simples incapacidade de compreender o que se passa, os bolsonaristas dirão que sobram o Centrão e uma faixa considerável das redes sociais e do eleitorado. É preciso saber, porém, até onde, e quando, o Centrão e esse eleitor fiel, ou recentemente conquistado, resistem. As urnas de hoje serão um teste. Trarão boas respostas e indícios.
O Centrão está de olho na contagem de votos não só para consolidar suas bases como para projetar os próximos passos: as eleições para Câmara, Senado, governos estaduais e Presidência em 2022. O que os líderes de PP, PTB, PL… vão fazer, se o apoio de Bolsonaro se revelar tóxico? Serão fiéis na alegria e na tristeza? As eleições, portanto, devem deixar claros os limites da aliança. É restrita ao Congresso e dura enquanto a caneta tiver tinta. Bagaço de laranja e caneta sem tinta não servem para nada.
Pelas pesquisas, muito mais confiáveis no Brasil do que nas eleições americanas, Bolsonaro vai colher derrotas significativas em São Paulo e no Rio e assistir ao fim precoce da “nova política” que, dois anos atrás, empurrou policiais, militares, juízes e promotores para governos, Congresso e assembleias. Exemplos: o juiz Wilson Witzel e o bombeiro Carlos Moisés, já afastados dos governos do Rio e de Santa Catarina.
O sonho virou pesadelo. Os eleitos na onda bolsonarista não vão bem das pernas, o PSL voltou à sua real dimensão e o presidente não conseguiu criar um partido para chamar de seu. Assim, Bolsonaro vai encerrando o seu segundo ano de governo se despindo da fantasia do Jairzinho Paz e Amor e abrindo flancos por todos os lados. Encampou a derrota de Trump como sua, ameaça o futuro presidente Joe Biden e, hoje, a perspectiva é de derrota interna também.
Sem aliados externos e internos, nas mãos do Centrão, com horizontes nebulosos na economia e segunda onda da covid-19 na Europa, era hora de Bolsonaro criar caso com os militares? A um dos muitos oficiais militares que estão preocupados, perguntei se o presidente não precisa dormir mais para parar de falar besteira. E ele: “Sim. E de tomar um remedinho”.
A moda é dizer que Forças Armadas (FFAA) “são de Estado, não de governo” e os militares não são parte da política nem querem a política nos quartéis, como repetiu o general Edson Pujol, que também estava no Seminário de Defesa, na Escola Superior de Guerra - que, aliás, não teve ninguém do Planalto. No cafezinho, ele me disse: “Não sei por que tanta repercussão. Eu falei o óbvio”. O que leva à seguinte reflexão: quando o comandante do Exército precisa dizer obviedades, é porque elas deixaram de ser óbvias.
Em nota, ontem, o ministro da Defesa e os três comandantes declararam que o presidente “tem demonstrado (…) apreço pelas FFAA, ao que tem sido correspondido”. Por que dizer isso, a esta altura? Isolado no plano internacional, Bolsonaro será derrotado hoje na eleição para prefeitos e tem contra si parcelas expressivas de governadores, juristas, cientistas, médicos, professores, ambientalistas, diplomatas, artistas e analistas. Não satisfeito, bate boca com Mourão, o que divide os militares. Aonde, afinal, Bolsonaro quer chegar?
Janio de Freitas: Custo que o Exército viria a pagar para ter Bolsonaro foi previsto, dito e escrito
O Exército, que formou esse capitão, tem pago caro em desprestígio por cada asnice do presidente
Os níveis mais altos de militares do Exército, incluídos os reformados-mas-não-muito, estão sob interrogações sem respostas e, por isso, possíveis inquietações mal definidas. Nada indica, no entanto, o sentido adverso a Bolsonaro que exala dos comentários sobre contrariedade de altos estrelados com seu capitão-comandante. Na falta de indícios resistentes, a onda parece seguir a mesma pressa dedutiva que há pouco criou um Bolsonaro aderido à moderação.
Não há sinais de insatisfação no Exército com o governo. Nisso se tem confirmado a comunhão de visões entre Bolsonaro e os referidos militares do Exército. Mesmo nas práticas que mais choquem o mundo da cidadania, como a entrega da Saúde e da vigilância farmacológica a militares sem a formação específica. Ou a destruição da riqueza natural, sobre ela recaindo a recente advertência aprovadora do general-vice Hamilton Mourão: “A eleição [nos EUA] não muda a política ambiental”.
O desgaste já é em nível de ridículo. Quem, no grupo de militares palacianos, tentou conter um pouco a produção bestial, teve como resultado a demissão grosseira, caso dos generais Santos Cruz e Rêgo Barros. Ou rompeu relações, como o indemissível Mourão. Os demais conduzem-se como acovardados. Para essas pessoas que se pensam admiráveis, poderosas, distinguidas pela força da arma, responsáveis pelo país que nem entendem, verem-se até em anedótico desafio a militares de verdade, convenhamos, há de doer. Mourão nem percebeu que seu remendo usual também ficou grotesco: a pólvora contra os EUA “foi retórica”. Não, foi mesmo insuficiência mental.
Nenhum dos incomodados sabe como deter a corrosão. E todos sabem que vai continuar. Com risco de chegar ao paroxismo de um impeachment atrasado, o capitão-comandante e seus subordinados generais, almirantes e coronéis a sair, ou melhor, marchar pela porta da cozinha. Todos pisando na imagem do Exército.
O vice Mourão tenta transferir as responsabilidades: ”Política não pode entrar no quartel”. O Exército não foi buscado por político algum, nenhum partido, por ninguém. A política, sim, foi invadida pelo Exército na pessoa do seu então comandante, Eduardo Villas Boas, que interveio no processo eleitoral, com disposição ostensiva, por ao menos duas vias. Uma, a pressão sobre o Supremo Tribunal Federal, para o impedimento eleitoral de Lula. Outra, ao patrocinar, na condição de comandante do Exército e sempre no cenário do seu gabinete, a candidatura presidencial, a violência e a desordem mental de um excluído das Forças Armadas, elevado a símbolo político dos militares. O custo que o Exército viria a pagar para ter Bolsonaro, com um governo militarizado por generais e coronéis, foi previsto, dito e escrito. Por civis. Quem não previu o óbvio, muito menos preverá o desfecho.
O que é o que é Luciano Huck reapareceu. Era presença permanente nos jornais até que Bolsonaro começou a mostrar a que veio. Huck preferiu sumir. Não teve nem uma só palavra a dizer sobre as barbaridades sucessivas de formação e ação do governo. Vieram a pandemia, as demissões na Saúde, a propaganda de Bolsonaro contra a prevenção, o confinamento, o lockdown, os encerramentos no comércio e na indústria, a penúria da falta de trabalho — Huck não teve nem uma só palavra a dizer. Agora, maré mais tranquila, reaparece. Sem uma só palavra sobre o que a população passou e passa ainda. Isso é um pretendente à Presidência? Huck acha que é. Mas, na verdade, é apenas um oportunista.
EM TEMPO
O carioca desta vez parece decidir-se pelo senso prático. Não quer voto ideológico nem sequer partidário, deduz-se das pesquisas. Quer votar pela cidade, no ex-prefeito que lhe deu muitas realizações importantes, sem se ocupar de política, ou na delegada séria, determinada, deputada alheia à politicagem que é a ocupação no ramo. Bem, entre eles está o prefeito Crivella, mas aí o assunto é mais de igrejas e fiéis que de urnas e eleitores. Se confirmar a aparente intenção, a cidade pode salvar-se. Do contrário, paciência. O crime Estudo do IBGE: o Brasil ocupa o nono lugar entre os países mais desiguais do mundo.
Raul Jungmann: Amazônia: decifra-me ou te devoro
Dependendo do olhar que se lance sobre a Amazônia Legal, ora ela parece um gigante, ora um anão. Geográfica e fisicamente ela é indiscutivelmente superlativa: 61% do território nacional, com mais de 5.2 milhões de Km2; um terço de todas as florestas tropicais do mundo, 20% da água potável do planeta, idem maior bacia hidrográfica, maior rio, maior banco genético e diversidade.
Se fosse um país, a Amazônia internacional seria o sexto maior em extensão, espalhando-se por nove países sul-americanos. Na outra face da moeda, a região detinha apenas 8% do PIB em 2018, e 12.3% da população total do país, algo como 23 milhões de habitantes – destes, 69% concentrados nas áreas urbanas.
Em 2007, as áreas protegidas (reservas indígenas + áreas ambientais + reservas militares) somavam 209 milhões de hectares, dos quais 53% em situação fundiária incerta, segundo o Imazon. Em resumo, a gigante Amazônia é um “vazio de poder”, em termos econômicos, populacionais e políticos. Historicamente, apenas em 1953, no segundo governo Vargas, foi criada a SPVEA – Secretaria Para a Valorização Econômica da Amazônia, antecessora da igualmente impotente SUDAM.
A Amazônia sempre foi para o Brasil um “outro” – longínquo, desconhecido, exótico, misterioso. Não sabemos o querer dela; inexiste um projeto nacional para a região. E sua voz, desde sempre, foi pouco audível. A região se caracteriza mais pelo olhar externo sobre ela, do que pela sua voz sobre si mesma.
E não por acaso vêm de fora os ventos da mudança. Globalização e alterações climáticas internacionalizaram definitivamente a região. Mais e mais, o mundo crê que a Amazônia está para o seu futuro como algo capital, em termos de equilíbrio ambiental e sobrevivência humana. A Amazônia é considerada um dos 15 “hot spots” do mundo com impacto no clima global. O que tende a exacerbar pressões que se chocam com nossa soberania sobre a região.
O desmatamento, queimadas e exploração mineral de terras indígenas no topo das mídias globais, são a expressão mais visível desse entrechoque, que ameaça setores exportadores, podendo levar à perda de mercados e sanções.
Não se iludam, a Amazônia, pela primeira vez estará na agenda presidencial de 2022. Afinal, ela está na agenda do mundo. Ergo, estará na nossa também, como atesta a criação da Coalizão Brasil, Clima Florestas e Agricultura, integrada por mais de 250 empresas do agronegócio, grandes bancos, academia e ONGs.
Decifrar essa esfinge e solucionar a atual e antiga crise, requer um projeto nacional voltado para o desenvolvimento sustentável. Sem este, não há como alinhar a defesa da nossa soberania, a preservação do meio ambiente e as preocupações globais.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Fernando Gabeira: O perigoso esporte de humilhar general
A humilhação repercute no respeito que as pessoas têm pelas Forças Armadas
Com a redemocratização, conheci alguns generais. Um deles visitava nossa casa para alegria das crianças. Era o bisavô das meninas, já nos últimos anos de vida. Serviu no Brasil profundo, tinha memórias de índios e do mato.
Um dia ele me contou que o médico íntimo dele, antes de operá-lo, aplicou a anestesia e perguntou: “Quer dizer que o senhor é o general da banda?” Ele tentou responder, mas dormiu com um sorriso nos lábios.
“General da banda” é uma canção antiga, regravada por Astrud Gilberto, que dizia: “Chegou o general da banda, eh eh/ Chegou o general da banda eh ah”. Era possível brincar com um velho general. Mas seria impensável desrespeitá-lo.
Quando leio nos jornais que há um plano para humilhar generais, minha reação inicial é esta: um general não se deixa humilhar.
Mas, ao longo destes anos compreendi também que, assim como nos outros ofícios, há diferenças entre as pessoas. Nem todas se comportam da mesma maneira. Há generais que entraram no governo pensando num trabalho sério. Santos Cruz foi golpeado por intrigas. Saiu e hoje é um crítico sensato dos descaminhos de Bolsonaro.
Rêgo Barros foi um dos generais que conheci, como jornalista. Era a interface com o Exército, coordenava a comunicação. Fui visitá-lo algumas vezes no Forte Apache, na tarefa de preparar programas de TV sobre algumas ações militares que me interessavam.
Ele se tornou porta-voz de Bolsonaro, foi destituído e vejo que estava certo ao manter meu interesse por ele. Percebeu a vulgaridade e o delírio de poder de Bolsonaro e segue seu caminho.
Infelizmente, nem todos se comportam assim. Tive poucos contatos com o general Heleno. O primeiro foi no Haiti, quando ele comandava a força da ONU. O segundo, na Amazônia; chegamos a viajar juntos para as terras ianomâmi. Heleno teve uma curta passagem como comentarista de TV, na Band, analisava segurança pública.
Sua trajetória é de adesão total ao projeto Bolsonaro. Ao colocar Abin e GSI na busca de uma defesa para as trapalhadas de Flávio, ele se revelou um samurai da família Bolsonaro.
Mergulhou tão rancorosamente no passado que manda espiões para encontros internacionais que tratam do tema essencial para o futuro do Brasil: o meio ambiente.
Trajetória estranha também é a do general Pazuello, a quem não conheci pessoalmente, apesar de ter visitado as instalações da Operação Acolhida em Roraima. Pazuello foi desautorizado publicamente por Bolsonaro, em seguida posou ao lado do presidente e disse simplesmente: “Um manda, e o outro obedece”.
Espontaneamente, ele igualou suas funções à de um varredor da porta do quartel. E nos deu uma antevisão da situação calamitosa da saúde no Brasil: ele simplesmente obedece a Bolsonaro, uma das pessoas mais obtusas nesse campo, para não falar de vários outros.
Como se não bastasse tudo isso, o ministro Ricardo Salles chama o general Ramos de Maria Fofoca nas redes sociais, e nada acontece com ele.
Alguns analistas acham que Bolsonaro tem prazer em humilhar generais, para compensar seu fracasso no Exército. Não me interessa tanto o lado psicológico. O mais importante para mim é lembrar que a humilhação de generais repercute no respeito ou desprezo que as pessoas têm pelas Forças Armadas.
O desprezo pelas Forças Armadas, por sua vez, repercute na política de segurança nacional. Não é possível que, por um dinheirinho a mais os militares, ocupem um governo destruidor e incapaz e ameacem com isso sua função constitucional específica.
Não precisamos de Forças Armadas para derrubar essas aberrações momentâneas. Nos Estados Unidos, Trump pode ir para o espaço com as eleições. Derrotaremos Bolsonaro e quantos militares estiveram ao seu lado. Não é esse o problema.
O que faremos com a vitória se o sentimento elementar de honra abandonar nossas Forças Armadas?
Uma das consequências mais nefastas do governo Bolsonaro foi ter comprometido as Forças Armadas. Todo o trabalho de recomposição no período democrático pode estar se perdendo, de alguma forma.
Não há presos políticos nem tortura, é verdade. Mas os problemas são de outra natureza, as consciências despertas para novas realidades. Um pobre general abraçado à cloroquina, espionando encontros internacionais, sendo chamado de Maria Fofoca — tudo isso é demonstração de que a insanidade sentou praça.
Alexandre Caetano: As eleições de 1970 e as prisões da Operação Gaiola no ES
No início do próximo mês de novembro, exatamente quando o Brasil se prepara para a realização de mais uma eleição, um episódio obscuro e quase esquecido da história política dos país estará completando 50 anos. Trata-se da Operação Gaiola, desencadeada pela ditadura que governava o país para garantir a vitória dos candidatos do partido de sustentação do regime, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) nas eleições de 1970. O presidente na época, indicado pelos militares e eleito de forma indireta pelo Congresso Nacional, era o general Emilio Garrastazu Médici.
A ditadura havia sido escancarada desde a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando o Congresso foi fechado, com posterior cassação de mandatos de parlamentares, aposentadoria compulsoria de ministros do STF, a permissão de prisões sem mandados judiciais e o fim dos habeas corpus para presos políticos. Não existem números oficiais, mas pesquisadores como o brasilianista norte-americano Thomas Skidimore e Maria D’alva Kinzo, estimam que entre 5 mil a 10 mil pessoas consideradas adversárias do regime, foram presas entre o final de outubro e a véspera das eleições de 1970. Não houve inquérito, processo, ordem judicial ou intimação. Era o exercício bruto do arbítrio e da truculência de um regime ditatorial.
O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição consentida, criado pela própria ditadura em 1965, junto com a sigla governista, estava combalido pelas cassações feitas pelo AI-5 e tinha dificuldades até para montar chapas de candidatos em vários municicípios e Estados. Mas ainda era pouco para o governo militar, que queria uma esmagadora maioria para consolidar a imagem do regime aos olhos do mundo, varrendo para debaixo do tapete o sangue que espirrava das vítimas de torturas, execuções e “desaparecimentos” dentro e fora de instalações oficiais.
O jornalista Rubem Gomes Câmara Gomes, um dos formadores de opinião que foi presos no Espírito Santo naquela, estima em 120 o número de pessoas presas no Estado, entre jornalistas, profissionais liberais, intelectuais, estudantes e formadores de opinião. O médico José Cipriano da Fonseca e o economista Antônio Caldas Brito, acreditam que as prisões podem ter chegado a 200. Os presos chegavam de todo Estado, inclusive do interior, em geral trazidos por políciais federais, e eram levados para Superintendência da Polícia Federal, que na época ficava na Avenida Vitória, sendo depois levadas para o quartel do então 3º Batalhão de Caçadores (hoje 38º Batalhão de Infantaria), na Prainha, em Vila Velha.
Zezinho Cipriano, como é mais conhecido, ex-líder estudantil, foi preso em Barra de São Francisco, no quando atendia pacientes no Centro de Saúde local. “Nenhuma explicação foi dada, nem antes e nem depois. A gente apenas sabia que tinha gente sendo presa em tudo quanto lugar. Um dia, perguntei ao major Anésio o motivo da prisão, e ele me disse apenas que prenderam porque receberam ordem de prender”, relata.
Caldas Brito foi preso por militares do Exército no escritório de sua empresa, no Edifício A Gazeta. Câmara Gomes conta que, depois de três dias, ele e um grupo de presos foi levado para uma ala da Penitenciária Pedra D'Água, o IRS (Instituto de Readaptação Social), na Glória, que havia sido esvaziada com a transferência dos presos comuns até para delegacias do interior. Já Zezinho Cipriano e Caldas Brito permaneceram na enfermaria do quartel, junto com os outros presos de nivel superior.
Entre os presos, eles citam os médicos Aldemar de Oliveira Neves e Caetano Magalhães; o escritor e folclorista Hemorgenes da Fonseca, o advogado Sizenando Pechincha, que mais tarde seria presidente do Vitória Futebol Clube, os jornalistas Vitor Costa e Ewerton Montenegro Guimarães – que estava se formando em Direito -, o ex-prefeito de Colatina, Moacir Brotas, e Cantídio Sampaio, que anos depois seria prefeito de Iúna. Nem candidatos às eleições daquele ano foram poupados, como o médico Gilson Carone, que concorria à Prefeitura de Cachoerio, e Benedito Elias, que disputava em Linhares.
Os presos só começariam a ser libertados nos dois dias que antecederam as eleições. O objetivo da ditadura, em parte, foi atingido, pois a Arena ficou com 87% das cadeiras do Senado, 71% na Câmara dos Deputados e 70,6% nas Assembleias Legislativas. O problema é que também houve aumento dos votos nulos e brancos, que nas eleições proporcionais passaram de 21,1% em 1966 para 30,3% em 1970.
Quatro anos, nas eleições de 1974, o MDB ganhou 16 das 22 vagas em disputa no Senado e dobrou a bancada na Câmara. Mas ainda seriam necessários mais de 10 anos para que a ditadura saísse de cena, em 1985, deixando o legado da modernização conservadora da economia que teve como saldo a hiperinflação, um gigantesco endividamento externo, um crescimento urbano desordenado, aumento da pobreza e da concentração de renda e 434 brasileiros e brasileiras que morreram ou “desapareceram” nas mãos de agentes do Estado.
*Alexandre Caetano é jornalista e historiador.
William Waack: Bolsonaro decepciona os generais
O desabafo do ex-porta-voz do presidente não é a voz isolada de um fardado
Foi já para lá da metade de 2018 que os altos oficiais das Forças Armadas encantaram-se com a popularidade de alguém que surfava a onda disruptiva, que oferecia a oportunidade de se alterar os rumos do País. Hoje levanta-se a tese se houve mesmo uma alternância entre “esquerda” e “direita” em 2018, pois o que se percebe é a prevalência de um sistema pelo qual os donos do poder descritos já há tantos anos continuam acomodando interesses setoriais e corporativos às custas dos cofres públicos, sem visão de conjunto ou de Nação – tanto faz o nome ou o partido.
Além da bem amarrada ou não agenda econômica proposta por Paulo Guedes, foram os militares formados em academias de primeira linha que trouxeram para Bolsonaro o que se poderia chamar, com boa vontade, de “elementos de planejamento” num governo que, logo de saída, titubeou entre entregar a coordenação dos ministérios para uma ala “política” (enquanto se recusava a praticar a “velha” política) ou depositá-la no que era a esperança dos generais: um dos seus como chefe de “Estado-Maior” (a Casa Civil). Hoje se constata que era o primeiro sinal inequívoco do que acabou virando a marca do governo: sem eixo, sem saber como adequar os meios aos fins (supondo que “mudar o Brasil” seja o objetivo final) num espaço de tempo definido (um mandato? Dois mandatos?). Portanto, sem estratégia.
Os militares de alta patente no governo carregaram consigo uma aura de respeito e credibilidade e, em alguns ministérios, de eficiência e competência, mas não estão usufruindo disso. Ao contrário, a reputação deles como grupo está sendo moída em casos como o da Saúde, área na qual o presidente interfere como se entendesse alguma coisa disso, e da Amazônia, com um “governo do B” entregue a quem conhece a área (o general Hamilton Mourão) enquanto o enciumado Bolsonaro deixa que Meio Ambiente e Relações Exteriores pratiquem o “fogo amigo”.
Dois fatores políticos levaram os militares à “confortável mudez” à qual se refere o ex-porta-voz do governo, general Rêgo Barros, na destruidora descrição que fez do esfarelamento da autoridade dos militares num governo que eles nunca controlaram. É “subserviência”, diz o ex-porta-voz, que impede a prática da “discordância leal” (coisa de fato complicada para quem cresceu em hierarquias). O primeiro fator político era a consolidada noção de que governar o Brasil se tornara impossível por culpa de outros Poderes, como Legislativo e Judiciário. Caberia ao grupo militar “defender” o Executivo.
O segundo componente político é mais amplo e difuso. Tem a ver com 2018 e o medo do esgarçamento do tecido social. Os militares “compraram” em boa medida o mantra repetido por Bolsonaro, segundo o qual “as esquerdas”, sorrateiramente postadas atrás da esquina, só estão esperando maus resultados econômicos, crise ainda maior de saúde pública e aumento de criminalidade para promover a baderna que colocará de joelhos o governo e, portanto, o projeto de “mudar o Brasil”. Fugiria tudo ao controle.
Ironicamente, Bolsonaro acabou encontrando seu porto seguro não tanto nos militares, de cuja coesão e capacidade de articulação desconfia (como desconfia de tudo ao redor). O presidente acomodou-se no conforto do Centrão e na capilaridade que esse conjunto de correntes políticas, desde sempre empenhadas em controlar o cofre e a máquina pública, exibe em todas as instâncias decisivas no Legislativo e também do Judiciário, onde acaba de ser colocado no topo um ministro para o Centrão chamar de seu.
“Jair preocupou-se mais com seus filhos e reeleição do que com o País”, queixou-se, confidencialmente, um dos militares que chamam o presidente pelo primeiro nome. O desabafo do general Rêgo Barros não é simplesmente o de um indivíduo decepcionado. É de um grupo desarticulado.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
Otávio Santana do Rêgo Barros: Memento mori
''A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade''
Legiões acampadas. Entusiasmo nas centúrias extasiadas pela vitória. Estandartes tomados aos inimigos são alçados ao vento, troféus das épicas conquistas. O general romano atravessa o lendário rio Rubicão. Aproxima-se calmamente das portas da Cidade Eterna. Vai ao encontro dos aplausos da plebe rude e ignara, e do reconhecimento dos nobres no Senado. Faz-se acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal!
O escravo que se coloca ao lado do galardoado chefe, o faz recordar-se de sua natureza humana. A ovação de autoridades, de gente crédula e de muitos aduladores, poderá toldar-lhe o senso de realidade. Infelizmente, nos deparamos hoje com posturas que ofendem àqueles costumes romanos. Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião.
É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.
Tão logo o mandato se inicia, aqueles planos são paulatinamente esquecidos diante das dificuldades políticas por implementá-los ou mesmo por outros mesquinhos interesses. Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos.
Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal.
Entendam a discordância leal, um conceito vigente em forças armadas profissionais, como a ação verbal bem pensada e bem-intencionada, às vezes contrária aos pensamentos em voga, para ajudar um líder a cumprir sua missão com sucesso.
A autoridade muito rapidamente incorpora a crença de ter sido alçada ao olimpo por decisão divina, razão pela qual não precisa e não quer escutar as vaias. Não aceita ser contradita. Basta-se a si mesmo. Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste. Vê-se sempre como o vencedor na batalha de Zama, nunca como o derrotado na batalha de Canas.
Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói! E se não há mais escravos discordantes leais a cochichar: “Lembra-te que és mortal”, a estabilidade política do império está sob risco.
As demais instituições dessa república — parte da tríade do poder — precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do “imperador imortal”. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César.
A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — “Lembra-te da próxima eleição!”
Paz e bem!
* General de Divisão do Exército Brasileiro. Doutor em ciências militares, foi o porta-voz da Presidência da República, nomeado pelo governo Jair Bolsonaro
Míriam Leitão: Crimes no solo da Amazônia
Os grandes números impressionam, a descrição dos crimes encontrados no solo da Amazônia, também. A Operação Verde Brasil 2 aplicou de 11 maio até esta semana multas no valor total de R$ 1,696 bilhão. O Exército em solo e a Marinha nos rios apreenderam carregamentos de madeira suficientes para encher duas mil carretas. E isso foi até a última quarta-feira. Em apenas uma operação contra o garimpo ilegal foram encontrados 45 quilos de ouro. Ao todo nesses meses foram apreendidas oito mil toneladas de minerais ilegalmente extraídos, a maior parte manganês.
Os 45 quilos de ouro têm o valor de R$ 15 milhões. Foram encontrados dentro da Reserva Biológica de Maicuru, entre os municípios de Santarém e Itaituba, numa operação nos dias 9 e 13 de outubro. O local é definido pelos militares como “totalmente inóspito e de difícil acesso”. Foram por ar com a Força Aérea. Junto com os militares, a Polícia Federal e o Ibama. Lá, destruíram também 15 motores estacionários de garimpo.
Eles não saem assim às cegas. Em Brasília um grupo reúne todos os órgãos envolvidos com o tema. Um deles é o Inpe. Com imagens de satélite escolhe-se onde agir. Em videoconferências falam com os comandos militares na Amazônia. No resto é patrulha mesmo por terra, rio e ar.
Na manhã de 2 de setembro, as tropas das Forças Armadas chegaram numa fazenda que fica a leste da Terra Indígena Yanomami, ao norte da Estação Ecológica Niquiá, no município de Caracaraí. Estavam juntos técnicos do ICMBio, policiais militares de Roraima e fiscais ambientais do estado. Era uma atividade de combate ao garimpo ilegal. Eles apreenderam quatro aviões, mas havia outras aeronaves sendo consertadas e uma sendo montada. Havia uma pista de pouso e um hangar com espaço para cinco aviões.
As distâncias são enormes e só podem ser vencidas com o que eles chamam de “uma logística forte”, que apenas as Forças Armadas têm. Os militares dizem que precisam da cooperação dos órgãos ambientais. Na verdade, eles definem a Verde Brasil 2 como uma operação interagências. E a lista inclui, além das três forças, ICMBio e Ibama, a Funai, o Serviço Florestal Brasileiro, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Incra, órgãos ambientais estaduais e polícias locais.
No dia 25 de junho, um navio patrulha da Marinha encontrou carregamento de madeira na foz do Rio Tocantins, no Pará. Havia três empurradores e quatro balsas levando ao todo mil toras de madeira ilegal. A carga era tanta que punha em risco a navegação. Dois dias depois aportaram em Belém e o material foi entregue às autoridades ambientais do Pará.
— Quando a gente não consegue evitar o desmatamento, a gente apreende o resultado do crime para dar um prejuízo ao malfeitor e desestimular a continuidade do crime — disse um militar.
Ao todo, foram 765 os equipamentos inutilizados ou destruídos este ano. São veículos, motores de garimpo, balsas, tratores, escavadeiras e máquinas agrícolas. Isso, além das mais de mil embarcações apreendidas e 390 dragas. Em Humaitá, pegaram de uma só vez 64 dragas.
— Os garimpos são enormes, muitas vezes em áreas protegidas. Os servidores do Ibama e do ICMBio são poucos. Precisam ser levados, em geral pela Força Aérea. A multa é aplicada pelo Ibama e pelo ICMBio. O papel das Forças Armadas principal é logística, de levar esse fiscal para lugares que ele não conseguiria chegar, e ao mesmo tempo dar proteção a ele. Num garimpo enorme desses, o fiscal vai sozinho? É um perigo. É pouquinha gente (das agências ambientais) para umas coisas enormes e interesses muito grandes por trás — explica um oficial.
A Operação Verde Brasil 2 está prevista para terminar em 6 de novembro. Terão sido seis meses. As multas aplicadas foram muito maiores do que no ano passado.
— Até hoje foram combatidos 7.500 focos de incêndio e foram realizadas 44.900 inspeções navais e terrestres, vistorias e revistas. É bastante. É o suficiente? Não. Isso tudo é emergencial. A gente está com um problema grande e está aqui combatendo os efeitos para tentar reduzir. É necessário ter uma política de empoderamento desses órgãos ambientais — explicou o oficial.
O discurso do governo confunde, mas a ação do Estado diante da grandeza da Amazônia só dá certo quando há cooperação entre seus vários braços e os objetivos são permanentes.
Com Álvaro Gribel
O Estado de S.Paulo: Guinada ao Centrão reduz protagonismo das Forças Armadas no governo
Militares silenciam e perdem status de ‘garantidores’ com aliança entre Bolsonaro e grupo que ele sempre criticou
Tânia Monteiro, O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA – Protagonistas do governo, os militares têm assistido sem contestação a uma guinada do presidente Jair Bolsonaro. Com 6.157 cargos em todos os escalões da administração federal, a ala militar optou por se manter em silêncio diante da decisão do chefe do Executivo de se aliar ao velho Centrão, de se juntar a quem sempre criticou e também de suas frequentes “cotoveladas” nos generais da Esplanada dos Ministérios.
Com Bolsonaro desde a campanha, os militares eram vistos por parte do eleitorado como uma garantia de que o presidente, um político oriundo do baixo clero e com forte viés ideológico, seria tutelado. Eleito, Bolsonaro virou o jogo, ofereceu privilégios e hoje recebe dessa ala consentimento até mesmo quando dá um “cala a boca” público num general da ativa.
Poucas horas depois de ter sido desautorizado publicamente com um “Quem manda sou eu, não vou abrir mão da minha autoridade” – e obrigado a cancelar o acordo para a compra de 46 milhões de doses da vacina contra covid-19 –, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, recebeu a visita de Bolsonaro – que saiu de lá, na quinta-feira, com o que foi buscar. “É simples assim: um manda e outro obedece”, disse o general, com um leve sorriso no rosto. O vídeo, gravado no hotel onde Pazuello se recupera do tratamento de coronavírus, revela, ainda, que ele seguiu mais uma instrução do chefe: não usava máscara. Bolsonaro também estava sem a proteção no rosto.
Nesse e em outros episódios que os atingiram, os militares preferiram não reagir. Os generais da reserva Hamilton Mourão, vice-presidente; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, além dos demais oficiais influentes, deixaram de lado os discursos contundentes que marcaram a geração militar pós-ditadura.
Escândalo da cueca
Nas últimas semanas, eles também adotaram o silêncio quando Bolsonaro escolheu o desembargador Kassio Marques, ligado ao Centrão, para o Supremo Tribunal Federal, e após o escândalo protagonizado pelo senador Chico Rodrigues (DEM-RR), então vice-líder do governo, flagrado pela Polícia Federal com dinheiro na cueca. Ficaram calados, ainda, quando Bolsonaro atacou o ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.
As postagens de Villas Bôas no Twitter, em um passado não muito distante, sempre eram aguardadas a cada escândalo político e movimento de opositores. Em abril de 2018, por exemplo, às vésperas do julgamento pelo Supremo do habeas corpus em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Villas Bôas repudiou a “impunidade”. Procurado pelo Estadão, o general não quis se pronunciar. A amigos, ele tem dito que, neste momento, a “maior contribuição é o silêncio”.
A omissão sobre os últimos movimentos do governo virou motivo de meme nas redes sociais. “Não se esqueça de parabenizar as conquistas de nossos militares que se sacrificaram pela Nação: conseguiram se safar da reforma da Previdência; ganharam aumento durante a pandemia; vão se safar da reforma administrativa e vão ganhar mais dinheiro do que o Ministério da Educação”, diz um deles.
O general da reserva Luiz Cesário da Silveira Filho, ex-comandante Militar do Leste, no Rio de Janeiro, e crítico da ex-presidente Dilma Rousseff por causa da criação da Comissão da Verdade, considerou “um engano” achar que as Forças Armadas poderão ser prejudicadas pela existência de militares no governo. “O povo sabe separar isso daí”, disse ele. “Não tinha outra saída (a não ser se aliar ao Centrão) para garantir governabilidade e aprovar medidas.”
Professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o pesquisador Carlos Melo rejeita a tese quase hegemônica na caserna de que a aliança com o Centrão era inevitável para garantir a governabilidade. “Alguns militares podem achar isso porque foram convencidos ou se deixaram convencer. Só que Bolsonaro se cercou do Centrão também por suas conveniências, que envolvem questões pessoais, de Justiça, os filhos, a família”, observou.
Melo avalia que Bolsonaro não precisava do Centrão para garantir a aprovação de projetos na Câmara e no Senado porque, mesmo sem base parlamentar, ele contou com “boa vontade extraordinária” do Congresso, aprovando, inclusive, a reforma da Previdência. “A aproximação com o bloco foi questão de proteção. Bolsonaro se aliou ao Centrão não para ter governabilidade, mas para ter blindagem por conta dos seus problemas políticos e até familiares”, argumentou o pesquisador do Insper.
General defende ‘governo de coalizão’
Antecessor de Heleno no GSI, o general da reserva Sérgio Etchegoyen defende o modelo de “governo de coalizão” do Planalto. Ex-ministro do governo Michel Temer, Etchegoyen disse à reportagem do Estado que “imaginar que seja possível governar um país complexo sem fazer composição nem alianças é um sonho impossível”. Em sua avaliação, “a composição, quando é sadia, tem um grande benefício”.
O ex-ministro da Defesa Raul Jungmann advertiu, por sua vez, que os militares e as Forças Armadas têm muito a perder ao se identificar com um governo, e não com a “totalidade” da Nação. “Esse é um risco que deve ser evitado a todo custo”, destacou Jungmann. Um ex-integrante do Alto Comando das Forças Armadas, que preferiu não dar declarações públicas sobre o tema, admitiu existir na sociedade “uma percepção muito grande” de que as Forças Armadas estão extremamente associadas ao presidente.
Antonio Carlos Moretti Bermudez: A FAB e o legado de Santos-Dumont para o País
O Dia do Aviador nos proporciona a chance de relembrar a história da nossa instituição
O Dia do Aviador e da Força Aérea Brasileira (FAB) é celebrado em 23 de outubro e representa a data em que Alberto Santos-Dumont, patrono da Aeronáutica Brasileira, em 1906, deu asas ao seu grande sonho, logrando êxito de fazer decolar e voar o primeiro aparelho mais pesado que o ar, o 14-Bis. Esse dia nos proporciona, a cada ano, a oportunidade de relembrarmos o nascimento e a história da nossa instituição, que este ano completou 79 anos de existência.
São quase oito décadas bem-sucedidas, que se iniciaram quando nossos integrantes pioneiros bravamente lutaram na 2.ª Guerra Mundial. Aqueles militares nos inspiram até hoje como exemplos de coragem, dedicação e amor à profissão. Eles nos mostraram que mesmo em meio às dificuldades devemos fazer sempre o nosso melhor.
A FAB destaca-se hoje pela alta capacidade operacional, com inúmeros exemplos em curso. Em apoio à sociedade brasileira, nossos militares trabalham simultaneamente em missões coordenadas pelo Ministério da Defesa, como a Operação Acolhida, a Operação Pantanal, a Operação Verde Brasil 2 e a Operação Covid-19, além da atuação em transporte de órgãos, evacuações aeromédicas e transportes aéreo logísticos, entre outras atividades.
Num ano tão desafiador como este de 2020, a Força Aérea Brasileira está ainda mais presente na vida dos brasileiros. Transportamos materiais de saúde e equipes por todo o território nacional, contribuímos na desinfecção de espaços públicos e organizamos ações solidárias em benefício de comunidades que necessitam, entre outras atividades. Os integrantes da FAB estão engajados em contribuir ainda mais diretamente com iniciativas que envolvem o apoio à sociedade brasileira, como uma campanha de doação de sangue realizada para abastecer bancos que passam por baixas em seus estoques neste período de pandemia.
Além de todas essas missões, realizadas em território nacional, nossa Força tem um relevante histórico de assistência humanitária internacional e cada uma dessas operações representa um momento gratificante para todos os que colaboram para salvar ou melhorar vidas. Este ano, temos como exemplo a assistência prestada ao Líbano após a trágica explosão em 4 de agosto, com o transporte de toneladas de material de saúde e alimentos até a capital libanesa, Beirute.
Para o cumprimento dessa importante missão uma aeronave KC-390 Millennium realizou sua primeira viagem internacional com tripulação composta por integrantes da FAB. Foi mais um capítulo na jovem trajetória – já agraciada com os prêmios Grand Laureate, na categoria Defesa, e o Laureate Awards, na categoria “Melhor Novo Produto” de Defesa – deste que é o maior avião militar multimissão desenvolvido e fabricado no Hemisfério Sul e que temos o privilégio de operar após termos colaborado ativamente em sua concepção e em seu processo de fabricação. Desde a chegada da primeira unidade, as aeronaves KC-390 Millennium são empregadas principalmente em transportes relacionados à Operação Covid-19, demonstrando sua eficiência para integrar o território brasileiro.
Assim como o KC-390 Millennium passou de um projeto para a realidade, o novo caça F-39 Gripen se aproxima cada vez mais do início da sua operação pela FAB. O desenvolvimento e a fabricação do smartfighter – caça inteligente – também vêm sendo acompanhados de perto pelos integrantes da Força Aérea e envolvem profissionais de diversas empresas brasileiras. Este dia 23 de outubro de 2020, portanto, é ainda mais especial, pois contamos com a apresentação oficial do primeiro F-39 Gripen a chegar ao Brasil.
A atualização de sistemas, meios e equipamentos também é vital no âmbito da defesa aérea e estamos constantemente buscando novas soluções e tecnologias para melhorar o trabalho prestado ao País dentro das nossas ações de controlar, defender e integrar 22 milhões de quilômetros quadrados. Em continuidade ao processo de modernização da rede de radares de vigilância do Sistema de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro (Sisceab) e aprimorando o controle do espaço aéreo na fronteira do Brasil, inauguramos em agosto, em Corumbá (MS), uma nova estação radar composta por radares primário e secundário. A entrada em serviço desses equipamentos aumenta a capacidade de detecção de tráfegos não autorizados ou de emprego ilícito, colaborando decisivamente para o êxito das ações de policiamento do espaço aéreo.
Assim como Santos-Dumont mudou a história da aviação quando apresentou o 14-Bis ao mundo, estamos sempre em busca do novo, do mais moderno e, principalmente, do aprimoramento de nossos profissionais para acompanharem essas inovações. As Forças Armadas avançam e, junto com elas, a modernidade e complexidade tecnológica em nosso País também evoluem, trazendo benefícios para todos os cidadãos. Uma instituição renovada, solidária e altamente operacional: essa é nossa Força, formada por profissionais capacitados e comprometidos a manterem um legado de excelência – cumprindo nossas missões e colaborando com a sociedade em que vivemos.
TENENTE-BRIGADEIRO DO AR, É COMANDANTE DA AERONÁUTICA
El País: A pandemia empodera as Forças Armadas e policiais na América Latina
Do Brasil, onde militar comanda até a Saúde, à Colômbia e México, necessidade de controle social fortalece as forças de segurança enquanto abre debate sobre seus riscos
BEATRIZ JUCÁ|JAVIER LAFUENTE|FEDERICO RIVAS MOLINA|ROCÍO MONTES
Buenos Aires / São Paulo / Cidade Do México / Santiago
Um general está à frente até do Ministério da Saúde no Brasil. O estado de exceção vigora no Equador, Peru e Chile. A polícia de Buenos Aires se rebela por melhores salários. A morte de um advogado pelas mãos da polícia acende a ira popular em Bogotá. Uma operação contra uma festa clandestina termina com 13 mortos em Lima. No México, o Governo se apoia no Exército para quase tudo. As medidas extraordinárias contra a propagação da covid-19 conferiram um inesperado protagonismo a policiais e militares. Apesar da lembrança ainda fresca das ditaduras dos anos setenta e oitenta, as forças de segurança se apresentam agora como garantidoras da ordem e, sobretudo, “eficientes”. Esse papel dos quartéis, entretanto, desperta muitas desconfianças ―não só no Brasil―, pelas possíveis consequências futuras de acumularem tanto poder.
A necessidade de controle social empoderou as armas. O fenômeno não é homogêneo na região, mas segue como padrão que os soldados tomaram o controle das ruas. “Nos países onde as Forças Armadas já tinham um papel importante, como Brasil, México, Peru, Bolívia e Colômbia, o coronavírus acentuou esse papel. No caso do México, por exemplo, cederam-lhes até portos e rodovias”, diz o cientista político argentino Fabián Calle, especialista em questões de segurança. Os militares ganharam protagonismo silenciosamente, como se as pessoas vissem no novo status quo uma consequência natural e inevitável da pandemia.
O caso mais paradigmático deste crescente poder é o Brasil. O flerte do presidente Jair Bolsonaro com os militares lhes deu uma visibilidade sem precedentes na democracia. Seu vice, Hamilton Mourão, é um general da reserva, e 10 de seus 23 ministros passaram pelos quartéis. No gabinete militar destaca-se o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, um militar especialista em logística que pouco sabe de política sanitária. Todo o núcleo político do Planalto também é de generais, que se tornaram uma espécie de eixo de sustentação do Governo e, mesmo com a crise, conseguiram preservar o orçamento para a Defesa. A relação de Bolsonaro com os quartéis vem de seus anos de juventude. No início de sua carreira militar (reformou-se como capitão) encabeçou um motim. Foi assim que conseguiu o apoio político das forças de segurança e criou uma base que o ajudou a se manter no Congresso por 30 anos.
Nas eleições de 2018, quando chegou ao Planalto, o número de militares e policiais eleitos para cargos legislativos quadruplicou em relação a 2014. O setor mais radicalizado, formado principalmente por jovens soldados, não para de crescer. Só em São Paulo, o número de policiais e militares na ativa que tiraram licença para disputar eleições municipais aumentou 62% em comparação a 2016. Enquanto greves (não autorizadas legalmente) sacudiram Estados como o Ceará e Espírito Santos recentemente e avança a politização dos quartéis, especialistas alertam sobre os possíveis riscos de que os militares se tornem um vetor de ruptura democrática.
Fabián Calle não acredita nessa possibilidade, mas reconhece que as coisas já não serão como antes da pandemia. “Há Estados frágeis, burocracias pouco eficientes e crescentes problemas. Todos os Governos terminam recorrendo a uma das poucas burocracias ordenadas e com cadeia de mando que, além disso, funciona. Mas não há nenhum salto ao poder. O que haverá serão mais recursos econômicos e mais influência, porque isso não será grátis”, adverte.
Outro país onde as Forças Armadas sem dúvida adquiriram mais preponderância é o México, onde os militares nunca tiveram o mesmo peso de outros lugares da região. O presidente Andrés Manuel López Obrador, que na campanha defendia a volta deles aos quartéis diante do fracasso da chamada guerra ao narcotráfico, depois de empossado lhes concedeu o controle de diversas instâncias da Administração, como as alfândegas e os portos. Durante a pandemia, as Forças Armadas se encarregaram de montar hospitais de campanha e distribuir suprimentos por todo o país. A isso se soma uma maior presença nas ruas, com a nova Guarda Nacional, autorizada por lei a agir em assuntos de segurança pública.
A polícia da província de Buenos Aires, na Argentina, já cobrou a conta. Durante três dias, policiais armados fizeram uma greve sem precedentes que terminou com um aumento de salários. A Bonaerense, como é conhecida, é uma força de 90.000 homens da ativa com um longo histórico de excessos e corrupção que nenhum governo conseguiu controlar. Desde a volta à democracia, em 1983, as diversas administrações retiraram progressivamente as verbas das Forças Armadas, que pagaram assim por seu passado ditatorial, e transferiram recursos às corporações policiais. A de Buenos Aires se rebelou agora com o argumento de que a pandemia desbastou seus ganhos (sem futebol e espetáculos, acabaram-se as horas extras), enquanto seu trabalho se multiplicou por causa do controle da quarentena.
Não foi só o coronavírus que deu um papel de destaque às forças de segurança no último ano. Na Bolívia, a pressão da polícia foi o estopim para a renúncia do presidente Evo Morales, no final de 2019. Enquanto isso, na Colômbia, o assassinato de um jovem alvejado pela tropa de choque voltou a expor os excessos policiais. Os alarmes nesse país voltaram a se acender nesta semana, quando um advogado foi morto por uma arma de choques elétricos usada por um policial. O desencanto da população com a polícia só cresce, e a necessidade de uma reforma parece muito inevitável.
A polícia militar chilena também está na rua, mas por ordem do Governo. Nesta sexta-feira, o presidente Sebastián Piñera decidiu prorrogar por 90 dias o estado de exceção em todo o território. A medida começou a vigorar no Chile assim que a pandemia começou, por isso o país passará nove meses com os militares impondo as restrições de trânsito e reunião. O Executivo justificou a decisão pela covid-19, mas paira o fantasma da desordem pública. Em 18 de outubro completa-se um ano das revoltas sociais no Chile, e no dia 25 do mesmo mês terá lugar um plebiscito sobre uma nova Constituição, com mais de 14 milhões de pessoas convocadas às urnas. Será um referendo sob condições inéditas, como toque de recolher vigorando entre 23h e 5h.
“A crise sanitária não se resolve com militares nas ruas. É um excesso e, ao mesmo tempo, revela a incapacidade das autoridades para estabelecer normas básicas de segurança pública”, afirma o chileno Gabriel Gaspar, analista político e ex-subsecretário para as Forças Armadas do segundo Governo de Michelle Bachelet (2014-2018). Para o diplomata, em seu país os militares foram empurrados a “patrulhar os chilenos, quando as Forças Armadas estão desenhadas mais para defendê-los”. Podem os militares ficar tentados pelo poder? Fabián Calle opina que é pouco provável que alcancem o protagonismo dos anos de Pinochet, mas não descarta que “levantem o perfil” se a violência crescer. “Não será para tomar o poder”, diz, “mas marcarão terreno”.