Forças Armadas
O Estado de S. Paulo: Militares das Forças rejeitam status de general para PMs
Oficiais criticam medida em projeto de lei; Ministério da Defesa já rechaçou decreto no Rio que deu patente a policiais e bombeiros
Tânia Monteiro, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Os dois projetos de lei que preveem a criação de cargos de general para a Polícia Militar e mandato de dois anos para os comandantes e impõem condições para que governadores possam demiti-los provocaram reação de militares da cúpula das Forças Armadas. “É uma proposta intempestiva, completamente precipitada e sem justificativa real para que esteja sendo apresentada agora, sem uma discussão prévia”, disse ao Estadão o general Santos Cruz, demitido da Secretaria de Governo no início da gestão de Jair Bolsonaro e ex-secretário Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça do governo Michel Temer.
O general engrossa o coro dos que defendem uma regra uniforme para as PMs, mas ressalta que as propostas reveladas pelo Estadão “não estão no padrão do que se espera de uma lei orgânica”. Segundo o militar, é inadmissível conceder patente de general, algo exclusivo das Forças Armadas, para policiais. “Dentro de estrutura militar ninguém pode ter mandato, não cabe isso”, afirmou.
Em agosto de 2019, o Ministério da Defesa rechaçou a tentativa do governador afastado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que numa canetada criou o cargo de general “honorífico” na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros. A pasta considerou o decreto inconstitucional e acionou a Advocacia-Geral da União (AGU), o que levou Witzel a recuar e anular o decreto.
Procurado, o Ministério da Defesa manteve a posição divulgada à época sobre a criação destes postos, quando informou que, de acordo com a Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre o assunto. “Com base nessa competência privativa, encontra-se em vigor o Decreto-lei n.º 667/1969, que reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Território e do Distrito Federal, cujo artigo 8.º define que o maior posto hierárquico nessas corporações será o de Coronel”, diz em nota. Sobre os demais pontos do projeto, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, preferiu não se manifestar, sob a alegação que o texto oficial ainda não está em tramitação no Congresso.
Generais da ativa ouvidos pela reportagem sob condição de anonimato dizem que as PMs são forças auxiliares das Forças Armadas, como está previsto na Constituição, razão pela qual, se os projetos forem aprovados, podem provocar um grave problema de hierarquia. Como exemplo, um general cita que caso seja necessário acionar as Forças Armadas por alguma razão, como a Garantia da Lei e da Ordem, por exemplo, o policial pode não aceitar a ordem do militar por ter uma patente maior ou por se considerar do mesmo nível hierárquico.
Para este militar, esse potencial conflito de autoridade deve preocupar a sociedade em geral, não apenas as Forças Armadas. O temor dos militares é que essa discussão seja tomada pela ideologia e não pela razão e pela necessidade de preservação do Estado brasileiro. Pela lei hoje, um coronel do Exército é sempre mais antigo que um coronel da PM.
“Esse assunto não pode ser discutido de forma superficial”, reiterou Santos Cruz. Na avaliação dos oficiais-generais consultados, há uma gama de problemas com as propostas apresentadas. Consideram que a maioria deles pode atingir princípios básicos da estrutura militar – a hierarquia e a disciplina. Sobre a questão da escolha de comandantes da forma como está proposta, seja por lista tríplice, seja com ressalvas para os governadores poderem demiti-los, dizem considerar inadmissível.
Controle
O Exército controlava as polícias, por meio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM), até a Constituição de 1988. Depois disso, os governadores passaram a nomear seus comandantes e a IGPM perdeu seus poderes. Atualmente, o controle do Exército sobre as polícias é formal, versa sobre efetivos e armamento, mas não treinamento, formação de pessoal, ingresso na carreira, e promoções, o que ficou a cargo de cada Estado.
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro diz que prepara decretos para facilitar acesso a armas de fogo
Presidente afirma que três novas regras para grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores devem ser publicadas nesta semana
Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta segunda-feira, 11, que prepara três decretos para facilitar o acesso a armas de fogo a grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs).
Ao conversar com apoiadores que o esperavam nas imediações do Palácio da Alvorada, Bolsonaro disse que houve crescimento recorde na venda de armamentos, mas destacou que a alta precisa ser mais robusta. “Nós batemos recorde o ano passado, em relação a 2019. Mais de 90% na venda de armas. Está pouco ainda, tem que aumentar mais. O cidadão de bem, há muito tempo, foi desarmado”, disse ele.
Segundo a Polícia Federal, 179.771 novas armas foram registradas no País no ano passado, o que representa aumento de 91% com relação ao número de 2019.
O presidente foi questionado por um dos apoiadores sobre novos decretos de interesse dos CACs e respondeu que deve publicar as normas ainda nesta semana. “Tem três decretos para sair. Acho que saem essa semana, dois ou três decretos. Eu não posso ir além da lei, vai facilitar mais coisas para vocês”, afirmou.
Envolvido na disputa para emplacar aliados na eleição que vai renovar a cúpula do Congresso, em fevereiro, Bolsonaro levou o tema aos apoiadores. Disse que a tramitação do projeto que pretende aprovar sobre o tema dependerá do próximo presidente da Câmara. Bolsonaro apoia a candidatura do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), chefe do Centrão. O principal adversário de Lira é Baleia Rossi (MDB-SP).
O presidente encerrou dizendo a um dos apoiadores que se apresentou como caminhoneiro que, se dependesse só do chefe do Executivo, a categoria já “teria porte de arma há muito tempo”.
O vídeo com as declarações foi publicado em um canal bolsonarista no YouTube. Bolsonaro cumprimentou seguidores e posou para fotos com aliados e não tratou da covid-19 durante a interação, apesar de o País ter registrado mais de 200 mil mortes pela doença. Além disso, governo vem sendo criticado em relação à demora no início da vacinação. Ele e os apoiadores que aparecem na gravação não usavam máscaras.
O governo vem tomando uma série de medidas para ampliar o acesso de pessoas comuns a armas de fogo. Para o presidente, a população fica mais segura quando cidadãos estão armados.
Uma das providências mais polêmicas foi a revogação de três portarias do Exército que, na prática, dificultavam o acesso do crime organizado a munições e armamentos extraviados das forças policiais. Como mostrou o Estadão, a decisão foi tomada para atender a “administração pública e às mídias sociais”.
Merval Pereira: Ainda a questão militar
A “bolsonarização” dos quartéis, tema de minha coluna de domingo, é considerada aspecto central da conjuntura, e um dos maiores riscos para a democracia no horizonte imediato. O ministro da Defesa do governo Temer, ex-deputado federal Raul Jungman acha que principal questão relativa às Forças Armadas “é o alheamento/alienação do poder político e elite civil das suas responsabilidades com a defesa nacional, e de liderar os militares. E que essa é uma questão nacional e democrática central”.
Raul Jungmann afirma que dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil é um imperativo para o país como nação soberana. “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as Forças Armadas, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e às nossas elites é também uma questão democrática, incontornável e premente”, diz, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online do Instituto Astrogildo Pereira do Cidadania.
Jungmann lembra que, em novembro de 2016, o então presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que, à época, tinha coordenado na qualidade de ministro da Defesa. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o então presidente do Senado e do Congresso, senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção.
Considerando que seu governo estava praticamente findo, Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos. O presidente Jair Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, a Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior, e não os sancionou.
“Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados”. Jungman foi o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica. “Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal”, explica.
Ao negociar as emendas à proposta original com o ministro Nélson Jobim, analisa Jungman, imaginava-se o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. “Em vão”, diz o ex-ministro. Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública. “Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota”, acentua.
Segundo Adriano de Freixo, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, num estudo sobre os militares e o governo Bolsonaro que já abordei domingo, os problemas atuais remetem “à dificuldade das Forças Armadas para lidar com o controle civil sobre elas, representado simbolicamente por um Ministério da Defesa cujo titular não pode ser um militar da ativa e que até o governo de Michel Temer, desde a sua criação, vinha sendo exercido por civis”.Para ele, Bolsonaro tem se aproveitado de três situações:O revigoramento da ideologia anticomunista – bastante presente nas Forças Armadas desde o século passado –, com nova roupagem e em perspectiva ampliada, entre parte expressiva dos militares, de forma concomitante com outros setores da sociedade.
O desejo, implícito ou explícito, dos militares de retomar o protagonismo e o “prestígio” perdidos – relacionando-se este último à ideia de que o estamento militar deveria receber da sociedade maior reconhecimento e, como consequência, tra- tamento diferenciado – em um momento de crise da democracia formal e da representação política no Brasil e no mundo.
Como desdobramento do item anterior, uma série de insatisfações ou demandas corporativas, que vão do desejo de manter ou ampliar privilégios, até o descontentamento com os trabalhos da Comissão da Verdade, passando por questões bastante específicas, como a possibilidade de mudanças nas instituições militares de ensino.
O Estado de S. Paulo: Governo quer criar Escola de Defesa na capital federal
Previsto para 2021, instituto deve oferecer cursos da área também a civis; plano é ter 670 vagas em Brasília e outras 669 no Rio, onde já funciona Escola Superior de Guerra
Felipe Frazão e Tânia Monteiro, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O governo Jair Bolsonaro planeja criar uma Escola Superior de Defesa (ESD), em Brasília, vinculada às Forças Armadas. Com lançamento previsto para março de 2021, o novo braço acadêmico do Ministério da Defesa está sendo discutido dentro de um estudo de reorganização da pasta, que cita, também, a criação de uma secretaria voltada ao ensino e à cultura. A essa chefia passariam, então, a ESD e a septuagenária Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949, no Rio.
Consultada, a Defesa não citou cifras específicas da ESD, mas disse que a premissa é não aumentar custos. A Defesa mantém, hoje, campi da ESG no Rio e em Brasília, com orçamento previsto de R$ 14,1 milhões para este ano – 5,2% a mais do que em 2020. O ministério tenta reduzir os impactos orçamentários. A ESD herdaria da ESG o campus de Brasília e parte do seu pessoal. “Não haverá alteração de efetivo de pessoal, apenas serão remanejados os servidores civis e militares entre a ESG e a futura Escola Superior de Defesa, ficando em torno da metade dos servidores em cada escola. Após o término dos remanejamentos, cada escola ficará com aproximadamente 225 militares e/ou servidores civis”, afirmou o ministério.
Um indicativo da dimensão do projeto foi a solicitação de imóveis feita em agosto ao Patrimônio da União. O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, pediu ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que cedesse 32 apartamentos funcionais desocupados, localizados no Plano Piloto, para acomodar o corpo discente e servidores militares transferidos do Rio. O pedido está em análise.
Desde 2011, a ESG tem atividades na capital federal. Há um ano, a ESG assumiu o campus da antiga Escola Nacional de Administração Fazendária (Esaf). Trata-se de um terreno de 422 mil metros quadrados, com auditórios, escritórios administrativos, biblioteca, refeitório, vestiários e alojamentos, além de amplo estacionamento. O valor é de R$ 38,5 milhões, segundo avaliação imobiliária de técnicos do governo. Para mantê-lo, a Defesa estimou os custos em R$ 5,8 milhões ao ano. A expansão da covid-19, porém, forçou uma adaptação rápida ao ensino à distância, contou um general ao Estadão, com a necessidade de aquisição de softwares de videoconferência e reorganização dos cursos.
Servidores
A previsão da ESD é que sejam recebidos 24 “intercambistas”, alunos enviados por países aliados a convite do governo. Ao todo, a Defesa prevê 1.369 vagas para os cursos em 2021, sendo 699 delas no Rio de Janeiro e 670 em Brasília, nos diversos cursos. Em 2020, foram matriculados 370 pessoas nos cursos regulares na ESG campus Rio e 350 em Brasília.
Comandante da ESG, o almirante de esquadra Wladmilson Borges de Aguiar disse que deseja atrair servidores de todos os Poderes para a nova estrutura. “A sociedade em geral precisa pensar em Defesa. Daí as portas da escola estarem abertas também para pessoas que trabalham na iniciativa privada e acadêmicos”, disse o almirante. “Defesa não é assunto só de militares.” Na escola, estudam civis do mercado privado, como a indústria de armamentos, de outros ministérios, órgãos públicos e estatais, como Senado, Petrobrás e Tribunal de Contas da União, além de oficiais das Forças Armadas, e polícias militares estaduais.
Em 2020, a direção enfrentou problemas comuns a diversas escolas privadas, como a falta de preparação para dar aulas à distância. Foram cancelados os cursos de “Gestão de Recursos de Defesa”, em Minas Gerais e em São Paulo, e “Programa de Extensão Cultural”, prejudicando 350 alunos. O comando organizou, em substituição, três ciclos de estudos no Rio voltados a empresários da Base Industrial de Defesa, para 1.500 pessoas.
Além disso, alguns órgãos não devem indicar alunos no ano que vem. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) alegaram “contingência de pessoal” e “restrições excepcionais” motivadas pela pandemia de covid-19 para recusar o convite da Defesa a cursos como “Inteligência Estratégia” e “Altos Estudos em Defesa”.
Plano de tirar estrutura do Rio nunca vingou
Discutida há anos no governo federal, a ideia de transferir para Brasília toda a estrutura da Escola Superior de Guerra (ESG), que funciona na Fortaleza de São João, na Urca, um dos bairros mais reservados do Rio de Janeiro, nunca vingou.
Em 2008, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim chegou a levar a proposta ao presidente. Mas houve resistência de oficiais mais antigos da ESG em deixar o Rio, e o plano não foi adiante. Instalou-se, então, em 2011, um “núcleo” da ESG na capital federal. Inicialmente em um anexo na Esplanada dos Ministérios, o “núcleo” da ESG em Brasília herdou o campus da Escola Nacional de Administração Fazendária (Esaf) no ano passado.
Mesmo com as mudanças na área de educação do Ministério da Defesa, e cursos tradicionais, como o de “Altos Estudos em Política e Estratégia”, continuarão no Rio, pela proximidade com outras instituições de ensino, como a Escola de Guerra Naval e a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
Disciplinas que requerem mais interação com conhecimentos civis, como o curso de “Diplomacia e Defesa”, devem ir para Brasília. Reservadamente, diplomatas viram a iniciativa de forma positiva, pois reconhecem carência de conhecimento sobre Defesa em servidores de alto escalão nos ministérios.
O Ministério da Defesa diz que levar atividades acadêmicas para a capital federal é preconizado na Estratégia Nacional de Defesa (END). Estar em Brasília possibilita “atender os civis, assessores de alto nível, lotados nos órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como outras autarquias e instituições”, informou a pasta.
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Merval Pereira: A “bolsonarizacao” dos quartéis
A presença do presidente Bolsonaro em uma formatura em média por mês de militares membros das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e das polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal nos primeiros dois anos de seu governo, ressaltada em uma reportagem recente do GLOBO, corrobora um estudo do especialista Adriano de Freixo, professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest-UFF) intitulado “Os militares e o governo Bolsonaro, entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo” das Edições Zazie, na coleção “Pequena biblioteca de ensaios”. Nele, analisando a influência de Bolsonaro entre os militares, ele destaca que “uma variável que não deve ser ignorada nessa conjuntura é a “bolsonarização” dos estratos inferiores da corporação, mesmo que não se vislumbre no horizonte próximo a possibilidade de quebra de hierarquia militar”.
Adriano de Freixo ressalta que essa procura de um diálogo direto com os praças e oficiais subalternos, “que não por acaso constituem historicamente sua principal base eleitoral”, é prática adotada desde o início de sua carreira política. A presença recorrente de Bolsonaro em formaturas e cerimônias militares “demonstra a disposição do presidente em cultivar o apoio desses segmentos”.
Outro processo de “bolsonarização” que começa a se tornar motivo de preocupação, para o professor da UFF, é o das polícias militares estaduais, definidas na Constituição como forças auxiliares e reservas do Exército. “Esse fenômeno ficou explicitado na greve de policiais no Ceará, nos primeiros meses de 2020, e no tratamento diferenciado dado pela Polícia Militar a manifestantes contra e pró-governo em diversos estados”.
A possibilidade de rebeliões pontuais contra ordens de governadores da oposição começa a aparecer no horizonte, analisa Freixo, advertindo que essa posição “poderia gerar a necessidade de utilização das Forças Armadas para contê-las. Dentro do atual contexto, isso poderia se tornar um forte elemento de instabilidade, inclusive pela imprevisibilidade do comportamento do presidente e da reação das Forças Armadas em uma questão como essa”.O autor considera que “o quadro se torna mais complicado quando se leva em consideração a simbiose que existe em diversos estados da Federação entre parte das corporações policiais e forças parapoliciais, as chamadas “milícias” – que no Rio de Janeiro, por exemplo, já têm o controle efetivo de vastos territórios –, e os crescentes indícios de ligação entre elas e figuras relevantes do entorno de Jair Bolsonaro”. O professor Adriano de Freixo chama de “caixa-preta” a educação militar, definindo que “mais que locais de formação técnica e de preparação para o exercício das funções castrenses, as escolas militares são importantes espaços de socialização e transmissão dos valores institucionais aos futuros oficiais”. Esse processo se dá, diz o professor, “não somente pelas disciplinas que compõem os currículos das academias, mas também pela convivência com os professores e oficiais pertencentes a gerações anteriores, que, na prática, funcionam como responsáveis pela moldagem e consolidação da identidade institucional dos jovens cadetes”.
Nos últimos anos, o recrudescimento do conservadorismo acabou, na análise de Adriano de Freixo, por revigorar o anticomunismo no interior das Forças Armadas, “agora travestido de crítica ao “marxismo cultural e às “estratégias gramscistas” que estariam sendo implementadas pela esquerda brasileira desde o início do processo de redemocratização”.
A ampliação dos atritos entre o presidente e o vice-presidente da República, e as declarações do comandante do Exército, general Edson Pujol, de que os “militares não querem fazer parte da política, nem querem política dos quartéis”, têm sido entendidas por muitos como sinais de tensionamento da relação entre Bolsonaro e a oficialidade superior, traduzindo a insatisfação desta última com o uso político que o presidente tem feito das Forças Armadas. Mas Adriano de Freixo lembra que esses eventos também podem ser entendidos como sinais de que a “bolsonarização” dos quartéis começa a se tornar, de fato, motivo de preocupação para os oficiais-generais, pelos desdobramentos imprevisíveis desse fenômeno, que pode levar, inclusive, a cisões no interior da instituição militar.
O Estado de S. Paulo: Número de brasileiros em missões de paz cai 72% em 2020
País ainda mantém 77 homens em oito missões; presença do país entre os capacetes azuis é consenso entre os militares
Marcelo Godoy e Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo
O Brasil vai terminar o ano de 2020 com 77 homens em oito forças de paz das Nações Unidas. É o menor número de militares em missões de paz desde que 51 homens da Polícia do Exército chegaram ao Timor Leste em 1999. A participação brasileira caiu 72% com a retirada de 200 homens que serviam na fragata Independência na força de paz marítima do Líbano, a Unifil, ocorrida em 2 de dezembro.
O Ministério da Defesa e a gestão do governo de Jair Bolsonaro negam que a redução seja uma mudança de política do País, associada à gestão do atual chanceler Ernesto Araújo e alegam que a decisão de deixar a Unifil foi tomada em 2019, por motivos operacionais, logísticos e estratégicos, relativos ao Atlântico Sul. A atual gestão também não estabeleceu planos para participar de nenhuma outra força de paz. A Defesa ainda afirma que o País mantém seu compromisso com o sistema de paz da ONU.
A falta da participação do País com contingentes contrasta com a política de dois vizinhos: o Uruguai e a Argentina. Esta última mantém tropa na força de paz no Chipre, ao lado do Reino Unido e da Eslováquia. É em Chipre que o Brasil mantém seu último homem que faz parte de um contingente – na ilha do Mediterrâneo, um capitão do Exército atua agregado à tropa argentina na força de paz da ilha dividida entre a comunidade grega e a turca.
O Brasil mantém ali também um observador militar. O major Fernando Ferreira Manhães esteve lá em 2018. O brasileiro fez parte do Estado-Maior da missão. “O nível de tensão ali é muito baixo. A gente sente uma segurança muito grande no país. Eu costumava brincar que tinha uma sensação de insegurança maior no Rio do que lá”, disse. O major explica que registrava apenas provocações entre as duas forças armadas. A maioria dos incidentes ali era causado por civis que entravam na zona neutra. “A missão está há quase 50 anos e a paz não chegou ainda.”
Outro vizinho do Brasil, o Uruguai, mantém um batalhão com 906 homens na Monusco, a força de paz que atua na República Democrática do Congo (RDC). Comandada por um general brasileiro - Ricardo Augusto Ferreira Costa Neves -, a Monusco abriga hoje 21 brasileiros, a maioria é formada por um grupo de instrutores de guerra na selva que estão treinando o exército da RDC. Trata-se de uma das forças com maior presença de brasileiros no exterior. Já o Uruguai mantém ainda outros 210 militares na Undof, a força de paz mantida pela ONU nas colinas de Golã, entre Síria e Israel.
O Brasil tem 22 militares na Unifil, no Líbano, mas esse número deve diminuir quando o País deixar o comando da força, que deve ser assumido pela Alemanha em janeiro. Abaixo da Unifil, a força de paz que conta com mais brasileiros, segundo dados da ONU, é a mantida pela organização no Sudão do Sul, a Unmiss. Tanto lá quanto no Líbano, os brasileiros estão lá desde 2011. Atualmente, 13 militares e policiais brasileiros estão no país africano – havia 24 no começo do ano.
O coronel Taylor de Carvalho Neto era um dos 14,9 mil militares de 63 países que estavam na Unmiss em janeiro. Ali presenciou três combates entre integrantes das forças do governo e grupos armados que atuam na região. “O país possui inúmeras etnias com costumes e tendências belicosas, cujas ações, muitas vezes, colocam o acordo de paz em risco. Por este motivo, é comum escutarmos, durante as avaliações da conjuntura, a seguinte frase: ‘a situação é calma, porém imprevisível’.”
Para Taylor, apesar de o país não ter contingente na Unmiss, os oficiais enviados à operação passaram “por um rigoroso processo de seleção, cujo reflexo está na qualidade do trabalho realizado”. Para ele, “esses oficiais estabelecem contato com pessoas dos mais diferentes países e passam uma imagem muito positiva de nosso Exército e de nosso País.” Taylor conclui que essa é “uma forma de projeção do poder: mostrar ao mundo que o Brasil possui um grande Exército, com profissionais competentes e dedicados e que são a exata expressão do povo brasileiro”.
Ainda na África, o Brasil mantém nove militares na Minurso, a força de paz do Saara Ocidental, e outros sete na Minurca, a força que atua na República Centro-Africana. O coronel Rodrigo Santos Boueri, que esteve na força, descreve a situação enfrentada pelos brasileiros no país. “A situação é de incerteza. Os grupos armados agem frequentemente para conquistarem novas áreas, especialmente de exploração mineral ou de pastagens. Entre outubro de 2018 e outubro de 2019, houve vários combates entre os grupos armados e destes contra tropas da ONU, incluindo emboscadas de comboios com mortes de capacetes azuis.”
Para Boueri, mesmo com os riscos das missões, trabalhar em operações de paz “é fundamental para a projeção de poder”. “Não participar desse ambiente é abrir mão da responsabilidade de cada país de intervir em nome da paz internacional, o que coloca um país na condição de ator medíocre no concerto das nações.” Segundo o coronel, a missão em que ele serviu é de “suma importância, pois, graças à Minusca, há ajuda humanitária chegando a milhares de pessoas e redução da violência em algumas áreas antes dominadas por grupos armados”.
Consenso
As declarações dos militares, de diplomatas e do Ministério da Defesa mostram a existência de um consenso em torno da importância para o País e para suas Forças Armadas na participação nessas missões. Para o professor Guilherme Dias, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), o fato de o Brasil estar no quarto force commander na RDC (o comandante da Minusco, o general Costa Neves) mostra que o Brasil tem “algo a oferecer em termos de missão de paz, que respaldam e dão legitimidade”. “Quando olhamos a participação do Brasil no Haiti, a repercussão e os ganhos políticos em termos de projeção são flagrante.” De acordo com ele, 23 dos 140 alunos da Eceme estudam atualmente missões de paz.
Para o coronel Carlos Eduardo de Franciscis Ramos, o aprendizado do Exército em missões no exterior ajudou a consolidar o interesse pelo estudo dessas operações no País. “A perspectiva de um oficial aluno com experiência de observador militar ou como tropa no Haiti é muito rica.” O Haiti foi a última operação com tropa do Exército no exterior. Ao todo, mais de 37,3 mil militares brasileiros estiveram na ilha caribenha, onde trabalharam estabilizando o país e mantendo a ordem. “Há semelhanças e diferenças entre GLO (Garantia da Lei e Ordem) no Brasil e no Haiti e na África. Aqui estamos tratando de crime, atividade criminosa e lá estamos tratando de gangues opressoras”, afirmou o coronel.
Seu colega de ECEME, o coronel Flávio Roberto Bezerra Morgado destacou a situação jurídica como a principal diferença das ações de GLO e as missões de paz da ONU. “O que muda é o seu amparo jurídico, a liberdade de ação para fazer determinadas coisas. E aí que eu acho que é a grande virtude das tropas brasileiras: é a inteligência cultural. GLO é diferente da missão de paz. E o soldado brasileiro tem capacidade para entender isso. Ele entende a diferença do povo haitiano e do brasileiro, as culturas diferentes”, afirmou. Para ele, outra herança das missões de paz são o aprendizado da tropa. “Como organizar, equipar e como combater. Se pegar a estrutura inicial de nossas forças no Haiti era uma. E, no fim, era totalmente diferente por causa da evolução doutrinária que foi acontecendo. São as lições aprendidas.”
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Textos e dados: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Design: Vitor Fontes
Fabiano foi ao Timor Leste e viu cabeças cortadas, foi cercado por guerrilheiros e salvou a vida de Xanana Gusmão, o líder da independência do País. Leonel foi feito refém para ser usado como moeda de troca entre os sérvios e as Nações Unidas. Bruno viu aldeões serem caçados por um leão enquanto milicianos hutus massacravam a minoria tutsi em Ruanda. Romeu, que combateu os comunistas no Brasil, tornou-se amigo dos guerrilheiros esquerdistas de El Salvador. A história desses homens ajuda a contar passagens desconhecidas da presença de militares brasileiros em áreas de conflito ao redor do mundo.
ENTREVISTA GENERAL SANTOS CRUZ
Desde que, em 1989, voltou a estar presente em forças de paz, o Brasil enviou homens em missões individuais ou contingentes de tropa para 50 missões em todos os continentes. Ao todo, cerca de 48 mil militares enfrentaram desafios tão distintos quanto leões das colinas de Ruanda ou um cativeiro na Bósnia enquanto seus colegas eram transformados em escudos humanos. A linha que divide a paz e a guerra nem sempre era clara nas missões dos capacetes azuis. Ou por ação dos beligerantes, ainda incapazes de fazer as armas calarem, ou porque a própria missão dos homens das Nações Unidas previa a possibilidade de se usar a força para manter a ordem ou estabilizar uma região.
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Essa é uma história de indivíduos diante de crises que marcaram o fim do século passado e o começo deste. É possível considerar suas histórias como típicas de um fenômeno que uniu as Forças Armadas ao Itamaraty: a decisão de fazer da presença desses militares um dos principais instrumentos da diplomacia do País que buscava um lugar ao sol para o Brasil entre as nações após o término da Guerra Fria. É o que diz o general Adhemar da Costa Machado Filho, que esteve em Angola comandando os homens da força de paz Unavem 3.
“O Brasil acertadamente aceitou participar da missão, pois essa postura muito contribuiu para nos inserir entre os grandes ‘players’ das missões de paz.” Com ele concorda o ex-chanceler Celso Lafer: “Essa participação é uma combinação do soft power da presença com essa dimensão do papel das Forças Armadas que, sem entrar em conflito, contribuem para a manutenção da paz. É um custo que vem junto com as aspirações de uma presença do Brasil no plano internacional.”
Neste ano, o País ficou pela primeira vez em 21 anos, desde a missão no Timor Leste, sem contingente de tropa entre os capacetes azuis. Isso ocorreu por causa da retirada da fragata Independência da força de paz do Líbano, a Unifil. A embarcação chegou no sábado, dia 26, ao Brasil. O Ministério da Defesa alega que a saída ocorreu porque a Marinha decidiu concentrar seus recursos na defesa e na segurança do Atlântico Sul. A decisão não impede que os militares do País voltem no futuro a atuar com tropa entre os capacetes azuis.
As histórias desses militares nas missões permitem jogar luz sobre o processo de pacificação da América Central e a influência de seu modelo nas sucessivas tentativas de paz na antiga África portuguesa. Ou acompanhar o impacto das crise em Ruanda e na Bósnia sobre os capacetes azuis, que levaria à mudança do formato das forças da ONU. O fim da Guerra Fria impulsionara ainda a criação de novos Estados nacionais, como a Eritreia, e viu o temor de uma pandemia mortal, com o surto de ebola na África Ocidental, substituir o medo do holocausto nuclear. “As evidências demonstram que a ONU estava melhor organizada e preparada para atuar no Timor Leste do que na ex-Iugoslávia. A atuação no Timor Leste é considerada um caso de sucesso”, afirmou o general João Batista Bezerra Leonel Filho.
Os militares voltaram ao País marcados pelas missões. O general Adhemar lembra que passou a “dar valor às coisas simples, deixando o ranço burocrático de lado”. O paraquedista Franklimberg de Freitas, que comandou em Moçambique a primeira tropa brasileira a atuar no exterior desde 1967, inaugurou uma prática que seria comum nos anos seguintes: o uso dessa experiência em Operações de Garantia da Lei e Ordem (GLO) no Brasil. Seus homens voltaram direto para a Operação Rio, em 1994, participando do combate ao narcotráfico em morros e comunidades cariocas. Mais tarde, seriam os veteranos do Haiti.
“O próprio governo percebeu que, para utilizar Forças Armadas como um veículo de projeção externa, tinha que aplicar recursos em treinamento, preparação e equipamentos básicos. E isso foi feito durante todo o período do Haiti. Os recursos foram muito bons. Deu para fazer uma preparação excelente”, disse o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que comandara os brasileiros no Haiti e a brigada de intervenção da ONU, no Congo. “A cultura da preparação que já existia ficou muito reforçada e todos tiveram suas especialidades aperfeiçoadas”. Depois, ele se tornaria ministro de Jair Bolsonaro, como tantos outros que estiveram nessas missões.
Por fim, o historiador francês Marc Ferro escreveu que as pessoas passam pela história ao mesmo tempo em que a história compõe com elas o seu drama. “Alguém pode se prevenir contra o roubo e o incêndio, mas não pode fazer o mesmo com a história.” Foi isso o que esses militares descobriram em suas missões.
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Editor executivo multimídia: Fabio Sales / Editora de infografia multimídia: Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia: Adriano Araujo, Carlos Marin, Glauco Lara e William Mariotto / Designer multimídia: Vitor Fontes / Infografia multimídia: Diogo Shiraiwa / Editor-coordenador de Política e Internacional: Eduardo Kattah / Editores de Política: Tiago Dantas e Marta Cury / Editor assistente de Política: Vítor Marques / Reportagem: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Edição: Marcelo Godoy (textos), Cláudio da Luz (áudio e vídeo) e Ricardo Nascimento (vídeo) / Foto de abertura: Marcos Michael/JC Imagem
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Elio Gaspari: 2021 com militares no quartel
Pode-se esperar que eles não se metam nas confusões que vêm por aí, nem que sejam instrumentalizados para agravá-las
Salvo a vacina, o que é muita coisa, pouco se pode esperar de 2021. Bolsonaro não vai mudar, as investigações das rachadinhas e das notícias falsas continuarão a assombrá-lo. As reformas de Paulo Guedes continuarão como promessas de campanha. O ministro da Educação continuará sem saber de onde saiu o edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores para escolas públicas, inclusive 230 mil laptops para os 255 alunos de um colégio mineiro. Pode-se contudo esperar que os militares não se metam nas confusões que vêm por aí, nem que sejam instrumentalizados para agravá-las.
Felizmente, os oficiais da ativa estão calados. Uns poucos, da reserva, fazem-se ouvir, sempre com alguma estridência. Há dois tipos de oficiais da reserva falando. Alguns, como o general Santos Cruz, foram para o governo de Jair Bolsonaro e viram-se excluídos. Suas falas são o jogo jogado. Outros, simplesmente estão na reserva, e falam como cidadãos. Quase todos achavam que o capitão no Planalto era uma boa ideia.
Militares falantes são heróis para as vivandeiras que rondam os bivaques dos granadeiros. Quem definiu esses personagens, há tempo, foi o marechal Castello Branco. Existem vivandeiras de todos os matizes políticos. Acabam todas mal. Em alguns casos, vão para a cadeia, como sucedeu à maior delas, Carlos Lacerda. O general De Gaulle chamou-o de “demolidor de presidentes”. Acabou proscrito pelos generais e preso no jirau de um quartel da Polícia Militar.
Bolsonaro e seu pelotão de palacianos já fizeram um estrago na imagem das Forças Armadas, mas não conseguiram envolvê-las em aventuras. Sempre existirão civis querendo levar a política para os quartéis em nome de uma purpurina da notoriedade.
Os oficiais que se sentem atraídos pelo ativismo político por alguma questão de coerência deveriam olhar para trás. Lá está o coronel Francisco Boaventura, que poderia ser o patrono dessa arma invisível.
Nos anos 50 do século passado, era um capitão e estava na diretoria do Clube Militar quando sua revista publicou um artigo meio de esquerda. Demitiu-se, junto com o major Euler Bentes. Treze anos depois o pelotão de palacianos do governo de João Goulart teve a ideia de usá-lo num sequestro de Carlos Lacerda, então governador do Rio. Quando veio a ordem, verbal, recusou-se a cumpri-la.
Pouco depois, com Jango no exílio e o pelotão palaciano fora das fardas, estava no Gabinete Militar, no palácio do Planalto. Escreveu um texto criticando o presidente da República e foi defenestrado. Era visto como um dos coronéis da linha dura.
Em 1968, percebeu que o pelotão palaciano do marechal Costa e Silva tramava um golpe e ficou contra. Veio o Ato Institucional nº 5 e o general-comandante do pelotão fabricou sua cassação com justificativas desabonadoras. O irmão de Boaventura era ministro do Interior. Fora da farda, ele nunca vestiu o uniforme de coitadinho profissional. Falando dos bastidores desse episódio, o general Sylvio Frota, ex-ministro do Exército, demitido em 1977, escreveu: “sempre tive náuseas ao ouvir falar desse caso”.
O coronel Francisco Boaventura teria sido um destacado general se não tivesse se metido com as vivandeiras.
Bruno Boghossian: Bolsonaro acena a policiais e militares recém-formados em busca de afinação política
Só em dezembro, presidente foi a seis cerimônias de formação e visitou alunos de um curso da Abin
Jair Bolsonaro participou de seis cerimônias militares e policiais só em dezembro. Foram formaturas de aspirantes das Forças Armadas, a conclusão do curso de delegados da PF e um evento de soldados da PM do Rio. Como bônus, o presidente ainda visitou alunos de pós-graduação da Abin, no início do mês.
Não fosse a frequência de compromissos (um a cada três dias), não haveria nada particularmente espantoso na agenda. Afinal, o presidente fez carreira como um sindicalista dessas categorias e manteve o perfil depois de chegar ao Palácio do Planalto. Esses eventos, no entanto, cumprem uma função adicional.
Os acenos de Bolsonaro têm todas as características de um trabalho para costurar uma coalizão política com integrantes das forças militares, das polícias e dos órgãos de inteligência. Nesse movimento, o presidente investe em agentes e oficiais em formação –grupos em que seus impulsos radicais costumam ter mais aderência do que nas cúpulas.
Na sexta (18), Bolsonaro se sentiu confortável o suficiente para jogar 845 policiais recém-formados contra jornalistas, que ele trata como inimigos pessoais. "Não se esqueçam. Essa imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês. Pense dessa forma antes de agir", discursou.
Para conquistar a simpatia, o presidente oferece prestígio, alinhamento de discurso, abertura de concursos e apoio financeiro. No último item, estão desde a proteção dos orçamentos dos órgãos e a blindagem de categorias na reforma da Previdência até promessas miúdas. Num evento recente, ele pediu a parlamentares que dobrassem a diária de soldados que trabalham em obras públicas.
Em troca, Bolsonaro conquista uma afinação política dentro de instituições que deveriam se manter independentes. Em março, a ameaça de motins policiais pelo Brasil guardava uma sintonia nítida com o bolsonarismo. Na última segunda (14), os novos delegados da PF chamaram o presidente de mito e se referiram a ele como "instrumento de Deus".
‘Liderar as Forças Armadas é imperativo para o país’, diz Raul Jungmann
Em artigo publicado na revista da FAP de dezembro, ex-ministro critica falta de protagonismo do Congresso
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann afirma que dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil é um imperativo para o país como nação soberana. “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as Forças Armadas, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites é também uma questão democrática, incontornável e premente”, diz, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.
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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, Jungmann lembra que, em novembro de 2016, o então presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que, à época, tinha coordenado na qualidade de ministro da Defesa.
Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o então presidente do Senado e do Congresso, senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção. Considerando que seu governo estava praticamente findo, Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos. O presidente Jair Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, a Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior, e não os sancionou.
“Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados. Nós fomos o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica”, afirma Jungmann. “Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal”, acrescenta, na revista Política Democrática Online de dezembro.
Ao negociar as emendas à proposta original com o ministro Nélson Jobim, imaginava-se o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. “Em vão”, diz o ex-ministro.
Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública, de acordo com o autor do artigo. “Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota”, acentua.
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RPD || Raul Jungmann: Militares e elites civis - Liderança e responsabilidade
O país convive hoje com um distanciamento entre o poder político, elites civis e as Forças Armadas, avalia Raul Jungmann. Enquanto o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, os militares, por sua vez, passam a assumir a tutela da existência da nação, inclusive, sem uma liderança civil
Aos 18 dias de novembro de 2016, o Presidente da República, Michel Temer, enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que nós, à época, tínhamos coordenado na qualidade de Ministro da Defesa que éramos. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o Presidente do Senado e do Congresso, Senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção. Considerando que seu governo estava praticamente findo, o Presidente Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos.
O Presidente Jair Messias Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior (e não de Estado, o que eles verdadeiramente são), e não os sancionou. Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados. Nós fomos o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica. Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal. Ao negociar as emendas à proposta original com o Ministro Nélson Jobim, imaginávamos o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. Em vão.
Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública. Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota. Já sua votação, nas duas casas, foi simbólica e não nominal, sem debates ou pronunciamento dos líderes. O “histórico diálogo” e o consequente “avanço democrático” fracassaram melancolicamente...Por quê? São três os motivos principais.
As elites civis e o poder político do pais não vislumbram quaisquer ameaças no horizonte a nos desafiar. E, vale lembrar, o nosso último conflito interestatal data de 150 atrás, a Guerra do Paraguai, se descontarmos nossa participação nas I e II guerras mundiais. Secundariamente, defesa e as FFAA não dão retorno político-eleitoral, sendo que as Forças, instituições de Estado, são impessoais, e seu efetivo é infenso a indicações políticas. Por fim, as intervenções militares ao longo da nossa história, sendo a última em 1964, e o fato que parte dos quadros dirigentes da política fizeram oposição ao regime militar, não estimulam pontes e diálogos. Em consequência, hoje existe um distanciamento entre poder político, elites civis e FFAA, que nos leva a uma dupla disfunção.
De um lado, o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, não a levando a sério. De outro, os militares, cuja “raison d’être” é justamente a defesa nacional, diante do alheamento do poder político sobre a nossa soberania, integridade e independência, passam a assumir a tutela da existência da nação. A segunda das consequências é que a defesa e as FFAA necessitam da liderança civil por bons motivos. Um, que cabe privativamente aos representantes políticos da nação, definir qual defesa necessitamos, seu rumo, estrutura e organização, em face de nossos objetivos nacionais e projeto de desenvolvimento. A segunda é que, sem que líderes civis em diálogo com os militares proponham mudanças, as FFAA, como toda grande corporação, tende a manutenção do status quo. Exemplo disso é o Ministério da Defesa. Sua elaboração levou 5 anos para se concluir, sendo iniciada no primeiro e concluída no segundo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
À época, havia forte resistência no meio militar a sua criação. Dentre outros motivos, porque os quatro ministérios militares existente passariam a se tornar comandos militares das Forças, sob a direção superior de um único ministro, que seria um civil. A criação do Ministério da Defesa é uma exigência da guerra moderna, onde as forças singulares devem estar sob um comando único e superior a elas, como também em razão da complexidade, logística e dimensões adquiridas pelos conflitos bélicos, sobretudo após as duas guerras mundiais. Tanto é fato que a maioria dos países desenvolvidos instituíram ministérios da defesa há décadas, inclusive os sul-americanos, a exemplo da Argentina e Chile.
Cabe notar o que afirmamos: não fora a persistente liderança do poder político, a criação do Ministério da Defesa, uma necessidade militar, ressalve-se, não teria se tornado realidade.
Cabe recordar um outro exemplo. Declarada nossa independência em 1822, as elites Imperiais viram-se a braços com questões estratégicas para a constituição e o futuro do Estado nacional. Elas eram: a manutenção da unidade e integridade do território, a definição das fronteiras e o impedimento que Argentina, Bolívia e Paraguai viessem a formar um polo de poder ao sul, que nos contrastasse e fizesse sombra. Em todas essas complexas tarefas, a elite imperial saiu-se a contento e, em todas elas, fez uso das nossas FFAA. Isto porque, além de ter um projeto de país a construir, elas tinham clareza quanto ao papel e orientação dar as Forças Armadas – algo que nossas elites atuais não possuem.
Findo o regime militar, as Forças Armadas recolheram-se aos quarteis e, durante um quarto de século, viveram num vazio estratégico, sem que lhes fossem atribuídas competências e rumos na nossa renascente democracia e num projeto nacional de desenvolvimento, o que só começa a mudar em 2008 com a 1ª. Estratégia Nacional de Defesa. Já o vazio de interlocução e de diálogo persiste. Na academia, mídia, sociedade, empresariado e no Congresso, raros são os que conhecem o tema defesa, dele entendem e têm diálogo com as Forças e militares. Os partidos políticos lhes dedicam rarefeitas e precárias linhas “de ofício”, meramente declaratórias. Não possuem especialistas, tão pouco unidades de estudo e proposição de políticas públicas. Nas eleições e debates nacionais, a defesa e FFAA primam pela ausência. Democratas de vários matizes delas guardam distância, com também raríssimas exceções.
Dialogar e liderar as nossas Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil, é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana. Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente.
*Ex-Deputado Federal, Ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública.
Merval Pereira: Uso político das Forças Armadas
A tentativa do presidente Bolsonaro - um tenente sindicalista que acabou saindo do Exército por questões disciplinares, promovido a capitão - de politizar sua relação com as Forças Armadas gerou uma nova crise interna. Ele reduziu, através de decreto, o critério para a promoção do último posto das Armas - coronéis do Exército e da Aeronáutica, e Capitães de Mar e Guerra. Em vez de promoção também no Quadro de Acesso por antiguidade (QAA), as promoções passariam a ser apenas por merecimento (QAM - Quadro de Acesso por Merecimento).
Houve reações internas, pois a promoção apenas por merecimento poderia ensejar uma decisão política do presidente da República, que é quem dá a última palavra. Três dias depois o decreto foi cancelado, voltando tudo ao que era antes. O presidente Bolsonaro cultiva desde sempre o relacionamento com os militares, primeiro para ganhar votos especialmente das patentes inferiores, pois defendia os interesses da classe no Congresso, o que lhe garantiu sete mandatos de deputado federal seguidos.
Na presidência da República, aparelhou seu ministério e os demais órgãos do governo com militares de diversas patentes, da ativa e da reserva. Boa parte sem qualificação para os cargos que ocupam, como o ministro da Saúde, General da ativa. E passou a prestigiar qualquer cerimônia militar, especialmente nas escolas de formação de oficiais.
No tempo em que acalentava abertamente ideias golpistas, vivia repetindo que contava com o apoio das Forças Armadas. Recentemente, houve um atrito diante das repetidas tentativas de politizar a questão militar. O comandante do Exército, General Pujol, aproveitou uma solenidade para deixar clara sua posição: “Nosso assunto é militar, preparo e emprego. As questões políticas? Não nos metemos em áreas que não nos dizem respeito. Não queremos fazer parte da política governamental ou do Congresso Nacional e muito menos queremos que a política entre em nossos quartéis.”
O incômodo foi tão grande, com Bolsonaro fazendo questão de repisar que era o Comandante em Chefe das Forças Armadas, que o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva viu-se obrigado a soltar uma nota oficial afirmando que o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado "apreço pelas Forças Armadas" e que esse sentimento "tem sido correspondido".
Curiosamente, essa tentativa de interferir na estrutura interna das Forças Armadas para tirar proveito político, pois Bolsonaro teria condições de nomear oficiais-generais das três Armas mais alinhados à sua visão política, foi feita também pelo PT no governo Dilma.
Um decreto assinado por ela transferia para o Ministério da Defesa poderes dos comandantes militares, entre esses a promoção aos postos de oficiais superiores; designação e dispensa de militares para missão de caráter eventual ou transitória no exterior; nomeação e exoneração de militares, exceto oficiais-generais, para cargos e comissões no exterior criados por ato do presidente da República; poder de transferir para reserva remunerada oficiais superiores, intermediários e subalternos, bem como a reforma de oficiais da ativa e da reserva e de oficial- general da ativa, após sua exoneração ou dispensa de cargo ou comissão pelo presidente da República.
Na ocasião, o então deputado federal Jair Bolsonaro denunciou da tribuna que o objetivo real do decreto era interferir na formação dos oficiais das três Armas. Isso porque o art. 4 º do texto revogava o decreto n º 62.104, de 11 de janeiro de 1968, que delegava “competência aos ministros de Estado da Marinha, do Exército e da Aeronáutica para aprovar, em caráter final, os regulamentos das escolas e centros de formação e aperfeiçoamento respectivamente da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica militar”.
Ao revogar o decreto de 1968, essa função passaria automaticamente para o Ministério da Defesa, que teria em suas mãos um poder de controle sobre a formação e a promoção de oficiais-generais. Como agora, o decreto foi cancelado por outro.
Mas, um documento oficial do PT após a vitória de Bolsonaro para a presidência da República afirmava abertamente que um dos erros do partido quando esteve no poder foi não interferir no currículo das escolas de formação dos militares.