Forças Armadas
Eliane Cantanhêde: Amigos e ministros são paus, pedras e vitrines para pandemia, vacinas, Manaus, combustíveis...
Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras
Nada melhor, e às vezes bem fácil, do que sair do alvo terceirizando culpas e responsabilidades, dando voltas, avançando e recuando, desqualificando os que denunciam, atiçando os cães de guarda, rindo dos indignados e enganando os trouxas. O presidente Jair Bolsonaro é craque nisso, mas ele só acerta porque há quem faça o jogo dele.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que abriu nove “investigações preliminares” sobre a ação, ou inação, de Bolsonaro na pandemia. Motivos não faltam, culminando com o atraso das vacinas, mas as investigações nunca saem das preliminares e quem está objetivamente na mira é o general Eduardo Pazuello. Ele bate no peito para dizer que negocia vacinas em várias frentes, sem se penitenciar por fazer em fevereiro de 2021 o que 50 países sérios fazem desde meados de 2020. Além de submisso e atrasado, ele é atrapalhado.
Em ofícios de julho, agosto e outubro de 2020, revelados pela revista Piauí, o Butantan tentou acordar Pazuello para a corrida das vacinas. Ele não deu bola, como não deu para o oxigênio de Manaus, milhões de testes que perderam a validade, a falta de seringas e agulhas, mais a MP que destinava R$ 37 milhões para a pandemia. Um espanto! Mas ele foi posto na Saúde para isso, para deixar para lá. “E daí?”
Agora, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, pressionam o ministro Paulo Guedes para reavivar o auxílio emergencial, enquanto Bolsonaro fica de espectador, falando o que o mercado quer ouvir, agradando os dois lados e pronto para capitalizar no final, como na primeira vez. O Congresso impôs, ele ficou com os louros.
Bolsonaro também foi rápido no gatilho ao dar uma “solução” para os preços dos combustíveis: mexer no ICMS, que é... estadual. Assim, lava as mãos e empurra a culpa, e a conta, para os governadores, que ficam cara a cara com caminhoneiros em pé de guerra e com a classe média estupefata diante dos R$ 5,15 da gasolina comum nos postos. Alguém tem que dizer não.
Bolsonaro também acusou a “vacina chinesa do Doria” de “mortes e invalidez”, cancelou a compra de 46 milhões de doses, não negociou nada e anunciou que não vai se vacinar, ponto final. Mas, dessa vez, pegou mal. Até seus seguidores acharam um pouco demais. Qual a saída de Bolsonaro? Consertar o discurso, repetindo o tempo todo que sempre quis comprar vacinas, desde que a Anvisa autorizasse. Então, de quem é a culpa pelo descaso e atraso? O Centrão diz que é da... Anvisa.
Na manhã de quinta, o líder do governo, Ricardo Barros, disse ao Estadão que a Anvisa “não está nem aí para a pandemia” e iria “enquadrá-la”. À noite, o Senado aprovou MP dizendo que a agência “concederá” autorização de vacinas em cinco dias. Logo, ela deixa de analisar e passa a só carimbar os pedidos. É obrigada a autorizar, mas, se houver reações adversas graves depois, é ela que responde.
O líder do governo poria a faca no pescoço do contra-almirante Barra Torres, amigo de Bolsonaro, sem avisar ao presidente? E foi coincidência Bolsonaro incluir Barra Torres na sua live, horas depois da ameaça do líder e da aprovação da MP, para dizer que não interfere na Anvisa? Logo, Congresso e Anvisa se engalfinham, Bolsonaro finge que não é com ele e a falta de vacinas é culpa da... Anvisa.
Amigos são paus para toda obra, mas os de Bolsonaro são paus, pedras e vidraças. Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras. Perguntei a ele sobre a versões de que as investigações são só “preliminares” para não dar em nada. Ele reagiu: “Segundo meus adversários...” Soou como “eu não estou aqui para brincadeira”. A conferir.
Míriam Leitão: Mundo paralelo da equipe econômica
No ano passado o mercado de trabalho encolheu, fortemente. É até óbvio. Aqui e no mundo a pandemia foi devastadora para o emprego. A equipe econômica de Jair Bolsonaro quer fazer crer que houve criação de emprego e que ao fim do ano o país tinha 142.690 de vagas a mais com carteira assinada do que em 2019. No mesmo dia, no mesmo governo, a informação do IBGE é que no trimestre terminado em novembro havia 3,5 milhões de trabalhadores a menos com carteira assinada em relação a 2019. No mercado como um todo, a queda é de 8,8 milhões de pessoas ocupadas.
O Caged, divulgado pelo Ministério da Economia, registra as demissões e contratações do mercado formal. O IBGE faz a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Eles medem coisas diferentes, mas quando o IBGE diz que são empregados com carteira está, teoricamente, medindo a mesma parcela do mercado de trabalho que o Caged. Em algum momento, deveriam convergir, mas estão discrepantes.
O ministro Paulo Guedes anunciou o número do Caged, que registrava perda de emprego, 67 mil em dezembro, mas que terminava o ano com o saldo positivo. E o fez repetindo discurso político com comparações com o pior período petista.
Uma perda de tempo, porque ele poderia até contar uma boa história comparando esse ano singular que foi 2020 com o que poderia ter sido. As medidas do governo de fato atenuaram as demissões e a recessão. O PIB deve ter uma queda em torno de 4,5%. As previsões iniciais eram bem piores. Mas não há como negar que foi um ano terrível para o mercado de trabalho.
O economista Daniel Duque, do Ibre/FGV, que foi um dos primeiros a alertar para a diferença que estava acontecendo entre o Caged e o IBGE, tinha no começo duas hipóteses para a discrepância: subnotificação e metodologia.
— A subnotificacão aconteceu mais no meio da pandemia, lá para abril a junho — explicou.
O Caged é feito a partir da informação das empresas. Muitas fecharam as portas e nada informaram. Houve dificuldade de registro também por causa de mudança na metodologia que houve em janeiro do ano passado. Emprego intermitente antes não era obrigado a informar. Agora no novo Caged é. Há outras alterações que parecem confusas até para os especialistas.
— A questão toda é que quando a gente tem uma série é preciso ter referência sobre como ela se comporta. O Caged sempre teve correspondência boa com o PIB e nível de atividade. Quando acelera, tem emprego e vice-versa. O novo Caged a gente não sabe mais a referência. Num ano de queda do PIB, há geração líquida de 142 mil vagas — diz Daniel Duque.
E o IBGE, o que disse ontem? A Pnad mostra dados trimestrais. De setembro a novembro o Brasil chegou a uma taxa de 14,1% de desocupação, ligeiramente menor do que no trimestre anterior terminado em agosto. Mas representando 14 milhões de pessoas desempregadas, ou seja, procuraram emprego e não encontraram. Com a pandemia, a necessidade de distanciamento social, as medidas restritivas mais severas, muita gente nem procura emprego. Então não entra na estatística. Os desalentados, que nem pensam em procurar, são 5,7 milhões. Há uma grande tragédia no mercado de trabalho. Não adianta agarrar-se a um dado que deu positivo para elogiar-se e atacar o adversário político. Ademais, Ministério da Economia deveria ser técnico, e não ficar todo o dia atravessando a rua para brigar do outro lado.
Daniel Duque ajuda a entender essa complexidade que está sendo medir o que acontece no mercado de trabalho no meio da pandemia:
— Pnad e Caged contam histórias muito diferentes. Desde o início da pandemia, o Caged mostrava uma queda muito menor do emprego, e depois passou a mostrar uma recuperação mais forte do que o dado da Pnad para o emprego formal. O IBGE, quando mostra a recuperação do emprego, é principalmente do informal. Eu tendo a acreditar mais na Pnad Contínua por vários motivos. Um deles é que tem maior correspondência com a atividade econômica.
Equipe econômica que se agarra a um número parcial positivo e não vê o todo não ajuda muito a enfrentar a crise. Até porque nós estamos em novo agravamento do número de mortes e contágios, e há muita incerteza na economia. O país tem um outro ano duro pela frente em que a capacidade de formulação de políticas para atenuar os problemas será novamente exigida.
Alon Feuerwerker: Teste de resiliência
Adversários vão trabalhar com afinco o desgaste de Bolsonaro
Este ano de 2021 vai merecer um rótulo já bem usado: “decisivo”. Atravessar politicamente vivo é condição sine qua non para Jair Bolsonaro chegar a 2022 competitivo. E vai ser um ano daqueles. Mesmo que a vacinação se prove um sucesso, seus efeitos macro só devem ser sentidos em (muitos) meses. Um período suficientemente longo para os adversários trabalharem com afinco o desgaste presidencial.
Três ameaças rondam o Palácio do Planalto. Um agravamento da Covid-19, um repique da recessão e uma instabilidade institucional — essa última podendo vir do Legislativo ou do Judiciário. Para atravessar o ano, o presidente e seu governo precisarão mostrar capacidade operacional e política num cenário de turbulências, em que deixar o avião no piloto automático não será opção.
Sobre o agravamento dos índices da pandemia aqui no Brasil, mesmo países com vacinações muito mais agressivas enfrentam pioras de curto prazo nos índices da Covid-19. E há as novas variações do Sars-CoV-2. E junto vem a dúvida sobre se as vacinas produzidas a partir do vírus “velho” servem para combater os novos. Ou quanto tempo levará para adaptar os imunizantes, se isso for necessário para que sejam eficazes contra as novas variantes.
A segunda onda da Covid-19 terá necessariamente impacto na economia. Pois a reação natural das autoridades locais vai ser apertar o torniquete do isolamento e do distanciamento sociais. Haverá reação popular, então se pode prever movimentos de sístole e diástole, por um período em que a única certeza será a incerteza sobre que medida governadores e prefeitos vão tomar no dia seguinte ao anúncio de novos números.
E tem o fim do auxílio emergencial e demais medidas protetoras da economia popular na pandemia. Aqui, é previsível o Congresso Nacional recriar algo parecido. Mas os parlamentares tentarão impedir que Jair Bolsonaro, ao contrário da vez anterior, fature politicamente sozinho as benesses para o povão. A dúvida? Qual será a reação do mercado financeiro a um eventual furo no teto de gastos?
E a chacoalhada institucional? Ela estará contratada se os candidatos apoiados pelo presidente não vencerem as disputas pelo comando das duas Casas do Congresso Nacional. Principalmente a da Câmara dos Deputados. Saberemos em dias o que vai acontecer. Mesmo vitórias oficialistas não devem impedir que a oposição, agora anabolizada pela aliança entre a esquerda e a direita não bolsonarista de olho em 2022, coloque minas prontas a explodir no campo presidencial.
Se Jair Bolsonaro sair vitorioso das votações do dia 1º de fevereiro, poderá contar com a pressão do empresariado para o Legislativo voltar a dar foco à agenda liberal, em vez de paralisar-se numa guerra política sem solução de curto prazo. Já os políticos, mais ainda os que disputam com o presidente o apoio do establishment, têm planos próprios e não vão dar trégua.
Também por saberem que Bolsonaro mostrou em ocasiões anteriores possuir resiliência, ou seja, a capacidade de voltar à forma e ao tamanho originais depois de uma crise.
E talvez ele nunca tenha precisado tanto disso quanto vai precisar agora.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723
Murillo de Aragão: O jogo do impeachment
Tema renasce em razão dos pedidos contra Bolsonaro
Desde 1992, como analista político, convivo com a questão do impeachment. Naquele ano, quando Fernando Collor entrou na mira do Congresso, nosso call foi o de que o impeachment seria inevitável. No caso do mensalão, escândalo envolvendo a compra de apoio no Congresso pelo governo que veio a público em 2005, tivemos uma abordagem mais cautelosa. O impeachment de Lula, então presidente da República, não era óbvio, apesar da gravidade das acusações.
No final do primeiro mandato do governo Dilma Rousseff, por causa da Operação Lava-Jato e da mastodôntica incompetência política da presidente, o impeachment reapareceu como possível no radar político. Deu no que deu. Já no governo de Michel Temer, quando ocorreu o episódio JJ (Joesley Batista e Rodrigo Janot), muitos apostaram que o impeachment seria aprovado. Nosso call foi o de que isso não aconteceria. E não aconteceu.
Para avaliar a questão, devemos examinar três aspectos críticos: a popularidade do presidente, sua base política e o motivo do pedido. Obviamente, um presidente popular é menos vulnerável ao impeachment, independentemente da gravidade do motivo. Temer, porém, embora não fosse popular, sobreviveu aos pedidos de abertura do processo contra ele por causa de um aspecto fundamental: ele tinha uma base política no Congresso.
O terceiro elemento da equação é o motivo. Por incrível que pareça, esse é o menos importante. Salvo um motivo extravagante e inquestionável, um presidente da República não sofre impeachment apenas por ter cometido uma falta ou um crime. Em se tratando de julgamento político — e não jurídico —, a conjuntura e as circunstâncias, assim como o seu apoio político, são o que mais pesam no início e ao longo da tramitação.
Nos casos de Collor e Dilma, houve uma conjunção de fatores determinantes: baixa popularidade; fragilidade política no Legislativo; e existência de motivo. Collor e Dilma eram impopulares nas ruas, na imprensa e no Parlamento. Já Lula era popular nas ruas e entre deputados e senadores. Temer era impopular na imprensa e na opinião pública, mas forte o suficiente no Congresso para impedir o avanço do processo.
No alvorecer de 2021, o tema volta ao debate pela existência de dezenas de pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro no Congresso. No entanto, a questão não é simples. Muitos desses pedidos visam apenas ao desgaste político pensando no futuro. Outros são feitos na base do “vai que cola”.
A possibilidade de impeachment de Jair Bolsonaro, no momento, não parece viável, já que o apoio político a ele e a sua popularidade lhe servem de proteção. As circunstâncias teriam de piorar muito para que tanto a sua base política quanto a sua popularidade se tornassem tóxicas à sua permanência no Palácio do Planalto.
Deixando a fria análise de lado, acredito que, para o país, mais um processo de impeachment seria extremamente desgastante. Por outro lado, as crises políticas devem ser resolvidas. E de preferência com negociação, entendimento e sempre dentro das regras constitucionais.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723
Eliane Cantanhêde: Vitória do chiclete
Como Pazuello e Forças Armadas, Congresso adere ao ‘Bolsonaro manda, todos obedecem’
Parabéns, presidente Jair Bolsonaro! Quanto mais erra escandalosamente em todas as frentes de combate à pandemia, com um saldo macabro acima de 220 mil mortos e 9 milhões de infectados, mais ele vai se revelando um craque sem escrúpulos no jogo da velha política. Interfere em outro Poder, não desperdiça em emendas e cargos e está a dias de botar no bolso os presidentes da Câmara e Senado. De quebra, embaralhou o tabuleiro da oposição para 2022.
O Centrão e a direita estão unidos e de barriga cheia, enquanto o PT trincou vergonhosamente as esquerdas no Senado e o DEM da Bahia traiu miseravelmente Rodrigo Maia na Câmara. É assim que o PT vai inviabilizando uma frente de esquerdas, ao mesmo tempo em que o DEM do ex-prefeito ACM Neto dá as mãos ao DEM de Davi Alcolumbre para queimar a largada de uma candidatura de centro em 2022. A reeleição de Bolsonaro agradece.
Nunca se viu o presidente irritado, ao menos chateado, diante do avanço do coronavírus e das mortes de milhares de brasileiros. Sempre que ele aparece bravo, aos palavrões, é porque a PF e o Ministério Público descobriram mais uma dos filhos ou porque a imprensa revelou mais um chiclete e um leite condensado milionários. O País que se dane. Só importa o que dói nele e na família.
Depois de “cuidar” dos órgãos de investigação do governo, Bolsonaro agora avança pelos outros Poderes. O ministro Kássio Nunes está a postos no Supremo, o deputado Arthur Lira (PP-AL) vai trancar o impeachment na Câmara e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) se prepara para enquadrar o Senado.
O Congresso vira a página de independência do Executivo e abre capítulos de vitórias de Bolsonaro. A CPI da Saúde é natimorta, a das Fake News perde fôlego, a “boiada” do Meio Ambiente vai passar e os retrocessos em armas, gênero e orientação sexual são favas contadas. Ficará evidente a simbiose entre Legislativo e Executivo, ou a submissão da pauta do Congresso aos interesses e crenças pessoais de Bolsonaro.
Na economia? Bem... Desde a campanha, a dupla personalidade do governo é óbvia, basta confrontar a vida e obra de Bolsonaro no Exército e na Câmara com o discurso dele como candidato e depois presidente. E, assim como Pazuello é escudo na Saúde, Ernesto Araújo na política externa e Ricardo Salles no Meio Ambiente, Paulo Guedes é na economia.
Nada anda. As reformas administrativa e tributária estão amarelando e dois símbolos das privatizações jogaram a toalha, o secretário de Desestatização e agora o presidente da Eletrobrás. Guedes engole as desfeitas do chefe e rebate a culpa para Rodrigo Maia, o Congresso, a esquerda. Todo mundo tem culpa, menos o presidente – que a vida inteira agiu na direção exatamente oposta à do seu ministro da Economia.
Quanto mais a popularidade cai e a pressão por impeachment sobe, mais Jair Bolsonaro adapta seu discurso às conveniências, joga o governo nas mãos de ministros e assessores e vai se revelando o verdadeiro Jair Bolsonaro. Bom de lábia, palavrão, velha política, estatização e ideologia de fundo de quintal. E ele tem estratégia e alvo certo, o Congresso, sem se descuidar do Supremo. Em julho, Kássio Nunes ganha reforço.
Até agora fundamentais contra as investidas golpistas e retrocessos bolsonaristas, Congresso e Supremo serão os pilares de Bolsonaro, apesar da absurda incompetência e da má-fé na contratação de vacinas, na condução da pandemia, no investimento em cloroquina, nas rachadinhas e chicletes. Em vez de impeachment, Bolsonaro colhe vitórias. Como Pazuello e Forças Armadas, o Congresso adere ao “um manda, o outro obedece”. O próximo deve ser o Supremo. Depois, não adianta chorar sobre o leite derramado. Nem condensado.
Luiz Carlos Azedo: A vacina dos camarotes
A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos
Uma das características da pandemia de coronavírus, que certamente será objeto de muitos estudos e pesquisas, é a desigualdade social escancarada que nos revela. A cortina foi rasgada pelo auxílio emergencial: a iniquidade chegava a 56 milhões de pessoas, dos quais 2,6 milhões em São Paulo e 1,6 milhão no Rio de Janeiro, cidades ícones do Sul Maravilha, segundo dados do Portal da Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” dependentes dos recursos governamentais ultrapassava meio milhão de pessoas em Salvador (762 mil), Fortaleza (747), Manaus (634 mil) e, pasmem, Brasília (562 mil). No time das 10 cidades com maior número de “flagelados” da crise sanitária, constavam, também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba (339 mil).
Vejam bem, não estamos falando do Brasil profundo, mas das principais cidades brasileiras, que lideram o nosso desenvolvimento econômico e social, os principais polos da transição do Brasil rural para o urbano, na marcha forçada do nosso modelo nacional-desenvolvimentista. Esse processo melhorou a vida das pessoas da porta para dentro, principalmente da classe média. Entretanto, o crescimento acelerado das cidades deteriorou as condições urbanas e deixou ao abandono a vida banal das periferias e morros, degradando a vida coletiva da porta para fora. Principalmente depois do Plano Real, a economia informal e o empreendedorismo mascararam a gravidade do problema, mitigado, ainda, pelo programa Bolsa família, até que veio a recessão provocada pela pandemia, que destruiu empregos e também provocou um “apagão” de capital.
A conta da pandemia, do ponto de vista fiscal, ainda vai chegar, mas ninguém mais pode ignorar a gravidade do problema social que o Brasil enfrenta, principalmente, as elites econômicas do país. As desigualdades se manifestam em todos os seus aspectos — econômico, social, cultural, étnico e de gênero — e não será a prorrogação do auxílio emergencial que resolverá o problema. É inviável uma política de renda mínima sem um projeto de desenvolvimento, sem política industrial e de comércio exterior, sem reforma tributária e administrativa, sem investimento em ciência e tecnologia, em habitação, transportes e, principalmente, educação. Acontece que, até agora, o governo federal pautou-se pela omissão ou o improviso nas políticas sociais.
Lei de Murici
Um retrospecto das declarações do presidente Jair Bolsonaro; do ministro da Economia, Paulo Guedes; e do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mostra um governo errático na condução do país e focado apenas na preservação e fortalecimento do seu poder em relação ao Legislativo, ao Judiciário e aos demais entes federados. O sucesso do Palácio do Planalto nas disputas pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado fixará o foco na “guerra de posições” para consolidar um governo bonapartista, que se pretende tutor da sociedade. O problema das desigualdades está fora de sua agenda. A crise sanitária mostra isso. Uma política de transferência de renda com objetivo apenas eleitoral não será sustentável.
A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos. O presidente da República sempre se colocou ao lado dos que não querem se vacinar, mesmo depois de os principais líderes mundiais darem o exemplo se vacinando. É o principal responsável pelo desmantelo do Ministério da Saúde na condução da política epidemiológica. Agora, Bolsonaro resolveu defender a compra e a distribuição de vacinas por empresas privadas, entre elas, a Petrobras e a Vale, para imunizar seus funcionários, furando a fila do Programa Nacional de Imunização, para manter a atividade da economia. A doação de metade das vacinas para o Sistema Único de Saúde (SUS) legitimaria o privilégio. Teremos a vacina dos camarotes, para usar uma expressão do meu xará Luiz Carlos Rocha, advogado de Curitiba, enquanto a “pipoca” espera a vez nas filas do SUS, devido ao descaso e às trapalhadas do general Pazuello na Saúde.
Acontece que a Lei de Murici pode ser a senha para um desastre anunciado, como na retirada de Canudos. Tudo começou quando o sanguinário coronel Moreira Cezar, no dia 3 de fevereiro de 1897, mudou subitamente de ideia e optou pelo ataque imediato, em vez do cerco a Canudos. O arraial foi duramente castigado pela artilharia. As forças do Exército conseguiram invadir o arraial e conquistar algumas casas. Foram, contudo, obrigadas a recuar, devido à pouca munição. Após cerca de cinco horas de combate, Moreira César foi mortalmente ferido no ventre, quando se preparava para ir à frente de batalha incentivar a tropa.
O comando foi transferido ao coronel Pedro Tamarindo, que decidiu recuar, após sete horas de combate. Moreira César agonizou 12 horas, ordenando que Canudos fosse, uma vez mais, atacado. Em reunião de oficiais, porém, fora decidida a retirada, dado o grande número de feridos, numa marcha de 200 quilômetros até Queimada. Atacada incessantemente pelos jagunços, a tropa debandou. Tamarindo foi morto no Córrego dos Angicos. Seu corpo foi deixado no campo de batalha. Acabou empalado num galho de angico pelos jagunços. A primeira favela do Rio de Janeiro foi formada pelos soldados desmobilizados após a Guerra de Canudos.
Wladimir Safatle: As Forças Armadas do caos
Militares brasileiros estão associados ao uso da força para o silenciamento das consequências da miséria e do descaso. Fazem isso mais uma vez na pandemia. Por isso, a única saída é o impeachment
Uma das maiores ilusões a respeito do Governo Bolsonaro é que ele seria composto por dois eixos em estado contínuo de antagonismo. De um lado, haveria o núcleo ideológico, com suas pautas de regressão social e isolamento internacional, enquanto no outro lado encontraríamos o núcleo militar. Se o primeiro seria impulsionado pela crença em ser o protagonista maior de uma revolução conservadora no Brasil, o segundo seria ainda pautado por certa perspectiva “moderada” e “racional”.
Na verdade, essa foi a melhor narrativa que as Forças Armadas poderiam encontrar para si mesmas. Isso lhes permitiu tomar de assalto o poder executivo, colocando milhares de seus membros da ativa e da reserva dentro da estrutura do poder, sem ter que assumir o ônus de agente fundamental do caos. Jogando a carta do corpo técnico que assume o Estado corrompido, procurando defende-lo de ideólogos que viriam de todos os lados, as Forças Armadas tentaram vender ao país a imagem de serem uma espécie de força de contenção indispensável e inevitável. Bastouuma pandemia com seus desafios reaispara que toda essa história ruísse.
Na verdade, o país viu, agora em escala catastrófica, a repetição do que sempre ocorre quando as Forças Armadas tomam a frente. O que está a ocorrer no Brasil atualmente é sim a implementação consequente do ideário que anima suas Forças Armadas. Pois longe de serem uma parte da solução, elas são historicamente o eixo fundamental do problema.
Faz parte das tomadas de poder das Forças Armadas criar essa imagem de serem animadas por um conflito interno, como se estivéssemos a todo momento a lidar com uma instituição dividida entre o bom policial e o mau policial. Já na ditadura militar havia a pantomima do conflito entre o núcleo duro e os moderados. Foi isso que permitiu aos militares fazer um duplo papel, entre o Governo e a oposição ao Governo delas próprias. Se a ditadura brasileira conseguiu durar inacreditáveis 20 anos é porque tal pantomima fazia parte do modo normal de governo. Para fazer o Governo funcionar, era fundamental que os opositores encontrassem, nas próprias Forças Armadas, a esperança de uma contenção das Forças Armadas. Da mesma forma, agora estamos a ver o pretenso conflito entre o grupo ligado a Bolsonaro e os generais mais sensatos. Sensatez essa que não foi capaz de influenciar em uma ação sequer que pudesse tirar o país do caminho em direção às mais de 200.000 mortes, isso a despeito de todo o esforço estatal de desaparecimento de corpos.
Quem fizer uma pesquisa a respeito das propagandas louvando o “ideal de desenvolvimento” do regime militar encontrará essas campanhas narrando a vitória do homem (sim, eram sempre homens) sobre o “inferno verde” representado pela Amazônia. Vitória essa que se daria através da abertura de estradas como a Transamazônica ou de projeto absurdos e corruptos como o Projeto Jari. Fotos de grande troncos de árvores centenárias cortadas e empilhadas em caminhões ilustravam o canto do país que vencia suas “fronteiras internas” à base do fogo, do roubo, da posse e do desaparecimento dos corpos de ameríndios mortos. O que Bolsonaro fez foi simplesmente levar às últimas consequências o ideário que sempre moveu as Forças Armadas como ponta de lança da guerra do Brasil contra si mesmo. As chamas cuja fumaça chega agora até nossas grandes cidades não é fruto de um Nero tropical, mas a consequência lógica do espírito que suas Forças Armadas sempre representaram.
No entanto, essa guerra do Brasil contra si mesmo foi não apenas contra a natureza. Ela foi uma guerra contra sua própria população. A história das Forças Armadas brasileiras é a história de uma guerra interna, de uma guerra civil não declarada que vai de Canudos e Contestado até ouso do Exército como “força de pacificação” nas comunidades do Rio de Janeiro. Ela foi a história do uso da força e do extermínio contra movimentos populares de toda ordem desde o Império. Ela foi ainda a história perpetua da “caça ao comunismo” desde o aparecimento do primeiro líder popular da república brasileira, Luís Carlos Prestes: um militar que escolheu o lado das lutas populares e que antecipou as táticas que seriam usadas, de maneira vitoriosa, na grande marcha chinesa. Esse fantasma da “caça ao comunismo” é a razão de existência das Forças Armadas brasileiras, e Bolsonaro sabe muito bem disso. É ele que lhe levou a dizer: “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”. “Comunismo” é o nome que as Forças Armadas brasileiras usam para se referir à figura de um povo insurreto.
Mas, principalmente, militares brasileiros estão associados ao uso da força para o silenciamento das consequências da miséria e do descaso. Faz-se necessário lembrar disso mais uma vez pois o que estamos a ver nessa pandemia, a catástrofe humanitária que a gestão das Forças Armadas produziu, não é um acaso. É a consequência necessária da maneira com que os militares sempre lidaram com a morte da sua própria população. Longe de procurar “proteger” as populações, suas ações sempre se deram no sentido de lembrar aos setores vulneráveis da população brasileira de que eles são matáveis sem dolo e sem imagem. É isso que as Forças Armadas estão a fazer mais uma vez com sua gestão criminosa e omissa em relação à pandemia.
Em menor escala, isso já ocorreu entre nós outras vezes. Que se lembrem dos espaços de silêncio da história brasileira. Lembremos, por exemplo, da natureza da violência estatal para confinar e deixar morrer populações em crises de seca. Foi no Ceará, entre 1915 e 1932, que o Brasil conheceu campos de concentração (sim, esse foi inclusive o termo usado à época) criados em cidades como Senador Pompeu, Ipu, Quixeramobim, Crato e Cariús, destinados a impedir que os flagelados da seca chegassem à capital. Campos nos quais se confinavam milhares de retirantes e se morria em massa por descaso, omissão e indiferença. E vejam que coincidência, o número de mortes é ainda hoje incerto (estimam-se só no Patu, em Senador Pompeu, até 12.000 mortes sem certidão de óbito e em vala coletiva). Ou seja, esse é de fato o modus operandi das Forças Armadas.
Contra a revolta de setores da sociedade diante de tal descaso, as Forças Armadas agora ameaçam o país com um estado de defesa, que suspenderia certas garantias institucionais, e que seria a forma efetiva de um autogolpe de Bolsonaro. No momento em que até tal carta é colocada sobre a mesa, o país não pode mais ser leviano em relação ao impeachment daquele que ocupa atualmente a presidência da república. Há sob sua responsabilidade direta uma somatória de crimes de omissão, de responsabilidade, de incentivo a comportamento que resultaram em um verdadeiro genocídio da população brasileira. Nenhum presidente da república tem tantas razões para ser afastado, julgado e encarcerado quanto o senhor Jair Bolsonaro.
Há um ano, vários foram os que insistiram que a única saída seria o impeachment. Naquela ocasião, não faltaram os que disseram que clamar por um impeachment era colocar a política à frente das exigências imediatas de gestão. Disseram que era importante obrigar o Governo a atuar contra a pandemia, ao invés de dispersar forças em um pedido de impeachment. A história demonstrou, no entanto, que não havia possibilidade alguma de levar Bolsonaro a gerir a pandemia. Ao contrário, ele não desprezou ocasião alguma para colaborar efetivamente para a situação na qual nos encontramos agora, com a população brasileira em estado de máxima vulnerabilidade, insuflando a indiferença em relação à morte e à ausência de proteção efetiva por parte do Estado.
Tudo isso demonstra como há de se lembrar, mais uma vez, que a única saída é o impeachment. E àquelas e àqueles que esqueceram, impeachment se conquista através da ocupação das ruas e do bloqueio das atividades. Os que têm privilégios ligados à segurança fornecida pelo acesso a serviços privados de saúde deveriam usar tal privilégio e forçar o fim deste Governo através da ocupação das ruas. Essa é a única coisa realmente concreta que podemos fazer para defender o país contra a pandemia. E só a certeza da existência dessa força popular que fará as Forças Armadas ocuparem seu único e verdadeiro lugar: esse caracterizado pelo afastamento da vida política nacional, o silêncio em relação à política e o retorno aos quartéis. Um pretenso Governo Mourão, por ser fruto da pressão popular, já nasceria natimorto. Isso até que consigamos enfim uma sociedade que não precise mais de Forças Armadas, pois se defende a si mesma.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Cora Rónai: O silêncio cúmplice dos generais
Cada vez que um general na administração pública se revela incompetente ajuda a destruir a reputação das Forças Armadas
A Academia Militar das Agulhas Negras é uma escola de ensino superior do Exército Brasileiro. Copiei essa frase da Wikipédia para não errar na definição. Ensino. Superior.
Lá se formam os oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército. Não é qualquer um que tem acesso à AMAN. Jovens militares entre 17 e 22 têm que prestar concurso público para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde passam um ano antes de ser admitidos.
O ensino é puxado. Só no primeiro ano, por exemplo, os alunos têm que aprender idiomas estrangeiros, Economia, Estatística, Filosofia, Introdução à Pesquisa Científica, Informática, Língua Portuguesa, Técnicas Militares e Química, entre aulas de tiro e de treinamento físico. Eles têm ainda aulas de Direito e Psicologia no segundo ano e Metodologia do Ensino Superior no terceiro, e concluem os estudos com Direito Administrativo e Relações Internacionais, entre muitas e muitas matérias de cunho especializado.
Eu não conhecia os detalhes desse currículo até consultar a Wikipédia, mas, como todo mundo, conhecia a fama da AMAN, tida por formadora de pessoas disciplinadas e com bons conhecimentos técnicos.
Como os militares tiveram o bom senso de se manter em low profile depois da ditadura, muitos brasileiros passaram a acreditar no preparo dos seus generais. Eles podem não ser democráticos — ninguém que obedece hierarquia às cegas é inteiramente democrático —, mas imaginava-se que seriam bem preparados.
Bolsonaro é egresso da Academia Militar das Agulhas Negras, mas não teve sucesso como militar. Não mancha a imagem das Forças Armadas diretamente, porque elas tiveram a sorte (ou o bom senso: há divergências) de livrar-se dele a tempo.
Indiretamente, porém, os danos feitos pela sua eleição são incalculáveis. Cada vez que um general alçado à administração pública se revela incompetente, ou dá declarações fora de propósito, ajuda a destruir mais um pouco a reputação que as Forças Armadas levaram tantas décadas para recuperar.
Nenhum estrago, porém, se compara ao general Eduardo Pazuello, o “especialista em logística” que garantiu a pior resposta possível à pandemia — e que garante ao governo o vexame diário de ver os números da contaminação e da mortalidade divulgados por um consórcio de empresas jornalísticas, já que nos dados oficiais é impossível confiar.
Ele é a desmoralização concreta das FFAA, um homem que não se envergonha de faltar com a verdade, um estrategista incapaz de fazer uma simples licitação pública para comprar seringas, um ministro da Saúde que, até agora, não entendeu o que está acontecendo.
Um general que derruba, sozinho, o mito da boa preparação dos oficiais superiores do Exército Brasileiro.
Não é que não dê para se imaginar como chegou ao ministério: o fraco do presidente por pessoas inadequadas é bem conhecido. Num governo que tem Ricardo Salles no Meio Ambiente e Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, Eduardo Pazuello faz todo o sentido na Saúde.
O que não dá para imaginar é como chegou ao generalato.
É duro constatar que, enquanto brasileiros morrem asfixiados pela sua incompetência, seus colegas de farda observam calados.
Tomem tenência, senhores: quem cala é cúmplice.
William Waack: Crianças à solta
Militares não foram capazes de entender que calar-se para grotescos erros, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições
Vamos simplificar as questões de política externa do governo Jair Bolsonaro. Supunha-se que os adultos – militares com formação acadêmica e experiência direta de conflitos internacionais – fossem supervisionar as crianças. Aconteceu o contrário. As crianças é que emparedaram os adultos.
Em alguma medida, é uma repetição do que aconteceu na Casa Branca, onde gente de excelente formação profissional nas áreas de segurança, estratégia e relações internacionais foi chutada por um inepto como Donald Trump, que Bolsonaro escolheu emular. No Brasil, os órgãos de assessoramento da Presidência da República e o próprio Itamaraty acabaram sendo subordinados à profunda ignorância em matéria de relações internacionais de um filho do presidente e suas preferências pessoais.
Os resultados negativos se acumulam. Com o resultado das eleições americanas, o Brasil conseguiu a proeza de se estranhar ao mesmo tempo com as duas principais potências do planeta, pois já se dedicava em provocar a China. Como 11 em 10 analistas de relações internacionais assinalaram, o campo da política externa é, por definição, o campo da impessoalidade, e o alinhamento automático de Bolsonaro ao perdedor Trump é um erro crasso não importa o mérito, postura ideológica ou intenções de qualquer um dos dois.
O mesmo vale em relação à China e à Índia. Somadas, essas duas gigantescas potências asiáticas têm mais ou menos uns 8 mil anos de experiência em política externa e conflitos geopolíticos de enorme amplitude. O Brasil desdenhou da Índia na Organização Mundial do Comércio, e tomou o troco ao ser jogado para o final da fila dos países para os quais os indianos estão exportando vacinas e insumos.
No caso da briga dos elefantes (China contra Estados Unidos) o Brasil desperdiçou a oportunidade que a geografia lhe dá de tratar a ambos com distanciamento e equilíbrio. Ao contrário, preferiu cutucar os chineses da forma infantil característica de amadores que acham que entendem de política externa, como acontece na assessoria internacional de Bolsonaro, ou confundem a repetição de lemas de movimentos de extrema-direita (contra a China, por exemplo) como afirmação de postulados nacionalistas.
Cego aos dados da realidade, Bolsonaro ainda não demonstrou ter compreendido a natureza das várias rasteiras internacionais que tomou nas últimas semanas, e o impacto que essas fragorosas derrotas – como o chute eleitoral levado por Trump e a recusa da Índia e China na questão das vacinas em nos atender nos prazos que pretendíamos – acarreta na posição política interna de um presidente que só pensa em reeleição.
O tamanho dos reveses exigiria de Bolsonaro uma rápida e nítida correção de rumo. Sim, estaria admitindo ter cometido erros grosseiros – por escolhas, repita-se, pessoais – mas dado os trunfos que o Brasil ainda dispõe (Amazônia e produção de alimentos) conseguiria se reposicionar no cenário internacional. Um passo desses, porém, pressupõe dois fatores que não se vislumbra no momento.
O primeiro é Bolsonaro entender que na raiz das derrotas que Trump sofreu está o desprezo e a negligência em relação aos “staffs” profissionais treinados para tratar de complexas questões internacionais e suas implicações para os interesses do País. Ao se apegar ao que seu filho e amigos acham que é a política internacional, e relegar a terceiro plano a burocracia meritória do Itamaraty, por exemplo, o presidente apenas reitera uma conduta evidentemente errada.
O segundo fator que não se vislumbra está ligado à postura daqueles adultos – militares formados em academia de ótimo nível – que não foram capazes de entender que calar-se para os grotescos erros de política externa, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições (Forças Armadas, por exemplo) às quais pertencem e, no final das contas, os torna cúmplices no estrago na defesa de interesses da Nação.
Em lugar nenhum eles aprenderam que o Brasil deveria ser um pária internacional. A posição na qual chegamos.
Merval Pereira: O incontrolável
A biografia do capitão Jair Messias Bolsonaro feita do CEPEDOC da Fundação Getúlio Vargas é uma exemplar sucessão de fatos que o levaram à presidência da República devido à leniência com que foi tratado, tanto no Exército quanto no Congresso, onde atuou como deputado federal por 27 anos. Coerente com suas idéias corporativas, e politicamente radical, não teve quem o parasse. Que sirva de lição para os dias de hoje.
Alguns exemplos: em 1986, capitão no 8º Grupo de Artilharia de Campanha, foi preso por ter escrito na revista Veja artigo intitulado “O salário está baixo”. Em 1987, uma reportagem da mesma Veja revelou um plano para uma “Operação beco sem saída”, com o objetivo de “explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (...) e em vários quartéis”. A operação só sairia do papel se o reajuste concedido aos militares ficasse abaixo de 60%.
Atribuído a Bolsonaro e ao capitão Fábio Passos da Silva, o plano irritou o ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves, que convocou os capitães para explicações. Os dois “negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação”, segundo declaração do próprio general Leônidas.
Mais tarde, porém, testemunhas e provas documentais, como um croqui desenhado pelo próprio Bolsonaro, levou o ministro a se convencer que errara ao inocentar os dois capitães. O resultado de uma sindicância foi enviado ao Superior Tribunal Militar (STM) com pedido de exclusão das Forças Armadas dos dois capitães, o que não foi aceito. Os juízes, por maioria, acataram a defesa dos militares que “se consideravam vítimas de um processo viciado”. Bolsonaro foi para a reserva em 1988, mesmo tendo sido absolvido.
Não foi apenas o General Geisel que o considerou “um mau soldado”. O Coronel Carlos Alfredo Pellegrino, em relatório, disse que Bolsonaro tentava liderar oficiais subalternos, mas não conseguia pela “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. No julgamento do STM, foi acusado de ter “grave desvio de personalidade”. Em 1991, no primeiro de seus mandatos de deputado federal, defendeu o retorno do regime de exceção, e o fechamento temporário do Congresso Nacional. Para ele, muitas leis atrapalhavam o exercício do poder e que, “num regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando”.
O pronunciamento levou o corregedor do Congresso Nacional, deputado Vital do Rego, a solicitar ao procurador-geral da República, Aristides Junqueira, o início de uma ação penal contra Bolsonaro por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Câmara. Em1994 afirmou preferir “sobreviver no regime militar a morrer nesta democracia”.
Sustentando que Bolsonaro havia sido desrespeitoso com o ministro da Administração, Luis Carlos Bresser Pereira, durante depoimento na Comissão de Trabalho, o deputado gaúcho Osvaldo Biochi, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), solicitou sua cassação, mas o máximo que aconteceu foi uma advertência.
Assumiu seu novo mandato na Câmara em fevereiro de 1999 e, em junho, a Mesa Diretora da Câmara propôs ao plenário sua suspensão por um mês, por ter defendido o fechamento do Congresso e afirmado que “a situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente”, incluindo o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. A Mesa Diretora havia optado por apenas censurá-lo, após ter recebido uma retratação, mas voltou atrás quando Bolsonaro não reconheceu a retratação, afirmando que sua assinatura havia sido falsificada. No entanto, a proposta nunca chegou a ser votada pelo plenário da Câmara.
Em dezembro, voltou a defender o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso. O líder do governo na Câmara, Artur Virgílio, do PSDB, chegou a pedir sua cassação, mas a proposta nunca chegou ao plenário da Casa. Ao votar em abril de 2016 a favor do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro fez uma homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, identificado como torturador. Foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara, por apologia à tortura, mas nada aconteceu.
Ricardo Noblat: É a Constituição, estúpido, não os militares que garante a democracia
Bolsonaro finge que faltou a essa aula
Nada há de ignorância quando o presidente Jair Bolsonaro diz, como disse ontem, como disse no passado antes e depois de se eleger, que “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”.
Pelo menos isso, ele sabe que não é assim. Quem garante a democracia é a Constituição. A nossa, em vigor desde 1988, foi escrita e aprovada por representantes do povo eleitos justamente para dar conta de tal tarefa.
Sempre que se vê em apuros, Bolsonaro bate à porta dos quartéis atrás de apoio, corteja seus antigos pares e ameaça seus adversários políticos com esse tipo de declaração. É quando seu instinto e intuito golpistas traem de fato o que ele é.
As Forças Armadas não estão acima da Constituição que o presidente jurou respeitar, mas que desrespeita sempre que pode. Obedecer à Constituição não é só um dever, é uma obrigação coletiva. Tentar enfraquecê-la é um crime de lesa majestade.
Do que mais têm medo Bolsonaro e Pazuello
Crime de responsabilidade
Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello têm em comum a formação militar e o fato de serem no momento as duas figuras públicas de maior relevo em meio a uma pandemia que colheu até ontem no Brasil mais de 210 mil vidas. E que poderá colher muito mais, uma vez que mal começou, a vacinação poderá ser suspensa em breve devido à falta de doses suficientes para imunizar tanta gente.
Faltam insumos para que o Instituto Butantan possa fabricar a CoronaVac no volume necessário. A Fundação Oswaldo Cruz também não tem para fabricar a AstraZeneca. Os insumos para as duas vacinas dependem da China que os produz, e, por lá, menos de 1% da população foi imunizada. Fracassou a operação de compra da AstraZeneca à Índia. Era fake. Um golpe.
Apesar do uso da farda, seria uma injustiça com Pazuello comparar sua trajetória nos quartéis com a de Bolsonaro. Pazuello é um general ainda na ativa, para constrangimento dos seus pares que preferiam vê-lo na reserva dada às circunstâncias que ele enfrenta. Bolsonaro ganhou o título de capitão quando foi afastado do Exército por ter planejado atentados à bomba a quartéis.
Mas o general aceitou servir ao ex-capitão depois que dois médicos deixaram o Ministério da Saúde ao se recusarem a fazer o que Bolsonaro mandava – entre outras coisas, recomendar o tratamento precoce de casos da Covid-19 com drogas ineficazes. Sabe-se lá porque Bolsonaro ordenou ao Exército a fabricação em massa de cloroquina. Sabia-se que era uma fraude.
Bolsonaro acostumou-se à fama de mentiroso e não liga mais. Nada mais fácil do que provar que ele mente. Mente sempre. Mente descaradamente. Mente displicentemente. Mente naturalmente. Mente irresponsavelmente. E de tanto enxovalhar a verdade, tornou-se incapaz de reconhecer quando encontra uma pela frente por mais robusta que ela seja.
Isso obriga ao restabelecimento de certas verdades. Em abril último, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que governadores e prefeitos TAMBÉM poderiam adotar medidas contra a pandemia, NÃO APENAS o governo federal. Como Bolsonaro insiste em dizer que o tribunal esvaziou seu poder de combater o vírus, o Supremo voltou a desmenti-lo em nota oficial.
Chamar Pazuello de mentiroso o incomoda muito. Pega muito mal para um militar, mais ainda quando ele é detentor da mais alta patente de sua Arma. É uma ofensa que nenhum deles engole calado. Infelizmente para ele, está provado que o general mentiu ao afirmar que nunca receitou o tratamento precoce com cloroquina para pacientes com sintomas da doença.
Que Pazuello queira culpar o clima da Amazônia pela falta de oxigênio que matou dezenas de pessoas em Manaus e começa a matar também em cidades do Pará, não é propriamente uma mentira. Seria um exagero, digamos com boa vontade, ou ignorância. Que ele culpe o fuso horário pela demora em importar vacina da Índia pode ser entendido como uma desculpa.
Porém, o general mente ao negar que patrocinou o que agora batiza de “atendimento precoce” com remédios rejeitados pelo mundo inteiro. No final de maio passado, o Ministério da Saúde incluiu nos seus protocolos a sugestão de uso da cloroquina em pacientes hospitalizados com gravidade média e alta. E remeteu aos Estados pelo menos 3,4 milhões de doses da droga.
Não lembra? Leia aqui a notícia publicada pela Agência Brasil, um órgão de informação do governo. Isso aconteceu depois que o médico Nelson Teich cedeu a Pazuello a vaga de ministro da Saúde. Quer mais? Na madrugada de hoje, no site do ministério, ainda poderia ser encontrado um manual de orientação sobre o uso da cloroquina para tratamento precoce.
A troca de “tratamento precoce” por “atendimento precoce” tem a ver com o medo de Pazuello de ser denunciado por crime de responsabilidade. O mesmo medo passou a ser compartilhado por Bolsonaro. Crime de responsabilidade pode abreviar seu mandato porque a Constituição considera inviolável o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança.
Octavio Amorim Neto: 'Militarização distorce processo político'
Retomada do poder de militares na América Latina, em especial no Brasil, traz sérias consequências para democracias, alerta cientista político
Por Malu Delgado, Valor Econômico
SÃO PAULO - Quais são as consequências, para a democracia, quando as Forças Armadas estão no centro da arena política, como no caso brasileiro? A pergunta mobiliza há dois anos o cientista político Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Em novembro passado, ele publicou um artigo intitulado De volta ao centro da Arena: causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro, no “Journal of Democracy”, publicação que é referência mundial sobre o tema. Em parceria com Igor Acácio, Amorim Neto reflete sobre as dificuldades atuais. E não é só o Brasil. Também a América Latina vivencia esse fenômeno, enfatiza.
Em entrevista ao Valor, por videoconferência, Amorim Neto ressalta o problema de termos em órgãos de comando os militares, “organização opaca e radicalmente verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência”. Ao formar um ministério com quase 40% de militares e espalhar profissionais das Forças Armadas em mais de seis mil postos do governo, Jair Bolsonaro revela que sabe exatamente o que faz, pois consegue dissuadir o Congresso e a oposição de qualquer tentativa de impedimento. A incerteza sobre o grau de adesão da cúpula militar a um eventual golpe de Bolsonaro numa eventual tentativa de reeleição em 2022 é um ativo que o presidente explora para se manter forte no poder. A seguir, trechos da entrevista:
Valor: A América Latina já é vista por acadêmicos como a “terra das democracias militarizadas”. Quais indícios temos sobre isso?
Octavio Amorim Neto: A pandemia de covid-19 reforçou essa tendência, mas os problemas já estavam ficando patentes antes de 2020. O melhor exemplo é o México, que teve longo período de regime autoritário, com o PRI. O país se democratizou na década de 90, e militares tinham papel muito pequeno no governo. No começo do século 21, por conta do narcotráfico, vem uma reversão de um processo histórico de quase meio século, com a entrada de militares na arena política. Veio a eleição de [Andrés Manuel] López Obrador e a presença de militares aumentou mais ainda. O caso mexicano, junto com o brasileiro, são os dois mais chocantes de militarização recente. Houve, também, o golpe na Bolívia, por conta da última tentativa de reeleição do Evo Morales. Equador Peru e Colômbia sempre tiveram presença muito forte das Forças Armadas, seja para combater o crime ou para lidar com desastres naturais, ou reprimir protestos, como o que vimos no Chile, um país que era tido como democracia exemplar. Mas no Chile os militares viram as péssimas consequências e saíram. Esses são grandes casos que trouxeram a atenção da academia latino-americana e internacional.
Valor: O senhor aponta o governo Bolsonaro como sui generis, com 39% do ministério ocupado por militares, e 6 mil deles no governo. Quais as consequências disso?
Amorim Neto: Em primeiro lugar, Bolsonaro conseguiu criar um fator de dissuasão de tentativas de destituição. A entrada dos militares ajuda a evitar a repetição de um cenário como [Fernando] Collor e Dilma [Rousseff]. A experiência recente do Brasil com o regime militar ainda está viva na memória da classe política. O Brasil tem memória curta, mas de vez em quando esses fantasmas do passado renascem abruptamente. Os militares, desde 1989, são um dos principais atores políticos domésticos do país. Houve a ilusão, na comunidade acadêmica, de que o assunto foi resolvido no começo do século 21. Olha a surpresa que tivemos, a partir de 2018, e não apenas com a eleição de Bolsonaro. Em fevereiro de 2018 que tivemos o primeiro ministro da Defesa, militar, em quase 20 anos, o general [Joaquim Silva e] Luna, nomeado por Michel Temer. Em segundo lugar, Bolsonaro, apesar de estar nas política há três décadas, não tinha quadros. E onde presidentes buscam quadros? Em organizações e instituições em que confiam. Desde janeiro de 2019 eu denuncio as possíveis consequências negativas dessa militarização do governo. O melhor exemplo agora é o general [Eduardo] Pazuello. No regime democrático, a lealdade ao presidente da República tem que ser limitada. Um ministro de Estado não pode ser absolutamente leal ao presidente, tem que falar o que pensa. Se o presidente discorda, ele pede demissão e não acontece nada. No governo Bolsonaro, é totalmente diferente. Discordou, imediatamente vem o ataque da militância digital, e, em seguida, a demissão. Ou se subordina, como o Pazuello.
Valor: E esses que se subordinam inevitavelmente são os militares.
Amorim Neto: Para os militares isso esta entranhado na pele deles, porque presidente da República é o comandante chefe das Forças Armadas. Eles se sentem, mesmo na reserva, obrigados a ser absolutamente deferentes ao chefe supremo. Bolsonaro foi muito hábil neste sentido. A questão são as consequências para a democracia, para as Forças Armadas e para a Defesa Nacional de se colocar no centro da arena política uma organização como essa, opaca, radicalmente verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência. No regime democrático, hierarquia tem limite. Para os militares, não.
Valor: A falta de transparência militar é um dos obstáculos mais delicados em democracias?
Amorim Neto: Sim. Partidos políticos, por exemplo, podem ser centralizados, dominados por um chefe, ter uma série de problemas, mas eles votam semanalmente. As preferências dos deputados estão lá, as reuniões de comissões são abertas ao público, as brigas são visíveis. Isso facilita o papel da imprensa e da cidadania, do ponto de vista da informação. Não existe isso nas Forças Armadas. Por dever de ofício, vivem sobre segredo de Estado. E trazem essa cultura para dentro do governo federal, o que o governo Bolsonaro fez massivamente. Isso que é sui generis. Não digo que essa massiva militarização acabou com a democracia, mas distorceu completamente o processo político, e criou ambiguidade enorme em relação ao papel das Forças Armadas. O papel delas não é governar o país.
Valor: O papel dos militares deveria estar circunscrito a postos de Defesa, não sendo recomendável que ocupem postos de governo?
Amorim Neto: Se militares começam a ocupar cargos de civis, o poder político deles aumenta. E ao verem seu poder político maximizado, a tarefa fundamental da democracia, que é o controle civil dos militares, torna-se muito mais difícil. Essa circunscrição é por razões políticas absolutamente fundamentais, e não apenas porque eles conhecem o “métier” militar. É porque se eles extrapolarem da área da Defesa, ou da Segurança Nacional, cria-se um problemão político, como estamos vendo hoje. A definição de carreira militar, dada pelo Comando do Exército Brasileiro é: “A farda não é uma veste da qual se despe com facilidade, até com indiferença, mas uma outra pele que adere à própria alma, irreversivelmente, para sempre”. Quando os militares dizem que militar da reserva é civil, estão negando o que diz o Comando.
Valor: A forma como o Brasil está enfrentando a covid-19 pode alertar o país e o mundo sobre esse risco de militarização na democracia?
Amorim Neto: Sem dúvida nenhuma o fato de termos um general da ativa comandando a Saúde é a expressão suprema das consequências negativas da militarização. Pazuello começou a fazer movimentos em direção à vacina, a falar publicamente. Bolsonaro foi diretamente a ele, subordiná-lo e submetê-lo. E o que ele fez? Aceitou. Isso tem a ver com o “ethos” militar, a cultura da obediência. Essa ficha não vai cair agora, mas no médio prazo, depois dessa tragédia que é a pandemia, vamos começar a ter o que havia nas décadas de 70 e 80, que é uma desconfiança enorme das Forças Armadas pelos quadros civis do país. E isso é péssimo para a democracia e é péssimo para a Defesa Nacional. Acho muito difícil voltarmos a ter um regime militar. Vamos ter sempre algo muito próximo de uma democracia, em que o Congresso terá um papel fundamental na aprovação do orçamento, na determinação de diretrizes básicas da defesa nacional. Como é que vai ser isso no pós-pandemia, no pós-Bolsonaro, depois da experiência de Pazuello e outros ministros fazendo aquilo que não lhes cabe fazer?
Valor: Bolsonaro é a expressão máxima dessa militarização, mas isso já não ocorria gradualmente no pós-impeachment de Dilma?
Amorim Neto: O problema da presença excessiva de militares no governo federal não começa no governo Temer, começa no governo Dilma. Eles foram chamados para o centro do Executivo federal por conta de grandes eventos, Copa, Olimpíadas, mas também pelo uso excessivo de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), para ajudar aos governadores diante de greves das polícias estaduais. Dilma os chamou para uma série de tarefas civis - o Exército foi chamado até para recapear pista do aeroporto de Guarulhos. Esse é o tipo de irresponsabilidade absurda das lideranças civis. E os militares passam a gostar disso. Eles dizem que é desvio de função, mas gostam de ter mais poder político, como qualquer organização. O governo do PT trouxe excessivamente os militares para dentro do governo e, ao mesmo tempo, brigou com eles via Comissão da Verdade. Tragicamente, se repetiram, com a organização militar, os problemas que Dilma teve com as organizações partidárias. Ela chamou 10 partidos para governar e brigou com quase todos. Fez a mesma coisa com militares.
Valor: Dilma foi torturada na ditadura. A esquerda foi consciente ao estimular a militarização?
Amorim Neto: Não, eles não tinham noção do que estavam fazendo. Isso tem a ver com um problema mais amplo: não há, na classe política brasileira, ao centro, à esquerda e à direita, uma reflexão sólida sobre o que fazer com as Forças Armadas. Houve um pragmatismo enorme de usar as Forças Armadas como ‘Bombril’, serve pra tudo. Tem problema na polícia do Maranhão? Manda o Exército. Tem desabamento no Espírito Santo? Manda o Exército. Não consegue recapear o aeroporto em São Paulo? Manda o Exército. Na Paraíba falta água? Manda o Exército. O que é isso! É uma irresponsabilidade. As Forças Armadas não são para isso. Qualquer problema que existe no Brasil e que tem a ver com a fraqueza das nossas capacidades estatais são chamadas as Forças Armadas. Resultado: as Forças Armadas voltaram a ser uma organização política fundamental para o regime democrático brasileiro, e isso veio concomitantemente ao colapso das organizações partidárias. Não houve reflexão nenhuma pelas grandes lideranças políticas civis do Brasil quando passaram a utilizar as Forças Armadas para tudo. Elas também são responsáveis pelo imbróglio que vivemos.
Valor: Cometemos erros na nossa transição democrática?
Amorim Neto: A transição brasileira foi bem-sucedida em vários aspectos, mas precisou de um grande pacto entre civis e militares, que implicou a anistia àqueles que perpetraram violações de direitos humanos. As Forças Armadas Brasileiras deixaram o poder em 1985 relativamente fortes, enquanto que na Argentina estavam totalmente desmoralizadas. A correlação de forças aqui era relativamente boa para os militares. Para mudar isso, precisaria de muita habilidade política, o que fizemos sob Fernando Henrique e Lula. A outra alternativa seria ser muito afirmativo em relação à necessidade da supremacia civil. Isso nossas lideranças partidárias nunca se empenharam para fazer. Por que as elites civis brasileiras têm tamanho desinteresse sobre o papel das Forças Armadas? É uma reflexão escassa. E o Itamaraty é parte deste problema, porque nossos diplomatas são alérgicos a qualquer discussão sobre a presença maior das Forças Armadas na política externa.
Valor: E os militares deveriam estar incluídos neste debate de política externa, democraticamente?
Amorim Neto: Sim, eles têm muito o que dizer. Hoje há problemas na América do Sul que exigem Forças Armadas preparadas. Temos o problemão da Venezuela, o êxodo venezuelano. Qual teria sido a melhor maneira de manejar os militares nos últimos 25 anos? Era ativar arenas institucionais em que eles têm um papel determinado pela lei. Exemplo: a convocação do Conselho de Defesa Nacional. Jamais foi convocado. Se fosse, nossos líderes conheceriam melhor a cabeça dos militares, e os militares conheceriam melhor a cabeça de nossos líderes. Nossos líderes políticos se tornaram alérgicos à questão militar. Se quisermos colocar os militares para fora da política depois de Bolsonaro, tudo terá que ser matéria de reflexão.
Valor: A falência da segurança pública fortaleceu a entrada dos militares na política pelo voto, e temos ainda as milícias. Essa conjuntura não vai interditar esse debate?
Amorim Neto: Não tenha dúvida disso. O debate vai ser dificílimo. Por isso tem que ser tema da campanha presidencial de 2022. Que poder político terá um presidente da República e seus aliados no Congresso para reverterem essa situação de militarização da política num regime democrático como o Brasil? É fundamental essa discussão pública, isso tem que chegar às lideranças políticas. Qualquer um que queira disputar com Bolsonaro, [João] Doria, [Luciano] Huck, Lula, tem que discutir isso. Se optarem por não discutir, pela estratégia de baixo custo, que é a padrão dos civis brasileiros para lidarem com questões militares, vamos continuar convivendo com os fantasmas do pretorianismo.
Valor: A invasão do Capitólio nos EUA suscitou um debate mundial. Há risco de Bolsonaro dar golpe com o aval militar?
Amorim Neto: Em dezembro de 2020, o general [Edson Leal] Pujol participou de teleconferência para discutir os planos do Exército para os próximos 10, 20 anos. Falou, de forma muito suave, que a política não deve entrar nos quartéis. Foi a mensagem mais clara que uma liderança institucional das Forças Armadas deu de que o Alto Comando do Exército não vai se associar a aventuras golpistas. Mas resta a questão dos subordinados. Minha interpretação é que o Exército é radicalmente profissional, e a disciplina vai prevalecer. Se o Alto Comando não quer aventura, os escalões intermediários e inferiores não vão entrar nessa. Essa mensagem foi captada pelo bolsonarismo e não à toa passaram a testar outra instituição. Estamos vendo agora o debate sobre a perda de controle das Polícias Militares pelos governadores. O populismo autoritário de extrema direita, a la Trump, vai testando todas as instituições, Congresso, Judiciário, Forças Armadas, polícia... Se perde aqui, tenta acolá. Se a proposta de maior autonomia das polícias militares é aprovada no Congresso, Bolsonaro e o bolsonarismo ganham. Se é derrotada, ele vai dizer: ‘eu tentei, estou sempre junto dos meus seguidores, quem me derrotou foi a velha política, as elites’. Acho que via militar está bem estreita e fechada agora, depois do pronunciamento do general Pujol. E soube que a Marinha mandou informar a lideranças do Congresso que também está fora disso.
Valor: Há chances de esses projetos das polícias prosperarem ou vai depender da eleição no Congresso?
Amorim Neto: Dificilmente passará, inclusive porque o Exército não gostou da ideia. É um desafio ao monopólio e autoridade, sobretudo do Exército, no que diz respeito ao uso da força legítima dentro do território nacional. Para Bolsonaro ser derrotado não é um problema. O fundamental é marcar posição perante o seu eleitorado radical. E tem o segundo benefício: desvia a atenção da má-gestão do governo na pandemia, educação, etc.
Valor: Parte da cúpula militar está ao lado de Bolsonaro. Como ter tanta certeza sobre o que farão?
Amorim Neto: Essa incerteza persistirá até o final do governo. Isso é um grande ativo na mão do Bolsonaro, a incerteza permanente da classe política, do jornalismo, da academia a respeito de para onde vão as Forças Armadas.
Valor: Por que os militares foram para o governo Bolsonaro?
Amorim Neto: Há décadas os militares reclamam de salários baixos e parcos investimentos, além de instabilidade nos gastos de Defesa. Quase todo o orçamento da Defesa vai para custeio, salários. É papel deles reduzir o gasto com pensões e salários, e o que vimos no governo Bolsonaro foi justamente o contrário. E a questão do anticomunismo sempre esteve presente no coração e nas mentes das Forças Armadas, desde a década de 30. Bolsonaro foi hábil ao pegar essa força subconsciente do anticomunismo militar brasileiro e adequá-la ao século 21, chamando-a de antipetismo. E a corrupção sempre foi o catalisador desse anticomunismo e salvacionismo militar.
Valor: Não há chance de impeachment com a militarização?
Amorim Neto: Vai depender muito do resultado da eleição da Câmara em fevereiro. Se o Arthur Lira (PP-AL) vencer, não teremos impeachment. Bolsonaro continua competitivo, mesmo com as perspectivas negativas da economia em 2021 e 2022. Isso porque a oposição continua muito fragmentada, a esquerda continua brigando entre si. A esquerda, se quiser derrotar Bolsonaro em 2022, terá que se unir para apoiar um candidato de centro. Isso é simples e óbvio, mas essa discussão ainda está muito atrasada.