Forças Armadas

Carlos Pereira: A improvável frente de oposição

Busca por protagonismo faz parte do DNA de partidos, e importa na escolha da trajetória política

Na ausência de blocos e troças carnavalescas nas ruas nesse carnaval da pandemia, o que predominou foi a melancolia de seus foliões. Por outro lado, para diminuir o vazio no coração dos seus brincantes, o que não tem faltado são partidos querendo cacifar seus candidatos a presidente para as eleições de 2022. 

Insatisfeitos com o governo de Jair Bolsonaro têm defendido a necessidade de formação de uma frente suprapartidária de oposição ao presidente. O objetivo seria viabilizar uma candidatura única capaz de derrotá-lo. Acredita-se que se os partidos de oposição se apresentarem pulverizados, cada um com seu “bloco” (ops! candidato) à presidência, Bolsonaro teria maiores chances de se reeleger. Mas a viabilidade de uma frente única de oposição é improvável. 

Partidos políticos em ambiente institucional que combina presidencialismo e multipartidarismo vivem um dilema de difícil resolução: seguir uma trajetória protagonista/majoritária, ao apresentar um candidato à Presidência; ou jogar o jogo de partido coadjuvante, tentando exercer o papel de pivô ou de mediano do Legislativo. 

Se o partido for vencedor na trajetória majoritária certamente terá acesso aos maiores retornos políticos. Mas se perder, terá que estar preparado para comer “o pão que o diabo amassou” e amargar a condição de majoritário perdedor com os piores retornos pelos próximos quatro anos, nutrindo a expectativa de se tornar majoritário vencedor nas próximas eleições. Por outro lado, se o partido decidir seguir a trajetória de legislador mediano e ocupar a posição de âncora no Legislativo, pode auferir retornos intermediários entre os obtidos pelos majoritários vencedor e perdedor. 

A escolha de uma determinada trajetória não é uma camisa de força. Partidos podem mudar de trajetória, mas estas mudanças geram custos não triviais. 

Por exemplo, um partido pivô no Legislativo que decide mudar de trajetória para jogar o jogo majoritário corre o risco de perder a próxima eleição presidencial e assim obter uma recompensa menor do que obteria se tivesse continuado a jogar o jogo coadjuvante. Da mesma forma, se um partido trilha a trajetória majoritária e fracassa, pode mudar de trajetória e começar a jogar o jogo do partido coadjuvante. Mas, dependendo de quão amarga e competitiva foi a campanha presidencial, pode levar mais tempo para que o perdedor majoritário envergonhado construa pontes de confiança e de cooperação com o vencedor majoritário. 

racha ocorrido com o DEM na eleição do Presidente da Câmara expressa muito bem esse dilema. Rodrigo Maia tentou alçar o DEM a um voo rumo ao protagonismo, talvez com a candidatura de Luciano Huck à presidência. Mas a bagagem pesada — sua trajetória mediana — obrigou o partido a uma aterrissagem de emergência num descampado no interior da Bahia... A maioria do DEM, sob a liderança de ACM Neto, simplesmente preferiu continuar na sua trajetória coadjuvante. Os riscos e custos de mudança de trajetória seriam altos demais. O mesmo comportamento se espera do MDB, PSD, PTB, PSB, PC do B e aos partidos que compõem o Centrão

Por outro lado, partidos como o PT e PSDB, que têm trilhado de forma consistente a trajetória majoritária desde o seu nascimento, seja na condição de perdedor ou de vencedor, fatalmente terão candidatos à presidência em 2022. Raciocínio semelhante a aplica a partidos como PDT, PSOL, Novo e Rede. 

Partidos têm muita dificuldade de abrir mão de suas ambições individuais, ainda que legítimas, e se engajar em um projeto coletivo que, supostamente, beneficiaria a todos. A busca pelo protagonismo faz parte do DNA desses partidos, daí ser improvável a mudança de trajetória.

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)


Ricardo Noblat: Pacheco dá tempo ao governo para barrar a CPI da pandemia

Depende do preço a ser pago

Depois de protocolado há mais de 10 dias, o requerimento de criação da CPI da Pandemia continua com o mesmo número de assinaturas, cinco a mais do que o necessário para que fosse instalada. Mas Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, que posa de independente do governo, só observa.

Por que será? Ora, porque ao governo tudo interessa, menos uma CPI que investigue a fundo sua responsabilidade na tragédia que já consumiu quase 250 mil vidas, deixando pouco mais de 10 milhões de brasileiros doentes. A situação tende a piorar porque falta vacina e sobre incompetência no Ministério da Saúde.

Pacheco está dando tempo ao governo para que consiga convencer pelo menos 6 senadores a retirarem suas assinaturas do requerimento. Não será impossível que isso aconteça dado o sortimento de cargos e outras sinecuras a serem oferecidas aos mais receptivos. Mas não será fácil.

Houve um senador que morreu contaminado pelo vírus. Senador que viu a mãe entubada. Além de senadores que perderam muitos amigos.

Bom dia, Venezuela! Ou bom dia, Brasil, um país sem sossego!

Perguntas à espera de respostas

Dê-se crédito ao presidente Jair Bolsonaro. Quando se sabe o que quer e não se perde o foco, demitir o presidente da maior empresa da América Latina, com ações negociadas nas principais bolsas de valores do mundo, é tão fácil como passear de jet-ski em qualquer parte do litoral do país para atrair devotos.

O economista Roberto Castelo Branco foi demitido por meio de um curto post nas redes sociais. No próximo mês, completaria dois anos à frente da Petrobras. Os acionistas estavam felizes com sua administração. Ele navegava em mar de almirante até que Bolsonaro acordou um dia e decidiu mandá-lo embora.

Simples assim. O preço do diesel havia sido reajustado porque variava de acordo com o câmbio e o preço do barril de petróleo. É assim nas chamadas economias de mercado. Quando não é, dá no que aconteceu com a Venezuela, onde o ex-presidente Hugo Chávez interveio na Petrobras de lá e depois disso ela quebrou.

Bolsonaro sempre se apresentou como o inverso de Chávez e do seu sucessor Nicolás Maduro. Serviu ao ex-presidente Donald Trump como uma espécie de posto avançado contra o chavismo por essas bandas. Na verdade, revela-se tanto ou mais populista do que Chávez e Maduro. E, como eles, conta com apoio militar.

A Petrobras perdeu em 24 horas R$ 28 bilhões de seu valor. Hoje, tão longo abra a Bolsa de Valores, perderá muito mais com a desvalorização do preço de suas ações. A levar-se a sério o que disse Bolsonaro quando demitiu Castelo Branco, “o mercado fica irritadinho com qualquer negocinho”, e ele pouco liga.

Na ocasião, saiu-se com a mais fina pérola da demagogia ao afirmar que os operadores financeiros não “sabem o que é passar fome”. Ele e seus filhos não sabem, todos criados com recursos da União. Como não querem abrir mão da vida boa que levam, a saída é perpetuar-se no poder enquanto der. Reeleição! Reeleição!

Os caminhoneiros ameaçavam com uma greve em protesto contra o reajuste do diesel? Adeus, Castelo Branco, que levava a sério a política de recuperação da Petrobras desde quando ela quase afundou no período dos governos do PT. Nomeie-se para o cargo mais um militar acostumado a bater continência ao chefe.

O general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa do presidente Michel Temer, será a voz do dono e não o dono da voz. Como é o general Eduardo Pazuello, notável especialista em logística, ministro da Saúde. Como são todos os militares que em troca de polpudos salários se tornaram serviçais do capitão.

Missão dada é missão cumprida. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Quem desobedece ou ensaia discutir ordens perde o emprego. Foi o caso do general Rego Barros, porta-voz de um presidente que não carece de quem porte sua voz. Foi também o caso do general Santos Cruz, vítima do gabinete do ódio.

A semana começa com uma série de perguntas nervosas. Se Luna, como garantem os apagadores de incêndio da presidência da República, não mudará a política realista de preços da Petrobras, ora, diabos, então por que Bolsonaro despachou Castelo Branco? Só para engabelar os caminhoneiros por mais algum tempo?

A troca de comando na Petrobras significa o rompimento definitivo de Bolsonaro com os fundamentos do liberalismo econômico ou mais uma vez ele recuará? Bolsonaro, agora, quer meter o dedo no setor de energia elétrica. Foi o que prometeu. E Paulo Guedes, ministro da Economia, até quando ficará onde está?

Bom dia, Venezuela! Ou bom dia, Brasil, de um presidente tresloucado que não concede ao país um só dia de calma!


Demétrio Magnoli: Bolsonaro 3.0

Quando Bolsonaro anunciou a troca do presidente da Petrobras, recordei as conversas que mantive com figurões do “mercado” no intervalo entre os dois turnos da eleição presidencial de 2018. A turma da alta finança deplorava as ideias políticas do candidato nostálgico pelo AI-5, mas confessava que ele teria seus votos: afinal, diziam, Paulo Guedes garantiria o triunfo de uma política econômica liberal. Pobres liberais ricos de miolo mole...

O governo Bolsonaro original exibia duas faces. Um lado do rosto era Olavo de Carvalho: o reacionarismo delirante de uma ultradireita mística, que almeja restaurar passados diversos, nossos e estrangeiros. O lado complementar era Guedes: um liberalismo econômico de ângulos retos, inculto e inconciliável, extraído de cartilhas de autoajuda para banqueiros de investimento.

Sob pressão do inquérito sem fim do STF, parte da mobília foi lançada fora do caminhão. A famiglia acima de todos! A espada erguida pelos juízes sobre a cabeça dos filhos do presidente dissolveu as lealdades frágeis. O espectro do impeachment fez o resto. Bolsonaro livrou-se, silenciosamente, do “núcleo ideológico”, ou seja, das camarilhas de idiotas e oportunistas que surfaram a onda da “nova política”.

O governo Bolsonaro 2.0 foi inaugurado pelo abraço úmido do Centrão. No lugar da revolução reacionária, a “velha política” de resultados. As eleições ao comando da Câmara e do Senado — em especial, a derrota de Rodrigo Maia — mostraram que a geringonça poderia funcionar. Guedes, porém, continuava lá, no fundo do palco, encenando truques vulgares à luz pálida de um holofote com filtro.

A gestão responsável de Roberto Castello Branco à frente da Petrobras provocou a segunda ruptura. De olho no preço dos combustíveis e, principalmente, na chantagem perene dos aliados caminhoneiros, Bolsonaro vestiu a armadura de Dilma Rousseff. A empresa pública de capital aberto será convertida, uma vez mais, em loja de conveniência do Planalto. “Um manda, outro obedece”: um general de pijama transformará os piores instintos presidenciais em política de preços da estatal petrolífera.

O governo Bolsonaro 3.0 foi inaugurado na sexta-feira fatídica da confirmação parlamentar da prisão de Daniel Silveira e da defenestração presidencial de Castello Branco. No Congresso, o Centrão deu as costas ao que resta do “núcleo ideológico” e cantou as glórias eternas da democracia, ignorando o pedido de clemência de um valentão de araque que borrava as calças. No Planalto, o presidente bombardeou o castelo já arruinado de Guedes, humilhando publicamente o fiador de seu governo junto ao “mercado”.

Bolsonaro 3.0 consagra uma aliança nem tão excêntrica assim, entre o fisiologismo do Centrão e o corporativismo militar. Numa ponta, situa-se a base de parlamentares sem preferências ideológicas, mas extensa prática no esporte da captura dos fragmentos lucrativos da máquina estatal. Na ponta oposta, um “Partido Militar” que, simulando falar o idioma da ordem e progresso, busca obter privilégios pecuniários para os homens em armas e empregos públicos de prestígio para generais e coronéis da reserva. O retrato da aliança é o general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, plenipotenciário do presidente no balcão de negócios do Congresso.

A esta altura do jogo, a decisão que Guedes rumina só tem relevância simbólica. O amuleto eleitoral de Bolsonaro, falsamente exibido como czar da Economia, pode renunciar, para fingir que leva para casa o falso brilhante de sua dignidade, ou permanecer como vaso ornamental em meio aos destroços de um jardim clássico. Ninguém mais se importa.

O estelionato eleitoral de Dilma Rousseff foi um experimento na mentira. A presidente que trocou o “novo paradigma macroeconômico” pela ortodoxia de Joaquim Levy renunciava a suas convicções para tentar sobreviver à tempestade. O estelionato eleitoral de Bolsonaro é, pelo contrário, um exercício de restauração da verdade. O presidente fecha o círculo, retornando a suas raízes. Roberto Schwarz tinha razão: no Brasil, o liberalismo não passa de uma ideia fora de lugar.


Vera Magalhães: Militares acima de tudo, Centrão acima de todos

Os últimos meses causaram fissuras profundas na aprovação de que Jair Bolsonaro gozava junto a alguns dos grupos responsáveis por levá-lo ao Planalto em 2018. Ele perdeu completamente os lavajatistas, está com a relação abalada com os fanáticos ideológicos e, diante da intervenção na Petrobras, vê abalada também a confiança (que parecia inesgotável) da elite econômica, composta por integrantes do mercado financeiro e o empresariado industrial e do agro.

Hoje, o governo Bolsonaro é composto basicamente por uma aliança entre o Centrão e os militares (incluindo aqui as polícias militares), uma combinação bastante esdrúxula e preocupante no que pode oferecer de riscos à democracia, em primeiro lugar, e a qualquer ilusão de que se vá promover algum ajuste fiscal.

Paulo Guedes é uma espécie de estranho nesse ninho. No fim de semana, o ministro da Economia permaneceu em silêncio obsequioso diante da intervenção com mão grande de Bolsonaro na Petrobras e o anúncio de que pretende fazer o mesmo com as tarifas de energia elétrica (Dilma, é você?).

Coube a Bento Albuquerque, o ministro de Minas e Energia que Bolsonaro vira e mexe ameaça demitir, tentar colocar panos quentes com os integrantes do Conselho da Petrobras, e à dupla dinâmica da Comunicação, Fábio Faria e Fábio Wajngarten, ir para as redes sociais dizer que estava tudo bem e que o que o presidente fez na Petrobras é apenas um gesto normal numa economia de mercado. O que todo mundo sabe que não, não é.

A tentativa dos dois é evitar o esperado strike nas ações da empresa e nos demais indicadores na abertura dos mercados, nesta segunda-feira. Mas o fato de terem sido eles a sair em defesa do gesto de Bolsonaro mostra que sim, o Centrão ganha espaço mesmo em áreas que antes não se poderia supor. Afinal, o que Faria, um expoente do grupo e responsável por quebrar as barreiras que havia entre o capitão e esses partidos, tem a dizer sobre algo tão complexo quanto a gestão de uma empresa de economia mista?

O avanço do Centrão é tal que ninguém tenta mais nem disfarçar. Em entrevista ao GLOBO, o presidente da Câmara, Arthur Lira, não usou de meias palavras: o objetivo do grupo é ter o controle do Orçamento.

Diante disso, da militarização inclusive de postos-chave da área econômica e da evidência de que Bolsonaro descambou de vez para o populismo reeleitoreiro, resta a Paulo Guedes a pergunta que fiz aqui na sexta-feira: até quando, ministro?

A pergunta não se aplica só a ele. Sondagem da XP com investidores institucionais no fim de semana mostrou a esquizofrenia que reina no mercado: mesmo 80% dizendo que Bolsonaro voltará a intervir na economia, 76% esperam a continuidade da política fiscal, como se isso fosse um fator de permanência da confiança. Mas qual política fiscal quando o que se decide é uma nova cláusula de calamidade que permita pagar o auxílio emergencial (absolutamente necessário, mas que não se encaixa nesse discurso) e o Centrão se prepara para tomar conta do Orçamento?

Da mesma forma, outros agentes institucionais, inclusive o Conselho da Petrobras, assistem a cada avanço de Bolsonaro na supressão da democracia e ampliação de seus poderes e da presença de militares em lugares que nada têm a ver com sua missão constitucional e fazem o mesmo balé: se chocam, ameaçam reagir, mas cedem. Cedem sempre.

A cada concessão a fatos como a nomeação do general Joaquim Silva e Luna para a empresa é uma casa que Bolsonaro avança num tabuleiro que leva a 2022. Quando se tentar reagir a alguma dessas investidas, o presidente estará fortalecido demais e com o controle de áreas que poderão dar a ele o que nem mais esconde: a possibilidade de ao menos tentar "mudar o regime", como ele deixou claro que gostaria de fazer em mais uma fala sincericida neste fim de semana.


William Waack: Divisor de águas?

É tudo muito diferente daquela vez quando a Câmara proibiu que um deputado fosse processado pelo regime militar

A história que se repete para nós não é uma farsa, tragédia, nem sequer uma rima tem. Em 1968, o AI-5 foi decretado para punir uma Câmara dos Deputados que impedira que fosse processado um deputado que defendia liberdades cerceadas pelos militares no poder. A atual Câmara dos Deputados – depois de uma ditadura, uma redemocratização e uma Constituição – vai se ocupar da situação de um deputado que usa das liberdades reconquistadas por gerações de brasileiros para propor acabar com essas liberdades. 

Do ponto de vista do estado de direito e do funcionamento de suas instituições era mais fácil então identificar onde estava o “bem” e o “mal”. Não, não é a questão da “liberdade de expressão” consagrada na imunidade parlamentar: essa proteção não é absoluta nem existe para a prática de delitos penais e o incitamento do golpe e destruição da ordem democrática. O pano de fundo muito mais preocupante é o da legitimidade das instituições envolvidas. 

Começa pelo STF. Uma parte relevante da “insegurança jurídica” que caracteriza as relações na sociedade brasileira se deve à atuação política desse órgão. E do entendimento, entre seus integrantes, de qual seria o melhor efeito político ao tomarem decisões que fizeram da Constituição (que cabe ao STF zelar) uma questão de interpretação dependendo das circunstâncias do momento. Com ministros dando rasteiras em ministros. 

Essa noção (a da instabilidade causada por canetadas de magistrados), mais a situação de caos social com a greve dos caminhoneiros, é o que estava na raiz do “pronunciamiento” em 2018 do então comandante do Exército, general Villas Bôas. Na prática, o coletivo do STF aceitou o que dizia o oficial. Naquele mesmo ano assumiu um novo presidente da Corte e, num entendimento peculiar com o próprio general, aceitou-se como um dos principais assessores do presidente do STF quem até ali fora o chefe de Estado-Maior do Exército (e hoje é o ministro da Defesa). Tudo em nome da pacificação e estabilização da atmosfera política. 

A franja aloprada do bolsonarismo, eleita com expressiva votação na onda disruptiva daquele ano, dedicou-se desde sempre a atacar qualquer instituição ou nome entendido como obstáculo ou adversário do “mito”, em boa parte incentivada por ele mesmo. Para efeitos práticos, foi acompanhada por alguns militares que, de fato, passaram a enxergar no STF um tolhimento inconstitucional dos poderes do chefe do Executivo. Até ele entender-se prazerosamente com o “Centrão”, esse velho conjunto de forças políticas em parte conduzido por gente notória por colidir com a ética, a moral e o Código Penal. 

Legislativo brasileiro, a quem cabe a relevante decisão política sobre o deputado aloprado bolsonarista, vem perdendo qualidade e sofre com extraordinária fragmentação. São resultados muito evidentes de décadas de desgaste do sistema político. No topo desse desgaste figura exatamente a questão da representatividade, ou seja, do distanciamento entre quem elege e quem foi eleito – como ocorre com outros fenômenos do populismo moderno (como Trump), há mais do que um grão de verdade na denúncia que esses movimentos fazem “disso tudo que está aí”. 

Em 1968, a decisão da Câmara de proibir que um deputado fosse processado pelo regime militar foi um divisor de águas na nossa história política. Não é o que se prenuncia agora, pois a palavra de ordem em Brasília é “acomodação”. Fora os estridentes aloprados e suas redes sociais, não há forças relevantes dispostas a partir para qualquer coisa remotamente parecida a um tudo ou nada. Os militares se acomodaram no governo, que se acomodou com o Centrão, empenhado desde sempre em acomodar seus interesses às custas dos cofres públicos, por sua vez esticados ao limite para acomodar as visões antagônicas de garantir ajuda emergencial e respeitar o teto de gastos. 

Todos confortáveis com a ideia de que o próximo embate é só para 2022. 


Elio Gaspari: Villas Bôas contou, reviu e errou

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas. Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio.

Está nas livrarias “General Villas Bôas: Conversa com o comandante”. É o resultado de 13 horas de entrevistas do professor Celso Castro com o general Eduardo Villas Bôas, que comandou o Exército de 2015 a 2019. O texto foi revisto pelo general até maio de 2020 e devolvido com acréscimos que engordaram o livro em 30%.

“VB”, como é chamado pelos colegas, rememora sua vida, da infância de Cruz Alta aos dias tensos do impedimento de Dilma Rousseff e da eleição de Jair Bolsonaro.

Ele tratou do seu famoso tuíte de 2018, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal (“um alerta, muito antes que uma ameaça”) e do agradecimento que Bolsonaro lhe fez pouco depois de ter sido empossado:

“Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por estar aqui. Muito obrigado, mais uma vez.”

O general explicou: “Morrerá entre nós! Garanto que não foi um tema de caráter conspiratório.”

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas.

Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio. Ele conta:

“O presidente Sarney relata que, após a morte de Tancredo Neves, houve uma reunião para deliberar como se processaria a nova sucessão. O deputado Ulysses Guimarães tentou impor sua posição que consistia na realização de um novo pleito. O ministro Leônidas (general Leônidas Pires Gonçalves) posicionou-se no sentido de que, conforme a legislação vigente, o cargo de presidente caberia ao senador Sarney (que havia sido eleito para a vice-presidência). Ato contínuo, voltou-se para ele, prestando uma continência disse: ‘Boa noite, presidente.’ Com seu arbítrio, o fato estava consumado, o que assegurou uma transição sem percalços”.

Sarney nunca relatou isso. Ele vestiu a faixa na manhã de 15 de março de 1985, e Tancredo só morreu no dia 21 de abril.

As incertezas com relação à posse do dia 15 foram desencadeadas na noite da véspera, quando Tancredo foi levado para o Hospital de Base de Brasília, para uma cirurgia de emergência. A posse estava marcada para horas depois.

Sarney chegou ao hospital às 21h30m.

Nas suas palavras:

“Lá encontro Ulysses. Tenho os olhos marejados. Rasga-me a alma o sofrimento de Tancredo. Ulysses me desperta ríspido: ‘Sarney, não é hora de sentimentalismos. Nossa luta não pode morrer na praia. Temos de tomar decisões. Você assume amanhã, como manda a Constituição, na interinidade do Tancredo.’

‘Não, Ulysses, assume você. Só assumo com Tancredo.’

‘Você não pode acrescentar problemas aos que estamos vivendo. É a democracia que temos de salvar.’”

O general Leônidas, ministro do Exército escolhido por Tancredo, jantava na Academia de Tênis quando soube que o presidente eleito estava no hospital. Foi para lá defendendo a posse de Sarney. Conseguiu uma gravata emprestada e seguiu com uma pequena comitiva de políticos para um encontro com o chefe da Casa Civil, professor Leitão de Abreu. Sarney ficou no hospital e depois foi para casa.

Leitão estava em dúvida (ou fingia estar em dúvida), se deveria ser empossado o vice ou o presidente da Câmara (Ulysses). Nesse encontro Ulysses e Leônidas queriam a posse do vice-presidente. Fernando Henrique Cardoso testemunhou a cena. Ela aconteceu nas primeiras horas da madrugada do dia 15. Àquela altura, achava-se que em alguns dias Tancredo estaria recuperado.

Às 3h da madrugada tocou o telefone na casa de Sarney. Era o general Leônidas, que começou a conversa com um “boa noite, presidente”. Sarney repetiu que não queria assumir, e Leônidas disse-lhe que “não temos espaço para erros”. Despediu-se com outro “boa noite, presidente.”

A cena contada por Villas Bôas nunca aconteceu. Tancredo não estava morto. Ulysses nunca quis uma nova eleição e sempre defendeu a posse de Sarney. O general Leônidas era formal, mas não dava continência falando ao telefone.

O Lavajatismo de Bretas

Enquanto o Supremo Tribunal Federal resolvia o destino das conversas promíscuas de procuradores de Curitiba, algumas das quais envolvem o ex-juiz Sergio Moro, o ministro Gilmar Mendes dava uma entrevista a Felipe Recondo e Fábio Zambeli. Nela, descascou as impropriedades praticadas durante a Operação Lava-Jato e perguntou:

“Como nós chegamos até aqui? (...) O que nós fizemos de errado para que institucionalmente produzíssemos isso que se produziu. (....) Sabiam que estavam fazendo uma coisa errada, mas fizeram.”

Gilmar reconheceu as limitações do Judiciário, condenou a “blindagem” com que a imprensa protegeu a turma da Lava-Jato e foi ao essencial: “O que nós devemos fazer para evitar que esse fenômeno se repita?”

Nesse mesmo dia, o juiz Marcelo Bretas, lavajatista do Rio de Janeiro, ouvia o ex-governador Luiz Fernando Pezão. A certa altura, Pezão disse ter certeza de que seu parceiro Sérgio Cabral e dois de seus colaboradores haviam combinado as versões de suas delações enquanto estavam na cadeia.

Pezão estava no meio do seu raciocínio quando o procurador Carlos Aguiar interrompeu-o, dizendo que ele estava fazendo “juízo de valor sobre as colaborações”.

Vá lá, porque é conhecido o espírito de corpo do Ministério Público, mas o juiz Bretas entrou no diálogo, informando a Pezão que não lhe cabia, como testemunha, avaliar se a colaboração “é justa ou correta”. Vá lá, juízes adoram dar aulas, mas Bretas foi adiante:

“É preciso ter cuidado quando se afirma que certa irregularidade aconteceu, porque é preciso provar.”

Em seguida, Pezão mudou o tom.

O repórter Athos Moura noticiou o fato. O que aconteceu?

Nadinha, pois, tomando cuidado, chegara-se àquilo.

Faz tempo que se chega.

Em 1974, quando Elzita Santa Cruz de Oliveira procurava seu filho Fernando, escreveu cartas a chefes militares contando seu caso, e um tenente-coronel acusou-a de caluniar o Exército, pois “seria desonrar todo nosso passado de tradições, se nos mantivéssemos calados diante de injúrias ora assacadas contra nossa conduta de soldados da Lei e da Ordem que abominam o arbítrio, a violência e a prepotência”.

Meses depois, o mesmo tenente-coronel estava na sala do comandante do II Exército, general Ednardo D’Avila Mello, quando o ministro Sylvio Frota interpelou-o por que um oficial da Polícia Militar de São Paulo “tinha sido insultado e agredido a socos durante um interrogatório” no DOI.

Nas palavras de Frota:

“Não é possível, Ednardo, que isso aconteça! Você deve tomar enérgicas providências. É preciso mudar, logo, alguns dos oficiais que trabalham no DOI; substituí-los, porque estão ocorrendo exageros que não podemos admitir.”

Fernando, filho de Elzita, era o pai de Felipe Santa Cruz, atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Nunca foi encontrado.


Míriam Leitão: Três generais e uma desonra

A ida do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde sempre incomodou o Exército. O sentimento foi explicado por um oficial numa frase: “Qualquer que fosse o desempenho dele iria morrer gente e essas mortes poderiam cair sobre as Forças”. O general tem tido o pior desempenho possível, está sendo investigado e pode ter que responder a uma CPI. O general Eduardo Villas Bôas entregou ao pesquisador Celso de Castro da FGV uma informação explosiva: em 2018 ele não estava sozinho quando ameaçou o Supremo. Tudo foi feito junto com o Alto Comando do Exército. Ao aderirem à campanha e depois ao governo Bolsonaro, as Forças Armadas entraram num labirinto. Ainda não sabem a saída.

Villas Bôas revelou que o texto, no qual tentou intimidar o STF, foi escrito junto com o Estado Maior do Exército e depois enviado “para os comandantes de áreas”. Não foi um improviso inconveniente. Foi uma conspiração. Ninguém mostrou ao ministro da Defesa da época Raul Jungmann. O episódio ilustra que o poder civil, quando dirigiu o Ministério da Defesa, jamais se impôs.

Os fatos se passaram na terça-feira, 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército postou dois tuítes. Era véspera do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula. Não creio que o STF tenha decidido por causa desse pronunciamento, mas o relevante é que o objetivo do Exército foi mesmo ameaçar o Supremo. O general disse, na rede social, que restava perguntar às instituições “quem estava pensando no bem do país” e quem “estava preocupado com os interesses pessoais”. Era um ato de apoio à candidatura de Bolsonaro. Um segundo tuíte dizia que o Exército compartilhava o anseio dos cidadãos de bem “de repúdio à impunidade, de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia” e terminava alertando que estavam atentos às suas missões institucionais. Soou como uma ameaça. Era. Villas Bôas luta contra terrível doença terminal e se afastou de tudo. Preserva, contudo, extremo prestígio dentro das Forças Armadas. Seus atos e palavras sempre ecoaram.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, disse em entrevista ao “Estado de S. Paulo” que não se envergonha do que fez. Deveria. Ele estabeleceu um balcão de negócios no seu gabinete para comprar votos em favor dos candidatos governistas no Congresso. Ele foi para o governo ainda na ativa. Depois de algum tempo foi para a reserva, mas acha até hoje que se sacrificou por ter passado para a reserva antes da hora.

O governo, defendido pelos generais, protegeu os interesses familiares do presidente, estimulou o conflito social, feriu a Constituição, ampliou a impunidade dos investigados por corrupção. Fez o avesso dos valores defendidos na postagem de Villas Bôas. Mas isso o general não define como “facada nas costas”. A expressão ele guarda para falar da Comissão da Verdade. A comissão não puniu um único militar, apenas recolheu as lembranças das vítimas do regime violento. Como disse a ministra Cármen Lúcia em memorável voto, dias atrás, contra o suposto direito ao esquecimento, “minha geração lutou pelo direito de lembrar”.

O terceiro Eduardo dessa trinca, o ministro Pazuello está sendo investigado pela lista enorme de irregularidades e atos de má gestão no comando da Saúde. As mortes no Brasil foram em número muito maior do que seriam se houvesse uma gestão responsável. Basta lembrar Manaus, cidade onde ele estava na escalada da crise. A cidade sufocava e o ministro prescrevia cloroquina.

As Forças Armadas continuam vivendo uma dualidade. Há os militares profissionais que não gostam da mistura com o governo e acham que o presidente é que faz questão de usar as Forças como se fossem instituições que o apoiam politicamente. E há os que foram para o governo ocupar cargos e para “ter protagonismo”, como me disse um deles.

Por coincidência, os três militares citados aqui se chamam “Eduardo”, os três chegaram ao generalato, e um deles permanece na ativa. Ajudaram, com vários outros, a construir uma desonra para a instituição, apoiam o governo que tira dos militares a exclusividade em armas pesadas, que podem estar sendo usadas na formação de milícias de extrema-direita como as dos Estados Unidos. Mostraram ao país que topam tudo pelo poder.


O Estado de S. Paulo: Nas Forças Armadas, dinheiro público pagou de lombo de bacalhau a uísque 12 anos

Em representação à PGR, deputados detalham gastos de militares com alimentação e bebida

André Borges, O Estado de S.Paulo

O cardápio de iguarias consumidas pelas Forças Armadas não se limitou à aquisição de milhares de quilos de picanha e garrafas de cerveja ao longo de 2020. Os dados oficiais mostram que a dieta verde oliva também incluiu, no ano passado, a compra de itens como milhares de quilos de lombo de bacalhau – lombo, não o peixe desfiado, que é bem mais em conta –, além de uísques 12 anos e garrafas de conhaque.

As novas informações reunidas pelos deputados do PSB serão anexadas à representação que o partido fez à Procuradoria-Geral da República (PGR), para pedir esclarecimentos sobre os gastos alimentares das Forças Armadas, os quais incluíram a compra de mais de 700 mil quilos de picanha e 80 mil cervejas.

Os dados oficiais, obtidos a partir de informações que são repassadas pelos próprios militares ao Painel de Preços do Ministério da Economia, mostram que, no ano passado, foram aprovados processos de compra de 140 mil quilos de lombo de bacalhau, além de outros 9,7 mil quilos de filé do peixe salgado.

Em uma das compras registradas pelos militares, consta um pedido homologado pelo Comando da Aeronáutica, para aquisição de 500 quilos de lombo de bacalhau, em que o preço de referência usado pelo órgão público foi de nada menos que R$ 150 o quilo. Esses pedidos, uma vez homologados, ficam à disposição dos órgãos, para que façam suas compras com os fornecedores aprovados.

Muitos copos de uísques e conhaques também foram brindados com o uso do dinheiro público. O 38.º Batalhão de Infantaria, por exemplo, comprou dez garrafas do uísque Ballantine’s, mas desde que fosse com 12 anos de envelhecimento. O preço da garrafa proposto foi de R$ 144,13.

Já o Comando da Marinha preferiu adquirir 15 garrafas de Johnnie Walker, também com 12 anos de envelhecimento, o chamado “Black Label”. O valor que se dispôs a pagar para cada unidade foi de R$ 164,18.

Conhaques mais populares também entraram na lista do Batalhão Naval da Marinha. Em setembro do ano passado, o órgão aprovou o registro para compra de até 660 garrafas de conhaque das marcas “Presidente” e “Palhinha”, com preço unitário proposto de R$ 27,06.

“É um poço sem fundo. Quanto mais investigamos, mais absurdos e irregularidades encontramos. Se não bastasse o governo comprar picanha e cerveja, ainda tem o corte mais caro do bacalhau, uísque e conhaque e com indícios de superfaturamento”, diz o deputado Elias Vaz de Andrade (PSB-GO), que está entre aqueles que assinam a representação enviada ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para que investigue os gastos militares. “Além da PGR, eu e mais nove deputados do PSB vamos levar essas informações ao Tribunal de Contas da União. Também estamos discutindo propor a instalação da CPI das compras do governo na Câmara Federal.”

Defesa

A reportagem questionou o Ministério da Defesa sobre cada uma das novas informações. A pasta, no entanto, não se manifestou sobre esses dados até a conclusão desta reportagem. Na quinta-feira, por meio de nota, o ministério afirmou que “reitera seu compromisso com a transparência e a seriedade com o interesse e a administração dos bens públicos” e que “eventuais irregularidades são apuradas com rigor”.

Segundo o Ministério da Defesa, “existe sempre uma significativa diferença entre processos de licitação e a compra efetivamente realizada, cuja efetiva aquisição é concretizada conforme a real necessidade da administração”.

Assim, “é imprescindível que se faça essa segmentação adequada, quando se faz a totalização dos valores, interpretação e principalmente a divulgação pública destes dados, de modo a evitar a desinformação”, afirma o ministério.

De acordo com a pasta, “apresentar valores totais de processos licitatórios homologados como sendo valores efetivamente gastos constitui grave equívoco”, afirma a nota, referindo-se aos dados incluídos na representação. No documento apresentado à PGR, entretanto, os deputados exibem dados detalhados com a identificação da compra realizada e seu referido fornecedor.

Elias Vaz afirmou que se trata de processos já concluídos e com fornecedores escolhidos pelos militares. “Estamos denunciando esses processos licitatórios. Essas empresas tiveram suas propostas aprovadas, por esses valores. Há processos de compra concluídos e, inclusive, já efetivamente pagos. Todos eles foram homologados pelas Forças Armadas”, disse o deputado.

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Bernardo Mello Franco: A conversa do general

Um dia depois da posse, Jair Bolsonaro virou-se para o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, e fez um agradecimento público. “O que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, disse. Em entrevista ao professor Celso Castro, o general se negou a revelar o teor do diálogo com o capitão. Apesar da recusa, seu depoimento ajuda a entender a gratidão presidencial.

Dizendo-se contrário à participação dos militares na política, Villas Bôas usou a farda para impulsionar o candidato dos quartéis. Às vésperas da eleição de 2018, ele pressionou o Supremo a negar um habeas corpus a Lula. O ex-presidente foi preso, e Bolsonaro passou a liderar a corrida ao Planalto.

No livro da FGV, o general conta que seus tuítes foram “discutidos minuciosamente” com o Alto Comando. O relato envolve toda a cúpula do Exército no que o ministro Celso de Mello definiu como uma intervenção “pretoriana”, “inaceitável” e “infringente do princípio da separação de Poderes”.

Villas Bôas admite que agiu “no limite da responsabilidade”, mas indica que não se considera um golpista. “Tratava-se de um alerta, muito antes que uma ameaça”, informa. Em outra passagem, ele define o marechal Castello Branco, pivô do golpe militar de 1964, como um “legalista”.

A defesa da ditadura está na origem do ressentimento do general com o PT. Ele reconhece que Lula reaparelhou as Forças Armadas, mas afirma que os militares se sentiram traídos pela instalação da Comissão Nacional da Verdade.

Nomeado comandante por Dilma Rousseff, Villas Bôas revela que jantou com Michel Temer quando o então vice articulava o impeachment da então presidente. Depois do repasto, ele indicou um amigo de infância, o general Sérgio Etchegoyen, para chefiar o Gabinete de Segurança Institucional.

Em sintonia com Bolsonaro, o oficial esbraveja contra o “politicamente correto”, critica a luta antirracista e acusa o PT de promover a “destruição moral do país”. Mas é só elogios a Temer, que foi alvo de três denúncias de corrupção no exercício do cargo.

Sem corar, Villas Bôas descreve a conversa gravada por Joesley Batista como um mero episódio de “ingenuidade do presidente”. Em tantas décadas de estrada, Temer já foi chamado de muitas coisas. De ingênuo, deve ter sido a primeira vez.


Eliane Cantanhêde: Militares podem até lucrar com Bolsonaro, mas o ônus para as Forças Armadas é imenso

Militares podem até lucrar com Bolsonaro, mas o ônus para as Forças Armadas é imenso

A conta do mergulho na política e da adesão ao candidato e agora presidente Jair Bolsonaro começa a chegar para as Forças Armadas, obrigadas a explicar milhões de reais em chiclete e leite condensado e agora a defender seus churrascos em 2020, com 700 mil quilos de picanha e, como ninguém é de ferro, 80 mil cervejas puro malte. O preço foi bem salgado, R$84,14 o quilo da carne, R$ 9,80 cada cervejinha.

Também é desanimador os hospitais do Exército e da Aeronáutica bloquearem só para militares e deixarem vazios 72% (84 de 116) dos seus leitos, segundo o UOL, enquanto 276 pacientes de Covid aguardavam vagas ontem e 529 tiveram de ser “exportados” para outros Estados e o DF desde 15 de janeiro. Leito vazio? Pago com dinheiro público, mas só para militares? Coisa feia!

O vice Hamilton Mourão anunciou que a Operação Verde Brasil 2, prevista para até 2022, vai acabar em 30 de abril, com a retirada de militares das ações contra queimadas e desmatamentos na Amazônia. Com a volta desses contingentes às suas bases, serão mantidas as montanhas de chiclete e leite condensado? E as carnes nobres e o puro malte são para quem?

A sensação é de que a retirada foi uma puxada de tapete em Mourão. Indagado se foi um pedido (ou retaliação?) de Bolsonaro, Defesa e ou Comando do Exército, ele respondeu à coluna: “Fim da missão, apenas isso”. E, assim, após pisoteados pela “boiada” do ministro Ricardo Salles, o Ibama e o ICMBio, atualmente cheios de militares, vão retomar a dianteira na proteção da Amazônia, com Inpe, Polícia Federal e Polícia Rodoviária.

Não é exclusivo do Meio Ambiente, porque o capitão Bolsonaro levou generais para a Vice e todos os cargos relevantes do Planalto, expôs um general da ativa a vexame público na Saúde numa pandemia e encheu diferentes pastas – até a pobre Secretaria de Cultura – com militares. Toma lá, dá cá de cargos com político não podia, mas com militar e agora com Centrão é uma festa.

O resultado nem sempre é engrandecedor para as FA, particularmente para o Exército, como no caso do ministro Eduardo Pazuello, todo atrapalhado e respondendo à PF, ao MP e ao Congresso por falta de oxigênio e vacinas, excesso de cloroquina inútil, descaso com seringas, agulhas e testes de Covid. O risco é um general da ativa no foco de uma CPI da Pandemia (que pode chegar até aos 73 mil militares que receberam ilegalmente o auxílio emergencial).

Pazuello gosta de cantar de galo e o secretário-geral da Saúde, coronel Elcio Franco, entrou de mau jeito na guerra política de Bolsonaro com João Doria. Quando o governador anunciou a vacinação em janeiro, o militar chamou de “devaneio” e o acusou de “estar sonhando acordado”. E ainda ensinou: “Não será com discursos de ódio ou tendenciosos que serão encontradas soluções”. Pois é...

Em meio à confusão, vem aí um livro-entrevista em que o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas confirma que o Alto Comando participou diretamente da advertência (ou ameaça) que ele fez ao Supremo, em 2018, na véspera do julgamento de um habeas corpus contra a prisão do ex-presidente Lula.

Por essas e outras, as Forças Armadas são suspeitas de atuar politicamente para tirar Lula do páreo e dar a vitória a um capitão que dá poder a generais e empregos e reformas (previdenciária e administrativa) diferenciadas para militares, enquanto discursa num ato golpista com o QG do Exército ao fundo e sobrevoa outro em helicóptero militar e com o ministro da Defesa, general de quatro estrelas.

Bolsonaro lucra muito com essa parceria, mas o ônus de médio e longo prazos para as Forças Armadas, inclusive para sua imagem, tende a ser muito maior do que o bônus fugaz para dez, cem ou milhares de seus integrantes. A História dirá.


Reinaldo Azevedo: Versão de Villas Bôas é lixo golpista

Justificativa para tuítes que ameaçaram o Supremo está assentada numa mentira factual

O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, militar mais poderoso da Terra, enfrentou as delinquências de Donald Trump recorrendo à Constituição americana. Por aqui, um general da reserva resolve narrar, em tom que aspira ao pudoroso, a ameaça golpista que fez para intimidar o Supremo.

No dia 3 de abril de 2018, véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, escreveu no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem d e repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".Os que dele discordavam não eram "homens de bem". Comandar tanques corresponderia a ter razão. O general ainda distinguiu os que pensavam "no bem do País" dos que estariam preocupados "com interesses pessoais". Adivinhem em que lado ele se via. A propósito: quantas divisões tinha o adversário?Lembro: cinco dos seis ministros que votaram contra a concessão do habeas corpus foram indicados por Lula ou por Dilma. Três dos cinco favoráveis, por outros presidentes.

Villas Bôas concedeu um depoimento a Celso Castro, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV. A fala está condensada no livro "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante".

Não é exatamente novidade. O próprio militar já havia tratado do assunto em entrevista, mas fica ainda mais claro desta feita que seus tuítes ameaçadores reproduziam o pensamento do Alto Comando do Exército —ao menos é isso o que diz. Não havendo contestação, assim é. Querem passar um paninho na biografia do general e nas tentações golpistas?

Então fiquem com a versão de que, ao mandar um ultimato ao Supremo, Villas Bôas evitou coisa pior —quem sabe uma tentativa de quartelada, à revelia do Alto Comando, estimulada por pijamas inflamados. Conhecemos, desde Castello Branco, a cascata do militar honrado, que resiste à quebra da hierarquia, mas acaba cedendo a contragosto... A versão vale uma dose de cloroquina contra o coronavírus, ministrada por Eduardo Pazuello, general da ativa.

Uma mentira essencial constitui o pano de fundo do relato de Villas Bôas: a de que Lula poderia concorrer à Presidência se deixasse, então, a cadeia. Falso. Tivesse acontecido, tratar-se-ia apenas de cumprir o que dispõe o inciso LVII do artigo 5º da Constituição.

O petista continuaria inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. Ainda que elegível fosse, a suposta legitimidade da intervenção, à qual o militar pretende emprestar dimensão constitucional, emana de que título legal?

Estou enganado, ou ele pretende legitimar com as baionetas a leitura do artigo 142 da Constituição no esforço de impedir o cumprimento de disposição do artigo 5º, que é cláusula pétrea?

Os militares teriam seus motivos para tanto rancor: estavam revoltados com as conclusões da Comissão da Verdade —jamais um golpista sofreu qualquer prejuízo pessoal--; viam a Amazônia submetida à cobiça de organizações estrangeiras, consideravam a demarcação de terras indígenas um risco à soberania...Pouco me importam os fantasmas que povoam a imaginação criativa do golpismo. Fato: Lula foi o presidente que mais investiu no reaparelhamento das Forças Armadas desde a redemocratização. E desafio que se evidencie o contrário. A ideia de que se forjou um espírito antipetista num ambiente de penúria e de política entreguista (ao onguismo internacional) vale uma dose do vermífugo do astronauta.Não tenho apreço por quem me ameaça. Os tuítes de Villas Bôas marcaram o engajamento explícito das Forças Armadas na candidatura de Bolsonaro. Um dos generais do poder organizou uma lista de compra de votos para eleger o presidente da Câmara. Outro, da ativa, poderá, no fim de fevereiro, discursar sobre 250 mil cadáveres.

Seriam esses os "anseios dos cidadãos de bem?" O depoimento de Villas Bôas tem óbvio interesse histórico. Merece um lugar na prateleira do lixo golpista.


Ricardo Noblat: Livro de general é um alerta sobre a fragilidade da democracia

Para que a história não se repita

Com seu livro de memórias recém-lançado pela Fundação Getúlio Vargas, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército entre 2015 e 2019, atirou numa coisa e acertou em outra.

Se ele pretendeu reforçar a ideia de que as Forças Armadas não se metem em assuntos políticos pelo menos desde o fim da ditadura militar de 64, conseguiu exatamente o contrário.

Em abril de 2018, às vésperas de o Supremo Tribunal Federal aceitar ou não um pedido de habeas-corpus que poderia libertar Lula preso em Curitiba, Villas Bôas postou no Twitter:

“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

À época foi dito que Villas Bôas apenas refletia o ânimo dos seus companheiros de farda. Antecipava-se a possíveis manifestações raivosas de subordinados. Não queria perder o controle da tropa.

Por isso ou por aquilo, intimidado, o Supremo negou o habeas-corpus por 6 votos contra 5 e manteve a prisão de réu condenado em segunda instância. Lula continuou encarcerado.

Foi o general, que é portador da ELA, doença degenerativa do sistema nervoso, que procurou a Fundação Getúlio Vargas interessado em dar seu depoimento para a posteridade.

E o fez ao longo de 13 horas, repartidas em cinco dias, em conversa amena conduzida pelo professor e pesquisador Celso de Castro, autor de diversos livros sobre a temática militar.

Castro deixou-o falar sem contestá-lo nenhuma vez e sem pedir maiores detalhes sobre os fatos relatados. É de supor, portanto, que o general só falou o que quis, conforme planejado.

Villas Bôas conta que a mensagem postada no Twitter de advertência ao Supremo não foi obra exclusivamente sua, mas também do Alto Comando do Exército.

“Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse”, diz Vilas Bôas. Não diz que “coisa” era, nem como ela poderia se manifestar. Uma rebelião? Uma tentativa de golpe?

Mas como, se o Exército e as demais armas são apolíticos como diz e repete o general ao longo do seu depoimento? Como, se são fielmente cumpridoras do papel que lhes reserva a Constituição?

A primeira versão da mensagem foi escrita por seu estafe e sob sua orientação, sendo submetida depois aos integrantes do Alto Comando do Exército residentes em Brasília.

Em seguida, ela foi transmitida aos demais comandantes de área para que a endossassem ou sugerissem ajustes. Recebidas as sugestões, a mensagem ganhou sua redação definitiva.

Jair Bolsonaro respirou aliviado quando leu a mensagem no Twitter. Era deputado federal e há pelo menos dois anos estava em campanha como aspirante a candidato a presidente

Neste governo, Villas Bôas, general da reserva, é assessor do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República. Ao empossá-lo, Bolsonaro emitiu todos os sinais de que lhe é grato.

Por quê? Talvez porque Villas Bôas respaldou sua candidatura à reboque de generais e de soldados que já o apoiavam. Cada quartel foi uma célula de Bolsonaro, e não será diferente em 2022.

O chefe das Forças Armadas, segundo a Constituição, é o presidente da República. É ele, e somente ele, quem em nome delas pode falar sobre temas políticos de repercussão geral.

Aos comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, cabe falar sobre assuntos administrativos e aqueles diretamente afeitos aos cargos que ocupam.

A fala de Villas Boas não foi a de um chefe que se dirige aos seus subordinados. Foi um pronunciamento em nome do Exército e a propósito do momento político que o país atravessava em 2018.

Não faltou provocação (“Quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras?”). Nem ameaça (O Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”).

Militar não é igual a civil. O que os distingue não é só a farda que um veste e o outro não. Militar tem acesso a armas pesadas, pilota brucutu, maneja tanques e é treinado para matar.

O que um deles fala, soa diferente do civil que diga o mesmo. Porque um tem a força capaz de pulverizar literalmente quem quer que seja. O outro, só a força da palavra.

Não é apenas a saúde dos brasileiros que está ameaçada pelo vírus que o governo Bolsonaro ignorou o quanto pôde. A saúde da democracia segue sob ameaça.