Forças Armadas
Luiz Werneck Vianna explica, na RádioFAP, os riscos da crise militar para a democracia brasileira
Tema do segundo podcast da FAP, a crise causada com a saída simultânea dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica em função da demissão do ministro da Defesa Fernando Azevedo é inédita no país e provocou preocupação internacional
A queda do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e o pedido de demissão
dos comandantes das Forças Armadas acenderam alertas sobre os riscos para a democracia brasileira. Os chefes do Exército, Edson Leal Pujol, Marinha, Ilques Barbosa, e Aeronáutica, Antônio Carlos Bermudez, deixaram os cargos em 30 de março. A saída simultânea dos militares é inédita no país e provocou preocupação internacional.
Ouça o podcast!
Para discutir os desdobramentos da maior crise militar no governo desde 1977, o segundo podcast da RádioFAP conversa com o cientista social Luiz Werneck Vianna. Professor reverenciado Brasil afora, Werneck é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e autor dos livros Liberalismo e sindicato no Brasil, Democracia e os três poderes no Brasil e A Modernização sem o moderno, entre outros.
O programa de áudio é publicado em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, ncora, RadioPublic e Pocket Casts. O episódio
conta com áudios da TV Globo e BBC News.
O RádioFAP será publicado semanalmente, as sextas-feiras. O programa é produzido e apresentado pelo jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz, gerente de Comunicação da FAP.
Hamilton Mourão: O que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas
Que não se esqueçam de seus compromissos com a Pátria, que juraram defender
É bom que os brasileiros se preocupem com o que fazem, ou podem fazer, as suas Forças Armadas. Afinal, a sua segurança e, em última instância, a garantia da lei e da ordem dependem delas, para não falar no enfrentamento de situações de crise que ultrapassam a capacidade das agências governamentais e requerem o emprego da competência logística e organizacional das Forças singulares: Marinha do Brasil, Exército Brasileiro e Aeronáutica.
Hoje, no entanto, a sociedade brasileira espera algo mais de seus militares.
Desde antes da pandemia de covid-19, o Brasil vem enfrentando uma situação difícil causada pela postergação de reformas imprescindíveis – a tributária, a administrativa e a política – e pelo desvirtuamento da administração pública, atingida em cheio pela corrupção e pelo clientelismo político. Nas eleições de 2018 o País fez uma clara escolha pela condenação do maior caso de corrupção da História, pelas reformas que promovam a retomada do desenvolvimento e pelo combate à violência, compromissos deste governo com a sociedade brasileira.
Os militares que foram chamados a trabalhar no governo que se iniciou em janeiro de 2019 vieram tão somente participar – como cidadãos no pleno exercício de seus direitos e como profissionais de Estado capazes – do esforço de racionalização, efetividade e moralização da administração pública, em prol do soerguimento do País.
Para tarefa de tal monta pode parecer pouco o mero aporte de valores caros à profissão militar, como lealdade e probidade, e de competência técnica, requerida para qualquer função no serviço público. Mas é muito para um país que teve sua máquina administrativa aparelhada pela política partidária e, não raro, pela ideologia.
E é esse pouco, que é muito em termos de contribuição à administração pública, porventura tido por excessivo em termos numéricos, mas que, na verdade, é ínfimo se comparado às bateladas de cargos comissionados ou simplesmente inventados que incharam a máquina administrativa nos últimos governos, que vem prejudicando o entendimento do papel dos militares no Brasil, neste e em outros momentos.
Não é a presença de militares no governo que o define. Sempre houve e continuará a haver militares no governo. Estejam onde eles estiverem, na ativa ou na reserva, nos quartéis ou em repartições, os militares são cumpridores de suas obrigações e seus deveres. Se assim não fosse, o País viveria uma anarquia armada, incompatível com a democracia. E os militares simplesmente não seriam militares. A questão é outra.
As Forças Armadas são instituições de Estado, porque são regulares, permanentes, nacionais e se destinam à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes constitucionais, estando sob a autoridade do presidente da República, que é responsável perante os demais Poderes e a Nação pelas ordens que transmite a elas.
No que diz respeito aos militares, em qualquer país do mundo o que distingue as democracias das ditaduras são as ordens que lhes são dadas e, o mais importante, como eles lhes obedecem. Nas democracias, as ordens são legais e emitidas por quem de direito, sendo integralmente cumpridas na forma da lei. Fora disso, transita-se perigosamente entre a desordem e o autoritarismo. Políticos e soldados profissionais das grandes democracias já sabem disso.
Recentemente o mundo assistiu, com alguma perplexidade, à Junta de Chefes de Estado-Maior dos Estados Unidos, os comandantes das Forças Armadas norte-americanas, virem a público garantir a transição presidencial na maior democracia do mundo, em meio a contestações do processo eleitoral e aos tumultos que atingiram a sede do Legislativo em Washington, DC. Nenhuma democracia está livre de crises e os seus militares fazem parte da sua superação.
O presente ordenamento constitucional do Brasil é fruto de uma longa evolução desde a Independência, cujo bicentenário comemoraremos no ano que vem. Deixamos para trás um regime que não mais atendia às aspirações da cidadania, uma República calcada na fraude eleitoral, um federalismo de oligarquias e seguidas revoltas, revoluções, autoritarismos e ditadura que envolveram os militares. Goste-se ou não, foi o regime instalado em 1964 que fortaleceu a representação política pela legislação eleitoral, que deu coerência à União e afastou os militares da política, legando ao atual regime, inaugurado em 1985 e escoimado de instrumentos de exceção, uma República federativa à altura do Brasil.
Uma compreensão mais equilibrada e menos passional do passado do País pode nos ajudar a entender o presente e os caminhos que se abrem à nossa frente. Por tudo o que aconteceu ao longo da História do Brasil, a sociedade brasileira sabe que as Forças Armadas continuarão a cumprir rigorosamente suas missões constitucionais. Mas neste momento de dificuldades por que passa o País ela espera mais. Ela conta que seus militares, da ativa e da reserva, não se esqueçam dos seus compromissos com a Pátria que juraram defender, servindo-lhe com ou sem uniforme, ciosos de sua cidadania, orgulhosos do que fizeram e confiantes no que podem fazer de bom para o bem do País.
É o que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas.
VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Marcelo Godoy: Exército se vê vencedor da batalha com Bolsonaro, o 'capitão pitoresco'
Chamado de 'pitoresco' por Pujol, o presidente queria alguém que lhe fosse leal no comando da Força Terrestre, no fim, escolheu entre os 3 generais mais antigos
uma semana antes de ser demitido do Ministério da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva procurou o general Augusto Heleno. Revelou seu desconforto com o presidente por Jair Bolsonaro ter pela enésima vez se referido às Forças Armadas como sua guarda pessoal, como se a lealdade delas fosse à um líder e não à Constituição. Bolsonaro estava em plena campanha contra os governadores e as medidas restritivas para o combate à covid-19. Foi ao Supremo Tribunal Federal contra o toque de recolher, enquanto o deputado federal Vitor Hugo (PSL-GO) tentava obter para o capitão o domínio das polícias estaduais.
No sábado, dia 27, Bolsonaro esteve reunido no Alvorada. Seus interlocutores negaram que tivesse tratado da reforma ministerial. Só no dia seguinte ele teria decidido fazer a troca na Defesa, ainda que quase ninguém acredite que o presidente tenha resolvido em 24 horas montar uma complicada dança das cadeiras. O movimento na Esplanada congelou Brasília nos dias seguintes e fez com que os brasileiros incrédulos redescobrissem as listas de antiguidade dos oficiais generais, como não se fazia desde os anos 1970. Seu esboço, no entanto, começara a ser traçado muito antes.
Edson Leal Pujol só havia se tornado o comandante do Exército porque o general Augusto Heleno soube contornar a primeira intriga feita contra Pujol, ainda em 2018, quando ele dirigia o Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército. O general chamou a atenção do então candidato Bolsonaro sobre os extremos de seu comportamento e a forma como expunha as coisas. “Elas não se enquadram na figura de um candidato a presidente”. Pujol completou: "Bolsonaro tem uma personalidade muito pitoresca. Se ele perdesse um pouco dessa identidade, talvez não tivesse tantos eleitores."
A fala de Pujol despertou reações entre os oficiais engajados na campanha de Bolsonaro. Heleno pôs panos quentes usando o argumento de que era necessário garantir a unidade dos militares. O episódio, no entanto, ficou arquivado. Escolhido comandante por ser o oficial mais antigo – e o critério de antiguidade foi respeitado com as demais Forças – Pujol se esqueceu do que dissera naquela entrevista. Os generais pensavam então que tinham um governo para chamar de seu e obtiveram vantagens orçamentárias e salariais, além de milhares de cargos na Esplanada.
Bolsonaro, no entanto, nunca dissimulou o que sentia. Deixava claro o desconforto com Pujol toda a vez que este era elogiado pela imprensa em contraste com a reprovação que recebia. Lembrava-se de ter sido chamado de “pitoresco”. E se preocupava com cada notícia sobre os humores dos generais, escalando o general Luiz Eduardo Ramos para auscultar os colegas. Foi na passagem para a reserva do general Antonio Miotto que dois fatos curiosos aconteceram: o primeiro foi o ministro Ramos aparecer fardado na cerimônia e o segundo foi o cumprimento com o cotovelo que Pujol estendeu à Bolsonaro, que ficou com a mão no ar.
O vídeo com a imagem do general preocupado com a covid-19 diante do presidente da gripezinha foi compartilhado por muitos militares, inclusive generais da ativa – um deles chegou a postá-lo no Twitter após retirar a identificação de sua conta. Bolsonaro ficou irritado. Depois, em novembro, quando Pujol se manifestou contra a política nos quartéis, Bolsonaro fez questão de lembrar que o general só comandava o Exército por causa da tinta de sua caneta.
Enquanto arrumava mais uma pessoa para brigar, Bolsonaro assistia ao fracasso de Eduardo Pazuello na Saúde, o que levou o Exército a tentar se dissociar da gestão que levou cloroquina em vez de oxigênio à Manaus e atrasou a vacinação no País. A Força Terrestre exibia seu plano para se manter aberta por meio do uso de máscaras e distanciamento social, além do álcool em gel, tudo o que Bolsonaro e seus ministros se recusavam a fazer.
A estratégia de tratar Bolsonaro como pitoresco não bastava para salvar reputações. Exemplo disso era o ministro da Defesa. Mesmo que Azevedo e Silva tenha em nota defendido a preservação das Forças Armadas como instituição de Estado, seu papel na crise foi questionado até por colegas, como o general Francisco Mamede de Brito Filho. "Participou do famigerado tuíte do general Villas Bôas. Foi assessor de Toffoli em circunstância questionável. Permitiu militares da ativa em cargos civis." E concluiu: "Fica-se a imaginar o que ele teria preservado. É preciso vir a público com a verdade."
A verdade é que Bolsonaro foi o escolhido pelos generais como candidato em 2018. Quase todos o conheciam, pois haviam sido contemporâneos de academia ou mesmo colegas de turma, como Pujol, Paulo Humberto Oliveira, Mauro Cesar Cid e Carlos Alberto Barcellos. Sabiam de seu passado no Exército e de seu comportamento no Congresso. Apesar disso, havia euforia com o Cavalão. Basta consultar – se alguém as guardou – as mensagens daquela época no grupo de WhatsApp Aman 77. Raros se opunham à ideia de tê-lo como presidente e quem dizia isso publicamente era atacado pelos colegas.
O general Otávio do Rêgo Barros tornou-se o porta-voz do novo governo. Fora o responsável pela comunicação do comandante Villas Bôas no momento do polêmico tuíte às vésperas do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um ano depois de deixar o governo e após o presidente patrocinar a defenestração do ministro da Defesa e da cúpula militar do País, Rêgo Barros escreveu: “O mandatário não é mais um militar. Ele detém, tão somente, uma carta patente que indica ter obtido, em um determinado momento da vida, os requisitos para exercer as funções intermediárias na hierarquia da oficialidade das Forças Armadas.”
O general continuou ainda, em artigo, publicado no dia 31 de março, a descrição que fez de seu antigo chefe: "O amadurecimento intelectual – característica marcante na formação dos atuais chefes - não esteve presente em sua trajetória". Disse ainda que os atributos aprendidos na caserna por Bolsonaro foram "substituídos por conceitos não aplicados dentro de uma instituição como é o Exército Brasileiro". "Seu aparente desejo de transformar essa centenária instituição, detentora dos mais altos índices de confiabilidade, em uma estrutura de apoio político, afronta tudo o que defendem as Forças Armadas em sua atitude profissional."
Um leitor de Weber afirmaria que generais como Santos Cruz, Rêgo Barros, Paulo Chagas e tantos outros que estiveram com Bolsonaro estão dizendo que o presidente dispõe ao mesmo tempo de elementos da dominação tradicional e da dominação carismática, mas ele se apresenta distante da dominação legal-burocrática sine ira et studio. De fato, já se notou que Bolsonaro é avesso à impessoalidade das leis e da administração. Devia ele saber que, mesmo na ditadura militar, quem governou o País foi o Exército e não um líder. Não houve no Brasil um Augusto Pinochet, mas presidentes com mandato.
Nossos generais pensavam na ditadura romana, como um regime de crise e não em uma tirania. É no exemplo de Lúcio Quíncio Cincinato que se miravam. Cincinato, não é demais lembrar, foi buscado pelo Senado para exercer o poder em Roma quando um exército inimigo ameaçava a República. O poder não estava em uma pessoa, mas no papel, na lei, na tradição. Para Bolsonaro ter o seu Exército, seria necessário subverter a lógica de poder da própria corporação, o que limita esse tipo de projeto golpista.
Desde os anos 1930 os militares gostam de pensar que fazem a política do Exército e não política no Exército. Quando pensa em fazer do quartel uma propriedade privada, Bolsonaro se bate contra um dos marcos referenciais nos quais a cadeia de comando trabalha há décadas. O poder pessoal de um Mito é muito diferente do poder exercido segundo o pensamento conservador que prevalece no Exército. Afrontar essa estrutura é que levou Santos Cruz a chamar a ação de Bolsonaro de "tiro no pé". E fez Rêgo Barros concluir: "Buscar adentrar as cantinas dos quartéis com a política partidária é caminho impensado para as Forças Armadas. Elas já estão vacinadas contra esse vírus."
Pior ainda. A identificação com o Centrão, o enterro da Lava Jato e as manobras para salvar o filho Flávio da Justiça e dos questionamentos sobre os R$ 6 milhões pagos em uma mansão em Brasília fizeram-no ouvir do general Paulo Chagas: "Bolsonaro exonerou os três comandantes das Forças Armadas porque eles não apoiaram a sua intenção autoritária de usar a força das Forças para, ao lado do centrão/ladrão, impor-se ao Congresso." Com a política de volta entre os militares, a questão seria saber quem a pode fazer e em nome de quem. Por isso tudo, ao término da crise, o Alto Comando do Exército cantava vitória e publicava a foto de Villas Bôas e Pujol com o novo comandante, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
Para os generais, a corporação saiu do imbróglio em que se meteu com Bolsonaro como "grande vencedora" do episódio que levou à demissão de Leal Pujol. Primeiro porque o pitoresco Bolsonaro escolheu o sucessor de Pujol dentro da lista de antiguidade que trazia os generais José Luiz Freitas, Marcos Antonio Amaro dos Santos e Paulo Sérgio. Depois, porque todo o ônus da troca recaiu sobre Bolsonaro, expondo seu desejo de nomear três Pazuellos para cada uma das Forças. Prevaleceu a ideia de continuidade, de que seja quem for o comandante, Bolsonaro não poderá contar com o Exército para se tornar ditador. E, se tentar, é mais fácil ele acabar deposto do que um cabo e um soldado arriscarem o pescoço por um mito. Os generais podem agora sonhar em 2022 com a eleição de um governo do qual participem sem o inconveniente de lidar com o pitoresco capitão.
José Luis Oreiro: 'Sem medidas efetivas para controle da Covid-19, pandemia custará ainda mais caro ao Brasil'
Para o economista, “enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer”, o setor de serviços não vai se recuperar e a indústria não conseguirá retomar sua capacidade de investimento e modernização
Patricia Fachin, IHU Online
O professor e economista José Luis Oreiro não tem meias palavras: “precisamos ter clareza de que o que afeta negativamente a economia não são as medidas de isolamento social, mas o vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele ainda detalha que “a negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida”. “Enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer, as atividades ligadas ao setor de serviços serão duramente afetadas”, completa.
Já na indústria, pela natureza do negócio, ele diz que o impacto parece não ser tão grande. No entanto, chama atenção para o fato de que a pandemia pegou a indústria nacional num processo de desindustrialização que já dura pelo menos 20 anos. “Se o Brasil tivesse um percentual maior da sua força de trabalho na indústria de transformação, a queda do PIB teria sido menor. Vemos isso claramente nos países europeus. Países como a Alemanha, onde a indústria responde por um percentual maior do PIB e da força de trabalho empregada, tiveram uma queda menor do nível de atividade”, exemplifica.
E, ainda, há aqueles que são acometidos em cheio com a perda de renda e que encontraram no Auxílio Emergencial de 2020 a última saída para fugir da fome e do desespero. Cenário que, como bem lembra Oreiro, não se repetirá em 2021. “Não só os valores são menores, como ainda houve uma redução significativa do acesso ao benefício. Estima-se que, pelo menos, 20 milhões de pessoas que tiveram acesso ao auxílio no ano passado ficarão sem receber o benefício este ano. Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021”, dispara.
Para enfrentar a crise pandêmica, além de agir com a responsabilidade de promoção de um efetivo isolamento social e promover vacinação ampla e irrestrita, o professor defende a extensão do Auxílio Emergencial nos patamares do ano passado enquanto estivermos em pandemia. “Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura (mobilidade urbana, geração de energia, logística, estradas e ferrovias) com foco na descarbonização da economia”, indica.
José Luis da Costa Oreiro é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, possui mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ e doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia pela UFRJ. Atualmente é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília - UnB. Entre as inúmeras publicações, destacamos o livro Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (publicado pela LTC em 2016) e o livro Macrodinâmica Pós-Keynesiana: crescimento e distribuição de renda (Alta Books, 2018).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro se posicionou contrário ao isolamento social com a justificativa de que o isolamento poderia prejudicar a economia. Qual é a situação econômica do país neste momento em que também estamos imersos em uma crise sanitária e com altos índices de desemprego?
José Luis Oreiro – Antes de mais nada, precisamos ter clareza de que o que afeta negativamente a economia não são as medidas de isolamento social, mas o vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19. As medidas de distanciamento social têm por objetivo reduzir o número de contágios para impedir o colapso do sistema de saúde. Essas medidas tiveram um relativo sucesso em 2020, mas agora em 2021 foram adotadas de forma tardia pelos governos subnacionais.
A população também relaxou as medidas de proteção, em parte por causa do cansaço com a situação posta pela pandemia, mas em parte por falta de uma campanha nacional de conscientização sobre os riscos da Covid-19. Caberia ao Ministério da Saúde vincular, por intermédio dos meios de comunicação social, informações para a população se prevenir do vírus. Isso não só não foi feito pelo Ministério da Saúde, como o presidente da República adotou comportamentos públicos que incentivaram as pessoas a minimizar o risco do novo coronavírus.
O resultado está aí, 300 mil brasileiros mortos e com o sistema de saúde entrando em colapso em várias cidades brasileiras. A negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida. Quero aqui deixar claro que não existe trade-off entre vidas e economia. Enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer, as atividades ligadas ao setor de serviços serão duramente afetadas, mesmo na ausência de medidas de distanciamento social.
Patamares piores que na grande depressão
Em 2020, o PIB brasileiro teve uma contração de 4,1%, a maior desde a grande depressão de 1929. A taxa de desemprego atingiu 14% da força de trabalho e cerca de 9 milhões de brasileiros tiveram que se retirar da força de trabalho. O que salvou o ano de 2020 de ter sido muito pior foi o Auxílio Emergencial. Isso permitiu que milhões de pessoas tivessem uma condição financeira mínima para sustentarem a si mesmos e suas famílias num contexto em que o setor de serviços (responsável por cerca de 70% do PIB) se contraiu fortemente por conta da pandemia.
O peso da desindustrialização
Veja que a indústria não foi tão afetada pela pandemia como o setor de serviços, devido à natureza das relações de trabalho na indústria, que permitem distanciamento social sem interrupção do trabalho. A pandemia afetou muito a economia brasileira por conta do processo de desindustrialização prematura que ocorre há mais de 20 anos. Se o Brasil tivesse um percentual maior da sua força de trabalho na indústria de transformação, a queda do PIB teria sido menor. Vemos isso claramente nos países europeus. Países como a Alemanha, onde a indústria responde por um percentual maior do PIB e da força de trabalho empregada, tiveram uma queda menor do nível de atividade.
Já países onde o setor de serviços, particularmente o turismo, tem uma participação expressiva no PIB e na força de trabalho ocupada, como a Espanha e a Itália, tiveram quedas assombrosas do nível de atividade econômica.
IHU On-Line – Que balanço faz das políticas econômicas adotadas durante o primeiro ano de pandemia? O que poderia ter sido feito para além do que se fez?
José Luis Oreiro – O Auxílio Emergencial foi, de longe, o maior acerto da política econômica, embora tenha sido iniciativa do Congresso Nacional, não da equipe do Ministério da Economia. Foi o auxílio que impediu que o PIB brasileiro caísse entre 8 e 9% em 2020, como era previsto por organismos internacionais como o FMI, Banco Mundial, Banco Central Europeu e Comissão Europeia.
O Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Pronampe, que tinha por objetivo conceder crédito para essas empresas e assim permitir que elas pudessem sobreviver durante o período da pandemia, foi bem menos eficiente, no sentido de que os desembolsos realizados pelo programa ficaram aquém do esperado. Esse programa foi interrompido em 31/12/2020 e ainda não existe previsão de retorno. Já o BEm (Benefício Emergencial de Preservação de Emprego e Renda), que permitiu às empresas reduzir a jornada de trabalho (e os vencimentos) dos seus funcionários ou suspender temporariamente os contratos de trabalho, com o governo cobrindo uma parte da perda de renda dos funcionários dessas empresas, foi mais bem-sucedido, pois evitou um grande número de demissões e ajudou a manter a renda (ainda que com uma certa redução) dos trabalhadores. O problema é que esse programa também foi extinto em 31/12/2020 e não existe previsão de retorno.
Se o governo tivesse renovado o estado de calamidade pública no dia 31/12/2020 por, pelo menos, mais 120 dias, a Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra continuaria válida, permitindo ao governo manter o pagamento do Auxílio Emergencial, bem como o Pronampe e o BEm, pois não seria obrigado a retornar à "disciplina fiscal" imposta pela EC do Teto de Gastos e pela "Regra de Ouro". Estamos quase no final de março e nenhum desses programas foi retomado. Acredito que o efeito sobre o nível de atividade econômica e o emprego será devastador.
IHU On-Line – Como avalia o novo Auxílio Emergencial para trabalhadores informais e beneficiários do Bolsa Família, que será pago a partir de abril, em quatro parcelas, com valores de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375?
José Luis Oreiro – Representa uma redução gigantesca com relação aos valores pagos no ano de 2020, num contexto em que o Brasil entrou com força numa segunda onda de contágios e mortes por Covid-19, na qual o índice de óbitos por dia já se encontra 2,5 vezes maior do que na pior fase da primeira onda.
Não só os valores são menores, como ainda houve uma redução significativa do acesso ao benefício. Estima-se que, pelo menos, 20 milhões de pessoas que tiveram acesso ao auxílio no ano passado ficarão sem receber o benefício este ano. Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021.
IHU On-Line – A inflação está subindo, a atividade econômica desacelerando em alguns setores e, do ponto de vista sanitário, o país está em colapso. O aumento da inflação representa algum risco no atual contexto de crise econômica, desemprego e crise sanitária?
José Luis Oreiro – O aumento da inflação ocorrido nos últimos meses é resultado de um choque de oferta, não devido a pressões de demanda, por isso mesmo trata-se de um fenômeno transitório: a partir de junho/julho de 2021 a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA acumulada em 12 meses começará a ceder após alcançar um pico entre 6 e 7%, fechando o ano de 2021 em torno de 4%.
Por que a inflação se acelerou nos últimos 12 meses? Em primeiro lugar, devido ao aumento dos preços dos alimentos causado por uma combinação de fatores: desvalorização acentuada da taxa de câmbio em 2020 (cerca de 40% entre janeiro e dezembro de 2020); aumento dos preços dos alimentos nos mercados internacionais em função da demanda precaucional de alimentos por parte de diversos países dada a incerteza sobre os efeitos da pandemia no abastecimento de alimentos; e a eliminação dos estoques reguladores de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento - Conab levada a cabo nos governos liberais de [Michel] Temer e [Jair] Bolsonaro.
Sem estoque, sem controle
Se o Brasil, a exemplo dos Estados Unidos, tivesse mantido um estoque grande de alimentos em 2020, então o governo poderia vender esse estoque no segundo semestre do ano passado, o que contribuiria para reduzir a pressão sobre os preços dos alimentos, assim reduzindo a inflação. Mas Paulo Guedes achava que era muito caro manter esses estoques e decidiu vender praticamente tudo em 2019. O resultado é que o Estado Brasileiro ficou sem um importante instrumento para conter pressões inflacionárias vindas do lado da oferta da economia.
IHU On-Line – Em que consiste sua proposta para a retomada do crescimento da economia, baseada no Auxílio Emergencial, no ajuste fiscal e na reindustrialização? Como essa arquitetura pode resolver o problema da renda, do emprego e da retomada da economia?
José Luis Oreiro – O Auxílio Emergencial, como o próprio nome diz, é para atacar uma emergência: trata-se de transferir renda para aquelas pessoas que, devido à pandemia, ficaram sem emprego ou sem condições de exercer alguma atividade remunerada. Esse auxílio deve permanecer até que o país atinja, por intermédio das campanhas de vacinação, a chamada imunidade de rebanho, o que seria, talvez, 70% da população com mais de 14 anos.
Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura (mobilidade urbana, geração de energia, logística, estradas e ferrovias) com foco na descarbonização da economia, ou seja, com a redução da emissão de CO2 por unidade de PIB, ou seja, aumentar a eficiência ambiental da economia brasileira. Trata-se de uma verdadeira mudança estrutural verde na economia brasileira, em que será estimulada a adoção de tecnologias não poluentes e/ou que permitam a captura de CO2 da atmosfera.
Isso vai exigir vultosos investimentos tanto do setor público, como do setor privado. Como são investimentos em novas tecnologias, o governo deverá, por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES e da Financiadora de Estudos e Projetos - Finep, conceder crédito subsidiado para a realização dos mesmos, exigindo contrapartidas concretas e mensuráveis em termos da redução de emissão de CO2. Essa transformação estrutural será um elemento importante para a reindustrialização da economia brasileira.
Carga de impostos
Esse pacote de investimentos terá que ser financiado por intermédio do aumento da carga tributária. É uma falácia dizer que não é possível aumentar a carga de impostos no Brasil. É possível sim, conforme artigo de Alexandre Sampaio Ferraz, publicado recentemente no Nexo Jornal.
A alíquota efetiva do imposto de renda das pessoas físicas começa a cair a partir dos 2% mais ricos, e despenca quando chegamos nos 0,1% mais ricos da população brasileira. Isso é o resultado da combinação entre isenção de imposto de renda para lucros e dividendos distribuídos, crescente pejotização dos profissionais liberais e alíquota mais baixa de imposto de renda para a renda financeira (ganhos de capital sobre ativos e juros das aplicações financeiras). Como a proporção de lucros, dividendos e renda financeira na renda total é muito mais alta no topo da distribuição de renda do que na parcela intermediária (a "classe média"), os brasileiros mais ricos pagam, como proporção da sua renda, muito menos do que os funcionários públicos (que a Faria Lima diz serem a elite do Brasil) ou os pequenos e médios empresários.
Daqui se segue que uma reforma tributária que contemple não apenas a criação do Imposto sobre Bens e Serviços - IBS, como previsto na PEC 45, como também a tributação de lucros e dividendos distribuídos e o aumento do imposto de renda sobre ganhos financeiros irá resultar num aumento expressivo da arrecadação de impostos, permitindo uma consolidação fiscal de médio prazo pelo lado da receita.
IHU On-Line – Os economistas costumam se situar em polos extremos: ou defendem o gasto social sem restrições ou defendem o equilíbrio das contas independentemente da situação social do país. O senhor tem defendido "um limite para o aumento da dívida pública". Em que consiste sua proposta?
José Luis Oreiro – A dívida pública como proporção do PIB não pode aumentar indefinidamente, mesmo sendo denominada na moeda que o país emite; mas não existe um número mágico a partir do qual os mercados deixam de financiar o Tesouro. O importante é desenhar um plano de consolidação fiscal de médio-prazo (5 a 10 anos) que mostre que a relação dívida pública/PIB irá começar a cair dentro desse horizonte de tempo. Para isso a combinação de aumento do investimento público com reforma tributária será absolutamente necessária: o aumento do investimento público irá acelerar o crescimento da economia e a reforma tributária permitirá que uma parcela maior do crescimento do PIB se transforme em aumento da arrecadação de impostos.
Esse é o ajuste fiscal inteligente que o Brasil precisa, não esse terraplanismo econômico do "teto de gastos" adotado em 2016 e que foi totalmente ineficaz no que se refere ao propósito para o qual foi criado, a saber: a redução do endividamento do setor público.
IHU On-Line – Em decorrência da crise pandêmica e também do Auxílio Emergencial concedido no ano passado, voltou à tona a discussão sobre a elaboração de programas de transferência de renda mais amplos e abrangentes. Alguns, inclusive, propõem uma renda mínima universal incondicional. Como o senhor tem refletido sobre essa questão, especialmente na atual conjuntura? Que desenho de programa de transferência de renda é desejável e possível neste momento?
José Luis Oreiro – Sou favorável a um programa emergencial de renda básica enquanto durar a pandemia, aliás, fui signatário do manifesto do Movimento Direitos Já em defesa do pagamento de um valor de R$ 600,00 a título de Auxílio Emergencial até, no mínimo, o final de 2021. Situações excepcionais exigem medidas excepcionais. Mas não gosto de um programa de renda mínima universal incondicional.
A renda mínima deve ser concedida apenas para aquelas pessoas que, por diversas contingências da vida, são incapazes de se inserir de forma produtiva na sociedade. Aqui tem um julgamento de valor meu, o qual reflete minha visão cristã e católica do homem e do mundo: Deus criou o homem para guardar e cuidar do jardim do Éden. É o trabalho que dá ao homem sua dignidade como criatura feita à imagem e semelhança de Deus. O trabalho não é apenas um meio para se ganhar a vida, mas é a forma pela qual o homem coopera com Deus na obra de criação.
Tendo esse princípio em mente, eu prefiro um programa de garantia de Emprego pelo Estado, tal como o defendido pelo senador Bernie Sanders nos Estados Unidos. Todo cidadão, não importa gênero, idade, orientação sexual, religião ou etnia, tem direito a um emprego digno com o qual possa não apenas ganhar seu sustento, mas contribuir para o bem comum.
IHU On-Line – Como avalia a decisão do Comitê de Política Monetária - Copom de elevar a taxa Selic para 2,75%? O que essa medida indica e sinaliza para os próximos meses em relação à política de juros no país?
José Luis Oreiro – Foi uma decisão errada, que mostra a força do rentismo no país. Em linhas gerais, o Banco Central reagiu a um choque temporário de oferta com uma elevação da taxa de juros em 0,75 p.p. e sinalizou que irá continuar o processo de "normalização" da política monetária nos próximos meses, ou seja, irá continuar aumentando a Selic.
Segundo estimativas do próprio Banco Central, um aumento de 1,5 p.p. na Selic irá produzir uma elevação de R$ 47,7 bilhões na dívida bruta do governo geral; um valor equivalente a um mês de Auxílio Emergencial de R$ 600,00 para um público de 67 milhões de pessoas. Em outras palavras, o governo não tem dinheiro para pagar o mesmo valor de Auxílio Emergencial que pagou em 2020, mas tem dinheiro para o PESFL, “Programa Emergencial de Socorro à Faria Lima”. É muita cara de pau.
O governo não tem dinheiro para pagar o mesmo valor de Auxílio Emergencial que pagou em 2020, mas tem dinheiro para o PESFL, "Programa Emergencial de Socorro à Faria Lima" – José Luis Oreiro Tweet
IHU On-Line – Em fevereiro deste ano, o Congresso aprovou a autonomia do Banco Central, que foi sancionada pelo presidente Bolsonaro, com a justificativa de "evitar pressões políticas na condução da política de juros da instituição". Como o senhor avalia essa medida?
José Luis Oreiro – Foi essa medida que deu ao Banco Central os graus de liberdade para tomar a decisão insana de aumentar a taxa de juros no meio da pior crise econômica e sanitária de nosso país. Veja que a autonomia do Banco Central foi aprovada antes da PEC emergencial e até mesmo antes de o Congresso Nacional ter aprovado o orçamento de 2021.
Por que tanta pressa dado que essa discussão já se arrasta há mais de 30 anos? Foi porque a turma do mercado financeiro receava a intervenção do presidente da República no Banco Central do Brasil caso o mesmo fizesse o que acabou fazendo. Agora não só Bolsonaro como o próximo presidente da República estarão de mãos atadas no que se refere à condução da política monetária. Perdeu a Democracia, ganhou a Plutocracia.
IHU On-Line – O senhor costuma criticar o que chama de "porta giratória" do Banco Central, mas também do Ministério da Economia, no sentido de que economistas, depois de trabalharem para essas instituições do Estado, passam a atuar no mercado financeiro. Que problemas percebe nessa relação?
José Luis Oreiro – É um problema de captura do regulador pelo regulado. Por que um economista que não concluiu seu doutorado, que nunca estudou ou trabalhou com finanças é convidado para ser economista chefe e sócio de um dos maiores bancos de investimento do país depois de ter trabalhado no Ministério da Economia? Na minha cabeça só existe uma explicação possível: recompensa pelos bons serviços prestados ao setor financeiro quando de sua atuação no setor público. Assim, simples.
IHU On-Line – Quais são suas projeções para a economia brasileira no decorrer deste ano?
José Luis Oreiro – Eu estaria sendo néscio se cravasse um número para o crescimento do PIB em 2021. A incerteza é muito grande. Ao que tudo indica, a pandemia está fora de controle no Brasil. A base de apoio do governo no Congresso começa a mandar sinais de descontentamento. O Ministério da Economia não tem um plano concreto de medidas de incentivo econômico e, para piorar, o Banco Central vai "normalizar" a política monetária. Eu aposto que o PIB irá se contrair no primeiro e no segundo semestre deste ano. O que vai ocorrer no segundo semestre eu não faço a menor ideia. Incerteza pura. Não dá para fazer previsão.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
José Luis Oreiro – Eu aconselharia o presidente Bolsonaro a adotar um gesto de grandeza e renunciar ao cargo de presidente da República. Seria melhor para todos, inclusive para ele que, aparentemente, se sente sufocado pelo peso da responsabilidade de governar um país onde a maior parte das pessoas não gosta dele e/ou não concorda com as decisões que ele toma.
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Alon Feuerwerker: Ofensiva ou defensiva? E uma lembrança sobre 1964
As movimentações do poder nos últimos dias permitem pelo menos duas leituras. Uma diz que a troca dos comandantes das Forças Armadas faz parte de certo rearranjo numa ofensiva política do presidente da República. Expressão desse raciocínio é a palavra “golpe” ter dado as caras com assiduidade durante algumas horas.
Em especial no intervalo entre a demissão da antiga cúpula militar e o anúncio da nova.
Cada um tem sua própria opinião, mas a minha é que talvez tenha sido o contrário. Talvez o movimento presidencial tenha sido essencialmente defensivo, parte da construção de barreiras protetivas num período em que a ofensiva é dos adversários ferrenhos, circunstância que sempre embute o risco de provocar desequilíbrios em aliados não tão orgânicos assim.
O cenário das últimas semanas combina números trágicos e explosivos da Covid-19, dúvidas disseminadas sobre o ritmo da vacinação, desconforto sobre o valor do novo auxílio emergencial, temores de perda de fôlego da atividade econômica, conflito aberto do presidente com a maioria dos governadores em torno das medidas de isolamento social.
E até dias atrás juntava-se a isso a encrenca do então chanceler com o Senado Federal.
Em certo momento da confusão, o presidente da Câmara, último muro que separa a oposição de entrar no terreno do impeachment, ligou o sinal amarelo. Quem avisa, aliado é. A partir dali, ficar parado não era mais opção para Jair Bolsonaro. Ele entrava na situação corriqueira dos presidentes brasileiros: ter de oferecer os anéis antes de perder os dedos.
Mas só recuar provocaria efeitos colaterais indesejados. Preservaria forças e recursos do poder. Mas também transmitiria sinal de fraqueza. Que sempre tem uma resultante perigosa: acender ainda mais apetites. Na última linha, a política não se define pelo sentimento de gratidão, define-se pela correlação de forças. Quem quer sobreviver precisa ter força, ou ao menos dar a impressão.
É fácil constatar. Se Bolsonaro tivesse apenas trocado o chanceler e aberto espaço no núcleo do Planalto para uma aliada do presidente da Câmara, o noticiário giraria em torno do recuo do presidente sob pressão. Como ele, ao mesmo tempo, deu certo sinal de “manda quem pode”, trazendo as Forças Armadas para dançar, o jogo simbólico ficou algo equilibrado.
Sim, apenas equilibrado, porque restou claro que os novos comandantes foram indicados em consenso com o escalão mais alto de cada força. Assim, ao final, todo mundo mostrou um pouco de dentes: a Câmara dos Deputados, o Senado, o Presidente da República e a turma das quatro estrelas na Marinha, no Exército e na Aeronáutica.
E segue o jogo. E qual é esse jogo? Há a necessidade de combater a pandemia e retomar a economia, claro, mas a bússola política está apontada mesmo é para 2022. Aliás, esse talvez seja o principal saldo semiótico das últimas semanas. Tem projeto? Então foco. Prepara-te para outubro do ano que vem. As outras opções são bem menos prováveis.
Pois, a rigor, ninguém relevante está, tirando a retórica, interessado numa ruptura. Entre os vários motivos: ao contrário de Fernando Collor e Dilma Rousseff, o vice agora não é uma ponte potencial dos políticos para a ocupação do governo. E outro detalhe: numa ruptura digna do nome, não tem seguro que proteja 100% de ser tragado pelo tsunami.
Sobre tsunamis, esta semana registrou-se mais um aniversário de 31 de março de 1964. Como habitual, reacendeu-se a discussão sobre o que teria acontecido se Jango não tivesse sido derrubado. Debate que persistirá para a eternidade. Uma coisa, porém, é certeza. Nem Juscelino Kubitschek, nem Jânio Quadros e muito menos Carlos Lacerda eram comunistas.
Todos apoiaram a deposição de João Goulart. E quem não souber o que aconteceu depois com eles, é só procurar no Google.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Heloisa Starling: 'Altas patentes da ativa estão em silêncio eloquente'
Pesquisadora alerta para o nível de tensão entre governo e Forças Armadas mas vê como bom sinal a falta de manifestações políticas da cúpula militar
Janaína Figueiredo, O Globo
RIO - A inédita troca simultânea dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, semana passada, colocou historiadores brasileiros como Heloisa Starling em estado de alerta. A professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, coautora de "Brasil: uma biografia", se pergunta, por exemplo, se existem fissuras nas Forças Armadas, e se a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de contar com respaldo militar para seu projeto político tem adesão nas baixas patentes. "O silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia", afirmou a historiadora, em entrevista ao GLOBO. Heloisa não vê risco de golpe, mas faz uma ressalva: "o projeto autoritário do governo corroi por dentro a democracia. A novidade é essa".
Qual é a sua avaliação sobre a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e a cúpula militar?
Os sentimentos são vários. O Brasil vive numa montanha-russa, a cada dia temos um solavanco maior, sem respiro. Um dos pensamentos que tive foi me perguntar como é possível que, num momento em que mais de 300 mil brasileiros morreram, se faça uma reforma de ministério. Ao invés de todas as forças do governo federal estarem voltadas para o enfrentamento da pandemia e para dizer à sociedade que a vida de cada brasileiro vale igual, o governo faz uma reforma e arruma uma crise com as Forças Armadas? Isso é muito assustador e dá a dimensão do grau de degradação do país. Muitos nos perguntamos o que realmente está acontecendo.
Que precedentes históricos devem ser levados em conta na hora de analisar o estremecimento da relação entre Bolsonaro e a agora ex-cúpula das Forças Armadas?
Se você olhar, do governo Deodoro da Fonseca até o governo Geisel, você tem umas 15 tentativas de intervenção militar no Brasil, duas deram certo e liquidaram a democracia: o Estado Novo, em 1937, e a ditadura militar, em 1964. Desde a redemocratização, não temos esse quadro de tensão entre Planalto e Forças Armadas. Se o ministro da Defesa precisa dizer que as Forças Armadas são uma instituição do Estado republicano, isso significa que alguém estava forçando para que não fosse. Por outro lado, as Forças Armadas são politicamente heterogêneas. Isso inclui diferença de arma, geração e carreira; também possui interesses próprios e capacidade de promovê-los. Gostaria de entender o que está acontecendo dentro delas. No período Geisel, por exemplo, o projeto de abertura era defendido por um setor, mas houve uma reação muito forte contra essa abertura. Essa reação culmina com uma tentativa de golpe militar em 1977, com Sylvio Frota, através de um pronunciamento que buscou insuflar as tropas contra Geisel. Ele era uma das lideranças mais importantes do setor mais reacionário das Forças Armadas. Às vezes, me parece o mesmo filme. No manifesto, Frota faz a defesa do alinhamento incondicional com os EUA, ataca Geisel pela aproximação com a China e por críticas a Israel. Seriam provas de uma “escalada socialista” no Brasil, como ele diz. Também reclama que Geisel é complacente com as críticas da mídia às Forças Armadas e permite propaganda subversiva. Tem um caldeirão ideológico no pronunciamento dele que vale a pena olhar. Recém promovido a capitão, o general Augusto Heleno era seu ajudante de ordens.
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A senhora se pergunta se o discurso e as pretensões de Bolsonaro de politizar as Forças Armadas têm algum respaldo dentro do mundo militar ativo?
Minha dúvida é: tem fissuras hoje nas Forças Armadas? Se sim, quais são essas fissuras? Tem alguma cunha sendo metida dentro das Foças Armadas, no sentido de buscar adesão nas baixas patentes para um projeto de poder? Isso já aconteceu no passado, tivemos a revolta dos marinheiros, dos sargentos, entre outras. Na ditadura, tivemos fissuras, que vieram dos setores mais ideológicos das Forças Armadas. Não quero saber se tem partidários do presidente Bolsonaro, quero saber se tem fissuras.
Até agora, o que a senhora responderia a essa pergunta?
Se ligarmos para o passado, para entender o que estamos vendo hoje, ele nos dirá que as Forças Armadas não são homogêneas, já se dividiram, existe uma tradição de intervenção política, e já se manifestaram de diferentes maneiras. Posso supor que a força institucional, pelo que tudo indica, está sendo demonstrada. Mas e as patentes inferiores? O presidente tem uma atuação frequente, uma presença que não é comum entre chefes de Estado em formaturas militares. Até agora, o silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Bolsonaro não tem tropas ao seu redor, tem muito militar da reserva. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia. O general (Pedro Aurélio) Góis Monteiro, um dos mais importantes da história do Exército brasileiro, responsável pela grande modernização das Forças Armadas nos anos 30, dizia que o Exército é o grande mudo. Temos de lembrar do Góis Monteiro, enquanto estiver mudo, é bom.
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Existe uma ideia de que Bolsonaro constantemente evoca a ditadura. Mas não é a ditadura, ele evoca um momento da ditadura, os anos 70, o período mais violento e repressivo. Se você observar a história dele e dos generais que estão em torno dele, são todos formados nos anos 70, por coronéis instrutores que vieram da repressão à luta armada, principalmente no Araguaia. A nostalgia não é da ditadura, é do porão.
Quais são os riscos que a democracia brasileira corre hoje?
A vertente dessas pessoas que mencionava antes foi derrotada por Geisel nos anos 70, derrotada pela abertura e o início da transição democrática. Eles poderiam, e aqui estou especulando, alimentar um projeto messiânico. Isso significa um projeto de poder, no mínimo, autoritário. Estamos lidando com um pensamento muito autoritário, e não é uma aventura, tem uma história.
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O presidente disse que joga dentro da Constituição, mas que outras autoridades atuam no limite.
O projeto autoritário do governo corrói por dentro a democracia. A novidade é essa. Todas as vezes que a democracia sucumbiu no Brasil foi por força de golpe de Estado. Hoje, temos um processo de corrosão, dentro das instituições, das agências. Cada vez que as instituições reagem a esse projeto, por exemplo o Supremo Tribunal Federaç (STF), elas se enfraquecem. Isso esgota a energia das instituições. Exauridas, elas vão perdendo capacidade de reação. Outro mecanismo de corrosão são gestões muito incompetentes dentro de agências do Estado, como foi a do Ministério da Saúde. Lembro que em janeiro de 2019, Bolsonaro tinha acabado de tomar posse, e fez um discurso num jantar em Washington no qual ele diz que seu governo não vai construir nada, vai desconstruir. Tem método, e está em ação.
Hoje, esse projeto de poder está acuado?
Não vejo esse projeto acuado, ele está em pleno funcionamento. Tenta-se impor, ainda, uma nova língua que parece saída diretamente das páginas do livro “1984”, de George Orwell: a apropriação das palavras e a inversão de seu significado. Ditadura militar significa liberdades democráticas; os inimigos da democracia se dizem vítimas de ditadura; liberdade de expressão virou licença para delinquir. É um processo lento, e não ocorre apenas no Brasil. Acontece na Hungria, na Polônia, Venezuela, os Estados Unidos de Trump, Índia. Tem um padrão, um modo como governantes com vocação autoritária, eleitos democraticamente, agem para corroer por dentro as instituições democráticas. O que me preocupa é que as instituições não se defendem sozinhas. Falta uma reação da sociedade, mesmo na pandemia, a sociedade pode ser criativa, e não se pode falar só na internet, é preciso falar na cena pública. Existem, por exemplo, movimentos para defender um luto para os brasileiros mortos na pandemia. A sociedade também deve dizer que a democracia é um valor e não abriremos mão dele. É preciso pensar formas de expressar o respeito à nossa democracia. Como diz a música de Aldir Blanc, uma estrela é um incêndio na solidão. A democracia não acontece na solidão.
Vinicius Sassine: Braga Netto assume Defesa com Exército ressentido e crítico a gestos de Bolsonaro na pandemia
Cúpula militar volta a se incomodar com o presidente após anúncio de uso das Forças Armadas como reforço à vacinação
O general da reserva Walter Braga Netto toma posse no cargo de ministro da Defesa nesta terça-feira (6), na presença de Jair Bolsonaro e com parte expressiva da cúpula do Exército ainda ressentida com a troca dos principais postos de comando efetuada pelo presidente na semana passada. A ação detonou a maior crise militar já vista desde a redemocratização.
Generais que integram o Alto Comando do Exército (a maior das três Forças Armadas) criticam em conversas reservadas o mais recente discurso de Bolsonaro sobre a pandemia.
No sábado (3), ao lado do novo ministro da Defesa, o presidente afirmou que as Forças vão começar a participar da aplicação de vacinas contra a Covid-19 e que os quartéis têm condições de colaborar nesse sentido.
No mesmo contexto da fala de Bolsonaro, Braga Netto e o ministro Marcelo Queiroga (Saúde) discutiram no fim de semana a participação dos militares na vacinação. Queiroga afirmou que essa era uma determinação do presidente.
A fala incomodou a cúpula do Exército porque, segundo militares em postos de decisão, a Força já colabora há tempos com a vacinação, em parceria com instituições e governos locais.
Militares também defendem que, após ser demitido por Bolsonaro, o general Edson Leal Pujol não deve sair pela porta dos fundos do comando do Exército.
A recente crise militar começou quando o presidente demitiu o general da reserva Fernando Azevedo e Silva do cargo de ministro da Defesa, no começo da tarde da segunda passada (29). Braga Netto, então, foi deslocado da Casa Civil da Presidência para o ministério.
No dia seguinte, diante de um movimento dos líderes das três Forças para entregar os cargos, Bolsonaro demitiu os comandantes. Na quarta (31), os novos comandantes de Exército, Aeronáutica e Marinha foram escolhidos e anunciados pelo ministro.
Até agora, não há informações sobre quando e como serão feitas as trocas de comandos. “A data e outros detalhes de passagem de comando do Exército serão definidos após a avaliação e adequação das agendas das autoridades envolvidas no evento, sendo oportunamente informada”, disse o Exército, em nota.
A cúpula da Força quer que a troca de comando ocorra de maneira formal e conforme protocolos militares de eventos do tipo, dentro das limitações impostas pela pandemia, e não sem nenhum tipo de cerimônia.
Em 11 de janeiro de 2019, Pujol assumiu o cargo com pompa, no Clube do Exército em Brasília, com o ritual militar adotado tradicionalmente nessas cerimônias. Seu antecessor, o bolsonarista Eduardo Villas Bôas, hoje abrigado em um cargo no Palácio do Planalto, compareceu e levou um discurso de transmissão do posto. Bolsonaro e diversas autoridades estiveram presentes.
Um consenso também se formou entre integrantes do Alto Comando do Exército: o general da ativa Eduardo Pazuello, demitido do cargo de ministro da Saúde, não tem condições de retornar à Força, muito menos de voltar a comandar uma tropa.
Pazuello foi ministro de junho de 2020 a março de 2021. Exerceu o cargo e permaneceu na ativa do Exército, com o aval de Pujol. Foi demitido em meio ao descontrole da pandemia –no momento da demissão, o país se aproximava de 2.000 mortes por dia; agora a quantidade diária está perto de 4.000.
O general e ex-ministro é investigado pela Polícia Federal por supostos crimes ao se omitir diante da anunciada crise de escassez de oxigênio em Manaus, em janeiro. Pazuello era investigado em inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal).
Ao perder o foro especial, o caso foi remetido à primeira instância da Justiça Federal em Brasília. Um processo ainda não foi formalizado.
Na avaliação de generais do Alto Comando, o cargo exercido por Pazuello foi essencialmente político. Tanto que o general encampou a política de “tratamento precoce” que é o carro-chefe de Bolsonaro no combate à pandemia. Medicamentos como a cloroquina não têm eficácia comprovada para Covid.
A cloroquina movimentou as estruturas do Exército e da Aeronáutica. Com aval de Pujol e intermediação do então ministro da Defesa, Azevedo e Silva, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército fabricou 3,2 milhões de comprimidos da droga, a um custo de R$ 1,2 milhão. Aviões da FAB transportaram o medicamento a regiões isoladas na Amazônia.
Um ato do último dia 25, assinado por Pujol, “reverteu, a contar de 23 de março de 2021, ao respectivo quadro o general de divisão intendente Eduardo Pazuello”.
O ex-ministro ainda está sem destino definido. Antes de assumir um cargo da linha de frente do governo Bolsonaro, Pazuello comandou tropas da 12ª Região Militar, em Manaus.
Uma semana depois do começo da maior crise militar desde 1977, as relações ainda não estão integralmente pacificadas, ao contrário do que faz crer uma foto divulgada pelo Exército na quinta-feira (1º), dia seguinte ao anúncio do nome do novo comandante da Força, general Paulo Sérgio de Oliveira.
Aparecem na foto Oliveira, Pujol e Villas Bôas. É o registro de uma visita feita pelos dois primeiros ao ex-comandante, que ganhou um cargo de assessor especial no Planalto desde sua saída do comando do Exército.
Para tentar evitar um aprofundamento da crise, Bolsonaro decidiu respeitar critérios de antiguidade na escolha dos novos comandantes.
Oliveira era o terceiro mais antigo na lista de militares com quatro estrelas e na ativa. O novo comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, era o segundo em antiguidade. E o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, o primeiro da Aeronáutica.
A posse de Braga Netto estava prevista para as 9h no Planalto, sem presença da imprensa e com transmissão pelos canais oficiais do governo federal.
Também participam da cerimônia formal, na mesma ocasião, mais seis ministros anunciados por Bolsonaro no último mês: Flávia Arruda (Secretaria de Governo da Presidência), general da reserva Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), Anderson Torres (Justiça e Segurança Pública), Carlos Alberto França (Itamaraty), André Mendonça (AGU) e Marcelo Queiroga (Saúde).
FAP conclama defesa da democracia e mostra preocupação com avanço da pandemia
Em nota pública, Fundação Astrojildo Pereira lamenta perda de milhares de vidas para a Covid-19
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O presidente do Conselho Curador da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), Luciano Rezende, e o diretor-geral da entidade, Caetano Araújo, divulgaram nota, nesta quarta-feira (31/3), em defesa da democracia e para reforçar preocupação com o avanço da Covid-19. A data marca os 57 anos da instalação da ditadura militar no país, que durou de 1964 a 1985.
Na nota, os representantes da entidade, que é vinculada ao Cidadania, criticam o negacionismo da pandemia, assumido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A doença já matou quase 320 mil pessoas no Brasil, que, segundo a nota, está estagnado economicamente e deixa desamparadas pessoas que precisam de auxílio emergencial.
“A recuperação sustentável tem como condição o equacionamento da crise sanitária, e o auxílio emergencial, fundamental para a sobrevivência dos brasileiros e a manutenção de alguma atividade econômica no ano que passou, pode ser reduzido nos próximos meses, nos seus valores e no seu alcance”, afirma um trecho.
Com o país tomado por intranquilidade, segundo a nota, a FAP manifesta, publicamente, sua grande aflição com o avanço da pandemia e critica a criação de um ambiente hostil no país, “em que, diariamente, se estimula confrontos entre poderes, instituições e sociedade, colocando em risco a ordem democrática”.
A seguir, leia a nota na íntegra.
Nota pública em defesa da vida e da democracia
Assistimos nos últimos dias ao acúmulo de péssimas notícias para todos nós, cidadãos brasileiros. No que respeita à crise sanitária, o número de novos casos da pandemia e de óbitos dela decorrente aumenta assustadoramente.
Há poucos dias oscilávamos em torno da marca, já inaceitável, de duas mil mortes ao dia. Hoje estamos perto de dobrar esse número e não temos sinal algum de reversão dessa tendência.
O negacionismo assumido pelo Presidente da República, devido a sua função de liderança da nação, agrava a má gestão da pandemia, que cobra seu preço.
Tampouco são animadoras as notícias vindas da economia. A estagnação prossegue, a recuperação sustentável tem como condição o equacionamento da crise sanitária, e o auxílio emergencial, fundamental para a sobrevivência dos brasileiros e a manutenção de alguma atividade econômica no ano que passou, pode ser reduzido nos próximos meses, nos seus valores e no seu alcance.
Finalmente, no que se refere à política, vimos uma série de episódios de confronto e instabilidade entre instituições.
Como exemplo, o discurso que estimula a convocação reiterada para a ocupação das ruas, em várias cidades, de manifestantes contra as ações tomadas para combater o avanço do vírus e suas consequências.
Nesse clima de confronto, houve ainda a provocação racista, no recinto do Senado Federal, feita por um influente personagem palaciano.
Finalmente, a mudança repentina do ministério, a partir da demissão do Ministro da Defesa, seguida pela substituição dos três comandantes das Forças Armadas.
Fatos que colocam em risco o equilíbrio das três Forças, no desempenho de suas importantes funções constitucionais.
Neste quadro de complexidade e intranquilidade, a Fundação Astrojildo Pereira vem manifestar de público sua grande preocupação com o avanço da pandemia, a perda de centenas de milhares de vidas, dor, sofrimento nas famílias brasileiras e as graves consequências sociais e econômicas que já se consolidam, em um ambiente em que diariamente se estimulam confrontos entre poderes, instituições e sociedade, colocando em risco a ordem democrática.
Conclamamos também o conjunto dos cidadãos, os partidos políticos, os mandatários eleitos, as organizações da sociedade civil a cerrar fileiras em defesa da democracia no Brasil.
Brasília, 31 de março de 2021
Luciano Rezende
Presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira
Caetano Araújo
Diretor da Fundação Astrojildo Pereira
Tibério Canuto: Reflexões de um ex-cabo conscrito
Há uma diferença oceânica entre um general de quatro estrelas que galgou a presidência e um ex-capitão baderneiro que também chegou a ser presidente da República. Isso fica muito claro na comparação entre os episódios da demissão de Sílvio Frota e a de Fernando Azevedo. Quando decidiu degolar seu então ministro da Guerra, Geisel previamente assegurou o apoio das principais guarnições militares do país e dos principais comandantes do Exército. Obedeceu uma das leis da guerra: a dissimulação e a surpresa, neutralizando, assim qualquer possibilidade de reação de Sílvio Frota.
Bolsonaro fez o contrário. Articulou o golpe a céu aberto, sem combinar com a cadeia de comando, sem a certeza de que a caserna se submeteria aos seus intentos, com a demissão do ministro da defesa Fernando Azevedo. Militares costumam dar nome às suas operações. O plano de invasão da União Soviética por Hitler se chamava Barbarossa, a da invasão da Normandia Overland. A de Bolsonaro bem poderia se chamar Operação Tabajara, tal o seu resultado desastroso.
Se o objetivo era transformar as Forças Armadas em instituições privadas a serviço de seu projeto de poder, o tiro saiu pela culatra. Em vez de perfilar-se aos seus planos macabros as FFAA se uniram na defesa do seu papel constitucional como instituição do Estado. O inédito pedido de demissão conjunto dos comandantes das três forças tem esse sentido, numa clara demonstração de que a postura profissional do ex-comandante do Exército, general Edson Pujol, sempre esteve respaldada por toda cadeia de comando, composta por 16 generais de quatro estrelas.
Sim, Bolsonaro sai no prejuízo na mais séria crise militar desde 1977. Não só por não ter conseguido seu objetivo de aparelhar as Forças Armadas. Mas porque instalou uma crise que inexistia e que representava até então sua principal base de apoio. O pacto estabelecido em 2018 pelo então comandante Eduardo Villas Boas no qual os militares ingressaram de corpo e alma na campanha do atual presidente na certeza de que controlariam seus “excessos” foi rompido pelo próprio Bolsonaro.
Ainda não está devidamente esclarecido qual será o comportamento de Braga Neto, substituto de Fernando Azevedo. Certamente entrou para atrelar a caserna aos designíos de Bolsonaro. Mas até onde irá, diante da resistência da cadeia de comando? O mais provável é que adote inicialmente uma postura comedida para não tocar fogo no paiol. A ordem do dia sobre 31 de março que assinou teve um tom moderado.
Só a ingenuidade da TV Globo pode considerá-la ruim porque os militares não trataram 1964 como um golpe, não condenaram o AI-5, nem a supressão das liberdades. Isto eles não farão nunca e não nos interessa alimentar esse debate. O positivo é que a nota assinada por Braga Neto era a ordem do dia escrita pelo então ministro da Defesa Fernando Azevedo e ela contém dois pontos positivos. A contextuação do período histórico em que o episódio se deu e o reconhecimento da anistia como importante instrumento para a pacificação do país.
Bolsonaro sai do episódio com o sabor de derrota por ter ignorado a própria história militar brasileira. Desde o advento da República é condição básica para o sucesso do golpe a participação das Forças Armadas como instituição e não apenas de um setor. Todas as tentativas individuais ou de apenas uma corrente militar fracassaram: os 18 do Forte, 1924, Insurreição de 35, a tentativa de golpe dos integralistas em 38, Jacareacanga e Aragarças, entre outros.
Getúlio Vargas implantou o Estado Novo porque contou com as Forças Armadas, como instituição. O golpe de 1964 foi vitorioso porque teve essa característica.
Mianmar não é aqui. Para que um golpe logre êxito, são necessárias condições externas e internas favoráveis, principalmente a última. 1964 aconteceu porque houve uma parte ponderável da sociedade apoiou e participou. Quando Daniel Aarão qualifica 1964 como um golpe cívico-militar não está de todo sem razão.
Sem tais condições, as Forças Armadas não se envolverão em incursões golpistas de Bolsonaro. Dá para pensar um golpe sem o apoio dos empresários? Impossível. Lula não está para os empresários assim como o fantasma do comunismo esteve em 1964. No limite, se não houver uma terceira alternativa, se compõem com Lula porque o governo Bolsonaro é um desastre até para eles.
Existem alguns valores e princípios dos militares que devemos ter em conta. O primeiro deles é a observância à hierarquia, que é basilar para a manutenção da disciplina. De acordo com esse critério, o comandante do Exército é o mais antigo, de acordo com o Almanaque do Exército. A dificuldade de Bolsonaro é nomear um ministro de sua preferência desrespeitando essa norma. Não há general de quatro estrelas “bolsonarista”, embora algum possa ser picado pela mosca azul. Mesmo o seu preferido, general Marcos Freire Gomes, atual comandante do Exército do Nordeste, perfila-se com a postura profissional da cadeia de comando. E para ser nomeado, teria de violar o Almanaque do Exército, “caroneando” quatro generais de quatro estrelas.
O outro valor é o da camaradagem. Isto implica em lealdade com os companheiros. A liderança de Braga Neto será minada porque ele não foi leal com um seu companheiro de ministério – Fernando Azevedo – ao contrário dos três comandantes que se demitiram em desagravo a Azevedo. Braga Neto tem outro problema. Apesar de estar na reserva, é um general de quatro estrelas mais novo do que os que estão na ativa. O problema está criado porque o ministério da Defesa foi “militarizado”. A pasta foi concebida para ser a prevalência do poder civil sobre o poder militar. Por isso, seus comandantes nos governos FHC, Lula e Dilma foram paisanos. A tradição foi rompida por Temer e Bolsonaro.
Não estou dizendo aqui que Bolsonaro não tentará o autogolpe e que não tentará envolver as Forças Armadas em sua aventura. Mas entre querer e poder há uma enorme distância. As chances de sucesso de um golpe a la Trump são muito pequenas, para não dizer nenhuma. Mas ele vai tentar, provavelmente antes da eleição, quando ficar claro que perderá para quem for para o segundo turno.
É risível pensar um golpe apoiado exclusivamente pelas polícias militares. Isto não deu certo nem em 1932, quando a Força Pública de São Paulo era proporcionalmente mais apetrechada do ponto de vista bélico do que são as atuais polícias militares.
Alega-se que Bolsonaro está mais forte porque estreitou os laços com o “centrão”, que agora adentra no Palácio do Planalto por meio da nomeação da deputada Flávia Arruda para a articulação política do governo. Isto serve, até certo ponto e até certo grau, para evitar um pedido de impeachment. Desde sempre o avanço do “Centrão” no aparato governamental é diretamente proporcional ao enfraquecimento do presidente. Foi assim com Dilma e Temer, está sendo assim com Bolsonaro.
Daqui a três meses os políticos começam a se movimentar por aquilo que é seu combustível: a expectativa de poder. Cada vez mais ele foge entre os dedos de Bolsonaro. Nessa toada, se voltarão para Lula, se não for criada uma terceira alternativa.
É possível que tenha dito um monte de besteiras. Não sou um expert em questões militares. Sou apenas um ex-cabo conscrito do Exército. Apenas umas palavrinhas finais.
A oposição presta enorme serviço à nação se não buscar tirar dividendos da crise militar. Sua politização pode levar os militares a se unir no campo oposto. Nesse sentido a iniciativa do PSOL, PT e PSB de entrarem com um novo pedido de impeachment, baseado nas demissões dos quatro militares é ruim. Em vez de unir, vai dividir.
Se alguma frente deve ser costurada no momento, é a ampla frente para que 2022 aconteça. Temos de chegar ao porto seguro da eleição presidencial.
Marcus Oliveira: 1964, ainda precisamos falar disso
Em 1985, o General João Baptista Figueiredo, último dos ditadores brasileiros, recusou-se a passar a faixa presidencial para José Sarney, preferindo sair às escondidas, pelos fundos do Palácio do Planalto. Essa cena é sintomática e marca os dilemas enfrentados no processo de transição para a democracia. Embora a promulgação da Constituição de 1988 tenha sido um avanço imprescindível para a construção de um ordenamento político democrático, o autoritarismo civil e militar permaneceu nos subterrâneos da Nova República. Nos momentos de crise, impulsionados entre tantos outros fatores pelo fracasso do projeto petista, as sombras do autoritarismo adquiriram novas dimensões a partir do momento em que Jair Bolsonaro ascendeu ao poder. Em sua nostalgia da Ditadura Civil-Militar, Bolsonaro revela, além de uma postura antidemocrática, o desejo de rompimento com a estrutura jurídica e política da Nova República. Diante desse passado mal elaborado que persiste, ainda é preciso acionar o combate pela história, memória e democracia.
O Golpe Civil-Militar de março de 1964, além de instaurar um regime ditatorial que duraria mais de duas décadas, interrompeu a experiência democrática em curso no Brasil desde 1946. Apesar das várias crises e de inúmeras tentativas de golpe, a ordem republicana surgida após a queda do Estado Novo estimulou a democratização da sociedade e o protagonismo da sociedade civil. No início dos anos 1960, essa cultura política democrática, fundamental para a manutenção dessa República, foi incapaz de fazer frente ao golpismo de parte das elites e dos militares.
O projeto dos militares, a despeito de suas diferenças internas, ambicionava uma modernização pelo alto, capaz de desmobilizar e controlar os impulsos políticos oriundos da sociedade civil. Nesse sentido, a ordem política e jurídica instaurada a partir dos Atos Institucionais e da Constituição de 1967, apontava precisamente para a construção de um Estado de Exceção marcado pela constante violação das liberdades individuais e dos direitos humanos. No preâmbulo do AI-1, editado em abril de 1964, apesar da manutenção da Constituição de 1946, os militares signatários se arrogam o Poder Constituinte e afirmam sua identidade com a nação brasileira. Nesses termos, a edição do AI-5, em dezembro de 1968, não configurou um golpe dentro do golpe, mas o aprofundamento, pela linha-dura, da excepcionalidade anunciada nos primeiros tempos do regime.
Todavia, o regime procurou mascarar sua própria excepcionalidade por meio da manutenção de determinados aspectos da institucionalidade democrática. Em meio aos mandatos cassados e eleições indiretas para os cargos do Executivo, houve a criação de um sistema bipartidário dividido entre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), representante das forças institucionais do regime, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposição que buscava se organizar politicamente dentro das instâncias institucionais possíveis.
Por outro lado, há uma fragmentação no campo das esquerdas. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), um dos atores políticos mais importantes do período, sofre inúmeras cisões internas motivadas por militantes que, inspirados pelos modelos revolucionários cubano e chinês, ingressaram na luta armada. Para os que aderiram às ilusões armadas, a derrubada do regime por meio da via insurrecional não significava a conquista da democracia, mas a possibilidade revolucionária de implementação da ditadura do proletariado. Os pecebistas jamais apoiaram a luta armada, permanecendo na defesa de uma estratégia que visava derrotar politicamente o regime, aprofundando as orientações democráticas que conduziam as ações do partido desde o final dos anos 1950. Em virtude disso, em função da ilegalidade, os comunistas se somaram à luta política do MDB e cumpriram papel significativo na luta pela recuperação da democracia.
A derrota da ditadura militar brasileira começa a ocorrer precisamente nas margens dessa institucionalidade política remanescente. Nos anos 1970, após o extermínio de grande parte dos grupos armados e dos primeiros sinais de crise do “milagre econômico”, a oposição emedebista se fortalece em torno da (anti)candidatura – simbolicamente desafiadora – de Ulysses Guimarães para a presidência da República. Nesse contexto, o MDB conquista importantes avanços no Legislativo e os militares anunciam seu projeto de abertura política.
Com Ernesto Geisel na presidência, a linha-dura representada por Costa e Silva e Médici perdem relevância diante da proposta de uma abertura lenta, gradual e segura. Contudo, isso não implicou o desaparecimento da linha-dura, tampouco a eliminação das arbitrariedades do regime. Concomitantemente a abertura, Vladmir Herzog e dirigentes do Comitê Central do PCB foi assassinada ou teve que ir para o exterior. Nesses termos, a proposta de abertura pensada no governo Geisel marcava a persistência da excepcionalidade do regime e o desejo de controlar o processo de abertura e transição. Para os militares, a desconstrução do aparato autoritário criado ao longo da ditadura deveria obedecer ao ritmo de uma transição delimitada e controlada pelos próprios militares, no qual a oposição deveria cumprir papel secundário. Na transição para os anos 1980, a Lei de Anistia, embora absolva os condenados e processados, pretendeu relegar os crimes e as arbitrariedades ao esquecimento. Por outro lado, o retorno do pluripartidarismo almejava o enfraquecimento do MDB por meio da divisão política dos setores oposicionistas.
Contudo, como atesta Luiz Werneck Vianna, é preciso distinguir projetos políticos e processos históricos. Reforçar essa distinção implica perceber que, apesar do caráter pactuado da transição, o projeto encabeçado pelos militares não foi integralmente vitorioso. As forças oposicionistas, mesmo divididas entre projetos de democracia política e social, foram capazes de disputar politicamente a transição. Em virtude disso, movimentos significativos como as “Diretas Já!” adquirem significados para além dos fracassos e derrotas políticas.
Portanto, o processo histórico de abertura e transição foi resultado dessa complexa trama política na qual diversos projetos se encontravam em disputa. Aqueles que defenderam a política e a democracia ao longo da ditadura militar foram os responsáveis pela elaboração dos caminhos políticos que permitiram a redemocratização do Brasil nos anos 1980. Todavia, a divisão dos atores políticos e a disputa dentro da própria institucionalidade do regime contribuíram para os dilemas vivenciados durante a transição e na Nova República.
Com Bolsonaro, tais dilemas se tornaram mais evidentes e se intensificaram. Vivemos dias atormentados nos quais alguns pensam no rompimento com o ordenamento republicano estabelecido pela Constituição de 1988 enquanto outros reencenam o passado de modo farsesco. Trata-se, ao contrário, de remover os obstáculos ao aprofundamento da democracia de 1988. Para isso, é preciso reconhecer a trajetória histórica que nos fez chegar até aqui, em toda sua complexidade, contradições e limites. É preciso demarcar uma leitura histórica que não oculte o quão trágico foi para a sociedade a ditadura civil-militar e, ao mesmo tempo, valorizar a estratégia política que a conduziu, com êxito, apesar dos percalços, para a democracia da Constituição de 1988.
Cláudio Gonçalves Couto: Golpismo e destruição
Não é só o discurso de Bolsonaro que atenta contra a democracia, mas também medidas concretas de articulação autoritária
Com o Brasil à beira de atingir 300 mil mortos oficiais por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem se refestelar com seus apoiadores, à frente do Alvorada, no dia de seu aniversário. Fosse só isso, seria indecoroso, mas não ultrapassaria os limites do que a democracia admite. Contudo, houve mais. Novamente o chefe do governo federal investiu contra seus pares nos Estados, acusando-os de serem tiranetes e emendando: “Podem ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.”
Ou seja, o presidente da República sugeriu que contra a “tirania” de governadores e prefeitos - que apenas exercem suas competências constitucionais no combate à pandemia - pode usar o poder armado dos militares por ele chefiados e, ainda, mobilizar suas tropas civis - formadas por aqueles que ajuda a armar. Não é novidade. Na famigerada reunião ministerial tornada pública por decisão do ex-ministro do STF, Celso de Mello, Bolsonaro deixou claro que armava as pessoas para que pudessem se insurgir contra governadores e prefeitos cujas ações divergem das que preconiza.
Ainda na festa de aniversário, o presidente disse: “Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.
O que é “esticar a corda” nesse caso? É não lhe obedecer? É seguir políticas distintas daquelas por ele preferidas, optando pelo que preconizam autoridades sanitárias e científicas mundo afora? Por que isso seria “esticar a corda” e não apenas atuar como governos subnacionais autônomos numa federação? Ou ainda, na realidade, não é ele quem estica a corda, desrespeitando a autonomia política dos entes federados?
Bolsonaro é incapaz de reconhecer como legítima qualquer ação que não lhe seja subserviente - e isso, mesmo quando promovida por quem não lhe deve obediência alguma. Diante disso, como fazem os populistas autoritários (com o perdão da redundância), recorre ao “seu povo” - composto apenas por aqueles que o apoiam e seguem. Ao dizer que esse povo particular compõe, junto com as “suas” Forças Armadas, um corpo de combate em prol da sua noção também particular de democracia ¬- que contempla apenas esse povo particular -, Bolsonaro ameaça com um golpe de Estado. Não há como interpretar diferentemente, considerando a forma como trata atores políticos que a ele se opõem ou simplesmente não se curvam.
Alguém poderia replicar que Bolsonaro apenas diz que fará “qualquer coisa... que está na nossa Constituição” (o presidente tem fixação por pronomes possessivos). O problema é que a leitura constitucional bolsonarista também é muito particular. Não fosse, ele reconheceria as competências de Estados e municípios, o papel do governo federal como coordenador (mas não comandante) de políticas intergovernamentais e a decisão do STF relativa a isto - que não lhe desobrigou de nada, pelo contrário. Portanto, quando Bolsonaro invoca a Constituição é preciso ter clara a forma como a interpreta. E, assim como em todos os outros casos, ele a vê como mero instrumento de seus objetivos e desejos particulares.
Fossem apenas palavras ao vento, seria grave, mas não tão perigoso. O problema é que o presidente toma providências concretas. Ao aboletar milhares de militares em cargos comissionados, com suas respectivas gratificações, Bolsonaro aparelha o Estado e coopta o segmento armado da burocracia pública. Ao dar a esse mesmo grupo benesses corporativas, como o singular aumento previsto no orçamento, reforça essa cooptação. Por esses meios, busca de fato tornar “suas” as Forças Armadas.
Já com as normas sobre armas baixadas pelo Executivo, o presidente municia grupos na sociedade com os quais tem vínculos antigos e que lhe apoiam - notadamente os Clubes de Atiradores e Caçadores (CACs). Ao transferir a tais organizações privadas até mesmo a prerrogativa eminentemente estatal de certificar quem está ou não apto a se armar, Bolsonaro facilita a criação de potenciais tropas de assalto privadas. É esse “povo” que compõe seu exército, ao lado dos verde oliva - como ele mesmo disse. Portanto, as diatribes bolsonarescas não são meras palavras ao vento; elas têm lastro na construção de uma aliança armada e apostam na violência como solução para os impasses políticos em que a liderança de Bolsonaro enreda o país.
Em paralelo a essa construção de um poder paralelo, ocorre também uma desconstrução. Desde o começo, a Presidência de Bolsonaro tem obrado para desmontar instituições, políticas públicas longamente consolidadas, espaços de participação democrática e noções de convivência política e social. A devastação ambiental, a radicalização política, o ataque violento e intimidatório a críticos e à imprensa não alinhada, bem como as mortes evitáveis produzidas pelo descalabro sanitário, tudo é resultado de iniciativas governamentais claras - não são ocorrências fortuitas.
Esse desmonte favorece o cenário de caos, em que o recurso a soluções extremas e ilegais se torna mais propício. O ambiente anômico esboçado pela greve dos caminhoneiros, em 2018, tornou mais plausível o discurso extremista do então candidato, Jair Bolsonaro. O colapso sanitário e econômico que agora se produz, por empenho do próprio governo que o deveria mitigar, novamente abre espaço para aventuras.
O contrapeso vem do fato de que a Bolsonaro se opõem, cada vez mais fortemente, atores de peso no concerto político, como governadores, empresários, órgãos de imprensa e lideranças internacionais - que se dão conta da ameaça por ele representada e do estrago que promove. Esses atores têm dois desafios pela frente: primeiro, deter a escalada autoritária e destruidora do presidente da República, talvez o apeando do cargo; segundo, preparar-se para um logo e penoso processo de reconstrução nacional, que será inescapável diante da destruição humana, ambiental, institucional social e econômica produzida pelo bolsonarismo.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
'Golpe de 64 mergulhou o país em ditadura de 21 anos', lembra João Batista
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de março, cineasta e escritor faz uma visão saudosista do período antes da ditadura militar
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O cineasta e escritor João Batista faz um relato emocionante da migração do cinema para a literatura, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março. A publicação mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
No início da década de 1960 do século 20, conforme ele conta, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. “O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país em uma ditadura de 21 anos”, lembra ele.
“Para minha geração, o cinema encarnava uma utopia vigorosa”, afirma. “Vindo do interior mineiro, entrei na Poli (Escola Politécnica da USP) em 1960, já com 20 anos, muita imaginação, crise existencial profunda e pouco conhecimento cultural”, lembra.
“Rica formação”
Batista conta que as crises se sucediam, principalmente em meio à eleição de Jânio, renúncia com golpe explícito, militares tentavam impedir a posse de Jango, mas, segundo ele, Jango tomava posse gerando um governo popular seguindo a mesma crise que se aprofundava até o golpe de 1964. “De qualquer maneira, um período rico de formação”, diz.
“Em quatro anos passando da esperança, da luta à derrota para os militares, enquanto, bebendo do porre democrático do governo JK, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade”, relata. “Bossa Nova, Teatro Novo, Cinema Novo. Minha geração finalmente tinha sua trilha traçada rumo ao futuro, distanciando-se de uma Brasil atrasado e pobre”, acrescenta.
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Face deletéria de Bolsonaro é destaque da Política Democrática Online de março
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