Fome Zero

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Reorganização do Bolsa Família é prioridade do Desenvolvimento Social

Agência Brasil*

O combate à fome no Brasil é o principal desafio para as políticas de desenvolvimento social do governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, aponta relatório do Grupo de Transição (GT). O país tem 33 milhões de pessoas em situação de grave insegurança alimentar, conforme o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19. Para reverter esse quadro, o GT aposta na reorganização e na recomposição orçamentária das políticas de transferência de renda, de programas nutricionais e na oferta de serviços sociais.

Em 21 de dezembro, foi promulgada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição que garante a continuidade do pagamento de R$ 600 para as famílias beneficiárias do Auxílio Brasil, que voltará a se chamar Bolsa Família. O governo eleito terá R$ 145 bilhões para além do teto de gastos, dos quais R$ 70 bilhões serão para custear o programa de transferência de renda, que terá um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos. A validade desses gastos extra-teto é de um ano.

O Ministério do Desenvolvimento Social, Assistência, Família e Combate à Fome será comandado por Wellington Dias, ex-governador do Piauí.

Na avaliação do Grupo de Transição, a implementação improvisada do Auxílio Brasil desarranjou o sistema de transferência de renda que funcionava há quase 20 anos. “Em razão de sucessivas mudanças, o programa perdeu o foco, tratou de maneira igual os desiguais e levou milhões de pessoas para filas nas portas dos serviços socioassistenciais”, indica o relatório. 

Entre os pontos críticos, estão as mudanças nas condicionalidades relacionadas à saúde e educação para recebimento do benefício. “O total de crianças menores de sete anos com acompanhamento vacinal passou de 68% em 2019 para 45% em 2022”, exemplifica.

O relatório também alerta para a necessidade de revisão do Cadastro Único para Programas Sociais, que tem apenas 60% dos dados atualizados. “O Cadastro também está desfigurado: das cerca de 40 milhões de famílias inscritas, 13,9 milhões compõem arranjos unipessoais”, diz o documento. De acordo com o GT, isso afeta não só a concessão do Auxílio Brasil, mas também a de outros programas que utilizam o cadastro, incluindo programas de transferência de renda de estados e municípios. 

Ainda sobre o Auxílio Brasil, o GT revela que R$ 9,5 bilhões de empréstimos consignados foram concedidos para beneficiários do programa e também do Benefício de Prestação Continuada (BPC) às vésperas da eleição.

“Essas pessoas terão até 40% do valor de seu benefício comprometido, mesmo que não permaneçam no programa. A medida, claramente eleitoreira, vai na contramão das políticas de proteção social, colocando em risco benefícios futuros”, critica o texto.

O documento destaca ainda a necessidade de retomar a atuação coordenada entre os ministérios “para promover o desenvolvimento social com redução da pobreza e das desigualdades e a erradicação da fome no país”. 

Orçamento

O relatório aponta que o orçamento de 2023 do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) teve redução de 96% na comparação com o de 2022 - que já era menor do que o de 2018. Estão previstos R$ 50 milhões no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA). 

Segundo os analistas, o valor não é suficiente para cobrir um mês de funcionamento dos equipamentos de proteção básica e especial e das unidades de acolhimento. “Há risco real de paralisação do SUAS”, diz o texto. Além disso, eles lembram que a rede física é praticamente a mesma de 2016 e a oferta de serviços socioassistenciais encolheu apesar do quadro de empobrecimento do país. 

“A rede SUAS está sobrecarregada, com sistemas administrativos defasados, alta rotatividade de profissionais e baixos salários, ao mesmo tempo em que ocorre um aumento da demanda pelos serviços socioassistenciais.”

Órgãos colegiados

O GT Desenvolvimento Social relata que a maioria das alterações dos programas de transferência de renda e dos serviços socioassistenciais foi feita sem pactuação com órgãos colegiados, como o Conselho Nacional de Assistência Social e a Comissão Tripartite. “Houve grande fragilização da relação com estados e municípios”, assinala o texto.

Sobre a política de segurança alimentar e nutricional, o grupo analisa que houve “um completo desmantelamento”. “O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi desativado e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) não teve nenhum papel relevante durante todo esse período”, diz o documento. 

Outros programas

O GT pontua que houve aumento das pessoas em situação de rua nas grandes e pequenas cidades, mas, apesar disso, os Centros Pop estão concentrados em cidades de grande porte e há insuficiência de equipes no Serviço Especializado em Abordagem Social.

O tempo médio para concessão do BPC passou de 78 para 311 dias, segundo levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU). A fila de espera tem mais de 580 mil pessoas. 

O Programa Cisternas, que atende famílias com tecnologias sociais de acesso à água, contabiliza menos de mil cisternas entregues em 2022. Anteriormente, mais de 1 milhão de famílias foram beneficiadas.

Já o Programa Fomento Rural, por sua vez, teve “orçamento reduzido e desvios de função”, segundo o relatório. O GT critica a adoção de mecanismos de compra ineficientes para a aquisição de cestas básicas e acrescenta que há um “passivo enorme de prestação de contas, a partir de 2023”. 

Equipamentos públicos de segurança alimentar, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias, bancos de alimentos, centrais de distribuição de alimentos da agricultura familiar, têm recursos irrisórios para 2023. 

Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Tenho fome Brasil | Foto: Joa Souza/Shutterstock

A urgência da fome é a urgência pela democracia

Denise De Sordi*, Brasil de Fato

“Geografia da fome”, de Josué de Castro é um livro que nos chama à ação. Daqueles que lemos e nos sentimos atordoados. Tem um sentido de urgência, de chamado da história. Foi este livro que nos explicou – e segue nos lembrando - que a fome não é natural, é um “fenômeno” social, é “marcante”, é “regular”, é “gritante” e é “extensa”. Um “problema” que, na década de 1940 – quando foi publicado, demandava uma “nova perspectiva” ofertada pelas ciências humanas e sociais, que estava ali, pelas mãos do autor, articulada num “método geográfico”, permitindo o estudo do problema sem “arrebentar as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos” (p.16). A publicação deste livro, mais do que alertar para a fome, permitiu ainda dizer em alto e bom som que o acesso aos alimentos está ligado à renda dos trabalhadores.  

Como nos alertou Milton Santos na Apresentação, se a fome fosse algo da “natureza” a culpa seria “de ninguém”, o livro subverte, a partir de extenso estudo, este entendimento. Há uma culpa que está relacionada à organização da sociedade, aos “sistemas econômicos e sociais” (p.30). A pobreza generalizada da população explicava – e ainda explica – a fome mais do que outros fenômenos.  

Não à toa, a publicação do livro potencializou um debate que já corria ao longo dos anos da década de 1930 e que se estenderá para a concretização do salário mínimo como forma de garantia de acesso aos mínimos de sobrevivência aos trabalhadores. “Geografia da Fome” revirou as discussões políticas no período em que foi lançado e abriu um campo de discussões no qual a dimensão do que conhecemos por segurança alimentar foi incorporada ao campo das políticas públicas que começavam então a se desenhar e ser implementadas.  

Entretanto, é preciso lembrar que a fome hoje, esta que se alastrou pelo país desde 2016 e que se acentuou entre 2021 e 2022 provocando o retorno do país ao Mapa da Fome (FAO) não tem o mesmo sentido histórico que possuía em 1940, ou nos anos que seguiram, cortados por um intervalo histórico sombrio que travou as iniciativas, por exemplo, de programas alimentares. Período que foi finalizado pelas mobilizações populares e pela conquista da democracia, materializada como o pacto social que firmamos em 1988. Foi justamente por meio do acúmulo de experiências históricas derivado de inúmeras mobilizações populares engajadas na construção da redemocratização do país que a democracia brasileira tomou forma como prática de Estado e, assim, as políticas públicas sociais em nível nacional foram gradativamente conquistadas, ao longo dos anos da década de 1990, enquanto uma das principais formas de operacionalizar o pacto democrático.

Políticas e programas sociais não são, portanto, ações voltadas apenas para aqueles que são caracterizados pelo Estado como “pobres” – figura técnica e institucionalmente definida nos anos 2000 por linhas de corte de renda - políticas e programas sociais são parte orgânica da forma que assume a relação entre Estado e sociedade, são para todos nós. A experiência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) – extinto em 1995, retomado em 2003 e extinto novamente em 2019 - talvez seja o exemplo mais claro de como esta relação pode se concretizar e ampliar a democracia.


Uma das características do projeto Cozinhas Solidárias é o plantio de hortas para aproximar as comunidades dos cuidados e usos dos alimentos / Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

Programas e políticas sociais não resolvem todas as questões sociais, mas indicam os termos do pacto social para lidarmos com a educação, a saúde, a pobreza, a fome, o emprego, o consumo, o acesso aos alimentos, a cultura, a política e assim por diante. Desde 2016 vivemos uma virada discursiva que intenciona resumir as políticas e programas sociais ao papel de “atenção aos pobres”. Esta é uma estratégia de “redução do Estado”, por meio da qual, cada vez mais, os Direitos Sociais deixam de ter como horizonte a universalização e são cada vez mais restringidos, isto é; focalizados.

Mais recentemente, no desaguar das consequências deste discurso, programas sociais construídos tendo em vista a complexidade da sociedade brasileira, foram desmanchados e/ou tornados inoperantes para atender ao processo de aprofundamento da exploração e expropriação dos trabalhadores. É uma agenda política e econômica que não só reproduz o empobrecimento e a pobreza como condição de vida majoritária, mas para a qual a permanência da pobreza no país é favorável.  

Dentre os programas extintos estão o Programa Bolsa Família (PBF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Ambos nos remetem à conquista histórica da democracia no Brasil contemporâneo. A existência deles só foi possível porque o jogo democrático permitiu, ao longo dos anos de 1990 e 2000, a confluência de interesses diversos, a soma de diferentes perspectivas sobre quais são os melhores caminhos para se gerir o ritmo do empobrecimento, equilibrando as agendas econômica e social. Enquanto expressão das relações entre Estado e sociedade, não foi sem pressão e sem olhar para as práticas dos movimentos sociais e dos sujeitos organizados nas áreas urbanas e rurais, que estas políticas e programas foram formulados. É um tipo de dinâmica das relações entre Estado e sociedade que, para ser legítima e duradoura, deve contar com movimentos de baixo para cima que se traduzam em políticas e programas que os traduzam de cima para baixo.   

É esta dinâmica que é também preventiva da corrosão democrática, por isto, a reconstrução destas políticas e programas sociais parece demandar novamente um olhar para compreender o que está a ocorrer nas cozinhas solidárias, na constituição dos bancos de alimentos, e nas formas pelas quais movimentos sociais têm se organizado para garantir a sobrevivência da população, a partir de concepções que estão fincadas na solidariedade social. Isto é, a solidariedade como um valor democrático e um projeto de sociedade.  

Não se trata de uma agenda de ações emergenciais, mas de práticas para o agora que auxiliam na formulação política do futuro. A formulação de agendas deste tipo é algo que, historicamente – basta olharmos para as mobilizações ao longo dos anos de 1990 –, se potencializa quando emerge pelas mãos dos movimentos sociais, a exemplo das dezenas de cozinhas solidárias espalhadas pelos estados brasileiros pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST. As cozinhas solidárias - diferentes das comunitárias – oferecem uma experiência social inédita, revisitando a ideia das cozinhas coletivas das próprias ocupações urbanas para que se promova, no cenário de agora, um elo entre a produção dos alimentos e seus produtores, o consumo e a distribuição. É um tipo de ação que ganha relevo mediante o fim do PBF e a desarticulação do PAA em seu papel social.  

A soberania e a segurança alimentar andam junto com práticas democráticas. Lidar com a condição de insegurança alimentar, caracterizada por sua dimensão da fome, é também um compromisso histórico com a democracia. Ambas são tarefas urgentes. Há 33 milhões de nós impacientes e com fome.

*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato.


Fome em busca de uma saída solidária e global | Foto: reprodução/Outras Palavras

Fome: Em busca de uma saída solidária e global

Claudio Fernandes, Outras Palavras*

Caro leitor e cara leitora. Não se espante com o título aparentemente alarmista deste artigo, pois ele reflete uma verdade sobre fatos! Ouso dizer que, do jeito como as coisas estão colocadas, a humanidade não irá respirar tranquila pelos próximos anos. Contudo, meu trabalho aqui não será fazer previsões pessimistas para o futuro, mas sim, refletir sobre alguns aspectos da arquitetura financeira mundial, o papel das Nações Unidas e os compromissos políticos que os Estados-nações precisam assumir para construir e implementar uma resposta efetiva às crises que se acumulam.

Começo esta reflexão a partir de uma experiência recente, quando estive representando a Gestos e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda (GT Agenda 2030) em Nova York, durante o VII Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento (FfD), promovido pela Organização das Nações Unidas. O fórum buscava discutir estratégias de atuação que pudessem responder à perspectiva de uma nova grande crise global resultante de um colapso no pagamento das dívidas externas de países em desenvolvimento.

Lembro-me que, em seu segundo dia, a guerra imposta pela Rússia à Ucrânia chegou de forma pesada à quarta reunião de debates do FfD. Para além das mortes e da violência militar explícita que tem chocado a comunidade internacional, outro problema já se apresenta: vários países dependem de grãos importados do país atacado. O tema dominante, então, passou a ser o novo perigo de racionamento de alimentos e a insegurança alimentar, multiplicados pelos riscos do aumento da inflação, resultado dos problemas de cadeia de valor causados pela pandemia da Covid-19.

Contudo – e apesar do clamor da sociedade civil internacional para traçar alternativas socialmente responsáveis e verdadeiramente sustentáveis para reconstruir a economia mundial de forma equitativa – o que se ouviu no VII FfD foi mais do mesmo. A pura repetição de estratégias fracassadas que favorecem prioritariamente o 0,1% mais rico, enquanto os 99% da população mundial são arrastados para o fundo do abismo que a atual arquitetura financeira global cavou ao longo das últimas décadas. Diante disso, voltei para casa maquinando algumas das reflexões abaixo.

Para além da guerra, pode-se perceber a falta de compreensão da urgência em que o mundo está colocado. A emergência climática é uma disrupção presente e destinada a acelerar exponencialmente. Estamos falando de uma resposta logarítmica do planeta. O tempo já se esgotou para muitas populações em muitos países. Otimizar os fluxos financeiros em direção à sustentabilidade tem sido um apelo urgente há, pelo menos, sete anos, mas pouco avançou nesse sentido.

É preciso reconhecer que as soluções financeiras projetadas até agora ficaram aquém de seus objetivos. O “mercado” (esta entidade mítica e abstrata que engole todas as instâncias da economia política), como sempre, é o que domina o processo de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Por quê? Porque os players e as regras do jogo não mudaram nem um milímetro para criar um processo normativo de transformação. O risco já há muito tempo tem sido considerado por meio da expansão de instrumentos derivativos para manter o sistema em rotatividade. Não podemos priorizar a mera reprodução do capital através do sistema financeiro enquanto continuamos a prejudicar pessoas e comunidades – o verdadeiro material concreto que faz a sociedade e a economia existirem.

A esses desafios, somam-se problemas sistêmicos e históricos já existentes que atrasam, e em certos casos, impedem a implementação da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Como proposta para se encontrar soluções efetivas, a sociedade civil organizada vem requerendo explicitamente a convocação da quarta Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, entendendo que é o único espaço legítimo onde decisões que levam a mudanças fundamentais na arquitetura financeira global podem ser tomadas. Enquanto a União Europeia apoia a iniciativa, a China e os 134 países (incluindo o Brasil) que compõem o G77 estão divididos sobre o tema. Em conversa com um representante brasileiro, nos foi confiado que o motivo é o “medo de que uma nova conferência tenha como resultado um retrocesso nas questões em discussão”. Outros países do Sul Global também expressaram a mesma preocupação.

Carteira | Imagem: reprodução/Shutterstock
Carteira | Imagem: Shutterstock

Realmente o mundo hoje está bem diferente do que era em 2015, quando foram aprovadas as resoluções da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Agenda de Ação de Addis Ababa. Desde então vários países se mostraram contrários aos processos de mitigação da emergência climática, de equidade de gênero e de expansão democrática. Em diversas regiões, a política foi infectada pela intolerância, pelo desrespeito e pela violência, criando riscos às liberdades e às instituições de direito. No entanto, decisões precisam ser tomadas sobre a arquitetura financeira vigente, que tem exacerbado os problemas ao invés de oferecer soluções sustentáveis para os diversos desafios que persistentemente ampliam os níveis de desigualdade presentes em cada país e entre as nações.

Em debate especial com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as instituições Bretton Woods – isso é, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) – tornou-se evidente que as medidas tomadas para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19 foram insuficientes. Por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (SDR) emitidos pelo FMI, equivalentes a 650 bilhões de dólares, ficaram principalmente nas mãos dos países que menos precisavam. Isso ocorreu porque o critério de distribuição foi baseado em quotas dos países na instituição; essas quotas, por sua vez, são determinadas por volumes de doação. Ou seja, os países com mais recursos tiveram as maiores quotas.

Como salientou Bodo Elmers, do Global Policy Forum e representante do grupo da sociedade civil para o FfD, “neste momento 400 bilhões de dólares estão dormentes nos bancos centrais de países que não precisam, enquanto os que precisam não conseguem acesso aos recursos”. É importante ressaltar que essas instituições foram criadas no contexto da maior crise mundial do século XX para prevenir crises futuras; mas aparentemente não foram capazes de prevenir ou mitigar satisfatoriamente as crises atuais.

Este órgão, a Organização das Nações Unidas, deveria representar o compromisso com os valores mais elevados para a humanidade e assumir um papel de protagonismo na tentativa de resolver a confluência de crises em que nos encontramos; particularmente o crescente desafio financeiro para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Uma nova Conferência Internacional de financiamento para o desenvolvimento em um futuro próximo, mas que deve ser decidida com urgência, é o único processo legítimo para realmente assumir a responsabilidade que o mundo precisa da comunidade internacional.

Portanto, precisamos de políticas públicas concretas e pragmáticas para reprojetar o equilíbrio das relações de poder que criaram a confluência de crises que vivemos e viveremos nos próximos anos. O que este fórum pode decidir? Pode decidir estabelecer um quadro normativo para um mecanismo de resolução de dívida soberana dos países, mas recusa-se a fazê-lo. Tem um mandato para criar uma convenção tributária internacional, conforme solicitado pelo G77, o que atualizaria o quadro normativo para um mundo globalizado e digitalizado. Mas tampouco avança.

De fato, a Agenda 2030 parece, cada vez mais, ser um sonho inalcançável; porém, algumas medidas governamentais também poderiam ajudar a amortecer os impactos globais e ampliar a implementação dos ODSs, como a precificação das emissões de carbono, a taxação sobre grandes fortunas e a adoção de tributos sobre transações financeiras em contexto multi-jurisdicional. A emissão de títulos da dívida pública com a condicionalidade para o financiamento do desenvolvimento sustentável também poderiam, em tese, servir para fazer girar a engrenagem financeira necessária para uma mudança sistêmica na aplicação de recursos privados.

Mas como lembra o editorial The private-equality delusion (A ilusão da igualdade privada, em tradução livre), publicado em 4 de março deste ano pela revista The Economist, “nós precisamos passar a levar a sério e refletir o que os mercados privados podem e não podem fazer”. Enquanto faltam recursos para a sociedade civil promover as mudanças necessárias para implementar a Agenda 2030, os agentes privados, de diversos tamanhos e volume de capital, já demonstraram que não têm compromisso efetivo com o desenvolvimento sustentável.

Um exemplo emblemático é o do Estado brasileiro que em 2012 (ainda durante o governo Dilma), optou por zerar as alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF) na bolsa de valores e futuros. Isso fez com que este tributo passasse a ser sentido apenas pelo cidadão médio. Além disso, o país está na contramão das grandes economias do mundo em vários sentidos, entre eles figuram a não progressividade de impostos sobre fortunas e medidas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95/2016 (que estabeleceu o famigerado “teto de gastos” para investimentos fundamentais para o desenvolvimento social) – isso para não falar do problema (cultural) inflacionário que está sendo tratado da pior forma possível – e de uma economia oligopolizada que abre espaço para a formação de cartéis e moderna engenharia de preços.

Verdade seja dita: é inadmissível que enquanto o mundo amarga 6 milhões de mortes por Covid-19 e cada vez mais pessoas são jogadas para a pobreza e extrema pobreza, os bilionários do mundo tenha ampliado suas fortunas em cerca de 60% (segundos dados da Forbes e da Oxfam). Reorganizar o fluxo de capitais, bem como os destinos e condicionalidades sustentáveis de suas aplicações deve ser um compromisso humanista.

Temos os recursos necessários para fazer isso, mas é preciso coragem. Coragem das pessoas responsáveis pela formulação de leis, de chefes de Estado e players da geopolítica para abandonar um modelo econômico falido que coloca a existência da vida humana no planeta em risco. Acima de tudo, é preciso reconhecer a capacidade ímpar das organizações da sociedade civil em liderar o caminho para uma comunidade global sustentável e equitativa. Sabemos como fazer e, cada vez mais, precisamos dos recursos necessários para alavancar nossas ações e causar impacto positivo em maior grau e volume.

*Texto publicado originalmente em Outras Palavras


Míriam Leitão: A nova esquerda

O Brasil precisa de uma esquerda sólida e vinculada aos seus ideais de inclusão, diversidade e promoção da ascensão social

- O Globo

A esquerda precisa se reconstruir. Por ela e pelo Brasil. País de enormes desigualdades e no qual ideias conservadoras têm prosperado, o Brasil precisa de partidos que defendam políticas públicas de inclusão, espaço no Orçamento para os pobres, interesse de grupos excluídos, fim dos privilégios, atualização dos costumes. Mas quem é a esquerda brasileira? A que se autodenomina não parece ser.

A esquerda não pode ser a favor de doação de recursos públicos para o capital. Isso não faz sentido. Aqui, houve aumento das transferências para grandes empresas, inclusive estrangeiras, de 3% para 4,5% do PIB nos governos petistas, pelas contas do Banco Mundial. Pode ser muito mais. Houve várias formas de benefícios às grandes empresas, alguns deles indiretos. Os descontos nos impostos, ou o custo financeiro dos empréstimos subsidiados, deveriam ser um inimigo a combater.

Uma nova esquerda terá que enfrentar definitivamente o engano embutido na tese de que o Estado deve estimular os grupos empresariais para eles serem grandes e lucrativos porque, desta forma, a economia estará bem e haverá emprego. Isso foi tentado pela direita, no regime militar, mas não é estranho um governo conservador ter uma política de transferência para o capital. O que espanta é o governo que se definia como progressista ter implantado as mesmas propostas do regime militar que combateu. A recente política industrial de campeão nacional era idêntica à da ditadura, só que em vez de os beneficiários serem Bardela, Villares, eram JBS, BR Foods, Grupo X. Nos dois momentos históricos a proposta fracassou.

O Brasil é cheio de cartórios, interesses específicos, categorias que conseguiram ter vantagens em relação ao resto da população. Os partidos da esquerda brasileira sempre abraçaram esses grupos, defenderam seus interesses como sendo os do povo. Diante de qualquer comprovação da assimetria de tratamento entre cidadãos do mesmo país, a tese levantada é a do direito adquirido. Quando se tenta mostrar os privilégios na Previdência, a esquerda entra em negação e diz que o problema não existe. A defesa de interesses corporativos não pode ser parte de uma verdadeira agenda de esquerda.

Na época da luta contra a inflação ficou claro o desvio no qual os partidos da esquerda entraram. Um líder do PT me disse em 1994 a seguinte frase: “combater a inflação é um projeto da elite brasileira.” Diante da repercussão, ele negou ter dito. Como ele já morreu, não vou dizer seu nome, apesar de ter certeza de que escrevi o que ouvi. O importante é pensar na frase porque ela coincidia com o comportamento do partido na época do Plano Real. A alternativa que apresentava era a negociação de pacto de preços e salários entre empresários e trabalhadores. O pacto era um conluio, no qual os trabalhadores de maior renda e de sindicatos fortes recebiam reajustes salariais que eram repassados para os preços, e tudo isso realimentava a inflação, que atingia violentamente os mais pobres. A inflação alta concentrava renda, mas não havia em nenhum partido de esquerda uma consciência da natureza deletéria da escalada de preços.

Nas privatizações também ficou evidente que, mais do que o controle estatal das empresas, o que estava sendo defendido a pedras e chutes em manifestações de rua eram as vantagens dos funcionários das estatais.

A transferência de renda para os mais pobres através do Bolsa Família foi bem executada, depois de abandonada a ineficiente proposta do Fome Zero. O programa tem foco nos mais pobres e todas as avaliações mostram isso. Mas a política perdeu parte do seu valor quando foi apresentada como um benesse do governo de esquerda aos pobres. Ao ser usada como uma chantagem eleitoral, ela foi se parecendo cada vez mais com as práticas clientelistas que sempre manipularam o voto dos pobres.

O Brasil precisa de uma esquerda sólida e vinculada aos seus ideais de inclusão, diversidade e promoção da ascensão social. Por natureza, a esquerda deveria combater o patrimonialismo, porque esse velho mal brasileiro está na raiz das nossas iniquidades. Por destino, deveria ser progressista porque para conservar privilégios e status quo, já existem os conservadores.