fome

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ministério da Saúde aponta falhas no atendimento aos Yanomami

Agência Brasil*

Estruturas de atendimento em condições precárias, falta de profissionais e uma desassistência generalizada. Essas são as principais conclusões de um relatório do Ministério da Saúde sobre a situação da saúde na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima.

A população da etnia vive uma crise humanitária grave. Afetados pela presença do garimpo ilegal em suas terras, os indígenas dessa região convivem com destruição ambiental, contaminação da água, propagação de doenças e violência. A situação é histórica, mas se agravou nos últimos quatro anos.

A equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que é vinculada ao Ministério da Saúde, levantou as informações do relatório entre os dias 15 e 25 de janeiro deste ano. No dia 20 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e criou o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE), responsável por coordenar as medidas para resolver a crise.

A TI Yanomami, a maior do Brasil em extensão territorial, tem uma população de 30,5 mil indígenas, sendo pelo menos 5,6 mil crianças menores de 5 anos. Ao todo, há 68 polos base para atendimento primário em saúde, mas a situação dessas unidades é precária.

"De fato, temos uma situação de muita precariedade na nossa infraestrutura e, a partir desse plano, estaremos realizando todas as melhorias, para além do orçamento que a Sesai já tem. Há uma decisão da Presidência da República, do Ministério da Saúde, de conseguir uma dotação orçamentária específica para mitigar e para resolver essas situações aqui no território Yanomami", afirmou o titular da Sesai, Ricardo Weibe Tapeba, em entrevista coletiva na tarde de ontem (7). Ele está em Boa Vista acompanhando as ações de enfrentamento à crise.

A equipe que fez o levantamento para o relatório começou investigando a denúncia de três óbitos de crianças, que ocorreram entre 24 e 27 de dezembro do ano passado. O documento destaca que, na ocasião, chegaram a ser abertos 17 chamados aeromédicos para casos graves que exigiam transporte imediato. Já em janeiro, a equipe da missão exploratória constatou pelo menos dez remoções por dia, sendo que 23 crianças foram resgatadas de uma só vez em uma delas.

Somente em janeiro, de acordo com o COE, foram efetuadas 223 remoções, sendo 111 deslocamentos dentro do território e 112 para Boa Vista. Segundo as equipes locais, os principais agravos de saúde na região são de malária, pneumonia, desnutrição e acidente com animais peçonhentos.

Hoje à tarde, os ministros da Defesa, José Mucio, e dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, desembarcam na Base Aérea de Boa Vista. Eles vão cumprir uma série de agendas no estado até amanhã. Na primeira parte da viagem, eles visitam a Base da Operação Acolhida, que recebe os imigrantes venezuelanos, incluindo visita ao posto de recepção, ao Centro de Coordenação de Interiorização e aos abrigos.

Em seguida, eles farão uma vistoria na Casa de Saúde Indígena Yanomami (Casai), também na capital. Já na quinta-feira (9), ambos embarcam para uma visita ao polo de Surucuru, que é um dos centro de referência no território. O local fica a cerca de uma hora e meia de voo da capital do estado. Eles retornam de lá no mesmo dia e voltam a Brasília.

Ameaças

Outro ponto destacado no relatório é a situação de insegurança dentro do território, por causa da presença de garimpeiros. Há pelo menos quatro polos de atendimento fechados na região de Surucucu e três em outras localidades, devido a graves ameaças. Para se ter uma ideia, um desses polos chegou a ser reformado, mas não pôde ser reaberto. O governo federal estuda incluir lideranças indígenas Yanomami no serviço de proteção de defensores de direitos humanos.  

Outro fator que dificultou o atendimento às pessoas na região foi a falta de insumos, em especial, de medicamentos. As remoções de urgências necessitam de insumos como carrinho de parada, oxigênio medicinal em cilindro pequeno, desfibrilador automático externo (DEA), suporte de soro, mas nada disso estava à disposição da equipe no momento do trabalho de campo.

O secretário especial da saúde indígena criticou ainda o que chamou de aparelhamento político no serviço público de assistência à saúde do povo Yanomami. Segundo ele, uma auditoria realizada pelo próprio Ministério da Saúde no DSEI Yanomami já identificou irregularidades em contratos da unidade, e a Polícia Federal ainda investiga o envolvimento de agentes políticos em conluio com garimpeiros.

Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Nas entrelinhas: Estava em curso o genocídio dos ianomâmis

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense

Não poderia ser diferente, depois da reportagem da jornalista Sônia Bridi na reserva Indígena Ianomâmi, domingo, no Fantástico (TV Globo). O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou, ontem, a investigação da possível prática dos crimes de genocídio de indígenas e de desobediência de decisões judiciais por parte de autoridades do governo Jair Bolsonaro.

São imagens chocantes, que equivalem às das crianças do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, cujas fotos me embrulharam o estômago quando lá estive e vi montanhas de cabelo, sapatos, brinquedos, agasalhos, próteses, óculos e outros pertences pessoais que lhes foram tirados. O que mais impressiona é a “racionalidade” com que tudo foi feito, a partir da “banalidade do mal”, como disse a filósofa judia-alemã Hannah Arendt.

O conceito foi cunhado a partir do julgamento em Jerusalém do criminoso de guerra nazista Karl Adolf Eichmann, responsável por ocupar funções na Seção de Assuntos Judaicos do Departamento de Segurança de Berlim. Um dos principais colaboradores de Hitler, acusado pela morte de inúmeros judeus, Eichmann havia fugido para a Argentina, onde foi localizado por agentes israelenses, que o sequestraram e levaram para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte.

Convidada para assistir ao julgamento, Arendt escreveu um livro. Chegou à conclusão de que Eichmann não era um ser demoníaco, mas um mal constante, que fazia parte da rotina de trabalho dos oficiais nazistas. Eichmann nunca se considerou culpado pelos crimes cometidos, disse que apenas “cumpria ordens, seguindo as leis vigentes naquele período”. Acreditava na sua inocência porque seguia ordens superiores e as leis do Estado nazista.

Na avaliação de Arendt, essa seria a justificativa para a ascensão em regimes totalitários e a banalização da razão e coerência do ser humano. Obcecado por poder e ascensão social, Eichmann faria qualquer coisa pelo reconhecimento social e o sucesso na hierarquia nazista, daí a banalização do mal que praticava. No entendimento de Arendt, a razão pela qual deveria ser punido era principalmente essa. Sua racionalidade não era voltada para o bem comum, mas apenas em seu próprio benefício.

As crianças ianomâmis não foram exterminadas nas câmaras de gás como as crianças judias (1,5 milhão foram mortas no Holocausto), estavam sendo mortas pela fome e falta de assistência médica; as adolescentes e jovens eram exploradas sexualmente em troca de comida. Os ianomâmis estavam sendo exterminados por uma política de Estado. Um livro escrito pelo coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto (Biblioteca do Exército, 1995) sustenta que a existência dos Ianomâmis era uma farsa.

Política de extermínio

A Farsa Ianomâmi disseminou nas Forças Armadas e em alguns setores o medo de perder a soberania em áreas da Amazônia brasileira. Menna Barreto apontava um conluio entre ONGs e forças estrangeiras para “separar do Brasil” o território indígena, “cedê-lo aos fictícios ‘ianomâmis’ e “preparar a dominação futura da Amazônia (…) para a posterior criação de países indígenas independentes, sob a tutela das Nações Unidas”.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro, quando comandante militar da Amazônia, vocalizou essa tese publicamente, em razão da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol. Todos os órgãos federais, inclusive os destacamentos de fronteira das Forças Armadas, governadores e prefeitos foram coniventes com a situação. Sabia-se que os garimpeiros estavam contaminando os rios, matando e explorando os ianomâmis, em aliança com os traficantes de cocaína.

Havia um centro de comando dessa política de extermínio: o então presidente Jair Bolsonaro, aliado dos garimpeiros, que trocou e escolheu a dedo os principais responsáveis pelos órgãos de fiscalização, controle e repressão de Roraima, com a orientação de deixar os índios à míngua e liberar geral o garimpo ilegal, assim como em outros estados da Amazônia.

Barroso tomou a decisão de mandar investigar a grave situação enfrentada por nossos indígenas, como a Ianomâmi, com base nos fatos já comprovados. De acordo com lei, comete o crime de genocídio a pessoa que age com intenção de destruir, totalmente ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Ordenou, ainda, que o governo atue para garantir a retirada de garimpos ilegais em sete terras indígenas e fixou prazo de 30 dias para que seja apresentado um diagnóstico dessas comunidades, com o respectivo planejamento e cronograma de execução de medidas.

Seu despacho traduziu a banalização do mal: “Quadro gravíssimo e preocupante, sugestivo de absoluta anomia (ausência de regras) no trato da matéria, bem como da prática de múltiplos ilícitos (crimes), com a participação de altas autoridades federais”.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-estava-em-curso-o-genocidio-dos-ianomamis/

Foto: Agência Brasil

Lula faz reunião sobre ações emergenciais na Terra Yanomami

Agência Brasil*

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez reunião hoje (30) para tratar de ações emergenciais para proteção e auxílio aos yanomami, povo que vive uma crise sanitária que já resultou na morte de 570 crianças por desnutrição e causas evitáveis, nos últimos quatro anos.

Entre as ações previstas estão a assistência nutricional e de saúde, com alimentos adequados aos hábitos dos indígenas, e a garantia de segurança necessária para que equipes de saúde possam atuar nas aldeias. Outra prioridade é garantir rapidamente o acesso a água potável por meio de poços artesianos ou cisternas e medir a contaminação por mercúrio dos rios e nas pessoas.

A Terra Indígena (TI) Yanomami é a maior do país em extensão territorial e sofre com a invasão de garimpeiros. A contaminação da água pelo mercúrio utilizado no garimpo e o desmatamento impacta na segurança e disponibilidade de alimento nas comunidades.

“O presidente determinou que todas essas ações sejam feitas no menor prazo, para estancar a mortandade e auxiliar as famílias yanomami”, informou a Presidência, em nota.

Para combater o garimpo ilegal e outras atividades criminosas na região, devem ser adotadas iniciativas que impeçam o transporte aéreo e fluvial que abastece os grupos criminosos.

“As ações também visam impedir o acesso de pessoas não autorizadas pelo poder público à região buscando não apenas impedir atividades ilegais, mas também a disseminação de doenças”.

Participaram do encontro os ministros da Casa Civil, Rui Costa; da Justiça, Flávio Dino; da Defesa, José Mucio; dos Povos Originários, Sônia Guajajara; dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida; de Minas e Energia, Alexandre Silveira; das Relações Institucionais, Alexandre Padilha; além do comandante da Aeronáutica, Marcelo Damasceno; a presidenta da Funai, Joenia Wapichana; e o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Swedenberger Barbosa.

Embora entidades indígenas e órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) já denunciem a falta de assistência a essas comunidades há muito tempo, agora, com a posse do presidente Lula, o governo federal está implementando medidas emergenciais para socorrer os yanomami.

A última delas, nesta segunda-feira, o Ministério da Justiça e Segurança Pública criou um grupo de trabalho que deverá apresentar propostas de ações a serem implementadas pelo governo federal a fim de combater a ação de organizações criminosas em terras indígenas, incluindo o garimpo ilegal.

Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Quase 100 crianças do povo Yanomami, entre um e quatro anos, morreram devido ao avanço do garimpo ilegal na região em 2022 | Foto: Reprodução/Instagram/urihiyanomami

Revista online | Yanomami: Crise humanitária deve ser resolvida de forma definitiva

Luciano Rezende*, ex-prefeito de Vitória (ES), especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro de 2023)

A mais recente crise humanitária envolve os Yanomami, que vivem no norte da Amazônia, na fronteira Brasil-Venezuela.  Esse povo constitui um conjunto cultural e linguístico composto de, pelo menos, quatro subgrupos adjacentes que falam línguas da mesma família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam). A população total dos Yanomami, no Brasil e na Venezuela, era estimada em cerca de 35.000 pessoas em 2011.

As atividades do garimpo provocam conflitos violentos entre garimpeiros e os povos indígenas locais, levando a agressões e mortes.

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Além disso, as atividades do garimpo são extremamente perigosas para o meio ambiente devido ao uso de metais pesados que contaminam o solo e os rios, levando riscos graves à saúde dos povos expostos ao envenenamento do solo, da água e dos animais não só no local do garimpo, mas também longe do local da extração. É o que parece ser o motivo principal da agudização da grave crise humanitária atual com os Yanomamis.

A atividade garimpeira utiliza o mercúrio para possibilitar a amálgama com o ouro, de forma a recuperá-lo nas calhas de lavação do minério. Tanto o mercúrio metálico perdido durante o processo de amalgamação como o mercúrio vaporizado durante a queima da amálgama para a separação do ouro são altamente prejudiciais à vida.  

Alguns insetos metabolizam o mercúrio metálico em dimetilmercúrio, o qual é altamente tóxico para os seres vivos. Como esses insetos fazem parte da cadeia alimentar, o mercúrio orgânico acaba por ser ingerido pelo ser humano. 

O mercúrio vaporizado ao ser inalado também é altamente tóxico. O mercúrio atinge todo o sistema nervoso, podendo levar à perda da coordenação motora, e, se ingerido ou inalado por grávidas, haverá a possibilidade de geração de fetos deformados, sem cérebro, etc.[1]

Confira, a seguir, galeria:

Foto: Reprodução/Ministério da Saúde
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Condisi-YY/Divulgação
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Sumaum/Divulgação
Foto: Reprodução/Jornalistas Livres
Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto
Foto: Reprodução/Ministério da Saúde
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Condisi-YY/Divulgação
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Sumaum/Divulgação
Foto: Reprodução/Jornalistas Livres
Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto
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Foto: Reprodução/Ministério da Saúde
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Condisi-YY/Divulgação
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Sumaum/Divulgação
Foto: Reprodução/Jornalistas Livres
Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto
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É necessária uma ação imediata e permanente para restabelecer o equilíbrio nessas regiões. Legislação adequada, fiscalização, punição de criminosos e gestão cuidadosa dessa gravíssima crise é urgente.

Resolver a crise causada pelo garimpo ilegal é, na verdade, ir muito além da preservação do solo, dos rios, dos animais e do ser humano. É, também, cuidar da nossa rica diversidade étnica, além de respeitar e ser justo com os nossos povos originários, uma extraordinária riqueza que forjou a nossa própria identidade como povo e nação.

Sobre o autor

* Luciano Rezende é professor, médico, ex-prefeito de Vitória (ES) por dois mandatos (2013-2020) e presidente Conselho Curador FAP/Cidadania.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Para MST e MMC, a erradicação da fome é o desafio prioritário de 2023 - Agência Brasil

"Para acabar com a fome no país, temos a solução", afirmam movimentos populares do campo

Brasil de Fato*

“Tem um trocado para me ajudar?”. A frase, cada vez mais comum nas calçadas das grandes cidades, é evidência empírica do que pesquisas atestam com números. Com quase 59% da população vivendo com algum tipo de insegurança alimentar, 2023 chega para o Brasil tendo a fome como um dos temas centrais do debate público.

“Para acabar com a fome no país, temos a solução. É a reforma agrária: desapropriação de latifúndio, produção de alimento saudável e fortalecimento da agricultura familiar”, afirma Alexandre Conceição, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

Michela Calaça, liderança do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), ressalta que o enfrentamento da fome precisa ser considerado em sua complexidade. “Às vezes parece que é só uma questão de falta de renda. Não é apenas isso. Está ligada à produção de alimentos, à construção da soberania alimentar e à defesa do território. Esse é o principal desafio do nosso momento”, avalia.  

Na opinião de Alexandre, o país precisa mudar sua matriz tecnológica de produção de alimentos, deixando de priorizar a “produção envenenada de commodities do agronegócio” para dar espaço para a agroecologia.   

De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar da Rede Penssan, a falta de comida no prato está ainda mais acentuada nas áreas rurais. Em 60% dos domicílios no campo, a insegurança alimentar é uma realidade. Em uma ironia perversa, a situação afeta mesmo aqueles que vivem do cultivo de alimentos. A fome atinge 21,8% dos lares de agricultores familiares.  

Para o MST e o MMC, movimentos que se engajaram na campanha e nas propostas de transição do novo governo petista, a reversão desse cenário passa pela via institucional. “Enquanto movimentos do campo, da floresta e das águas, temos que construir junto com o novo governo uma proposta de soberania alimentar que vá para além do acesso ao alimento”, opina Calaça.  

O novo governo 

Nos primeiros dias deste terceiro mandato presidencial de Lula (PT), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi reativado por meio de Medida Provisória. O órgão, composto por dois terços de representantes da sociedade civil e um terço de representantes do governo, tem o objetivo de assessorar a presidência sobre o tema. 

Outra novidade é a recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), desvinculado do Ministério da Agricultura. Este último está sob o comando do senador licenciado Carlos Fávaro (PSD), que já presidiu a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso (Aprosoja).  

O ministro da Agricultura foi relator do texto final do PL 510/2021, que segue tramitando no Congresso Nacional e é apelidado por seus críticos como “PL da Grilagem”. Sojicultor, Fávaro chegou a postar em seu Twitter que não mediria esforços para a aprovação do PL, que seria uma “carta de alforria” para os ruralistas.

Já o MDA terá como ministro Paulo Teixeira (PT), que em outubro havia sido eleito para o seu quinto mandato como deputado federal. Em solenidade nesta terça (3), Teixeira afirmou que sua gestão trabalhará “com porta aberta” para os movimentos sociais, “acolhendo sugestões e críticas, naquela ‘amizade incômoda’. Venham para cima”.  

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) ficará sob a alçada de sua pasta e não do Ministério da Agricultura, pasta a que estava vinculada até o último governo.

Expectativas 

“Nós, os movimentos rurais, estamos na expectativa de que a gente possa ter um Executivo fortalecido com a recriação do MDA, que o Incra volte a ser uma instituição voltada à desapropriação de terra e que a Conab seja fortalecida com orçamento”, avalia Conceição. "Quando o Estado compra alimentos para os estoques reguladores da Conab, ele ajuda a combater a inflação dos alimentos”, complementa o dirigente do MST. 

Na visão de Michela Calaça, “é possível e necessário integrar, defender e, ao mesmo tempo, pressionar o governo. É claro que isso não é uma postura individual, mas coletiva. Enquanto organizações sociais, enquanto povo organizado, essa é a tarefa”, diz. 

“O nosso objetivo, como MST, segue sendo o mesmo. Lutar pela terra, pela reforma agrária e pela transformação social. Para essa luta, a ocupação de terra sempre foi e será um elemento central”, salienta Alexandre. “Mas não significa que ao fazer isso, você também não possa fazer disputas institucionais”, aponta. 

“Vamos manter nossa autonomia frente ao governo”, destaca o dirigente do MST, “mas ao mesmo tempo estar junto e cobrar para que, com a reforma agrária, o governo possa de fato cumprir a missão de matar a fome do país”.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Famílias em insegurança alimentar passam fome, assunto regular nos discursos dos candidatos à Presidência | Foto: Nelson Antoine/Shutterstock

Revista online | Fome cai na boca de presidenciáveis e grita na barriga dos mais pobres

“Aqui em casa a mistura só é arroz e farinha. De manhã, meus meninos comem pão seco com água. Não tenho dinheiro para comprar leite”. O desabafo é da dona de casa Graziela dos Santos Pereira, de 27 anos, mãe solo de quatro meninos, de 11, 10, 8 e 6 anos, respectivamente. “Não consigo tomar nem remédio, porque dói com a barriga vazia”.

Moradora do Sol Nascente, favela no Distrito Federal e uma das maiores no Brasil, Graziela vive de “fazer bico de diarista”, como ela mesma conta, mas apenas quando consegue deixar as crianças aos cuidados de algum parente ou vizinho. “Não sobra para comer. A gente vive da compaixão das pessoas”, afirma. Ela se mudou do Maranhão para o DF, no ano passado, em busca de melhores condições de vida.

Sentada em uma cadeira de madeira de um barraco de lona, onde mora com os filhos, ela diz receber R$ 600 de auxílio do governo federal. Ela diz que “quebrar o jejum com pão de manhã”, “engolir a mistura no almoço” e repetir “arroz com farinha” na janta tem sido a realidade da família dela. “De vez em quando, a gente recebe ovo. Aqui não tem jeito de nem de guardar carne porque falta geladeira”, diz.

O retrato da miséria se estende a outras famílias brasileiras. Estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), divulgado neste mês, mostra que três em cada dez famílias enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave no país. 

No total, em todo o país, 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar, que tem três gradações: leve, moderada e grave. Famílias em insegurança alimentar grave passam fome, assunto regular nos discursos dos candidatos à Presidência da República e que mostra a gravidade do cenário brasileiro.

Negacionismo

No Brasil, a fome também é um dos assuntos que mais fazem os adversários cobrar explicações do presidente Jair Bolsonaro nos debates. Ele, porém, vai na linha do ministro da Economia, Paulo Guedes, que diz ser impossível ter 33 milhões de brasileiros passando fome no país.

Além disso, no mês de agosto, Bolsonaro vetou o reajuste de verbas para a merenda escolar aprovado pelo Congresso. Por isso, hoje o repasse para a compra de alimento para cada estudante do ensino fundamental e médio é de apenas R$ 0,36.

Se levar em conta a insegurança leve, de acordo com a pesquisa, o problema fica muito maior. No país, existem 125,2 milhões de pessoas com preocupação sobre a disponibilidade de alimentos, com algum grau de indisponibilidade deles ou passando fome. Equivale a seis em cada dez famílias brasileiras.

De acordo com o levantamento, as populações das regiões Norte e Nordeste são as que mais sofrem, em termos proporcionais, com a insegurança alimentar grave. No Maranhão, estado onde nasceu Graziela, por exemplo, quase dois terços (63,3%) das residências com crianças até dez anos apresentam insegurança alimentar moderada ou grave. 

Em seguida, segundo a pesquisa, aparecem Amapá (60,1%), Alagoas (59,9%), Sergipe (54,6%), Amazonas (54,4%), Pará (53,4%), Ceará (51,6%) e Roraima (49,3%). As famílias com renda inferior a meio salário-mínimo por pessoa estão mais sujeitas à insegurança alimentar moderada e grave. 

"Os resultados refletem as desigualdades regionais e evidenciam diferenças substanciais entre os estados de cada macrorregião do país. Não são espaços homogêneos do ponto de vista das condições de vida. Há diferenças socioeconômicas nas regiões que pedem políticas públicas direcionadas para cada estado que as compõem", diz Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan.

Grave retrocesso

O ano de 2022 será lembrado como o marco de um grave retrocesso da segurança alimentar no Brasil com uma quantidade de pessoas passando fome ainda maior do que o registrado 30 anos atrás. O governo, porém, nega.

Se hoje 33 milhões de brasileiros passam fome no país, em 1993, eram 32 milhões de pessoas nessa situação, de acordo com levantamento semelhante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A população brasileira era 27% menor que a de hoje.

O governo alega que o consumo dos mais pobres está garantido com os programas de transferência de renda cujos valores aumentaram no último ano. O negacionismo do governo do presidente Jair Bolsonaro sobre a fome se comprova, inclusive, na falta de programa efetivo de combate ao problema ou de orientação da população relacionada ao consumo adequado de alimentos.

A Organização das Nações Unidas (ONU) orienta que reduzir desperdício de alimentos é a saída para combater a fome e a insegurança alimentar. O órgão estima que 17% de toda a produção global de comida é desperdiçada, a maior parte dentro das casas. Locais que servem comida, como restaurantes, totalizam 5% desse desperdício, e os varejos de alimentar, 2%.

O problema, que atinge principalmente quem vive em favelas ou outras áreas mais pobres do país, tem chamado atenção de líderes mundiais, que vem pedindo esforços contra a crescente insegurança alimentar, agravada pela convergência de crises, pela invasão russa e falta de fertilizantes.

Em declaração conjunta, publicada ao final de uma reunião ministerial à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, neste mês, Estados Unidos, União Europeia, União Africana, Colômbia, Nigéria e Indonésia afirmaram seu "compromisso de agir de forma urgente, global e concertada para responder às extraordinárias necessidades alimentares de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo". 

Graziela, que olhava seus filhos brincarem no terreno de chão batido onde fica seu barracão, diz não ter perspectiva de melhoria. “Está todo mundo falando disso agora como se estivesse preocupado porque é época de eleição, mas viver assim já é algo banalizado. Todo dia a gente ouve o estômago ‘roncar’ de fome em algum momento”, afirma.

“Fome tem solução” 

O diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos no Brasil, Daniel Balaban, diz que o principal desafio no combate à fome no mundo é mobilizar países a criarem medidas que os façam parar de pedir ajuda externa. “Para isso, eles têm que investir em políticas públicas”, afirmou. 

O diretor ressalta que a continuidade de políticas públicas possibilitará à população acesso a direitos básicos, como alimentação nutritiva e saudável. “A fome tem solução, e, para isso, temos que ter vontade política de resolver o problema. Sem esse investimento contínuo, há risco de os países continuarem a enfrentar cenários de insegurança alimentar e desigualdade social”, alertou. 

Confira, a seguir, galeria de fotos:

Mais de 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar | Foto:  Jorge Hely Veiga/Shutterstock
Em muitos lares brasileiros, há dias em que as panelas e os pratos estão vazios  | Foto: Arquivo/Agência Brasil
Com osso bovino nas mãos simbolizando a fome, mulher protesta contra o presidente Jair Bolsonaro (PL) | Foto: Thales Antonio/Shutterstock
O ano de 2022 será lembrado como o marco de um grave retrocesso da segurança alimentar no Brasil | Foto: Joa Souza//Shutterstock
Sem dinheiro para comprar carnes, brasileiros aproveitam restos de açougues | Foto:  Thales Antonio/Shutterstock
O número de pedintes e moradores de rua cresceram bruscamente no Brasil | Foto:  Nelson Antoine/Shutterstock
Mais de 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar | Foto: Jorge Hely Veiga/Shutterstock
Em muitos lares brasileiros, há dias em que as panelas e os pratos estão vazios | Foto: Arquivo/Agência Brasil
Com osso bovino nas mãos simbolizando a fome, mulher protesta contra o presidente Jair Bolsonaro (PL) | Foto: Thales Antonio/Shutterstock
O ano de 2022 será lembrado como o marco de um grave retrocesso da segurança alimentar no Brasil | Foto: Joa Souza//Shutterstock
Sem dinheiro para comprar carnes, brasileiros aproveitam restos de açougues | Foto: Thales Antonio/Shutterstock
O número de pedintes e moradores de rua cresceram bruscamente no Brasil | Foto: Nelson Antoine/Shutterstock
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Mais de 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar | Foto:  Jorge Hely Veiga/Shutterstock
Em muitos lares brasileiros, há dias em que as panelas e os pratos estão vazios  | Foto: Arquivo/Agência Brasil
Com osso bovino nas mãos simbolizando a fome, mulher protesta contra o presidente Jair Bolsonaro (PL) | Foto: Thales Antonio/Shutterstock
O ano de 2022 será lembrado como o marco de um grave retrocesso da segurança alimentar no Brasil | Foto: Joa Souza//Shutterstock
Sem dinheiro para comprar carnes, brasileiros aproveitam restos de açougues | Foto:  Thales Antonio/Shutterstock
O número de pedintes e moradores de rua cresceram bruscamente no Brasil | Foto:  Nelson Antoine/Shutterstock
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Segundo Balaban, boas práticas de combate à fome devem ser ancoradas em quatro pilares principais: ajuda humanitária, investimento em educação, políticas de auxílio a pequenos produtores rurais e investimento em ciência e tecnologia. A orientação serve, sobretudo, para países que tiveram a situação da fome agravada pela pandemia da covid-19.

Assistente social e mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Andreia Lauande ressaltou que a fome não é um problema que surgiu com a pandemia do coronavírus. “Infelizmente, não é só a pandemia responsável por esse processo. Nós passamos por uma crise extremamente complexa que se acentuou com a pandemia”, disse ela.

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Ocupação Terra de Deus, na zona sul de São Paulo, surgiu durante a pandemia de covid-19. Foto divulgação BBC News/ Leandro Machado

Fome e crise estão abrindo 'hiperperiferias' em São Paulo

Leandro Machado | BBC News Brasil

Todo destino é incerto na Terra de Deus. Onde estarão os moradores no próximo mês? Em outra ocupação? Em outra cidade? Na rua? Em breve eles terão de sair, mas a vida errante não dá respostas fáceis. Uma das lideranças explica o nome da comunidade: "Quando a gente ocupou, um cara perguntou que lugar era esse. Respondi: 'só Deus sabe'. Se só Ele sabe, é Terra de Deus."

A ocupação Terra de Deus é exemplo de uma nova fronteira para onde a periferia paulistana está avançando. Ou, segundo alguns urbanistas, uma "hiperperiferia". A área nasceu há dois anos no bairro do Grajaú, extremo da zona sul de São Paulo, distrito mais populoso da cidade, com 360 mil habitantes.

Ela é uma das 516 ocupações de movimentos de habitação monitoradas pela Prefeitura de São Paulo. Em fevereiro de 2020, pouco antes do início da pandemia no Brasil, eram 218 dessas áreas na capital — uma alta de 136% em dois anos e meio.

O cenário do entorno é típico das periferias paulistanas: ruas estreitas, sobrados colados uns aos outros, dezenas de prédios de moradia popular e um comércio efervescente nas avenidas maiores. Na Terra de Deus, contudo, predominam os barracos de madeira e as ruas de terra; não há pontos de ônibus ou comércio. Canos e fios expostos mostram que água e energia elétrica só chegam por meio de gambiarras clandestinas.

O assentamento abriga pessoas em situação de ainda maior vulnerabilidade do que as que habitam as periferias da capital. São os chamados "nômades habitacionais", muitos dos quais em situação de fome, desempregadas e desamparadas, com acesso escasso a políticas e serviços públicos como saúde e transporte.

Aldenira Amarante
Legenda da foto,Aldenira Amarante terá de deixar sua casa ainda neste mês

"Eu amo esse lugar", diz Aldenira Amarante, de 50 anos, que chegou há dois anos com o marido e dois filhos. "Foi onde construí minha casa, meus filhos moram do meu lado", conta, enxugando as lágrimas em frente à casa de alvenaria erguida a duras penas.

Antes da pandemia, a família pagava R$ 800 de aluguel em outro bairro da zona sul. Mas seu companheiro perdeu o emprego de serviços gerais. "Era comer ou pagar o aluguel. Um amigo disse que estavam vendendo um terreno aqui e decidimos tentar comprar", diz.

Como muitos na Terra de Deus, a família pagou pela terra e pela esperança da casa própria — no caso, dinheiro que não tinha.

Aldenira e o marido pegaram um empréstimo no banco e deram R$ 6 mil para um vendedor que circulava pela região. O restante foi usado para erguer a residência, que será demolida nas próxima semanas. Da casa só vai ficar a dívida.

O problema é que o terreno da Terra de Deus era particular e foi recentemente adquirido pela prefeitura para a construção de conjuntos habitacionais (prometidos para 2024) e para o prolongamento de um parque linear ao lado do Córrego Ribeirão-Cocaia.

"Não quero nem olhar quando vierem derrubar. Não sei como vai ser, para onde vamos... É voltar para o aluguel, mas é difícil arrumar casa com R$ 400 por mês do auxílio", diz a dona de casa, que vai receber o auxílio-moradia da prefeitura e entrou na fila da habitação social do município - atualmente com 166 mil pessoas.

Hoje, o assentamento tem algumas dezenas de famílias, mas chegou a abrigar 1.200 no auge da pandemia. Quem saiu foi para outras ocupações ou para a rua.

Nos últimos meses, um a um, os barracos e casas de alvenaria estão sendo derrubados pela construtora responsável pelos novos prédios, deixando montes de tijolos, madeira e móveis.

Quem ficou convive com caminhões e tratores avançando com a terraplanagem e as demolições. Segundo a prefeitura, os moradores cadastrados vão receber auxílio-moradia e foram incluídos em programas sociais de transferência de renda e doação de cestas básicas.

Aldenira já viu muitos vizinhos deixarem o terreno. "A pessoa saía para procurar emprego e, quando chegava, a casa dela estava no chão", conta. Agora, ela espera que um dos futuros apartamentos daqui seja destinado à sua família. "Sonho com isso, mas se vai acontecer mesmo, só confiando em Deus."

Nômades habitacionais

Esse cenário de migrações constantes por parte de famílias pobres foi descrito pela urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, como "transitoriedade permanente" no livro Guerra dos Lugares (Editora Boitempo).

"São centenas de milhares de pessoas que são removidas, excluídas e despejadas, seja por incapacidade de pagar o aluguel ou por processos de remoção e reintegração de posse. São pessoas eternamente jogadas para fora, inclusive por políticas públicas", diz Rolnik à BBC News Brasil.

Um dos principais fatores que contribuem para isso são os despejos. Levantamento da campanha Despejo Zero apontou que 125 mil pessoas - entre elas 21,4 mil crianças - foram removidas de suas casas no Brasil entre março de 2020 e maio deste ano.

Em 2020, uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu despejos e desocupações na pandemia, embora eles tenham continuado a acontecer. Em agosto, a maioria do plenário do STF prorrogou a suspensão até 31 de outubro - só votaram contra os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça.

Terra de Deus
Legenda da foto,Ocupação Terra de Deus vai abrigar unidades habitacionais e parque linear

Áreas como a Terra de Deus se tornaram refúgio para o contingente de despejados. Em suma, esses locais ficam em bairros dos extremos do município, como Grajaú e Campo Limpo, ou da região metropolitana, em cidades como Itapecerica da Serra e Carapicuíba.

Podem ocupar áreas com risco de deslizamento, mananciais e pontos de preservação ambiental. Mas, ao contrário da periferia "mais antiga", sofrem mais com a precariedade e falta de serviços públicos, e têm uma população mais vulnerável e com renda mais baixa. Alguns pesquisadores chamam esses lugares de "hiperperiferia".

"A hiperperiferia pode ser caracterizada por aquelas áreas de periferia que, ao lado das características mais típicas destes locais, apresentam condições adicionais de exclusão urbana", escreveram os pesquisadores Haroldo da Gama Torres e Eduardo Cesar Leão em um estudo dos anos 2000.

Para Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), as hiperperiferias "são núcleos de ocupação recente, mais distantes e precárias, nas franjas da região metropolitana".

"Elas retomam esse padrão de casas de madeira, rua de terra e sem infraestrutura básica. É como se fosse a periferização da periferia", diz o urbanista.

Expulsão dos pobres

sofá abandonado na Terra de Deus

Para Talita Anzei Gonsales, pesquisadora do Laboratório Justiça Territorial da Universidade Federal do ABC, "as cidades brasileiras se estruturam por meio da expulsão dos mais pobres de bairros valorizados pelo mercado imobiliário" — e isso acontece até em pontos historicamente conhecidos como periféricos.

"Itaquera (zona leste) já foi periferia, mas hoje há um interesse muito grande do mercado para a construção de prédios. Isso aumenta os preços da terra e do aluguel, expulsando as pessoas mais pobres", diz.

Já a pesquisadora Gisele Brito, coordenadora de direito a cidades antirracistas do Instituto de Referência Negra Peregum, explica que "a crise econômica e a falta de políticas públicas de habitação e de desenvolvimento das cidades levam as pessoas para áreas onde elas conseguem pagar".

Ela ressalta que a maior parte dessa população é negra e ainda enfrenta processos de estigmatização quando os lugares onde vivem são classificados pelo poder público como "áreas de risco".

"Do que adianta reconhecimento do risco se não existe alternativa habitacional e oportunidades de aumento da renda? E isso tudo é pior com a população negra, que historicamente enfrentou mecanismos de impedimento de acesso à terra. Dificilmente uma pessoa negra recebe um pedaço de terra de herança", diz.

Umas das críticas de Brito aos programas de habitação, como o Casa Verde e Amarela, lançado pelo presidente Jair Bolsonaro em substituição ao Minha Casa, Minha Vida, é que "eles não priorizam famílias com faixa de renda entre um e dois salários mínimos", dando ênfase à população com um poder aquisitivo maior.

E essa situação pode piorar. No orçamento enviado ao Congresso, o governo Bolsonaro reduziu para apenas R$ 34,1 milhões o montante destinado ao Casa Verde e Amarela em 2023, redução de 95% do valor deste ano.

Já a Prefeitura de São Paulo afirma que, desde 2017, foram entregues mais de 33 mil moradias à população, feitas por programas que envolvem o município e os governos estadual e federal.

'Enganado do começo ao fim'

Na Terra de Deus, o pedreiro Paulo Duarte, 50, é um desses "nômades habitacionais". Morou por quatro anos com a mulher e o filho na periferia do Recife, em Pernambuco, mas faltava trabalho para ele na cidade. Deixou a família e voltou a São Paulo para procurar emprego e enviar o dinheiro à esposa.

"Fui para São Mateus (zona leste) no ano passado, mas não consegui emprego nem casa", conta ele, que se cadastrou no Auxílio Brasil, mas não sabe por que ainda não recebeu o benefício.

A maior parte dos moradores diz receber o auxílio, mas ressalta que, embora ajude na alimentação, ele não garante melhora significativa na renda. Alguns afirmam enfrentar problemas burocráticos para acessar o benefício.

Sem esperança ou qualquer centavo, Duarte se mudou para a Terra de Deus na virada do ano.

"Acreditei em uma coisa, mas estou vivendo outra. Não consigo comer direito, peço as sobras dos restaurantes. Perdi 10 quilos. Não tenho dinheiro nem para procurar trabalho", conta ele, que, ao final da entrevista, pede à reportagem algumas moedas para tomar café e comprar um cigarro.

O artesão Janesson Santiago, 42, também enfrenta mudanças constantes desde que saiu de Salvador, na Bahia, há três anos. Desembarcaram na favela de Paraisópolis, mas não conseguiram bancar o aluguel de R$ 600 na comunidade.

Janesson Santiago
Legenda da foto,Janesson Santiago migrou de Paraisópolis para a ocupação Terra de Deus, no Grajaú

"E também tinha conta de água e de luz, que pesam muito. Um mês eu pagava o aluguel, no outro a comida. Até que o dono não aceitou mais, e tivemos que sair. Quisemos tentar algo nosso, porque faz diferença morar naquilo que é seu", conta ele, que cria três crianças com a esposa — ambos estão desempregados.

Santiago soube da venda de lotes na Terra de Deus em um anúncio no Facebook. Pediu dinheiro emprestado a amigos e pagou R$ 20 mil pelo terreno, onde construiu uma casa, que também será demolida em breve.

"Me sinto enganado do começo ao fim. Estamos à deriva, sem futuro. Nem os agentes de saúde entram aqui, nem o Censo quis entrar", diz.

Influências

As hiperperiferias são loteadas de maneira irregular por diversos vendedores — em alguns casos, gente que diz pertencer ao crime organizado, segundo relatos ouvidos pela reportagem em bairros da zona sul.

Em nota, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) diz ter realizado dezenas de operações para combater ocupações ilegais e crime organizado em áreas de mananciais junto ao Ministério Público e à Polícia Civil.

Por outro lado, o extremo sul tem a influência e serve como reduto eleitoral de vários políticos, como os vereadores petistas Donato e Alfredinho, além de membros da família Tatto, também do PT.

Outro nome influente é o vereador Milton Leite (União Brasil), presidente da Câmara Municipal, cujos filhos também atuam na política.

O próprio prefeito, Ricardo Nunes, tinha a região como base eleitoral quando era vereador.

O Grajaú foi uma das poucas zonas eleitorais de São Paulo onde o petista Fernando Haddad ficou à frente de Bolsonaro no pleito de 2018 — teve 57% dos votos, ante 43% do rival.

No último sábado, o bairro foi palco de um comício do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder das pesquisas de intenção de voto para a eleição presidencial de domingo.

'Minha vida melhorou aqui'

ocupação Parque União
Legenda da foto,A ocupação Parque União fica às margens do Rodoanel, em Itapecerica da Serra

A hiperperiferia também cresce em cidades da Grande São Paulo.

A ocupação Parque União, em Itapecerica da Serra, avança há dois anos às margens do trecho sul do Rodoanel, complexo viário que interliga as principais rodovias do Estado.

A liderança do assentamento diz abrigar 5 mil pessoas — cerca de 300 crianças. Ele se tornou um pequeno bairro periférico com mais de mil barracos, ligações de água e energia elétrica clandestinas e 11 ruas de terra — a principal tem um 1 km de extensão.

A ocupação fica em uma área de proteção ambiental. Na entrada, uma clareira foi aberta para abrigar uma sede e um futuro ponto de ônibus - a população só consegue sair dali a pé ou de carro, pois não há transporte coletivo próximo.

A prefeitura de Itapecerica afirma que o terreno pertence a uma empresa e que há a previsão de reintegração de posse em breve. Também diz que a população é atendida por "políticas públicas de saúde, educação, assistência social, entre outras".

Segundo uma das lideranças, Luzicléia Jesus, um levantamento mostrou que 80% dos moradores estão desempregado. "Olha aqui esse vídeo", diz, e mostra a imagem de um homem tentando ligar um fogão em um barraco, mas o fogo não acende porque o gás acabou.

barraco na ocupação Parque União
Legenda da foto,Ocupação Parque União tem cerca de 5 mil moradores, segundo liderança

"Todos os dias recebo uns quatro ou cinco desses aqui, gente me pedindo comida, criança com fome. É com isso que tenho de lidar", diz Luzicléia, que faz parte de um movimento de moradia e vive em outra área ocupada recentemente.

Caminhando pelo Parque União, ela promete comida e cobertores aos recém chegados e mostra alguns barracos que já estão virando casas de alvenaria. Em um deles mora Tamili dos Santos, 32, faxineira desempregada, mãe de cinco crianças.

Depois de ter o último filho, há um ano e 9 meses, ela foi despedida do emprego e despejada de Embu das Artes. Ela e o marido só encontraram abrigo no Parque União, onde estão construindo uma casa com o dinheiro arrecadado na venda de produtos para reciclagem.

Tamili dos Santos em seu barraco
Legenda da foto,Tamili dos Santos, mãe de cinco filhos, chegou à ocupação em Itapecerica depois de ser despejadas

"Minha vida melhorou muito aqui. Só de não ter de pagar aluguel, água e luz, já é uma grande coisa. Comida a gente corre atrás... Só peço a Deus uma casinha para criar os filhos", afirma ela, sorridente, comemorando a laqueadura que iria fazer no dia seguinte no SUS.

Na mesma rua, o motorista Alexandre de Morais, 55, reclama do frio na comunidade cercada por uma mata. "Você daria um cobertor para mim?", pede à Luzicléia, que promete um edredom.

Morais foi despejado de uma casa em Cotia. Passou a viver no caminhão onde trabalhava, mas seu patrão vendeu o veículo com ele dentro — chegou à ocupação dois dias antes da reportagem.

No barraco, sofre com as dores de um câncer terminal no estômago. "Parei de me tratar, porque não tenho como ir nas consultas", diz. Ainda não tinha almoçado por volta das 17h. "Não consigo tomar os remédios, porque eles doem com a barriga vazia."

Mas uma criança de repente aparece com um pote de arroz, salada e bife. "Minha mãe mandou para o senhor", diz o menino. "Agradeça a ela, meu filho", responde Morais.

Enquanto come, pede que sua história seja contada nesta reportagem: "Pode colocar meu nome, sim, mostra isso aqui para eles... Sei que estou morrendo, mas queria morrer com dignidade, não desse jeito, magro, longe do meu filho. Essa é a realidade do Brasil que jogam para debaixo do tapete. Morrendo à míngua, no frio e com fome."

Matéria publicada originalmente no portal BBC News Brasil


Tenho fome Brasil | Foto: Joa Souza/Shutterstock

A urgência da fome é a urgência pela democracia

Denise De Sordi*, Brasil de Fato

“Geografia da fome”, de Josué de Castro é um livro que nos chama à ação. Daqueles que lemos e nos sentimos atordoados. Tem um sentido de urgência, de chamado da história. Foi este livro que nos explicou – e segue nos lembrando - que a fome não é natural, é um “fenômeno” social, é “marcante”, é “regular”, é “gritante” e é “extensa”. Um “problema” que, na década de 1940 – quando foi publicado, demandava uma “nova perspectiva” ofertada pelas ciências humanas e sociais, que estava ali, pelas mãos do autor, articulada num “método geográfico”, permitindo o estudo do problema sem “arrebentar as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos” (p.16). A publicação deste livro, mais do que alertar para a fome, permitiu ainda dizer em alto e bom som que o acesso aos alimentos está ligado à renda dos trabalhadores.  

Como nos alertou Milton Santos na Apresentação, se a fome fosse algo da “natureza” a culpa seria “de ninguém”, o livro subverte, a partir de extenso estudo, este entendimento. Há uma culpa que está relacionada à organização da sociedade, aos “sistemas econômicos e sociais” (p.30). A pobreza generalizada da população explicava – e ainda explica – a fome mais do que outros fenômenos.  

Não à toa, a publicação do livro potencializou um debate que já corria ao longo dos anos da década de 1930 e que se estenderá para a concretização do salário mínimo como forma de garantia de acesso aos mínimos de sobrevivência aos trabalhadores. “Geografia da Fome” revirou as discussões políticas no período em que foi lançado e abriu um campo de discussões no qual a dimensão do que conhecemos por segurança alimentar foi incorporada ao campo das políticas públicas que começavam então a se desenhar e ser implementadas.  

Entretanto, é preciso lembrar que a fome hoje, esta que se alastrou pelo país desde 2016 e que se acentuou entre 2021 e 2022 provocando o retorno do país ao Mapa da Fome (FAO) não tem o mesmo sentido histórico que possuía em 1940, ou nos anos que seguiram, cortados por um intervalo histórico sombrio que travou as iniciativas, por exemplo, de programas alimentares. Período que foi finalizado pelas mobilizações populares e pela conquista da democracia, materializada como o pacto social que firmamos em 1988. Foi justamente por meio do acúmulo de experiências históricas derivado de inúmeras mobilizações populares engajadas na construção da redemocratização do país que a democracia brasileira tomou forma como prática de Estado e, assim, as políticas públicas sociais em nível nacional foram gradativamente conquistadas, ao longo dos anos da década de 1990, enquanto uma das principais formas de operacionalizar o pacto democrático.

Políticas e programas sociais não são, portanto, ações voltadas apenas para aqueles que são caracterizados pelo Estado como “pobres” – figura técnica e institucionalmente definida nos anos 2000 por linhas de corte de renda - políticas e programas sociais são parte orgânica da forma que assume a relação entre Estado e sociedade, são para todos nós. A experiência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) – extinto em 1995, retomado em 2003 e extinto novamente em 2019 - talvez seja o exemplo mais claro de como esta relação pode se concretizar e ampliar a democracia.


Uma das características do projeto Cozinhas Solidárias é o plantio de hortas para aproximar as comunidades dos cuidados e usos dos alimentos / Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

Programas e políticas sociais não resolvem todas as questões sociais, mas indicam os termos do pacto social para lidarmos com a educação, a saúde, a pobreza, a fome, o emprego, o consumo, o acesso aos alimentos, a cultura, a política e assim por diante. Desde 2016 vivemos uma virada discursiva que intenciona resumir as políticas e programas sociais ao papel de “atenção aos pobres”. Esta é uma estratégia de “redução do Estado”, por meio da qual, cada vez mais, os Direitos Sociais deixam de ter como horizonte a universalização e são cada vez mais restringidos, isto é; focalizados.

Mais recentemente, no desaguar das consequências deste discurso, programas sociais construídos tendo em vista a complexidade da sociedade brasileira, foram desmanchados e/ou tornados inoperantes para atender ao processo de aprofundamento da exploração e expropriação dos trabalhadores. É uma agenda política e econômica que não só reproduz o empobrecimento e a pobreza como condição de vida majoritária, mas para a qual a permanência da pobreza no país é favorável.  

Dentre os programas extintos estão o Programa Bolsa Família (PBF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Ambos nos remetem à conquista histórica da democracia no Brasil contemporâneo. A existência deles só foi possível porque o jogo democrático permitiu, ao longo dos anos de 1990 e 2000, a confluência de interesses diversos, a soma de diferentes perspectivas sobre quais são os melhores caminhos para se gerir o ritmo do empobrecimento, equilibrando as agendas econômica e social. Enquanto expressão das relações entre Estado e sociedade, não foi sem pressão e sem olhar para as práticas dos movimentos sociais e dos sujeitos organizados nas áreas urbanas e rurais, que estas políticas e programas foram formulados. É um tipo de dinâmica das relações entre Estado e sociedade que, para ser legítima e duradoura, deve contar com movimentos de baixo para cima que se traduzam em políticas e programas que os traduzam de cima para baixo.   

É esta dinâmica que é também preventiva da corrosão democrática, por isto, a reconstrução destas políticas e programas sociais parece demandar novamente um olhar para compreender o que está a ocorrer nas cozinhas solidárias, na constituição dos bancos de alimentos, e nas formas pelas quais movimentos sociais têm se organizado para garantir a sobrevivência da população, a partir de concepções que estão fincadas na solidariedade social. Isto é, a solidariedade como um valor democrático e um projeto de sociedade.  

Não se trata de uma agenda de ações emergenciais, mas de práticas para o agora que auxiliam na formulação política do futuro. A formulação de agendas deste tipo é algo que, historicamente – basta olharmos para as mobilizações ao longo dos anos de 1990 –, se potencializa quando emerge pelas mãos dos movimentos sociais, a exemplo das dezenas de cozinhas solidárias espalhadas pelos estados brasileiros pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST. As cozinhas solidárias - diferentes das comunitárias – oferecem uma experiência social inédita, revisitando a ideia das cozinhas coletivas das próprias ocupações urbanas para que se promova, no cenário de agora, um elo entre a produção dos alimentos e seus produtores, o consumo e a distribuição. É um tipo de ação que ganha relevo mediante o fim do PBF e a desarticulação do PAA em seu papel social.  

A soberania e a segurança alimentar andam junto com práticas democráticas. Lidar com a condição de insegurança alimentar, caracterizada por sua dimensão da fome, é também um compromisso histórico com a democracia. Ambas são tarefas urgentes. Há 33 milhões de nós impacientes e com fome.

*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato.


Arquivo/ Agência Brasil

Desnutrição aumenta no Brasil; índice é maior entre meninos negros

BBC News Brasil*

A desnutrição entre crianças de 0 a 19 anos cresceu, no Brasil, entre os anos de 2015 e 2021, afetando de forma mais grave os meninos negros. De acordo com o Panorama da Obesidade de Crianças e Adolescentes, divulgado hoje (26), pelo Instituto Desiderata, há um crescimento da fome nos últimos anos, levando à desnutrição em todos os grupos etários, de 0 a 19 anos de idade.

De acordo com o levantamento, o índice de desnutrição caiu de 5,2%, em 2015, para 4,8%, em 2018, aumentando a partir daquele ano em todos os grupos etários acompanhados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2019, essa taxa subiu para 5,6%, atingindo 5,3%, em 2021.

A desnutrição entre meninos negros (pretos e pardos), entretanto, foi dois pontos percentuais acima do valor observado entre meninos brancos, ampliando a diferença a partir de 2018. O ápice foi observado em 2019 (7,5%). Em 2020, o percentual foi 7,2% e, em 2021, 7,4%.

Já entre os meninos brancos, a curva foi inversa, com redução do percentual da desnutrição a partir de 2019, quanto atingiu 5,1%, passando para 5%, em 2020, e para 4,9%, em 2021.

“Os meninos negros estão sendo mais afetados pela fome, pela desnutrição. A gente pode atribuir isso à desigualdade racial e de renda no Brasil. A gente sabe que a população negra ocupa as camadas mais pobres da sociedade, em detrimento da população branca, que ocupa outros grupos, como a classe média e classes mais altas”, apontou o gestor de Projetos de Obesidade Infantil do Instituto Desiderata, Raphael Barreto, doutorando em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Elaborado a partir de dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) do Ministério da Saúde, gerados pelas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), o Panorama mostra aumento da insegurança alimentar de 2015 a 2021, aumentando as incidências de desnutrição e também de obesidade

Obesidade

O panorama apontou que o excesso de peso vem crescendo em todos os grupos raciais, mas, especialmente, entre os meninos brancos. “Meninos brancos têm sido mais afetados pelo excesso de peso. A gente pode atribuir isso também à insegurança alimentar”.

Barreto explicou que, no placar da má nutrição produzido pela insegurança alimentar, os grupos mais vulneráveis não têm acesso ao mínimo, que são três refeições por dia, e passam por um quadro de fome e desnutrição. Já outros grupos são afetados pela crise econômica e inflação, mas ainda conseguem comprar alimentos, em geral, ultraprocessados e açucarados, como macarrão instantâneo, salsichas, doces, sucos artificiais. “Produtos que fazem mal à saúde, mas que são possíveis comprar”.

Em 2021, a condição de excesso de peso decorrente da má nutrição foi mais registrada entre meninos de 5 a 9 anos de cor branca.

Nos últimos sete anos, o consumo de alimentos ultraprocessados na faixa etária de 2 a 19 anos superou 80%. Em 2021, 89% das crianças de 5 a 9 anos relataram o consumo de, ao menos, um ultraprocessado no dia anterior à avaliação de acompanhamento no SUS.

Feijão em falta no prato

Raphael Barreto chamou a atenção para a redução do consumo de feijão, no Brasil, ano após ano. Esse grão é considerado um marcador de alimentação saudável, fundamental para a prevenção da anemia por deficiência de ferro. Além disso, possui minerais, vitaminas e proteínas, ajuda a inibir o aparecimento de doenças cardíacas e a diminuir o colesterol.

De 2015 até 2020, o indicador referente ao consumo de feijão tinha valores acima de 80%. Em 2021, entretanto, a taxa diminuiu 30 pontos percentuais em todos os grupos etários de 2 a 19 anos, atingindo a marca de 54,5%.

“Em 2020, 84% das adolescentes de 10 a 19 anos tinham ingerido feijão na data anterior à consulta no SUS, sendo que a partir de 2021, esse número cai para 54,5%. Tem uma redução importante no consumo de feijão. A gente vê que a insegurança alimentar e a crise econômica estão tão fortes que um alimento básico, como o feijão, está faltando no prato dos brasileiros”.

Pandemia

Segundo o gestor de Projetos de Obesidade Infantil do Instituto Desiderata, o cenário pandêmico agravou as desigualdades sociais, potencializando os efeitos da crise econômica e tornando maior o quadro da obesidade, em função do distanciamento social.

Com a redução das atividades externas e o isolamento em casa, as crianças e os adolescentes estiveram expostos a mais tempo de tela (computador, televisão ou celular), reduziram as atividades físicas e a ida à escola.

“Isso também contribuiu para o aumento da obesidade, além, principalmente, do consumo de alimentos ultraprocessados. A gente percebe que tem um aumento no preço dos alimentos, em geral, como os minimamente processados, in natura, como verduras, frutas e legumes. As proteínas aumentaram de preço, mas os alimentos ultraprocessados não aumentaram tanto”.

Segundo Barreto, os alimentos ultraprocessados causam mal à saúde e trazem risco de aumento da obesidade, hipertensão, diabetes e outras doenças crônicas não transmissíveis. “As famílias não conseguiram mais manter a alimentação baseada em alimentos minimamente processados ou in natura e tiveram que migrar para o alimento que dá para comprar e que, ultimamente, é o ultraprocessado”, indicou.

Entre os adolescentes de 10 a 19 anos de idade, o consumo de alimentos ultraprocessados atingiu 86,8%, no ano passado, quase o mesmo índice de 2015 (86,9%), depois de cair para 82,2%, em 2020.

O panorama revela ainda tendência de crescimento desse índice. Entre janeiro e junho de 2022, o consumo de alimentos ultraprocessados já está em 93%. Também na faixa de 5 a 9 anos de idade, os alimentos ultraprocessados tiveram consumo de 89%, em 2021, com registro de 92,9% nos seis primeiros meses de 2022. “Nos últimos sete anos, há um aumento do consumo desses alimentos no Brasil, entre crianças e adolescentes”.

Alerta

De acordo com Raphael Barreto, o Panorama da Obesidade de Crianças e Adolescentes faz um alerta para o cenário da insegurança alimentar e da obesidade no país e para a necessidade de fortalecimento de algumas políticas públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), destinado à rede de escolas públicas.

“Muitas crianças ficaram sem acesso à escola durante a pandemia, e aquele era o lugar onde podiam realizar, muitas vezes, a única refeição do dia”.

Para ele, é necessário fortalecer esse programa, baseado no Guia Alimentar da População Brasileira, que indica quais são os alimentos mais nutritivos, os que são mais indicados para a boa digestão e os que trazem mais benefícios à saúde.

As escolas também são importantes ambientes de proteção nutricional quando há políticas voltadas para as cantinas. “É preciso que as cantinas escolares não possam vender alimentos que causam mal à saúde das crianças e adolescentes, devendo fornecer alimentos minimamente processados ou in natura”, defendeu o gestor, destacando que a medida pode ser estendida a escolas privadas.

O Instituto Desiderata trabalha em articulação com o Poder Público e encaminhará o levantamento às secretarias municipais e estaduais de Saúde e Educação.

Ministério

Em resposta à Agência Brasil, o Ministério da Educação informou que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) existe no país desde a década de 40 e tem apresentado avanços significativos com relação a seus objetivos, gestão, execução, abrangência e articulação com outros setores, além da educação.

“A agenda da prevenção da obesidade infantil é prioridade na gestão do Pnae desde 2017. Desde então, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) realiza a Jornada de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) que incentiva o debate e a prática das ações de EAN no ambiente escolar e dá visibilidade àquelas já desenvolvidas nas escolas públicas de educação infantil, tendo como tema norteador a promoção da alimentação saudável e a prevenção da obesidade infantil no ambiente escolar”, explicou o ministério, em nota.

A pasta esclareceu que, em 2018, foi realizada uma pesquisa de cardápios, “um estudo transversal descritivo”, nas cinco regiões brasileiras, com objetivo de avaliar qualitativamente os cardápios planejados para as creches atendidas pelo Pnae, para monitorar a presença e a frequência dos grupos alimentares fornecidos para essa faixa etária.

O ministério informou também que, apesar da pandemia da covid-19 e do desafio das aulas remotas, o Fnde publicou a Resolução nº 06, em maio de 2020, que estabelecia novas regras para a alimentação escolar. Para as creches, em especial, a resolução trouxe a proibição expressa do fornecimento de produtos ultraprocessados, doces, uso de açúcar, mel e adoçantes para crianças até 3 anos.

Os principais documentos norteadores para as alterações das regras foram o Guia Alimentar para a população brasileira e o Guia Alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. “A grande inovação é a substituição do termo alimentos básicos por alimentos in natura, minimamente processados, processados, ultraprocessados e ingredientes culinários, alinhados aos conceitos trazidos pelos guias.

Segundo o ministério, existem hoje parâmetros de aquisição de alimentos com recursos federais que determinam que, no mínimo, 75% dos recursos deverão ser destinados à aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados; no máximo, 20% dos recursos poderão ser destinados à aquisição de alimentos processados e de ultraprocessados; e, no máximo, 5% dos recursos poderão ser destinados à aquisição de ingredientes culinários processados. Há ainda uma recomendação complementar de que seja, no mínimo, da ordem de 50 o número de diferentes tipos de alimentos in natura ou minimamente processados adquiridos anualmente pelos municípios.

Na avaliação do Ministério da Educação, o Pnae tem um papel fundamental na segurança alimentar e nutricional da população brasileira. Está presente nos 5.570 municípios brasileiros, “atendendo, de forma universal e em caráter suplementar, a mais de 40 milhões de estudantes da educação básica brasileira, em 150 mil escolas, incluindo as federais e as filantrópicas e comunitárias conveniadas com o poder público”. Equipes de nutricionistas elaboram os cardápios, respeitando os hábitos e cultura locais, “com alimentos adequados e saudáveis e, dependendo da etapa/modalidade de ensino, o estudante pode receber até 70% das necessidades nutricionais diárias”, afiançou a pasta, por meio de sua assessoria de imprensa.

*Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Voto secreto | Foto: Shutterstock/Joa Souza

Revista online | A reinvenção da democracia brasileira e as eleições de 2022

Marcus Pestana*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)

Poucos meses nos separam daquela que talvez seja a eleição mais tensa, decisiva e importante das últimas décadas. O horizonte que se abre é carregado de dúvidas. A democracia brasileira será testada no limite. As escolhas que serão feitas poderão impactar não apenas nos próximos quatros anos, mas em uma geração inteira. 

É preciso reconhecer que há uma obra incompleta a ser concluída. Todos nós, que participamos intensamente das lutas que levaram à redemocratização, tínhamos a expectativa de que a conquista da anistia, das eleições diretas para presidência da República e do novo marco constitucional consolidado em 1988 resultariam, com o passar dos anos, na solução dos mais graves problemas que afetavam a população e o país. Passados 34 anos da conclusão do processo de redemocratização, é inevitável admitir que hoje, ao olharmos o Brasil, fica a sensação de um copo meio cheio, meio vazio.

Veja os todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online

Os resultados são contraditórios. Por um lado, construímos o mais longo período democrático de nossa história, derrotamos a inflação, construímos o SUS, lançamos as bases de uma sólida rede de proteção social, universalizamos o ensino fundamental. Mas não podemos festejar os resultados da Nova República tendo metade da população sem coleta de esgoto, 33 milhões de brasileiros vítimas da fome, 23 milhões deles abaixo da linha da pobreza vivendo com 7 reais por dia, desempenho sofrível nas avaliações da qualidade do aprendizado de nossas crianças e nossos jovens, comunidades inteiras sequestradas pelo tráfico e pelas milícias, ameaças permanentes ao nosso patrimônio ambiental e um crescimento econômico pífio ao longo de décadas.

A eleição presidencial de 2022 pode ser um precioso momento catalisador das discussões sobre a agenda nacional de desenvolvimento, identificando desafios e gargalos e apontando soluções. Pode efetivamente se tornar uma oportunidade de reinventarmos a democracia brasileira, relançando, sob novas bases, nosso pacto político e social. Isso se não nos perdemos em uma polarização estéril, verdadeiro simulacro de embate ideológico, onde a eficácia das urnas eletrônicas, a tornozeleira do irrelevante deputado, a manipulação da discussão sobre valores morais ou questionamentos às posturas de ministros do STF roubem a cena e eclipsem a discussão dos mais profundos problemas estruturais do país.

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Nossa história política é povoada de traços populistas, caudilhescos, autoritários e paternalistas. O Estado sempre esteve no centro de gravidade da vida nacional e à população foi negado o exercício pleno de uma cidadania ativa e madura. Os personagens e líderes se sobrepõem às ideias. Primeiro, discute-se nomes, personalidades, predicados e defeitos pessoais, apoios e rejeições individuais. Depois, de forma tardia e improvisada, procura-se rechear as candidaturas com algum conteúdo programático. Pelas informações disponíveis até agora, é impossível identificar, a poucas semanas da eleição, qual é o programa econômico ou as linhas estratégicas das principais políticas públicas dos dois candidatos que lideram as pesquisas. Nada além de platitudes, obviedades e retórica vazia.

Duas agendas

As forças democráticas precisam virar esse jogo e impor uma discussão profunda no seio da sociedade sobre o futuro que esperamos construir nesse imenso Brasil. Creio que cinco eixos estratégicos orientadores devem presidir o debate:

  1. Defesa e fortalecimento da democracia:   para além da resistência a qualquer tentativa de rompimento da ordem constitucional e de retrocesso político, precisamos avançar na superação das inconsistências e fragilidades de nossos sistemas de governo, partidário e eleitoral. Isto implica em promover profunda reforma política visando remodelar a convivência entre os três poderes republicanos; colocar na mesa a discussão do parlamentarismo e do semipresidencialismo; repensar o sistema eleitoral, apontando para algum nível de regionalização do voto com a superação do fosso existente entre representantes e representados; racionalização do quadro partidário em busca de partidos mais orgânicos, democráticos  e com maior densidade programática; e, aprimorar o regramento dos mecanismos de financiamento das atividades partidárias e eleitorais.  
  1. Construção de um novo modelo de crescimento econômico: após ter sido, de 1932 a 1980, o país com a maior taxa média de crescimento em todo o mundo, assistimos nas últimas quatro décadas a uma trajetória semelhante a um voo de galinha. Espasmos de crescimento acelerado alternados com recessões profundas, desenhando uma trajetória que nos torna prisioneiros da armadilha da renda média. No mesmo período, alguns países, como Coréia do Sul, Portugal, Espanha, Israel, Austrália e Singapura, atravessaram a fronteira que os separava do mundo desenvolvido. A receita é conhecida. A questão é de liderança política e formação de maioria parlamentar em torno da agenda de reformas. Conquistar a complexa e imprescindível reforma tributária que simplifique e torne mais justo e eficiente nosso sistema. Revisitar a questão previdenciária, ainda longe de superar suas iniquidades e responder às mudanças demográficas. Gerar expectativas positivas oferecendo um rumo claro, estabilidade política, legal, regulatória, e segurança jurídica. Dar uma equação definitiva ao dilema fiscal. Enfrentar com coragem e competência o desafio da abertura externa. Incrementar radicalmente a capacidade de inovação da economia e o aumento de sua produtividade. Avançar na qualificação do ensino fundamental, médio e profissionalizante como alavanca do crescimento. Privatizar, com modelos transparentes e corretos, estatais que ganharão eficiência e gerarão efeitos positivos para a sociedade e a economia, como foram os casos da siderurgia, da mineração, das telecomunicações e da indústria aeronáutica. Agressiva política de parceria com o setor privado para a superação dos gargalos de infraestrutura que abalam a competitividade da economia brasileira.
  1. Ataque frontal às desigualdades, à pobreza e à miséria: a principal tarefa do futuro governo será colocar sobre trilhos sólidos e consistentes à política social combinando os programas de transferência de renda, geração de emprego e renda e políticas públicas eficientes de educação, saúde, combate às desigualdades regionais e qualificação profissional. O maior “Calcanhar de Aquiles” da democracia brasileira é a abissal distância a separar famílias e regiões através de uma das piores distribuições de renda de todo o mundo. A mudança no modelo de crescimento econômico deve ter como objetivo central gerar inclusão e justiça social.
  1. Recuperar o protagonismo na busca do desenvolvimento sustentável: a sustentabilidade ambiental é hoje um imperativo global no século 21. As mudanças climáticas são uma realidade viva e inequívoca. O Brasil, desde a Cúpula Rio-92, assumiu uma posição de vanguarda e protagonismo e construiu um dos marcos legais mais sofisticados e profundos para a área ambiental entre todos os países. Infelizmente, houve retrocessos visíveis no atual governo. Recuperar, dentro de uma perspectiva de integração governamental horizontal, o compromisso com o desenvolvimento sustentável é tarefa imprescindível que caberá ao próximo presidente da República.
  1. Aprofundar a reforma do Estado: é fundamental recuperar a credibilidade da ação de Estado junto à sociedade. Gastar menos com a máquina estatal e mais com os cidadãos. Devolver serviços públicos de melhor qualidade. Apostar radicalmente nas tecnologias da informação como ferramentas de oferta ágil e desburocratizada de serviços e potencializar o seu uso na teleducação, telessaúde e na segurança pública. Consolidar o papel das Forças Armadas e das polícias estaduais como instrumentos institucionais e órgãos de Estado e não de governo a serviço do poder civil. Organizar a estrutura do governo à luz das demandas da sociedade e não da lógica da inércia histórica e da visão dos interesses corporativos.

A atual polarização não favorece a discussão profunda desta agenda. As candidaturas Bolsonaro e Lula não são portadoras de uma visão de futuro promissora. Independente dos números das pesquisas de opinião, o polo democrático, que congrega setores que vão do social-liberalismo à esquerda democrática, passando pela socialdemocracia, mais do que o direito, tem o dever de apresentar uma alternativa moderna e progressista ao confronto entre um presente que não nos orgulha e um passado que não abre os horizontes necessários de um novo Brasil.

Sobre o autor

*Marcus Pestana foi deputado federal (2011-2018) e secretário estadual de planejamento (1995-1998) e saúde (2003-2010) de Minas Gerais. 

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Ascânio Seleme: Quem tem fome paga a conta

Estado tem que usar toda sua força e poder para evitar que pessoas morram de fome

Ascanio Seleme / O Globo

O Estado tem que usar toda sua força e poder para evitar que pessoas morram de fome. Hoje, 19 milhões de cidadãos nacionais passam fome, de acordo com levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Em casos extremos, até mesmo furar teto de gastos definido por lei deve ser permitido de modo que os famintos possam receber dinheiro para comprar comida. Mais da metade dos brasileiros, 116 milhões para ser mais exato, passam por algum tipo de insegurança alimentar. E é claro que isso é inadmissível.

A fome se caracteriza pela ausência do consumo de proteínas, vitaminas, sais minerais e glicose. Na sua primeira fase, o organismo humano busca fontes alternativas de energia armazenada para sobreviver. Em seguida, passa a subtrair tecido adiposo ou gorduroso e depois consome músculos para manter os órgãos funcionando. Sem fontes renovadas de energia, o cérebro perde funções fundamentais de comando, com prejuízos para o raciocínio. No estágio final, o metabolismo passa a funcionar muito lentamente até parar.

O problema é igual para todos os que passam fome, mas é mais dramático para as crianças. Se submetidas por tempo prolongado à insegurança alimentar, além de perder massa muscular, os mais jovens sofrerão desaceleração e até interrupção do crescimento, depressão, anemia, raquitismo, baixa imunidade e incapacitação cognitiva. Com a redução da capacidade de manter a atenção, o prejuízo para a memória e o aprendizado é imediato. Com isso, as crianças brasileiras pobres e famintas, que já perderam mais do que as outras em razão da pandemia, estão sendo condenadas a um futuro ainda mais duro e miserável. Isso se para elas futuro houver.

As imagens da fome no Brasil, que tinham sumido do noticiário, voltaram com pessoas comprando carne de segunda nos açougues. Depois, comprando pés de galinha e ossos com alguma carne. Em seguida, com gente buscando carcaças de animais em portas de frigoríficos e, finalmente, vasculhando caminhões de lixo. O número de pessoas com fome no Brasil subiu de 10,3 milhões para 19,1 milhões em quatro anos. Significa aumento de 85%, quase todo ele medido nos três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro.

Estamos claramente diante de um caso extremo que justificaria em qualquer lugar do mundo furar teto de gastos. Isso, claro, se não houvesse fontes alternativas de recursos. Estas não apenas existem, elas abundam. Num Orçamento de mais de R$ 1 trilhão, os R$ 30 bilhões para atender a emergência podem ser deslocados de diversos pontos, mas sobretudo dos aportes abusivos conhecidos como emendas parlamentares. Apenas as emendas do relator do Orçamento somam R$ 20 bilhões, ou mais de 60% do necessário para aplacar a fome de 19 milhões.

Evidentemente que não vai se mexer nas emendas. Elas servem para alavancar candidaturas em ano eleitoral e garantem apoio parlamentar ao presidente da República, como se o dinheiro do Orçamento da União fosse dele. O senador Jorge Kajuru explicou ontem à revista “Crusoé” como a banda toca. Ele denunciou o líder do governo no Senado, Eduardo Gomes, por ter lhe oferecido R$ 100 milhões em emendas se ele parasse de bater no governo.

Como não se consegue reduzir as emendas, poderia se cortar alguns gastos militares, os únicos que aumentaram injustificadamente no governo Bolsonaro, em benefício de quem tem fome. Mas alguém acha que o capitão marchará por aí? O governo poderia ainda negociar como contrapartida projetos consistentes de reforma administrativa e tributária e um programa de privatizações em áreas onde a presença do Estado só seja necessária na regulação. Como não tem credibilidade para tanto, o governo tenta construir uma saída para a emergência atual criando emergências futuras. Serão os mais pobres que pagarão a conta dos erros de agora. Com mais fome.

RESPONSABILIDADE

Somente um governo sério e comprometido com o equilíbrio fiscal conseguiria respaldo da sociedade para furar o teto em caso emergencial. Não é o caso de Bolsonaro, Guedes e o que sobrou de sua turma, que estão mais perto de cometer um crime de responsabilidade do que eventualmente demonstrar alguma responsabilidade.

QUEM DIRIA

Depois de entregar todas as suas convicções a Bolsonaro com o único e mesquinho objetivo de manter-se no cargo, Paulo Guedes quase foi demitido. E, se fosse, seria por esta mesma razão, por ter abandonado os fundamentos que o fizeram ministro. Guedes, que já não tinha o apreço da ala política do governo, sobretudo do guloso Centrão, perdeu a credibilidade junto ao mercado quando subscreveu a ideia de furar o teto em favor do auxílio emergencial. Todo mundo sabia que havia outros roteiros possíveis para se atender à emergência, mas Paulo Guedes ignorou as alternativas, assumiu a função de tesoureiro da campanha de Bolsonaro e continuou feito ostra agarrado na cadeira achando que manteve sua credibilidade.

O DONO DO BRASIL

O ex-presidente da Petrobras disse que deixou a empresa por não suportar as pressões de Bolsonaro. Nas palavras de Roberto Castello Branco, “Bolsonaro acha que é dono da Petrobras”. Na verdade, o capitão se considera dono do Exército, que já chamou de “meu”, da Saúde, onde manda quem pode, do Meio Ambiente, em que autorizou o estouro da boiada. E do orçamento, que fura desavergonhadamente. O homem acha que é o dono do Brasil.

A COLÔMBIA PODE ESPERAR

A comitiva já estava embarcada nos carros que a conduziria ao aeroporto quando chegou o último passageiro, o presidente da Colômbia, Iván Duque. Ele acenou aos porteiros do hotel em Brasília, como se estivesse cumprimentando eleitores colombianos, e entrou no seu carro. A comitiva percorreu menos de um quilômetro e Duque mandou parar o motorcade. Viu uma churrascaria no caminho e mandou o motorista encostar. Com ele, estacionaram todos os demais. Duque sentenciou: “Vamos comer um churrasco brasileiro”. Todo mundo estranhou o gesto inesperado, mas ninguém reclamou. Melhor um rodízio do que aquele lanchinho de avião. A Colômbia podia esperar.

PLANO B

Bolsonaro não desistiu da reeleição. Com o auxílio emergencial acha que consegue sobreviver e crescer ao longo dos primeiros meses do ano que vem. Mas o plano B está mantido. Se mais adiante as pesquisas apontarem um inevitável fracasso eleitoral, ele retira sua candidatura como forma de inviabilizar Lula. E dirá alto e claramente que deixa a disputa para impedir que o PT ganhe a eleição. A saída de Bolsonaro não derrota automaticamente Lula, mas sua candidatura se enfraquece diante de um candidato de centro que atraia os eleitores da direita bolsonarista. Claro que antes de sair, Bolsonaro tentará um acordo de blindagem para si e seus filhos.

MORO AINDA

Para se viabilizar como candidato a presidente com chances de brigar por uma vaga no segundo turno, Sergio Moro deverá explicar ao Brasil seus métodos na condução da Lava-Jato e o fato de ter aceitado o Ministério da Justiça de Bolsonaro. O ex-juiz diz que os resultados da força-tarefa serão seus argumentos. Segundo ele, nunca se atingiu de maneira tão sólida e consistente a corrupção no Brasil. Foram 179 ações penais, 209 acordos de colaboração e 17 de leniência, 295 prisões preventivas ou temporárias, 174 condenações, com a recuperação de R$ 4,3 bilhões, em valores devolvidos aos cofres públicos, e R$ 14,8 bilhões, em multas. Não é pouca coisa. Sobre sua participação no governo Bolsonaro, Moro prefere falar sobre sua saída e não sua entrada. Acha que rende votos ter denunciado o presidente por querer interferir na Polícia Federal. O tempo dirá se ele tem razão.

PALAVRAS E EXPRESSÕES

Depois da confusão que se criou na CPI da Pandemia em razão do vazamento do relatório inicial, onde se classificava como genocídio os crimes cometidos pelo governo Bolsonaro contra os índios brasileiros, chegou-se a um entendimento. Saiu a palavra genocídio e entrou o termo “crimes contra a humanidade”. Eles significam mais ou menos a mesma coisa: o ataque sistemático a grupos ou coletividades que sejam identificados por sua etnia ou aspirações políticas, culturais, religiosas ou de gênero. Nas duas hipóteses, e ambas cabem ao governo, o que se almeja é o extermínio de um grupo.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/quem-tem-fome-paga-conta-25248471


Cristovam Buarque: SOS Fome

Passados 130 anos da Abolição e da República, os estrangeiros se espantam, mas os brasileiros não, quando a TV mostra famílias sem comida

Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles

No século XIX, os estrangeiros que nos visitavam não entendiam como era possível o Brasil tolerar a escravidão, ao ponto de sequer perceber sua maldade. Ao chamar atenção de um brasileiro para o absurdo de um escravo sendo chicoteado na rua, o estrangeiro ouve: “Mas ele é negro”. Até hoje, se um estrangeiro se surpreende e comenta sobre as precárias condições de escolas públicas, certamente ouviria: “Mas estes alunos são pobres”.

Passados 130 anos da Abolição e da República, os estrangeiros se espantam, mas os brasileiros não, quando a televisão mostra famílias sem comida em casa, ao lado da notícia de que somos o maior exportador de alimento do mundo, programas para escolher e premiar o melhor chef de cozinha, além de propagandas sobre redes de “fast food”, com jovens em êxtase ao comer suculentos sanduíches. O visitante estrangeiro deve comparar isto com as chicotadas que escravos recebiam em plena rua: chicotadas virtuais sobre as famílias que têm acesso à televisão e não têm acesso à comida.

Os governos progressistas entre 1992 e 2018 mentem ao dizer que tiraram o Brasil do mapa da fome com Bolsa Escola de FHC e Bolsa Família de Lula: apenas suspenderam, mas não aboliram estruturalmente a fome. Bastaria uma crise econômica, inflação ou epidemia de covid, agravada por erros e insensibilidade do atual governo, e a fome voltaria, porque ela não estava abolida, apenas suspensa.

E não teria sido difícil superá-la. A fome tem baixa escolaridade, como diz o pesquisador sobre o assunto Renato Carvalheira Nascimento. As análises mostram que apenas 4% dos que passam fome chegaram ao Ensino Médio. Se a educação de base tivesse sido oferecida antes, a fome não estaria maltratando agora, porque a economia teria aumentado e distribuído a renda, e o Brasil tem terra e tecnologia para produzir comida. Este teria sido o caminho para abolir a fome no futuro, mas neste momento, é necessária uma campanha que reúna e distribua comida. Solidariedade como o Betinho, Itamar Franco e Dom Mauro Morelli lideraram em 1992.

Da mesma maneira que as vítimas de violência doméstica pintam uma cruz na palma da mão para pedir socorro e proteção contra a violência, os famintos poderiam mostrar a palma da mão com um círculo desenhado para pedir socorro e proteção contra a violência da fome. Ao lado deste encontro direto entre os que passam fome e quem tem algum dinheiro, é possível criar centros SOS Fome para quem precisa de comida telefonar pedindo socorro. O espanto brasileiro mostra que há celular mesmo em famílias com a geladeira vazia, e se não tiver celular próprio, sempre haverá algum vizinho que possa fazer a ligação.

Estes centros SOS Fome poderiam ser financiados com a contribuição da sociedade. Seria preciso pouco da renda da parcela rica, especialmente os setores mais eficientes da economia. O que espanta na fome brasileira é que temos uma das maiores extensões da terra arável do mundo, temos as melhores tecnologias agrícolas, somos o celeiro do mundo e temos campos de concentração, incinerando as pessoas por dentro delas, pela fome. O setor do agronegócio, cuja competência fez do Brasil o celeiro do mundo, precisaria contribuir com pouco para o Brasil deixar de ser o campo de concentração, com fornos crematórios dentro de cada pessoa.

Poderíamos espantar pelo lado positivo: o Brasil unido em um SOS Fome.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/sos-fome-por-cristovam-buarque