folha ed s paulo
Para onde queremos ir?
Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor
Armínio Fraga
Foto: Beto Barata\PR
Neném Prancha foi um olheiro e treinador de futebol no Rio de Janeiro, famoso por suas frases: “pênalti é uma coisa tão importante que quem devia bater é o presidente do clube”; “quem pede, tem preferência; quem se desloca, recebe”; “o importante é o principal; o resto é secundário”.
Yogi Berra foi o seu equivalente norte-americano, do mundo do baseball. Falando sobre um restaurante em Nova York, disse: “ninguém mais vai lá, está sempre muito cheio”. Minha favorita é: “se você não sabe para onde vai, em geral não chega lá”.
Essa última lição tem tudo a ver com o momento de grande incerteza e ansiedade que vivemos no Brasil. O quadro geral não é bom. Cenários os mais variados se descortinam, muitos a evitar. Faz falta uma visão de longo prazo que sirva de bússola para cada passo do caminho.
Que visão? No topo da lista, preservar a democracia, hoje ameaçada. Me refiro sobretudo à preservação do Estado de Direito, o Império da Lei. Alguns ainda preferem tapar o sol com a peneira. Ignoram que estamos vivendo um momento de estresse nessa área. Manifestações públicas do Executivo contra o Congresso.
Acusações não comprovadas de fraude em eleições. Ameaças de cancelamento de eleições ou de não aceitação do resultado. Tensões crescentes entre Executivo e Judiciário. Participação de militares da ativa no governo. Fake news para todo lado. São sinais assustadores, especialmente quando se leva em conta que em nossos tempos é exatamente assim que as democracias morrem.
Além de zelar pela democracia, é preciso fazer com que ela funcione melhor. A despeito dos inegáveis avanços ocorridos desde 1985, há bastante espaço para acelerar o ritmo de desenvolvimento do país.
Temos tido dificuldade em avançar. Deixo de lado hoje os detalhes ligados ao necessário aumento da produtividade da economia para focar na importância de uma estratégia responsável e sustentável. Penso na noção de responsabilidade de forma ampla: social, ambiental e fiscal.
Responsabilidade social significa compartilhamento dos frutos e dos riscos do crescimento. Não há desenvolvimento digno do nome sem sucesso nessa área. Vou além: na ausência de políticas inclusivas, não há desenvolvimento possível, posto que a desigualdade compromete a democracia e oferece campo fértil ao populismo e à demagogia.
O Brasil segue imensamente desigual, não apenas sob a ótica da renda, mas também pela reduzida mobilidade social. Temos um longo caminho a percorrer para chegar perto de qualquer noção decente de igualdade de oportunidades. Sem me alongar muito, menciono apenas que nos faltam educação e saúde públicas de qualidade. Temos que reduzir a informalidade (e precariedade) do trabalho e repensar a rede de proteção social. Aspectos regressivos do regime tributário também requerem correção. Uma boa reforma do Estado me parece imprescindível.
No campo ambiental, nos defrontamos com uma questão existencial. O planeta não aguenta o tratamento que vem recebendo da humanidade. Crescimento sem responsabilidade ambiental é uma ilusão. A conta está chegando. Só não vê quem não presta atenção (ou é negacionista).
O Brasil é relevante nessa área. O governo precisa urgentemente dar um cavalo de pau em sua atuação. Somos infelizmente vistos como predadores do planeta, quando deveríamos ser seus defensores. Além do mais, os benefícios de uma mudança de rumo vão além da contribuição para o combate ao aquecimento global: incluiriam melhorias na qualidade de vida da população, tais como águas e ar limpos e saneamento adequado. Temos tudo para ser um paraíso verde, o que elevaria em muito a nossa autoestima.
No campo fiscal, a questão vai muito além da estabilidade macroeconômica que tanta falta nos faz. Uma estratégia de desenvolvimento requer a definição de prioridades para o gasto público. Trata-se de uma questão política e econômica de primeira ordem de grandeza. Um orçamento confuso, opaco, curto-prazista e cronicamente desequilibrado não funciona.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2021/07/para-onde-queremos-ir.shtml
Folha de S. Paulo: Trump implodiu direita intelectual e deixa legado populista
Mesmo derrotado, presidente ampliou votação entre negros e latinos e pode moldar futuro do Partido Republicano
Carlos Gustavo Poggio, Folha de S. Paulo
[RESUMO] Mesmo derrotado, presidente se firma como a maior referência simbólica do Partido Republicano desde Reagan. Rejeitado pela elite partidária, ele implodiu a vertente conservadora mais intelectual, impôs uma agenda nacional populista no lugar da liberal internacionalista e ampliou a votação de sua sigla na classe média pouco instruída e entre negros e latinos, o que pode levar a uma completa reformulação trumpista do partido.
As eleições de 2020 nos Estados Unidos confirmaram o diagnóstico que já havia ficado claro em 2016: os republicanos enfrentam um desafio demográfico, ao passo que os democratas estão diante de um dilema geográfico.
A dependência dos republicanos em relação ao eleitorado branco e mais velho em um país que se torna cada vez mais diverso tem sido um problema que há anos assombra as lideranças do partido. Por outro lado, o apoio aos democratas se concentra crescentemente nos grandes centros urbanos.
Como eles perceberam dolorosamente em 2016, em um país que elege presidentes via Colégio Eleitoral e não por voto popular, não basta ser mais votado: os votos precisam estar distribuídos nos lugares certos.
O futuro da política norte-americana vai depender de como ambos os partidos vão lidar com esses impasses. O resultado das urnas neste ano pode nos dar algumas pistas.[ x ]
O caminho para o Partido Democrata, como a vitória de Joe Biden deixou claro, é contar com um alto índice de comparecimento às urnas para aproveitar a vantagem demográfica —e torcer para que a margem de vitória nos grandes centros urbanos de estados-chave seja grande o suficiente para compensar a vantagem republicana no interior.
Pode parecer uma fórmula relativamente simples, mas depende de algum fator que mobilize o eleitorado. Em 2008, esse fator foi Obama. Em 2020, Trump. A má notícia para os democratas é que uma candidatura que gere o tipo de entusiasmo verificado em 2008 e 2020, seja por estímulos positivos ou negativos, não ocorre com frequência.
O desafio dos republicanos, porém, é bem mais complexo. Antes de mais nada, terão de lidar com uma profunda crise de identidade. Até 2016, a referência central do partido era o ex-presidente Ronald Reagan —reconheça-se, contudo, que mesmo antes da eleição de Trump esse apelo dava sinais de enfraquecimento.
Em 2010, Lindsey Graham, senador republicano pela Carolina do Sul, chegou a dizer que mesmo Reagan, fosse vivo, teria dificuldades em se eleger pelo partido naquela ocasião. Todavia, foi com a vitória de Trump que, pela primeira vez em quase 40 anos, surgiu uma figura para disputar a influência simbólica no partido.
Reagan subiu ao poder em 1980 depois de anos de articulação intelectual do conservadorismo norte-americano, a partir da fundação da revista National Review em 1955, por William Buckley Jr. Por outro lado, Trump é produto da implosão dessa vertente conservadora. A questão agora é o que os republicanos vão fazer com os cacos.
A captura trumpista do Partido Republicano ocorreu de baixo para cima e não no nível do establishment —que, a propósito, ainda tem dificuldades em lidar com a novidade. Um dos poucos apoios da elite partidária a Trump veio de Bob Dole, que disputou a eleição presidencial de 1996.
Mitt Romney, candidato em 2012, tem sido um dos maiores críticos de Trump entre os republicanos. John McCain, que morreu em 2018, também rejeitou o atual presidente no pleito de 2016, e a sua esposa fez campanha para Biden neste ano. George W. Bush tem adotado uma postura mais discreta, mas sabe-se que não votou em Trump nem em 2016 nem em 2020. O filho de Reagan chegou a declarar em entrevista recente que o pai ficaria horrorizado com o governo que se encerra agora.
Parte do apelo de Trump, contudo, reside justamente na rejeição a esse establishment. Ele soube identificar uma parcela significativa do eleitorado americano que não se sentia representada, por exemplo, pela globalização e seus acordos de liberalização comercial, por uma postura aberta com relação à imigração e por uma política externa assertiva de promoção dos valores americanos ao redor do mundo, mesmo que pela via militar.
Como alternativa a essa postura liberal internacionalista, Trump requentou um nacional-populismo que até então se encontrava às margens no Partido Republicano. Em 1992 e 1996, o representante dessa vertente foi Pat Buchanan, que concorreu às primárias republicanas nas duas ocasiões defendendo uma pauta de caráter nacionalista, isolacionista, protecionista, de combate ao multiculturalismo e fortemente anti-imigração.
Tudo isso estava na contramão dos valores defendidos pela elite republicana nos anos 1990. A rejeição à retórica de Buchanan ficou clara quando ele deixou a legenda e concorreu às eleições de 2000 pelo Partido Reformista. Com o slogan “America first” (“Estados Unidos em primeiro lugar”), obteve menos de 0,5% dos votos e hoje poucos se lembram de sua campanha.
Ajudado pelas novas ferramentas de mídias sociais, que não estavam disponíveis à época de Buchanan, e pelas sequelas da crise econômica de 2008, Trump reuniu uma nova coalizão eleitoral que se mostrou vencedora em 2016 e competitiva em 2020, mesmo com os problemas demográficos enfrentados pelo Partido Republicano.
Da base que sustentava o partido desde Reagan —formada principalmente por defensores do livre-comércio, neoconservadores que advogam uma política externa intervencionista e os conservadores sociais representados pelo eleitorado evangélico—, Trump preservou apenas este último grupo. Os dois primeiros permanecem como os principais críticos internos do trumpismo, mas a sua influência parece ter diminuído consideravelmente.
Para o lugar deles, Trump cooptou uma parcela significativa da classe média e de brancos sem ensino universitário que costumavam votar nos democratas, enfraquecendo a chamada muralha azul em estados como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
Assim, quando Trump ressuscitou a agenda de Buchanan em 2016, encontrou uma audiência mais receptiva nos eleitores que se afastaram do Partido Democrata tanto por razões econômicas quanto culturais. Esse eleitorado passou a não enxergar diferenças significativas nas pautas econômicas dos dois partidos, dado que ambos levantavam a bandeira do livre-comércio, por exemplo.
Tal diferenciação deslocou-se então para o campo cultural, a partir da rejeição à agenda progressista na esfera dos valores, como a defesa de pautas identitárias e do aborto, e da percepção de que os democratas falavam apenas às elites costeiras, ignorando o interior do país. Nesse contexto, a adoção de uma linguagem politicamente incorreta por Trump ajudou a capturar esse eleitorado.
Não foi à toa que, na convenção republicana de 2016 em que foi sacramentado candidato, Trump voltou-se para o que chamou de os esquecidos pela elite política e bradou: “Eu sou a sua voz”.
O Partido Republicano deve responder agora se a coalizão reunida por Trump será uma divisão interna de relevo ou a nova base de toda a sigla. No médio prazo, parece descartada a hipótese de que a derrota neste ano signifique um retorno completo ao período anterior a 2016. O partido foi profundamente modificado pelo trumpismo.
A questão é de grau, ou seja, se o Partido Republicano irá se reformular completamente à imagem e semelhança de Trump ou se vai simplesmente absorver algumas mudanças, ao mesmo tempo que tenta preservar características da era pré-Trump.
Parte da resposta a essa pergunta passa por compreender quais lições os republicanos vão tirar de 2020, em especial no que se refere aos desafios demográficos —e elas não são óbvias.
Nas últimas oito eleições, da de 1992 à de 2020, os republicanos tiveram três vitórias (duas de Bush, em 2000 e 2004, e uma de Trump, em 2016), mas apenas a segunda de Bush também ocorreu no voto popular.
Desde 1964, nenhum candidato republicano em disputas presidenciais atingiu mais que 15% do voto negro —desde 1980, esse número tem flutuado entre 4% e 12%. Em 1992, um artigo na revista Political Science Quarterly indicava que os republicanos deveriam ter como meta capturar 20% do voto negro para permanecerem competitivos no futuro.
Em 2016, o partido obteve 8% do voto de negros com Trump. A estimativa para 2020 é de 12%, um crescimento de 50%, e apenas a terceira vez em 40 anos que os republicanos chegam a esse índice.
Se considerarmos somente homens negros, Trump chegou a 19%, bem próximo da desejada meta. Mesmo entre mulheres negras, Trump foi de 4% em 2016 para 9% em 2020, um incremento de mais de 100% nesse grupo.
Além disso, para serem eleitoralmente viáveis, os republicanos precisam se esforçar para atrair parcelas expressivas do eleitorado latino, o grupo minoritário que mais cresce nos Estados Unidos e que hoje representa parcela idêntica à do eleitorado negro: 13%.
Aqui também o trumpismo demonstrou ter algum apelo, conseguindo expandir a votação nesse grupo, de 28% em 2016 para 32% em 2020, o melhor índice para o partido em quase duas décadas, com ganhos expressivos em estados como Texas, Flórida e Nova York.
Assim como a expressiva votação obtida por Biden é em grande parte produto da rejeição a Trump, o desempenho de Trump entre alguns grupos demográficos pode ser mais uma rejeição da agenda democrata que um apoio explícito ao trumpismo. Afinal de contas, muitos eleitores negros e latinos, em especial os mais velhos, definem-se como conservadores.
A questão crucial sobre esses dados é se representam uma tendência ou se são pontos fora da curva. Ainda é cedo para responder. Uma hipótese plausível é que o aumento do apoio a Trump em determinados segmentos demográficos deve-se a uma percepção de melhora econômica, terreno em que a avaliação do presidente sempre foi relativamente boa.
Uma pesquisa do instituto Gallup publicada em setembro indicou que 56% dos americanos diziam que estavam em uma situação melhor que quatro anos atrás, um recorde desde que essa pergunta foi feita pela primeira vez, em 1984.
De qualquer forma, dado que muitos analistas estimavam que a retórica de Trump tenderia a afastar grupos minoritários, esses números apresentam um enigma a ser desvendado por estrategistas de ambos os partidos.
Se os republicanos concluírem que um efeito colateral não antecipado do trumpismo foi uma melhora no desempenho entre negros e latinos, isso pode ter impactos significativos para os rumos que o partido deve tomar a partir de 2021.
*Doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, é autor de "O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos" (Unesp, 2010)
Julianna Sofia: UTI federal
Descalabro nas contas estaduais se agrava, e governadores aumentam pressão sobre Bolsonaro
Não teve o mérito de durar um triênio a renegociação das dívidas dos estados promovida em 2016 pelo governo Michel Temer diante do descalabro orçamentário das administrações regionais. Quando o emedebista foi ao socorro dos governadores, os cofres estaduais padeciam com a queda de receitas resultante da crise econômica e o desenfreado aumento das despesas —principalmente pela pressão dos gastos com pessoal e Previdência.
O alívio garantiu o prolongamento das dívidas por 20 anos e concedeu descontos nas parcelas mensais até 2018, a um custo de R$ 50 bilhões para a União. Mas a pusilanimidade de Temer levou à fixação de contrapartidas insuficientes aos governos locais. Não houve compromisso de melhorias estruturais para compensar mais uma tunga na viúva.
Além do refinanciamento, o emedebista criou um regime diferenciado para gestões em situação falimentar. O RRF mirava o Rio de Janeiro e permitiu a suspensão dos pagamentos ao Tesouro Nacional por até seis anos a partir de um miraculoso e severo programa de ajuste fiscal.
Desde então, mais seis estados decretaram calamidade financeira (RS, MG, RN, RR, MT e GO) e buscam uma vaga na UTI federal ao lado do Rio —que até hoje se mantém respirando por meio de aparelhos.
Governadores vêm batendo à porta da equipe econômica de Jair Bolsonaro desde a transição de governo e viram espaço para vantajosa negociação após o gesto —equivocado— do ministro Paulo Guedes (Economia) de partilhar dinheiro do megaleilão do pré-sal com os entes regionais. Com a volta de Guedes de Davos, pretendem voltar à carga.
A deterioração das contas estaduais não se deu num estalar de dedos e hoje se tornou mais grave que o próprio déficit crônico da União. Governadores, congressistas e o presidente de plantão precisam mostrar empenho para atacar a origem do desequilíbrio, encarando de frente lobbies corporativos e empresariais, que perpetuam o gigantismo e a ineficiência da máquina estatal.