Folha de S. Paulo

Demétrio Magnoli: Existem três teses sobre legitimidade da eleição sem Lula

O veto legal à candidatura de Lula distingue a eleição de todas as anteriores

O veto legal à candidatura de Lula singulariza a eleição em curso, distinguindo-a de todas as anteriores, desde a redemocratização. Daí, emerge um debate sobre legitimidade, que se espraia ao longo de três teses. A primeira diz que a eleição é legal e legítima; a segunda, que é ilegítima; a terceira, e mais interessante, faz a legitimidade da eleição depender de seus resultados.

A visão convencional, adotada pela maioria dos partidos, não enxerga nenhum problema de legitimidade.

A Lei da Ficha Limpa, fonte do veto à candidatura de Lula, nasceu de um projeto de iniciativa popular e, depois de amplamente aprovada no Congresso, foi sancionada sem vetos pelo próprio Lula. É instrumento legal de validade geral, que cancelou as mais diversas candidaturas desde 2014, não uma ferramenta destinada a cassar os direitos de Lula ou do PT.

A eleição é legítima. O debate sobre o tema é que não é, derivando de um desejo de colocar Lula acima da lei ou de uma pervertida estratégia de campanha.

O segundo ponto de vista, adotado por correntes de extrema esquerda abrigadas no interior do PSOL ou em surpreendente aliança com o PT (caso do PCO), pode ser qualificado, com alguma ironia, de revolucionário. O veto a Lula é o prosseguimento do “golpe parlamentar” do impeachment e tem a finalidade de ladrilhar o caminho das “reformas neoliberais”. O Judiciário participa do “golpe”, conduzindo a perseguição legal ao ex-presidente. Os mensageiros desta tese repetem, letra por letra, a narrativa desenvolvida pelo PT desde 2016, mas com finalidades muito diferentes.

A extrema esquerda habituou-se a encher seu potinho de sonhos com as sobras do lauto banquete lulista. Em 2002, apoiou a candidatura presidencial do PT na esperança de que a “classe trabalhadora” experimentasse o governo de Lula — um “reformista” ou um “traidor”, a depender da versão — e, libertando-se de suas ilusões, ouvisse o chamado da Revolução (assim, com maiúscula). Hoje, ainda à beira da mesa, espera que a denúncia do veto a Lula finalmente desperte as massas de sua irritante letargia, propiciando o “assalto ao Céu”.

A terceira é a tese lulopetista. Na sua nunca explicitada inteireza, ela diz que a eleição terá sido legítima se Haddad vencer, mas terá sido ilegítima se Haddad perder. O alarido do protesto contra a “ilegitimidade” da eleição sem Lula, tão audível na etapa atual, cessará quando Haddad assumir o bastão, para só retornar na hipótese da derrota. A suspensão do juízo sobre a legitimidade até a proclamação dos resultados viola as regras elementares da lógica, mas atende a um imperativo partidário estratégico: na vitória, Haddad será o incontestável presidente do Brasil; na derrota, o eleito não será mais que um títere da “elite golpista”.

A história funciona mais ou menos assim. Em caso de vitória, o povo terá “corrigido” o desvio iniciado com o impeachment, derrotando o “golpe” e salvando a democracia. Já em caso de derrota, o desejo do povo de recolocar Lula no Planalto terá sido frustrado pela artimanha golpista do veto à candidatura. Restará, então, a via da resistência, convocada por meio da denúncia da ilegitimidade do presidente eleito.

A tese convencional é legalista ao extremo: identifica a democracia às normas legais, negando-se a encarar o problema político da limitação da soberania dos eleitores posto pela Ficha Lima. A tese revolucionária é finalista: identifica a democracia (“burguesa”, evidentemente) como o inimigo histórico e interpreta o veto a Lula como faísca providencial capaz de acender a grande fogueira da purificação. A tese lulopetista é, além de oportunista, autoritária: identifica a democracia ao sucesso eleitoral do Partido (assim, com maiúscula), exprimindo uma rejeição visceral ao princípio do pluralismo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Folha de S. Paulo: BNDES é o maior devedor da União na frente de estados e municípios

Socorro a entes federados custa R$ 577 bi; repasses a banco somam R$ 636 bi

Por Flávia Lima, da Folha de S. Paulo

Ao contrário do que versa o senso comum, estados e municípios não são os maiores devedores da União. O recordista em débitos é o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social).

A União tem R$ 1,545 trilhão a receber de empréstimos e financiamentos, segundo levantamento realizado pela IFI (Instituição Fiscal Independente), do Senado.

A abertura dos dados sobre o saldo registrado no fim de 2017 mostra que os empréstimos feitos por estados e municípios para resolver problemas de caixa em pelo menos duas grandes crises fiscais, desde o fim da década de 1990, somam R$ 577 bilhões —37,3% do saldo total.

O BNDES, porém, deve mais. São R$ 636,3 bilhões —41,2% do saldo de empréstimos.

A maior parte desse volume, cerca de R$ 400 bilhões, resulta da política adotada pelo governo Dilma Rousseff (PT) de repassar recursos do Tesouro ao banco de fomento para emprestar a empresas com taxas de juros subsidiadas.

Outra fatia importante vem de repasses obrigatórios que o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) faz ao BNDES —total de R$ 238,9 bilhões.

Outros grandes devedores da União são os tomadores de recursos dos fundos constitucionais, formados para oferecer financiamento a projetos de desenvolvimento regional (R$ 113,7 bilhões). O Nordeste é responsável por quase metade desse total.

Os números mostram que estudantes e mutuários também são devedores relevantes.

Por meio do Fies, fundo destinado ao financiamento estudantil, o saldo devedor de estudantes do ensino superior chega a R$ 75,6 bilhões. Entre cotistas do Minha Casa Minha Vida, o saldo devedor é de quase R$ 45 bilhões.

Há ainda recursos com destinação pouco detalhada, como os R$ 31,4 bilhões ligados à Marinha Mercante ou os R$ 4,3 bilhões devidos pelo Funcafé --um fundo para financiamento de torrefação ou exportação do café.

Segundo Josué Pellegrini, analista da IFI e autor do estudo, os empréstimos refletem, em boa parte, políticas públicas feitas para favorecer setores ou entes, o que não é necessariamente ruim.

"O que precisamos é de informações mais claras para entender se os resultados esperados estão sendo alcançados ou não", diz o analista.

Pellegrini construiu um balanço da União semelhante ao apresentado trimestralmente por empresas. Nele, os empréstimos e financiamentos são apenas uma parte dos ativos da União, que somavam R$ 4,8 trilhões no fim de 2017.

O analista não só consolidou os dados como conseguiu um detalhamento maior do que o encontrado em dados oficiais.

No caso dos empréstimos e financiamentos, além do saldo total e dos devedores, o levantamento aponta ainda que R$ 71 bilhões —o equivalente a mais de dois anos do Bolsa Família— são dados como perdidos pela União.

São recursos semelhantes às provisões para empréstimos duvidosos feitas pelos bancos e que são descontadas do total a receber.

Para Pellegrini, é possível que as perdas da União sejam maiores, dada a dificuldade de avaliação de boa parte dos financiamentos.

No Fies, por exemplo, dados atuais mostram que um terço dos recursos em fase de amortização está atrasado. Sobre os recursos emprestados à Marinha, diz o analista, pouco se sabe.

Para especialistas, é preciso cuidado ao analisar os dados.

Há questionamentos sobre as escolhas da União, como o volume de recursos repassados pelo Tesouro ao BNDES, que chegou a R$ 500 bilhões.

Para Pellegrini, os contratos feitos entre 2009 e 2014 afetaram a situação patrimonial da União, pois foram financiados com emissão de títulos públicos, mas o custo dessas emissões superou o retorno dos créditos em todo o período.

"As perdas para a União estão sendo minoradas pela devolução antecipada de parte desses créditos desde o fim de 2016", diz o analista.

O modelo do FAT, que repassa obrigatoriamente 40% de seus recursos para o BNDES, também é objeto de críticas porque o fundo já registrou buracos que precisaram ser cobertos pela União.

"Se o modelo está ou não superado é uma discussão, mas não se trata de política de governo, está na Constituição", diz Bráulio Borges, economista sênior da LCA Consultores.

A função do BNDES também é tema de debates. "Tem gente que acha que o BNDES deve acabar, mas isso não faz sentido enquanto o país precisa fazer investimentos nem sempre lucrativos, mas com retorno social enorme, como saneamento", diz Borges.

José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre/FGV (Fundação Getulio Vargas), diz que, como em outros países, a União financia, direta ou indiretamente, investimentos estratégicos e atividades produtivas, por vezes por mandamento constitucional.

"Isso é diferente da política adotada desde o fim da década passada de usar crédito com os repasses extraordinários ao BNDES no lugar de elevar investimentos em infraestrutura", diz Afonso.

Para ele, o FAT é um dos fundos mais importantes e bem desenhados para proteção social no mundo.

"Poucos países têm um instrumento desse. Ao meu ver, pode ser a diferença para enfrentar o desemprego que virá da revolução digital. Mas é preciso saber usar."

Quanto aos empréstimos feitos pelos fundos regionais, pelo Fies e pelo Minha Casa Minha Vida, críticos falam em falta de transparência.

Se os fundos cobram juros baixos demais ou têm inadimplência muito alta é um problema de gestão que deve ser melhorada, mas não se justifica abandonar o mecanismo, diz Afonso. "Me parece que em um país com déficit brutal de habitação, sobretudo popular, faz sentido financiar a moradia popular."

Para Borges, é preciso avaliar em toda a política pública se os custos são maiores do que os benefícios ou não, e isso nem sempre é simples. Nesse sentido, diz ele, quanto maior a transparência, melhor.

Confira o Estudo Especial nº 6 da IFI, escrito por Josué Alfredo Pellegrini:

http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/wp-content/uploads/2018/09/EE_06_2018.pdf


Folha de S. Paulo: "Populismo se nutre da falsa ideia de que mundo vai mal, mas ele vai bem", diz Steven Pinker

Psicólogo defende que humanidade está em seu melhor momento, mas pessimismo nos confunde

Por Patrícia Campos Melo, da Folha de S. Paulo

Enquanto o noticiário nos apavora com milhões de refugiados, guerras sangrentas e crianças famélicas, o psicólogo e linguista canadense-americano Steven Pinker persiste na cruzada para nos convencer de que o mundo nunca esteve tão bem.

Steven Pinker, professor de psicologia na Universidade Harvard e autor de 10 livros, entre eles "O novo iluminismo - em defesa da razão, da ciência e do humanismo", que será lançado nesta semana.

Divulgar o progresso da humanidade, segundo ele, não é só um meio de corrigir uma visão distorcida que as pessoas têm do mundo. É uma urgência neste momento de ascensão do populismo autoritário.

Em seu livro mais recente, "O Novo Iluminismo - Em defesa da razão, da ciência e do humanismo", que será lançado quinta (6) no Brasil pela Companhia das Letras, Pinker, 63, retoma o projeto de mostrar com dados e fatos que as coisas estão melhorando.

Para o psicólogo cognitivo, é preciso redobrar o foco na razão, na ciência, no humanismo e no progresso para que as coisas continuem a melhorar e para evitar que as pessoas sejam seduzidas pelo discurso catastrofista nostálgico do populismo em expansão.
*
Quando vemos o noticiário, parece que o mundo está cada vez pior. Mas o sr. argumenta, com dados, que nunca estivemos tão bem. Por que há esse descolamento entre a nossa percepção e a realidade?
Isso decorre da natureza do noticiário e da mente humana. A mente humana avalia risco e perigo por meio de exemplos vívidos, imagens, narrativas.

Não somos intuitivamente estatísticos. Se lemos uma reportagem marcante sobre alguém sendo mordido por um tubarão, um terrorista jogando seu carro no meio das pessoas na calçada, ou um ataque numa guerra, isso nos faz pensar que esse tipo de incidente é extremamente comum.

Nós conseguimos nos lembrar facilmente do que está mais disponível na nossa memória, algo que os psicólogos chamam isso de heurística da disponibilidade. Quanto mais alguma coisa está à mão na nossa memória, mais pensamos que é algo com grande probabilidade de acontecer.

Já o noticiário tem como objetivo apresentar ao público eventos e incidentes. Se qualquer coisa ruim acontece em qualquer lugar do mundo, é garantido que estará no noticiário. Já os acontecimentos positivos muitas vezes não rendem imagens vívidas, e na maioria das vezes não são coisas que acontecem de repente, portanto eles sistematicamente não estão no noticiário. Não se noticia o fato de que, nos últimos 40 anos, não houve nenhuma guerra no sudeste da Ásia, uma região onde frequentemente havia conflitos, como o da Coreia, Camboja, Vietnã. Uma região onde não há guerra não é uma manchete, esses são acontecimentos que só podem ser vistos por meio de dados.

Só quando você compila dados, como eu fiz, é que consegue compreender as enormes mudanças benéficas que ocorreram no mundo. Por exemplo, mortes em guerras: o número de mortes aumentou um pouco nos últimos cinco anos, por causa da guerra da Síria, mas, mesmo assim, está muito abaixo dos níveis dos anos 50, 60 e 70, e mais ainda dos níveis da Segunda Guerra Mundial (1939-45).

Da mesma maneira, os jornais raramente falam que a porcentagem da população vivendo em pobreza extrema caiu de 30% há 30 anos para 10%; e alfabetização aumentou para 90% das pessoas com menos de 25 anos. Na maioria dos países, a criminalidade caiu. Até no Brasil, um dos mais violentos, houve queda no número de mortes decorrentes de crimes em algumas cidades, como o Rio.  Melhoras que podem ser detectadas nos números, nos dados, quase nunca aparecem no noticiário, por isso as pessoas não sabem que houve progresso.

As pessoas reagem com ceticismo quando o senhor tenta convencê-las de que o mundo está melhorando?
Sempre. Quando elas veem dados, elas ficam surpresas e mais receptivas --por isso eu conto a história do meu livro por meio de 75 gráficos, e, no livro anterior ("Os Anjos Bons da Nossa Natureza", Companhia das Letras, 2017), eu usei 100 gráficos, porque sabia que, se as pessoas não vissem os números, não acreditariam.

O sr. mostra no livro que, além da mídia, as pessoas têm a tendência de focar o lado negativo das coisas...
Há estudos bem conhecidos mostrando que o ruim é mais forte que o bom; do ponto de vista psicológico, estamos mais preocupados com o que pode dar errado do que com o que pode dar certo. Temos a tendência de nos lembrar melhor de acontecimentos negativos do que positivos, quando são recentes. Mas é diferente quando se trata de coisas que aconteceram há muito tempo. Nós lembramos das coisas boas e ruins, mas tendemos a esquecer quão ruins foram os acontecimentos negativos.  De certa maneira, as pessoas nascem nostálgicas, daí porque temos livros com títulos como "os bons tempos eram péssimos" e "a melhor explicação para os bons tempos é a falta de memória".  Mas, em geral, acontecimentos negativos deixam um impacto psicológico maior. E isso tem mais uma consequência: normalmente, levamos muito mais a sério as pessoas que nos alertam para o que pode dar errado do que as pessoas que identificam o que está dando certo. É aquele ditado: sempre parece que os pessimistas querem nos ajudar, enquanto os otimistas querem nos vender alguma coisa.

No livro, o sr. fala da maneira pessimista com que encaramos o futuro e a nossa atual situação. Por exemplo, quando se pergunta a alguém quantas coisas boas poderiam acontecer hoje, a pessoa pensa em algumas; mas se perguntam quantas coisas ruins poderiam acontecer, ela pensa em um milhão...
Bom, isso não é apenas um efeito psicológico, é a realidade. Há realmente um número muito maior de coisas que podem dar errado do que podem dar certo, essa é a natureza do universo.
Aliás, acho que é por isso que somos tão despreparados para dar valor ao nosso progresso, porque durante a maior parte da história não houve progresso nenhum ou foi muito lento. Foi só a partir da revolução científica que o progresso se tornou uma realidade.

De que maneira os valores do iluminismo contribuem para a melhora de nossas vidas?
Quando falo em valores do iluminismo me refiro a razão, ciência, humanismo e progresso. Razão no sentido de não confiarmos em dogmas ou autoridade, devemos sempre ser céticos e tentar descobrir as coisas usando a lógica e as provas. Ciência é a aplicação da razão ao mundo natural. Humanismo é o princípio de que é o bem estar dos seres vivos que é o maior valor moral, e não a glória de uma tribo, nação, ou lei religiosa. E progresso é usarmos razão e ciência para alcançarmos o bem estar dos seres vivo.
Isso não significa que teremos um mundo perfeito, isso é impossível, mas pode, sim, haver uma melhora gradual.

O sr. afirma que o populismo autoritário é um dos movimentos de reação contra o iluminismo.
A ascensão desse populismo é preocupante? Muito preocupante, porque o progresso não é automático, nem inevitável, ele depende dos ideais do iluminismo. Portanto, se um movimento contra o iluminismo se torna dominante, isso pode desacelerar o progresso ou levar a retrocesso.
Já houve várias fases de retrocesso na história, por exemplo, durante a ascensão do fascismo nos anos 30 e 40, que levou o mundo a se voltar contra a democracia liberal. No livro, eu discuto como os movimentos atuais contra o iluminismo são uma continuação de movimentos do século 19 que glorificavam nação, raça ou religião, em vez de focar os indivíduos, e que olhavam para o passado como uma era de ouro em vez de tentar resolver problemas e fazer um futuro melhor que o presente.

Ao dizer sempre que as coisas nunca estiveram tão boas não estamos adotando uma visão de elite? Sim, tudo está ficando melhor para você, mas não para o pessoal passando fome em favelas, na guerra da Síria, etc...
Na realidade, os dados que eu uso se referem ao mundo inteiro. Claro que as pessoas que mais sofrem ainda estão em uma situação péssima, mas o fato de a guerra ter sido debelada ou evitada em outros lugares aumenta nossa confiança de que podemos trazer paz para partes do mundo que estão sofrendo.
O oposto, pensar que sempre houve guerras, é da natureza humana, e não há nada que possamos fazer, nos torna insensíveis.
Se você pensa que todo mundo no Oriente Médio sempre está se matando, você será fatalista e cínico. Se você pensa que o Sudeste Asiático teve guerras sangrentas por 70 anos e agora tem a paz, podemos pensar que isso pode acontecer no Oriente Médio também.

O sr. afirma que as políticas identitárias também são inimigas dos valores iluministas. Por quê?
Política identitária é uma teoria de que a humanidade é dividida em grupos baseados em raça, gênero, e orientação sexual, que sempre estão brigando por poder. É a teoria de que precisamos lutar para que um grupo tenha menos poder, para que o outro possa ter mais. Isso é contrário à ideia de que todos os humanos têm a possibilidade de prosperar e sofrer, e que podemos ser engenhosos descobrindo soluções que vão melhorar a vida de todo mundo, não só de determinados grupos.
Da mesma maneira que é errado discriminar alguém por causa de raça ou gênero, é errado tentar virar a mesa e fazer outra raça ou gênero superior. Igualdade significa que todos têm direitos iguais, independentemente de raça, gênero ou orientação sexual.

Mas e quanto a corrigir injustiças ou desequilíbrios históricos?
É possível que existam legados históricos de discriminação, e é legítimo ajudar pessoas que foram discriminadas, é o princípio da justiça. Mas isso não se aplica a todas as pessoas de uma determinada raça. Então usar políticas raciais acabaria discriminando contra alguns indivíduos, e isso geraria ressentimento e reação --que é o que estamos vivendo nos EUA hoje.

O aumento na desigualdade de renda é visto como um sinal de que o progresso é limitado, e a vida não melhorou para todos da mesma forma. Mas o sr. diz que igualdade econômica não é um componente fundamental do bem estar.
A pobreza é um componente fundamental do bem estar, igualdade econômica não é. Em qualquer economia onde haja livre mercado é inevitável que surja desigualdade econômica. Como aconteceu com a revolução industrial do século 19, e agora com a revolução eletrônica, é inevitável que algumas pessoas aproveitem melhor que outras as novas oportunidades econômicas.
Sou a favor de políticas que tentam ajudar os mais pobres, como tributação progressiva, mas apenas quando o objetivo é melhorar a vida dessas pessoas, e não igualar a vida de todo mundo.

No seu dia a dia, o sr. reclama bastante da vida? (Risos)
Acho que sim. Mas tento me lembrar sempre de quão sortudo eu sou por viver em uma democracia liberal --por enquanto, pelo menos, ainda é uma democracia liberal.
Tento por minhas queixas cotidianas em perspectiva, eu sou muito sortudo por ser um professor e escritor. É muito útil pensar em como as coisas eram piores para os meus pais e meus avós, apreciar o progresso que tivemos, não para sermos complacentes, pelo contrário, para nos estimular a buscar mais progresso.

Por que seu livro precisava ser escrito neste momento?
O mundo precisa de uma narrativa que se contraponha ao populismo autoritário. As pessoas não valorizam as conquistas da democracia liberal, não há muita gente disposta a defendê-las. Há pessoas carismáticas e apaixonadas defendendo o populismo autoritário e a religião, mas o projeto iluminista carece de defensores. Não sou um líder carismático, mas espero dar munição e argumentos para pessoas que possam ser. Vivemos em uma era em que é possível acessar dados que costumavam ser obscuros e difíceis de encontrar, então podemos documentar o progresso e isso muda nossa compreensão das coisas.

As pessoas parecem estar imunes a dados e fatos ultimamente.
As pessoas sempre foram imunes a dados e fatos, é assim que a mente humana funciona. Algumas pessoas estão dispostas a aprender, duvidar de suas intuições e essas pessoas podem usar esses dados para repensar suas crenças. Isso pode motivar pessoas que são comunicadores eficientes a usar fatos positivos para se contrapor à narrativa populista.  Não deveríamos combater a propaganda com propaganda, mas propaganda amparada em fatos vale a pena espalhar.


Folha de S. Paulo: Com Bolsonaro, disputa entre PSDB e PT será para ir ao segundo turno, diz FHC

Para tucano, atacar capitão é gol contra e Haddad e Alckmin terão dificuldades similares

Thais Bilenky, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Jair Bolsonaro (PSL) antecipou a tradicional disputa entre PT e PSDB para o primeiro turno.

O tucano recebeu a Folha em sua fundação, em São Paulo, na quarta (29).

Neste sábado (1º), ele comentou o veto à candidatura de Lula. “A decisão do TSE [Tribunal Superior Eleitora] já era esperada. A Lei da Ficha Limpa está vigiando e é clara quanto aos requisitos para o registro de candidatos. Lei de iniciativa popular, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente Lula.”

O sr. está surpreso com a resiliência de Bolsonaro? 
Tenho uma visão mais analítica. O mundo todo está sofrendo modificação na percepção das pessoas e, em alguns setores, alguém que simbolize a ordem tem alguma chance. As pessoas estão com medo do futuro, horrorizadas com a corrupção, a economia está parada e tem muita violência.

Havia expectativa de que, com debates e entrevistas na TV, ele começaria a derreter. 
Não sou de menosprezar a potencialidade das pessoas. Não quero que ele ganhe nem creio que vá. Por isso mesmo não se pode desprezar o que ele significa.

O sr. já disse que discorda da expectativa de que seja PT contra a direita, seja Alckmin, seja Bolsonaro, no segundo turno. Inclusive, o sr. aposta que pode vir a ser Bolsonaro e Alckmin.
Isso.

Qual deve ser a estratégia para o Alckmin para chegar ao segundo turno? 
Eu não sou estrategista eleitoral, não sei. Pelos dados, onde a cultura estatal tem mais força, ricos e pobres votam pelo Estado. Quando tem menos força, a mesma coisa. Não é tão ricos contra pobres, que foi a tradução habitual do que acontecia entre PT e PSDB, azuis e vermelhos. O que está acontecendo? Está tudo fragmentado. Os partidos não são expressivos e os que são, vêm de setores que têm mudanças.

O PT tem simpatia crescente, chegou a 24%. 
Mas onde cresceu? Não foi entre trabalhadores, foi geral. A ligação da classe com o partido deixou de contar. Tem mais força no Nordeste, porque o Lula representa uma espécie de Padim Ciço, que deu resultados para as pessoas. Os outros partidos nunca tiveram muita expressão.

O PSDB nesse sentido fracassou? 
Bom, a pergunta é casca de banana [risos]. O PSDB mudou muito, o Brasil também, e sofreu os abalos. Bem ou mal, até agora, ele e o PT expressavam visões mais de Estado ou mais de sociedade, era essa a diferença. [Agora] tem mais gente expressando a mesma coisa, dos dois lados, mas mais do PSDB.

O PSDB tem 4% de simpatizantes. 
A eleição não é PT contra PSDB, é fulano contra beltrano. Sempre foi assim. Ou você acha que o PSDB ganhou a eleição quando eu ganhei? Eu ganhei. Ou que o PT ganhou quando Lula ganhou? Lula ganhou.

Aliados advogam que Alckmin deve esconder o PSDB. 
Não precisa nem deve, vai ser denunciado pelos outros. O PSDB não está no governo, este é o PMDB.

O PSDB está com o Aloysio Nunes no governo e esteve após o impeachment. 
O povo não sabe, não se liga nisso. Uma coisa somos nós, intelectuais, jornalistas, que vivemos nesse meio. Para o povo, tem que mostrar como é o Geraldo. É uma fragilidade das instituições democráticas. O desempenho da personalidade, do líder, conta mais que os partidos.

A personalidade do Alckmin é criticada porque não move multidões. Ele deve trabalhar de que forma? 
Eu movo multidões? O que diziam de mim? Um professor, fala melhor francês que português, o que é mentira! A população vai olhar duas coisas. Primeiro, o que levo com isso? Está sempre subjacente o que eu ganho. Segundo —falo por mim—, vai ter que acentuar as características que a pessoa tem. Que características tem Alckmin? É experiente, não está envolvido em corrupção.

Tem alguns processos judiciais em curso. 
Mas você vai ver e não é nada. Como Haddad, não tem nada.

Há processos envolvendo aliados, o cunhado, Laurence Casagrande.
Não conheço, mas Geraldo põe a mão no fogo por ele. [Lula] está preso e deixou de ter voto? Por que Geraldo vai deixar de ter porque não sei quem está metido?

O sr. acha que a mensagem de Alckmin está certa? 
Qual é a mensagem? Eu não sei ainda.

Por exemplo, o jingle diz que ele é cabeça e coração.
Em campanha, acho eu, você tem que ser do jeito que você é. Geraldo não pode ser uma pessoa extravagante, porque ele não é. Tem que mostrar que é bom ser como ele é para governar o Brasil. Estamos frente a uma situação em que tem muita falta de rumo. Bolsonaro diz que vem com tacape e põe ordem. Geraldo tem que dizer que não precisa de tacape para pôr ordem.

Como os dois poderiam ir juntos para o segundo turno?
Não sei até que ponto [a polarização entre] azul e vermelho vai sumir mesmo. Porque os dois têm estrutura, muitas prefeituras, enraizamento, história.

O MDB também. 
E vai sumir? Não. O MDB sempre fez o que está fazendo agora. Não está jogando para presidente da República, está jogando para poder repetir...

De depois aderir ao governo eleito?
Sim. Se tiver força, vai ter que negociar com ele. Você acha que foi o Partido Republicano que elegeu Trump? Não.

Mas se não fosse o Partido Republicano ele não se elegeria. 
É o que estou dizendo. É uma soma da estrutura com a capacidade de expressar um sentimento da população.

Alckmin e Bolsonaro disputam o mesmo eleitorado? 
Mais ou menos. Uma parte do pessoal estatista vai votar no Bolsonaro também. Eu não sou uma pessoa assertiva que vai dar tal coisa, porque depende. O desempenho dos candidatos é importante, o jeitão deles é importante. A democracia é assim. Se quer garantias, na China é tudo mais garantido que aqui.

Que eleitorado Alckmin belisca para chegar ao segundo turno?
Como o PSDB foi crescendo? Bom, eu ganhei em toda parte, não conta. Era outro momento. Cresceu basicamente de São Paulo para o Sul. Centro-Oeste vai até o Acre. Chega no Rio, perde. Em Minas, às vezes ganha, às vezes perde, e no Nordeste inverte. Acho que a estratégia deve ser consolidar o que tem, e não arriscar onde não tem. A escolha da vice foi correta.

No Sul, Bolsonaro tem 30% e Alckmin, 6%.
Mas não começou a campanha ainda. Acho muito importante fazer pesquisas e tal, mas a dinâmica eleitoral é de confronto. O confronto está começando a se dar. Reitero, acho que o candidato do PSDB tem que concentrar onde sempre teve mais votos. Aí tem que brigar com quem? Bolsonaro.

Tem espaço para os dois?
Pode ter. A mesma dificuldade do PSDB, o PT tem também de entrar no Rio, no Nordeste, porque é paulista,.

Haddad passa para o segundo turno?
Vai ser difícil. A competição neste momento vai ser entre PT e PSDB. Aceitando que o sentimento bolsonarista vai se manter, para ir para o segundo turno, é PT e PSDB. Tradicionalmente, a disputa ia ser PT e PSDB no segundo turno. Agora, eu acho que será para ver quem vai para o segundo turno.

Se PSDB tem que ter o voto que já está com o Bolsonaro no Sul... 
É dinâmico. Em política, as coisas não são. Vão sendo. Além disso, outro problema que se sobressai no campo mundial é que a sociedade contemporânea está mudando. As estruturas fixas, os partidos já não correspondem mais à coesão anterior, então é tudo mais flutuante. Por isso uma pessoa como Bolsonaro, que não tem estrutura, parece como se pudesse.

Como tirar voto dele?
[Dizer que] Bolsonaro apoia o regime militar. Já acabou! Reforça os deles. Como muda? Não é atacando. O povo, no fim, não gosta de ataques, sobretudo ataques pessoais. Atacar Bolsonaro é gol contra.

Então tem que mostrar... 
O positivo. Eu posso. Você não.

A estratégia de Lula de postergar ao máximo a definição da candidatura petista foi boa para eles?
Não sei julgar. Lula sempre se caracterizou por não aceitar número dois. Com a Dilma fez assim e deu certo. Agora é mais difícil, a situação do Lula é mais delicada e já houve a experiência de eleger alguém que o Lula apoiou e esse alguém não é querido da população. Agora, reitero o que eu disse para o Haddad também. Depende de como vão se comportar, a mensagem. [O poder da rede social] de transformar em voto não foi testado. Há a sensação de ser crescente. Do ponto de vista sociológico, é interessante o que vai acontecer.

Alckmin passou a defender armar a população no campo.
Quem não muda?

Está certo ceder?
Não é do temperamento do Geraldo ceder, ele é uma pessoa que tem linha, tem vida, tem história. Tenho muito medo de quem não tem história, porque esse é imprevisível. Geraldo não é imprevisível. Isso pode até não ser bom do ponto de vista de fazer onda eleitoralmente. Mas ele não é imprevisível. Ele tem uma característica que não vejo ressaltada que ele não é intolerante, nunca foi. É religioso, mas não é intolerante. A democracia requer personalidades que tenham capacidade de aceitar a diversidade.

Ele acolhe sugestão? 
Poucas vezes eu digo algo que queira que acolha. Falei sobre a Vice-Presidência e fui ouvido.

Em que medida o PSDB contribuiu para a extrema direita, assombreada por ele até ser desgastado na Lava Jato, ganhar vida própria? 
Quem fez a polarização que deu no que deu foi o PT, pobres e ricos, eu contra você. O PSDB nunca teve esse tipo de comportamento ‘só eu sou bom’.

O PT acha que o PSDB tem essa postura. 
Mas não tem. Na prática, o que fez Lula? Governou com quem?

Com os mesmos? 
Claro. Estou criticando? Não, porque existem, estão lá, você tem que ter maioria no Congresso. Os métodos, aí é outra coisa.

Foram diferentes? 
Uai, eu nunca tive mensalão, não é? Pode revirar.

O PSDB deve fazer aceno no segundo turno ao PT contra o Bolsonaro?
O PSDB tem que ir para o segundo turno. O Brasil precisa de ordem sem tacape.

PT seria desordem?
Não, seria outra coisa. O PT voltou a ficar no estado anterior dele, mais intransigente, mais hegemônico. Eu não gosto disso.

Ciro disse que Bolsonaro é um 'projetinho de hitlerzinho tropical'. Ele é mais contundente ao criticar o Bolsonaro.
Criticar o Bolsonaro é dar corpo a Bolsonaro. Dá força. Eleitoralmente não acho que seja bom. Ciro é um radical livre, pode falar o que quiser. Ele tem essa característica de ter sido sempre assim. Agora é isso que limita também a a possibilidade de ser presidente.


Folha de S. Paulo: TSE barra candidatura de Lula e PT tem dez dias para indicar substituto

Corte havia vetado participação do PT do horário de TV até troca de candidato, mas recuou

Por Letícia Casado  e  Reynaldo Turollo Jr., da Folha de S. Paulo

Em sessão extraordinária de mais de 11 horas, 6 dos 7 ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) votaram por barrar a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com base na Lei da Ficha Limpa, deixando-o fora da eleição.

A corte decidiu que o PT tem dez dias corridos para substituir Lula. Inicialmente, foi deliberado que, enquanto não houvesse a troca do candidato, o partido não poderia fazer campanha nem utilizar seu tempo no rádio e na TV. O ex-prefeito paulistano Fernando Haddad (PT), registrado como vice, deverá assumir a cabeça da chapa.
Por volta da 1h15 deste sábado (1°), ao final da sessão, os ministros fizeram uma inusitada reunião de 30 minutos a portas fechadas e abrandaram a decisão sobre a propaganda, atendendo a um pleito da defesa. Ficou definido que o PT pode usar seu tempo no horário eleitoral, contanto que Lula não apareça como candidato.

Pela lei, apoiadores de determinado candidato podem ocupar até 25% do tempo do horário eleitoral, entendimento que deverá ser empregado para as aparições de Lula em apoio a Haddad.

Nos termos do voto do relator, Luís Roberto Barroso, que foi acompanhado pela maioria, a decisão do plenário do TSE é a palavra final sobre a candidatura e passa a valer imediatamente, mesmo que a defesa recorra ao próprio tribunal e depois ao STF (Supremo Tribunal Federal).

O registro de candidatura do petista foi alvo de 16 contestações de adversários e da Procuradoria-Geral Eleitoral. Lula está preso em Curitiba desde 7 de abril, depois de ter sido condenado em segunda instância na Lava Jato por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá (SP). Ele nega os crimes e diz ser perseguido politicamente.

Votaram por negar o registro de candidatura o relator do processo, Barroso, e os colegas Jorge Mussi, Og Fernandes, Admar Gonzaga, Tarcísio Vieira e Rosa Weber, presidente do TSE.
A ministra Rosa, porém, divergiu quanto à possibilidade de Lula continuar em campanha. Ela afirmou que um candidato sub judice pode concorrer até decisão final do Supremo, mas foi vencida nesse ponto.

Já Edson Fachin, apesar de reconhecer a inelegibilidade do petista, foi o único a votar por liberar a candidatura por causa de uma decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU obtida pela defesa.

O processo de registro de candidatura do petista entrou na pauta da sessão desta sexta (31) de última hora, em meio a uma discussão sobre prazos. A defesa solicitou, logo de início, o adiamento do julgamento, argumentando que houve açodamento e faltou tempo para que as partes que contestaram o registro rebatessem os argumentos de Lula, que foram entregues ao TSE na noite da quinta (30).

Esse pedido foi negado por 4 votos a 3. Fachin, Og Fernandes e Rosa queriam abrir o novo prazo, mas foram vencidos.

A procuradora-geral, Raquel Dodge, e o relator do processo, Barroso, afirmaram que era preciso resolver a situação de Lula antes do horário eleitoral na TV e no rádio, que começa neste sábado (1°) para os candidatos à Presidência.

O argumento central da defesa, de que há uma liminar do Comitê de Direitos Humanos na ONU que determina que Lula possa concorrer até que a Justiça brasileira julgue todos os recursos de sua condenação criminal, foi o mais enfrentado pelos ministros em seus votos.

“A Justiça Eleitoral não está obrigada a se submeter ao Comitê dos Direitos Humanos da ONU”, entendeu Barroso. Segundo ele, o órgão internacional é administrativo, sem competência jurisdicional, e suas decisões não vinculam (obrigam) a Justiça brasileira. Além disso, argumentou, “a decisão foi proferida por apenas 2 dos 18 membros do comitê”.
“Dois peritos internacionais modificariam todo o processo eleitoral brasileiro”, observou Og Fernandes sobre esse mesmo aspecto da liminar do comitê da ONU.

O ministro Mussi destacou o caráter administrativo do órgão internacional ao votar contra o petista. “Ressalto: o comitê [da ONU] não possui competência jurisdicional, é órgão meramente administrativo”, disse.

Boa parte do voto de Mussi foi para assentar o entendimento, condizente com o de Barroso, de que a palavra final sobre uma candidatura é do plenário do TSE, o que torna imediato o cumprimento do que foi decidido. Isso esvazia o efeito prático de eventuais recursos.

Fachin, diferentemente dos colegas, fez uma longa análise sobre a abrangência da medida cautelar do comitê da ONU e entendeu que o Estado brasileiro tinha o dever de acatá-la.
“Diante da consequência da medida provisória do Comitê de Direitos Humanos, [Lula] obtém o direito de paralisar a eficácia da decisão que nega o registro de candidatura. Assento, como fez o relator [Luís Roberto Barroso], a inelegibilidade, e entendo que essa inelegibilidade traz o indeferimento da candidatura”, disse Fachin.

“Contudo, em face da medida provisória obtida no Comitê de Direito Humanos, se impõe, em caráter provisório, reconhecer o direito, mesmo estando preso, de [Lula] se candidatar às eleições presidenciais de 2018”, afirmou. Tal entendimento, porém, não prevaleceu.

Barroso fez de seu voto uma defesa da Lei da Ficha Limpa, posição já adotada em outras ocasiões.

“A Lei da Ficha Limpa não foi um golpe ou uma decisão de gabinetes. Foi, em verdade, fruto de uma grande mobilização popular em torno do aumento da moralidade e da probidade na política. Foi o início de um processo profundo e emocionante na sociedade brasileira de demanda por integridade, idealismo, patriotismo”, afirmou.

“Mais de um milhão e meio de assinaturas foram colhidas para apresentar o projeto de iniciativa popular. A lei foi aprovada na Câmara e no Senado com expressiva votação e sancionada com loas pelo presidente da República [o próprio Lula]. A lei desfruta de um elevado grau de legitimidade democrática”, disse.

O advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, que defendeu Lula no TSE, afirmou que havia precedentes para que o petista pudesse disputar. “O que o presidente Lula quer não é nada a mais do que o que deram para 1.500 [candidatos] de 2010 [quando a Ficha Limpa entrou em vigor] para cá. Mas também não pode ser nada a menos”, disse.

Segundo ele, nas eleições municipais de 2016, 145 candidatos concorreram sub judice, e parte conseguiu se eleger e assumir o cargo posteriormente com o sucesso de seus recursos na Justiça. Ainda segundo Casagrande, há um precedente de candidato à Presidência que apareceu na urna em 2006, mesmo com registro indeferido pelo TSE: Rui Costa Pimenta, do PCO.

Os ministros, porém, afirmaram que a jurisprudência da corte mudou, e que hoje entende-se que, com a palavra final do plenário do TSE, não há como concorrer sub judice.


Nelson de Sá: Bolsonaro avança na mídia de direita dos EUA como 'o mito, o mito'

Para o francês Le Monde, 'num Brasil desorientado, militar está pronto para vestir figurino de chefe'

O agregador Drudge Report, referência da direita americana, passou a acompanhar regularmente a eleição, com a resistência de Jair Bolsonaro a pouco mais de um mês da eleição.

Um enunciado desta quinta (30) destacou sua declaração na entrevista ao Jornal Nacional, parafraseada pela AP: “Deixem a polícia matar criminosos”. O texto linkado anotou a reação de Ciro Gomes, descrevendo-o como “projetinho de Hitlerzinho tropical”.

Outra chamada, mostrando que é saudado como “o mito, o mito!”, linkou para longo perfil da AFP, “Antes considerado muito extremista, o ponta-direita brasileiro avança para a presidência”.

Também à esquerda ele segue ganhando atenção. O francês Le Monde noticiou que, “Num Brasil desorientado, militar está pronto para vestir o figurino de chefe. Autoritário, se necessário”.

Anota que até pouco tempo atrás era “um insignificante político de Brasília, mais conhecido pelas agressões verbais”.

HERDEIRO DE LULA

Aos poucos, Fernando Haddad vai ocupando o lugar de Lula na cobertura externa. Em texto de Raymond Colitt reproduzido por sites até da Argentina, o destaque da Bloomberg na quinta informava, já no título, que “Herdeiro de Lula é competitivo, mas não é certeza na eleição brasileira”.

AMIGO DO MERCADO

O Financial Times falou com Geraldo Alckmin, “o candidato amigo do mercado nas eleições do Brasil”, mas manteve sua reticência, com enunciado sublinhando que seu “início lento provoca tensão”. No subtítulo, “Empresas estão nervosas antes do primeiro turno com centrista ficando para trás”.

Entre as declarações de Alckmin, “Eu acho que vou para o segundo turno”. Ou ainda: Com o início do horário eleitoral, “eu vou conseguir”.

COLAPSO DO CENTRO

Em artigo no Wall Street Journal, o acadêmico Walter Russell Mead tratou “o colapso do centro político” no Brasil como sinal de que “sistemas políticos por consenso” já não estão funcionando muito bem nas democracias ocidentais.

No site da London School of Economics, ‘Falta de legitimidade poderia tornar o país ingovernável?’

ELEIÇÃO ILEGÍTIMA?

No site da London School of Economics, o acadêmico Mark Langevin descreve longamente os elementos que podem tornar a eleição “ilegítima”, como a abstenção crescente mostrada em 2016 e os “níveis altíssimos” de rejeição dos candidatos, em meio à polarização que se aprofunda. Também a “governança fracassada” do país, cuja “expressão sangrenta é a recente explosão de homicídios e violência”.

RUÍNA

O britânico Guardian publicou carta de políticos e intelectuais, entre eles Tariq Ali, afirmando que as “políticas linha-dura de Michel Temer estão arruinando o Brasil” e questionando a “contínua perseguição a Lula”.

FIM DE GOVERNO

E a crise argentina “aperta as moedas emergentes mais fracas”, destacou o WSJ, citando o real, que “chegou perto do menor valor em dois anos”.

Ao fundo, a Reuters ouviu do governo brasileiro que “obstáculos podem atrapalhar as esperanças” de um acordo comercial com a União Europeia, uma de suas últimas apostas.

 

Pedro Cavalcanti: Boatos, rumores e 'fake news'

Um passeio pela internet revela que os australianos não existem, eles são robôs

No início da década de 60 do século passado surgiu um boato sinistro sobre um falso funcionário da Companhia de Gás de Moscou. O assassino da MosGaz, como era conhecido, tocava a campainha de apartamentos onde havia crianças sozinhas, declarava que vinha examinar um vazamento, entrava e assassinava.

A notícia tinha um fundo de verdade – houve mesmo um assassino do gás –, mas suas ações foram restritas a alguns casos, que não saíram em jornal algum, mesmo porque a imprensa soviética não publicava notícias policiais. Esse silêncio da imprensa não impediu que o terror se multiplicasse, boca a boca, por gerações de mães e crianças, tornando-se o que se chamava de lenda urbana, antecessora das fake news disseminadas pela internet.

Há quem acredite que a ampliação do boato da MosGaz se devesse a condições específicas da União Soviética. Como não se publicavam notícias policiais, não seria possível desmenti-las sem mencioná-las. Ficou assim demonstrado, pelo menos, que ignorar o assunto não é uma boa medida. Sem desmentidos, o boato se reproduz como uma célula cancerosa. Por essa razão não há quem duvide da utilidade dos serviços que se multiplicam atualmente para verificar a eventual veracidade das notícias.

A questão, no entanto, é complexa e os próprios desmentidos apresentam riscos. O primeiro dos quais é serem ineficazes. Um dos boatos mais vigorosos e incontroláveis surgiu na mesma época na cidade francesa de Orléans. Em certas lojas de moda, o assoalho das cabines de provas apresentava um alçapão destinado a capturar mocinhas. Quando o alçapão se abria, elas caíam num quarto secreto onde eram drogadas para acordarem mais tarde algemadas no porão de um navio com destino a um bordel de Buenos Aires.

Quem negasse a relação entre as lojas e o tráfico de brancas, como fizeram de imediato policiais e jornalistas, era imediatamente acusado de se deixar subornar pela máfia dos lojistas. Um livro escrito por Edgar Morin chamava a atenção para o fato de o boato atribuir as misteriosas lojas a comerciantes judeus, o que não é de estranhar, pois como se sabe desde a Idade Média judeus são vítimas dos piores rumores, como, por exemplo, de roubar recém-nascidos para sacrificar em suas missas negras.

É óbvio que os judeus não são as únicas vítimas dos rumores. Um dos mais curiosos e persistentes teve início também na França, na mesma época, com um sujeito acometido por uma dor de dentes. O dentista que o atendeu revelou que o problema era causado por um ossinho de rato que ficara preso entre dois dentes. “É o quarto caso neste mês”, comentara o dentista. Todos frequentavam restaurantes chineses.

No Brasil tivemos um caso especialmente lamentável. Em março de 1994, o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, donos da Escola Base, destinada à educação infantil, foram acusados de pedofilia num concerto de mentiras que envolveu policiais, membros do Ministério Público e vários jornais. Antes que o casal fosse inteiramente inocentado, a Escola Base já havia sido depredada por vândalos.

Um dos boatos recorrentes na periferia das grandes cidades brasileiras dá conta de uma Kombi pilotada por um palhaço, que atrai crianças para roubar seus rins. Dias mais tarde os cadáveres são encontrados em terrenos baldios com um corte por onde foram retirados os órgãos. A impossibilidade médica de iniciar um transplante com um doador escolhido ao acaso por um palhaço no interior de uma Kombi não impede a persistência da história de terror.

Os exemplos apontados acima bastam para que se note a dificuldade da tarefa da grande imprensa na sua luta contra as fake news. Para desfazer uma fake news é preciso mencioná-la e se a correção não for feita com muita habilidade corre-se o risco de tentar apagar o fogo com gasolina. Leitores de fake news costumam sacar palavras isoladas, à procura de qualquer coisa que venha confirmar opiniões preconcebidas. Se algo parece contrariá-los, buscam desconsiderar a argumentação afirmando que “não há fumaça sem fogo” ou que o desmentido foi escrito por alguém vendido a grupos interessados.

Esse contra-argumento tem sido muito usado em anúncios de drogas miraculosas à base de plantas capazes de fazer qualquer pessoa perder oito quilos em duas semanas, sem dieta. Afirmam que a fórmula permanece em segredo pela pressão dos médicos, temerosos da concorrência. De maneira análoga, quem desmente o boato de que vacina tríplice provoca aumento do número de casos de autismo se vê acusado de cúmplice dos laboratórios multinacionais. Há casos extremos em que um desmentido mal-intencionado serve para criar um boato do nada. Conta-se que um jornalista de um tabloide de escândalos inglês telefonou para a esposa de um político influente para perguntar se seu marido era homossexual. Ante a negativa veemente, publicou a manchete: Fulana de tal, indignada: ‘Meu marido não é homossexual!’.

Na impossibilidade de desmentir individualmente todas as fake news, procura-se alertar o público para checar a verossimilhança e a origem das notícias.
Um passeio pela internet revela, por exemplo, que os australianos não existem realmente: são robôs. A descoberta foi divulgada por uma conferência organizada em Londres pela International Flat Earth Society, fundada em 1956, que como o nome indica reúne pessoas que acreditam que a Terra é plana.

Casos como esses são fáceis de descartar, mas há também notícias com todas as características de fake news que se revelam verdadeiras. As primeiras histórias sobre famílias judias, homens, mulheres e crianças, levadas para câmaras de gás em campos de extermínio foram recebidas por muitas pessoas cultas e bem-intencionada através do mundo com o descrédito merecido pela propaganda de guerra. Na vanguarda das artes e das ciências, a Alemanha de Goethe nunca poderia permitir bestialidades dessa ordem. No entanto, era tudo verdade.

*Pedro Cavalcanti é jornalista e escritor.


Steven Levitsky: Bolsonaro ameaça a democracia brasileira

Candidato à Presidência da República é inequivocamente um autoritário

Na semana passada, escrevi que as democracias já não são destruídas pelas Forças Armadas, mas sim por presidentes e primeiros-ministros eleitos. Da Rússia de Putin à Turquia de Erdogan e à Venezuela de Chávez, líderes eleitos se tornaram os maiores assassinos da democracia.

Por isso, a fim de manter a democracia em segurança, é preciso impedir que candidatos autoritários vençam eleições. Os cidadãos precisam rejeitá-los nas urnas. Como podemos dizer se um candidato é autoritário? Quatro décadas atrás, o cientista político espanhol Juan Linz propôs um teste decisivo para a identificação de comportamento antidemocrático. Em nosso livro, “Como as Democracias Morrem”, Daniel Ziblatt e eu apresentamos uma versão revisada do teste de Linz. Ela contém quatro perguntas:

1. O político questiona as regras democráticas do jogo? Ele sugere que há necessidade de medidas antidemocráticas, endossa esforços extraconstitucionais para mudar o governo, ou se recusa a seguir as regras democráticas?

2. O político encoraja a violência? Ele mantém conexões com pessoas ou grupos envolvidos em violência ilícita? Elogiou atos de violência política ou encorajou seus partidários a recorrerem à violência?

3. O político nega a legitimidade de seus oponentes? Ele descreve os oponentes como inimigos, traidores, subversivos ou criminosos que deveriam ser privados de seus direitos democráticos básicos?

4. O político mostra disposição de restringir as liberdades civis dos rivais? Endossou políticas que ameaçam os direitos civis ou os direitos humanos, elogiou atos repressivos de outros governos ou ameaçou ações judiciais punitivas contra aqueles que o criticam?
Quando um político exibe um ou mais desses traços de comportamento, os cidadãos deveriam se preocupar, e, o mais importante, não deveriam elegê-lo.

O teste identifica corretamente a maioria dos autocratas contemporâneos. Putin, Chávez, Erdogan, Duterte, Correa e Evo Morales teriam todos sido identificados pelo teste, quando candidatos.

Com a ajuda de um assistente de pesquisa, apliquei o teste aos candidatos à presidência no Brasil. Um deles emergiu como distintamente autoritário: Jair Bolsonaro.

1. Ele questiona as regras democráticas do jogo. Bolsonaro frequentemente elogia a última ditadura brasileira e questiona a legitimidade da democracia do país. Em 1993, ele declarou que “sou a favor de uma ditadura”, pediu o fechamento do Congresso e apoiou o golpe de Fujimori no Peru. Mais recentemente, ele declarou que nomearia novos juízes para o Supremo (ao modo de Chávez), definiu o sistema eleitoral brasileiro como “viciado”, prometeu “governar com as Forças Armadas” e selecionou como companheiro de chapa o general Hamilton Mourão, que ameaçou um golpe de Estado.

2. Ele encorajou a violência. Em 1998, Bolsonaro declarou que os militares deveriam ter matado 30 mil pessoas, entre as quais Fernando Henrique Cardoso. Encorajou execuções extrajudiciais pela polícia, apoiou os esquadrões da morte do Rio de Janeiro e justificou o massacre de 19 trabalhadores rurais do Pará em 1996.

3. Ele nega a legitimidade de seus oponentes. Bolsonaro chamou FHC de “corrupto” e disse que ele deveria ter sido morto durante a ditadura, chamou Lula de criminoso, exigiu que fosse aprisionado (o que é função dos juízes, não dos políticos) e disse que seu governo trataria o MST como “terrorista”.

4. Ele se mostra disposto a restringir as liberdades civis de seus oponentes. Bolsonaro aprova a tortura e execuções extrajudiciais, especialmente contra políticos e ativistas de esquerda.

Assim, Bolsonaro é inequivocamente autoritário. De fato, ele é mais abertamente autoritário do que Chávez, Fujimori, Erdogan ou Viktor Orban. Nenhum desses políticos abraçou a ditadura da maneira como Bolsonaro faz.

Nenhum dos adversários de Bolsonaro —Alckmin, Ciro, Marina ou Haddad— foi identificado como autoritário em nosso teste. (Ciro é falastrão, mas não identificamos comportamento que sugerisse autoritarismo).

Assim, Jair Bolsonaro é uma ameaça única à democracia brasileira. Ele é tão abertamente autoritário que poderia invocar uma possível vitória na eleição como mandato conferido pelos eleitores para atacar as instituições democráticas. Ele é o Chávez do Brasil.

*Steven Levitsky é cientista político, autor do livro "Como as Democracias Morrem"


Rogério Sottili: O Brasil ainda deve justiça às vítimas da ditadura

Lei de Anistia tornou-se um subterfúgio do Estado 

Entre 1964 e 1985, uma série de graves crimes contra a humanidade foram perpetrados por agentes do Estado brasileiro.

Vivíamos em um contexto de prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e terror na sociedade.

Esses agentes públicos, no entanto, nunca foram julgados. O tema ainda é, tanto tempo depois, uma das principais fontes de litígio entre o sistema internacional de direitos humanos e o Estado brasileiro. E a Lei de Anistia assumiu papel central nessa disputa.

A Lei de Anistia completa 39 anos neste 28 de agosto. Ao longo dessas décadas, tornou-se evidente que a compreensão dominante até hoje no Brasil não é compatível com as normas internacionais de direitos humanos.

A interpretação que prevalece nos tribunais nacionais até hoje considera que as graves violações de direitos humanos e crimes cometidos na ditadura são crimes políticos.

Essa leitura impede as investigações e garante a proteção aos torturadores do regime militar. No entanto, esses crimes são, por natureza, imprescritíveis e inanistiáveis.

Como se não bastasse, a impunidade cristalizada na lei deixa um legado no imaginário coletivo que se traduz na tolerância à violência de Estado e no eventual reconhecimento da legitimidade do uso desproporcional da força. É como se houvesse, no Brasil, uma licença para matar.

Não por acaso, forças de segurança ainda fazem uso dos autos de resistência, que acobertam práticas cotidianas de uso excessivo da força, execuções extrajudiciais e torturas.

Em plena democracia, cidadãos convivem com ações policiais e intervenções militares que têm características muito semelhantes às dos aparatos de repressão da ditadura.

A desconstrução desse legado autoritário passa, necessariamente, por uma reinterpretação da Lei de Anistia, que permita à Justiça brasileira julgar e punir aqueles que cometeram crimes de lesa-humanidade.

O Judiciário brasileiro, liderado pelo Supremo Tribunal Federal, tem se esquivado de cumprir suas obrigações. Adequar-se ao sistema internacional de direitos humanos e suas normativas é uma delas. O Estado que assume compromissos perante a comunidade internacional e não os cumpre não é o tipo de Estado que queremos.

Recentemente, um tribunal internacional —a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos— condenou o Brasil pela falta de investigação e punição aos responsáveis pelo assassinato de Vladimir Herzog (1937-1975).

A ausência de respostas do Estado brasileiro à família de Herzog —e às famílias de tantas outras vítimas da ditadura— sempre esteve escorada na anistia. Ou seja, a lei tornou-se um subterfúgio.

A tarefa incompleta de se democratizar o país é indissociável da necessidade de se garantir justiça a todos que sofreram com a violência do Estado.

Uma nova interpretação da Lei de Anistia, que esteja alinhada aos direitos humanos e às normativas internacionais, nunca foi tão necessária.

* Rogério Sottili é Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog


Leandro Colon: Hoje herdeira maior do espólio de Lula, Marina luta para não derreter

Razões não faltam para pensar que ela tem grandes chances de ir ao segundo turno

Se um estrangeiro desinformado sobre nossa eleição presidencial desembarcasse hoje por aqui, certamente pensaria que Marina Silva (Rede) tem tudo para chegar ao segundo turno com chances de ser eleita presidente da República.

Razões não faltam. Terceira colocada na pesquisa do Datafolha no cenário com Lula, a ex-ministra do Meio Ambiente vê dobrar suas intenções de voto, de 8% para 16%, quando o levantamento exclui o nome do ex-presidente da disputa, possibilidade mais provável e que está apenas à espera de uma confirmação do TSE.

De acordo com o Datafolha, Marina é a que mais herda eleitores de Lula. Ela é a preferida de 21% dos que afirmam que votariam no petista. Lidera também entre os mais pobres na hipótese sem o ex-presidente.

O contexto, decerto, não poderia ser melhor não fossem os fantasmas políticos que cercam sua candidatura. O principal deles deve ser debitado na conta da ex-senadora. Marina não conseguiu dar musculatura ao partido que criou, a Rede. E a fatura é salgada. Isolada e incapaz de construir alianças de fôlego, a candidata ao Planalto terá míseros 21 segundos de tempo na TV aberta, uma fatia de quase 3% do total.

O espólio que hoje ela herda de Lula tende, por exemplo, a derreter assim que Fernando Haddad for apresentado na propaganda eleitoral como o candidato de fato do PT.

Marina ainda carrega a desconfiança da esquerda pelo apoio a Aécio Neves (PSDB) no segundo turno de 2014 contra Dilma Rousseff. Deu suporte a práticas que agora critica.

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Transforme sua sala em um divã. E repórteres, às vezes, pensam que são promotores, mas são jornalistas.

Palavras de Otavio Frias Filho, em agosto de 2016, sobre a desafiadora missão, que acabara de me confiar, de dirigir a Sucursal de Brasília —pouco depois de concluída outra, a de correspondente em Londres.

No sétimo dia de sua morte, o sentimento de tristeza pela despedida se mistura ao de uma eterna gratidão.

*Leandro Colon é diretor da Sucursal de Brasília


Samuel Pessôa: Modelo previdenciário fundado

A sociedade concedeu expectativas de direitos que geram gasto elevado com Previdência

O Brasil gasta com benefícios previdenciários 14% do PIB (Produto Interno Bruto). Esse número soma o RGPS (Regime Geral de Previdência Social), que gasta uns 9% do PIB, e os RPPS (Regimes Próprios de Previdência Social) dos funcionários públicos, que gastam 5% do PIB, consolidando União, estados e municípios.
Adicionalmente, o número de 14% do PIB inclui os benefícios assistenciais e as pensões por morte aos viúvos e viúvas.

A razão de dependência —relação entre a população acima de 65 anos e a que tem entre 20 e 64 anos— é no Brasil de 13%. Sociedades com essa razão de dependência gastam em geral entre 5% ou 6% do PIB com Previdência. Ou seja, nosso sobregasto previdenciário é da ordem de 8 a 9 pontos percentuais do PIB.

Nosso gasto é tão superior ao das demais sociedades porque a taxa de reposição (valor do benefício previdenciário como proporção da renda quando ativo) é próxima de 100% para uma parcela de 95% da população que trabalha, segundo o trabalho “Será que o brasileiro está poupando o suficiente para se aposentar?”, de Ricardo D. Brito Paulo T. P. Minari. Além da alta taxa de reposição, o gasto é elevado pois a idade de concessão do benefício é muito baixa.

Elevada taxa de reposição e reduzida idade de concessão do benefício desestimulam a poupança privada. O mesmo trabalho citado mostra que, para esses 95% da população empregada, é irracional a constituição de poupança para a velhice.

Nosso sistema previdenciário, além de onerar as contas públicas, desestimula a formação da poupança. Consequentemente, a taxa básica de juros é muito elevada.
Em ano eleitoral surgem propostas rocambolescas para enfrentar a questão. Diversos candidatos apostam no regime previdenciário fundado: a acumulação de recursos em contas individuais.

O leitor pode achar estranho a taxa de reposição ser elevada e os valores dos benefícios serem baixos. O que de fato é baixa é a remuneração média do trabalho no Brasil, fruto da baixa produtividade. Lembremos que uma hora trabalhada no Brasil produz a quinta parte da hora trabalhada nos Estados Unidos, por exemplo.

Novas regras para atendimento no INSS
Todas as pessoas que estão no setor privado já estão em um regime fundado: para ter aposentadoria acima do teto do INSS, é necessário poupar, seja adquirindo patrimônio imobiliário, riqueza financeira ou alguma outra forma.

Todas as pessoas que ingressaram no serviço público da União após 2013, quando a presidente Dilma Rousseff implantou o fundo de pensão complementar dos servidores da União, já estão no regime fundado. O mesmo se aplica a alguns estados.

O problema, portanto, não é o desenho do modelo. De fato, é importante que o fundo de pensão complementar de servidores seja implantado para os funcionários públicos de todos os estados e municípios.

O problema é que o Congresso Nacional concedeu expectativas de direitos que geram esse gasto elevado, com altas taxas de reposição e idades de concessão do benefício muito baixas.
Mudar o regime para os novos ingressantes no mercado de trabalho, de sistema de repartição para sistema fundado, não alterará o fato de que já concedemos expectativas de direitos que geram esse resultado macroeconômico.

Se não repactuarmos nosso sistema previdenciário, reduzindo a expectativa de recebimento de benefício —seja o valor ou a idade de concessão—, não escaparemos do perverso equilíbrio que temos vivido nas últimas décadas, de baixo crescimento, carga tributária crescente e juros elevados. Não há atalho por aqui.

*Samuel Pessoa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Folha de S. Paulo: Risco à democracia no Brasil é real e angustiante, afirma brasilianista

Historiador americano diz que surgiu no país corrente que não valoriza conquistas

Daniel Buarque, da Folha de S. Paulo

LONDRES - A democracia brasileira vive um momento paradoxal às vésperas de uma das eleições presidenciais mais cheias de incertezas, segundo o historiador americano Bryan McCann, professor da Universidade Georgetown.

Ao mesmo tempo em que há espaço para celebrar as conquistas de três décadas desde o fim da ditadura, o país também vive a angústia de ver o crescimento de um movimento que ameaça o pluralismo democrático do país, afirma McCann.

"Surgiu um setor da população brasileira que não respeita essa democracia plural, que não valoriza as conquistas dos últimos 30 anos e pensa apenas na crise mais recente", disse.

Para o professor, a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) é fruto desse pensamento, pois trata-se de "alguém que concorre em uma eleição democrática, mas com saudade da ditadura", disse.

A eleição presidencial está sendo chamada de a mais imprevisível da história recente no país. Concorda ou acha que as coisas estão começando a se desenhar de forma mais clara?
Sim, concordo. Não só imprevisível, como acho angustiante. E devemos fazer uma reflexão sobre os últimos 30 anos. Sim, é verdade que ao longo dos últimos três anos o Brasil está em crise, mas ao longo de três décadas o Brasil alcançou avanços enormes por causa da consolidação e da construção de uma democracia plural. A eleição é um momento angustiante para a democracia brasileira.

Em que sentido?
Uma democracia plural tem que ter representação de várias tendências no governo, mas o momento atual é angustiante porque surgiu um setor da população brasileira que não respeita essa democracia plural, que não valoriza as conquistas dos últimos 30 anos e pensa apenas na crise mais recente. A candidatura de Jair Bolsonaro é fruto desse pensamento.

Isso é ruim para a democracia?
Ele é um risco para a democracia brasileira. Como não sou cidadão brasileiro, não tenho um candidato para apoiar na eleição, mas eu votaria em qualquer um contra Bolsonaro. Ele não respeita essa democracia e fala abertamente que respeita mais o tipo de regime que o Brasil tinha durante a ditadura.

A revista The Economist diz que Bolsonaro é um perigo para a democracia. Qual a percepção internacional a respeito da candidatura dele?
Mais recentemente ele tem recebido uma maior atenção, sendo comparado a Donald Trump e ao [presidente das Filipinas] Rodrigo Duterte, alguém que tem possibilidade de fazer muito estrago. A cobertura jornalística nos EUA tem sido muito crítica a Bolsonaro, mostrando ele como alguém que concorre em uma eleição democrática, mas com saudade da ditadura.

Considerando o quadro atual de coligações entre partidos, em que Bolsonaro vai receber pouca verba e vai ter pouco tempo de TV, acha que ele tem chances reais de vencer a eleição?
Acho que sim. Depois da vitória do 'brexit' e da eleição de Trump, o que temos visto nos últimos anos é um mundo político em que um movimento populista que simplesmente quer acabar com a situação atual e quebrar a casa pode vencer, sim.

O ex-presidente Lula está preso e foi anunciado oficialmente como candidato a presidente. Como isso se encaixa na história política dele no Brasil?
Lula tem uma importância histórica imensa para o Brasil. A questão principal agora é tentar entender como essa importância dele vai ter influência na eleição. Acho que a candidatura dele vai ser barrada, mas acredito que ele tenha grande poder de transferência de votos. E mesmo se o candidato dele não conseguir passar ao segundo turno, Lula ainda terá capacidade de transferir votos no segundo turno, para o candidato que tiver mais proximidade.

O momento atual tem paralelo na história do país?
Para os historiadores, lembra a eleição de 1945, quando Getúlio Vargas teve poder de transferência de votos que acabou com o resultado da eleição do Dutra. Foi Getúlio que levou à eleição de Dutra. Lula vai ter este tipo de poder em 2018, e falta saber para quem vão acabar indo esses votos.

Há quem compare o momento atual à eleição de 1989. O que acha?
Há semelhanças com 1989, sim. Na época, [Leonel] Brizola e Lula acabaram dividindo o voto da esquerda. Hoje em dia é até mais difícil, pois não tem um candidato claro da esquerda.

A manobra do PT que isolou Ciro Gomes [PDT] pode ser vista como uma lição para evitar a divisão de 89?
A esquerda brasileira aparentemente não aprendeu a lição. Não vemos agora uma união de forças contra o Bolsonaro, por exemplo. Vemos Ciro e Lula disputarem, e mesmo dentro do PT tem tendências disputando espaço.

Como tem sido vista fora do Brasil a candidatura de Lula, que está preso?
Isso gera um pouco de dúvidas e incertezas. Não existe uma percepção geral de que Lula foi injustiçado, entretanto. Mesmo entre as pessoas bem informadas sobre política global. O que há é uma incerteza sobre o que está acontecendo, como ele pode ser candidato, e uma ideia de que no fim ele não vai poder concorrer, então o partido dele vai ter que apoiar outro nome.