Folha de S. Paulo

Bruno Boghossian: Campanha de Bolsonaro aplica seu próprio viés político à educação

A 12 dias do 2º turno, não se sabe quase nada sobre planos para o ensino público

As conspirações sobre a ideologia nas escolas atingiram o insuspeito Charles Darwin. Um general que elabora propostas na campanha de Jair Bolsonaro diz que a teoria da evolução deve ser ensinada ao lado do criacionismo (a ideia de que Deus criou diretamente o homem).

“Muito da escola está voltada para orientação ideológica [...]. Houve Darwin? Houve, temos de conhecê-lo. Não é para concordar, tem de saber que existiu”, afirmou Aléssio Souto ao jornal O Estado de S. Paulo.

As duas visões devem ser mantidas em esferas distintas, mas o militar segue uma linha em que a religião disputa espaço com a ciência. Ele diz que um pai “não está errado” se quiser que o professor ensine teoria da criação no lugar do darwinismo.

A sugestão causa arrepios em especialistas. “Esse debate deve ocorrer no campo da religião, nas aulas de filosofia ou sociologia”, afirma Priscila Cruz, do movimento Todos pela Educação. “Na ciência e na biologia, o criacionismo deveria ser banido.”

Ao tratar pontos do ensino científico como desvio ideológico, assessores de Bolsonaro aplicam, eles mesmos, um viés político à educação.

“Quando você iguala ciência e ideologia, você anda para trás, ignora séculos de aprendizado”, diz Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências. “A teoria da evolução não é ideológica. É resultado de percepções científicas e foi testada ao longo do tempo.”

A 12 dias da eleição, não se conhece muito sobre o programa de Bolsonaro além da criação de colégios militares. É possível deduzir que ele quer tirar das salas de aula valores como o combate ao preconceito sexual e a defesa dos direitos humanos.

Outro consultor da campanha disse ao jornal Valor Econômico que vai sonegar dos eleitores os projetos para o setor. Stavros Xanthopoylos afirmou seis vezes que só vai falar do assunto depois do segundo turno.

“É um cheque em branco”, diz Priscila Cruz. “O debate não está em cima de propostas, mas de crenças e visões de mundo. O que vamos fazer para as crianças aprenderem?”


Folha de S. Paulo: Forças ocultas na política terão que se civilizar, diz Giannotti

Professor de filosofia diz que não se governa com ameaças e que vitória de Bolsonaro levará conservadores a moderação

Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A eventual eleição de Jair Bolsonaro (PSL) vai jogar conspiradores e golpistas na dança política, afirma José Arthur Giannotti, 88, um dos mais influentes professores de filosofia do país, que já deu aulas na USP, da qual se aposentou, e na Universidade Columbia, em Nova York.

E essa é uma boa notícia, segundo ele. "A grande sorte dessas eleições foi trazer para a política as forças ocultas”, disse à Folha. "Com isso, elas vão se moderar. Você não governa com ameaças nem se mostra publicamente como bandido. Eles serão obrigados a se civilizar."

Um dos primeiros intelectuais a dizer que os tucanos caminhavam para a morte, em 2014, Giannotti afirma que não há chance de renascimento do PSDB, partido do qual já foi considerado um ideólogo informal. Mas defende que um partido de centro é essencial. "Para conter o discurso e a prática velha do PT. E para conter essa onda que acredita na violência pela violência."

Ele elogia o desmonte do sistema político provocado pela onda conservadora por achar que ela abrirá a estrutura extremamente fechada. Ele nem esperou o repórter perguntar para começar a falar.

Nós estávamos numa negação política. O Congresso fechado nele mesmo, armado para se reproduzir. O governo isolado, incapaz de enfrentar as crises econômicas e sociais. Estávamos num fechamento total. E a Lava Jato denunciando, num processo jurídico-político, na medida em que atua juridicamente mas com intenções políticas. Sua intenção é jogar uma bomba atômica no processo político.

Por que a polaridade PT-PSDB foi varrida?
Foi varrida porque ao PSDB faltaram lideranças, faltou se renovar. Quando você chega ao [João] Doria, que é pura aparência, é o fim. Nós vivemos numa sociedade do espetáculo, mas com o Doria você só tem espetáculo, não tem conteúdo político. O PSDB ficou dividido entre o Alckmin e oDoria. Do outro lado, o PT levou o país a uma recessão brutal por causa de uma série de equívocos econômicos. Esta eleição recupera e amplia 2013 [movimento contra alta de tarifas de transporte que depois começou a questionar a agenda dos partidos e a eficiência do Estado].

O que o sr. achou do resultado das eleições? 
Estou contente porque esse movimento antidemocrático, que é profundo e ocorre no mundo inteiro, representa o capitalismo atual, que é o capitalismo de conhecimento. Isso exige uma universidade que faça pesquisa, e o lulismo transformou a universidade num processo de ascensão social: você sai de secretária 3 para secretária 1. Os tucanos também fizeram isso em SP.

A eleição trouxe essa violência toda para o jogo político. Nós temos uma violência insustentável: morre mais gente aqui do que na guerra da Síria. A eleição foi um banho de soda cáustica revelando as nervuras da real luta política.

Essa onda conservadora tem relação com a violência?
Evidente. Mas é também uma reação violenta. Não esqueça também que o PT achava todo mundo que não fosse petista um canalha, golpista. A violência na política não está apenas no lado fascista, mas está do lado do populismo. Ao trazer a violência para a disputa, você traz inclusive os milicos para a política. Em vez de ficarem conspirando entre eles, uma parte da conspiração vai para a política. Porque a conspiração vai continuar.

Há perigo de golpe?
Esse perigo diminuiu. Agora tem menos risco de golpe porque as pessoas que eram golpistas encapuzadas passaram a ser golpistas dentro da dança política. Viraram parte da instituição. O golpe pode vir no impeachment do Bolsonaro. Em seis meses ele não vai ter essa aprovação que tem porque não vai resolver a crise econômica. Está todo mundo assustado, mas o resultado é bom.

Não há razão para susto?
Pelo contrário. Temos que fincar as nossas razões democráticas e começar a combater as causas dessa violência toda. O país está se preparando para sair da crise com crescimento de 1,5%, como se estivéssemos no século 19. Quais são essas causas? O petismo imaginou que existia um capitalismo brasileiro com características diferentes do mundial. Isso não dá num capitalismo de conhecimento.

O PSDB pode renascer?
Não. O fundamental é que renasça o centro. Porque não existe política sem centro. Para conter o discurso e a prática velha do PT. E, por outro lado, para conter essa onda que acredita na violência pela violência.

Por que o voto nos extremos?
O eleitor foi para os extremos porque ele raivosamente se apegou às promessas do PT, que foram frustradas. Essa raiva faz parte da tradição política, mas ela piorou. Nunca vi tanta violência, nem em 1964. Porque agora há muito ódio. E a violência está dos dois lados. Muitas vezes os que são contra Bolsonaro têm uma violência bolsonarista.

Há outras razões para o voto nos extremos?
Há. O eleitor vive num mundo violento e acha que só a violência resolve. Para acabar com a violência, ele acha que é bandido na cadeia ou morto. Isso não funciona no mundo real. Você só resolve isso criando instituições democráticas. Você tem de criar empregos, tem de esclarecer como será a reforma da Previdência e acabar com vantagens.

Quais vantagens?
As vantagens do funcionalismo, como auxílio-moradia. Quando você tira as vantagens, dizem que estão tirando direitos. Desculpe, mas estão tirando vantagens. Sou beneficiário disso também. Todos nós tivemos aposentadoria integral na USP. Eu me lembro quando estava construindo esta casa, eu peguei o [o filósofo francês Michel] Foucault e ia levá-lo para a faculdade [de Filosofia], mas tive que passar na obra. O Foucault perguntou: “Você tem bens pessoais, herança? Porque um professor na França jamais faria uma casa desse tipo”. Todo mundo tinha esses privilégios na USP. Há benefícios para militares, professores e juízes que nenhum país do mundo tem. Isso tem de acabar.

Dá para pacificar o país?
A grande sorte dessas eleições foi trazer para a política as forças ocultas. Com isso, elas vão se moderar. Você não governa com ameaças nem se mostra publicamente como um bandido. Eles serão obrigados a se civilizar. Não dá para ter também um país tão pobre. Isso não é mais tolerável.

Bolsonaro ataca mulheres, negros, gays e indígenas. Isso significa um retrocesso comportamental ou ele fala por um Brasil que é conservador mesmo?
Uma parte do país é conservadora. Mas esse discurso é uma estratégia, uma forma de se mostrar como durão. Isso pode ter repercussões muito ruins. Uma coisa é um deputado dizer que não estupra uma deputada porque ela é feia. Se um presidente disser isso, sofre impeachment. Esse comportamento é inaceitável para um presidente. Ou ele muda ou cai. Na eleição tínhamos que escolher entre duas crises.

Quais?
A crise que vem junto com Bolsonaro, com violência e não democracia, ou o impeachment por estelionato eleitoral do PT. Tudo indica que, pelo plano de governo que o Lula tinha montado, não daria para cumprir as promessas. O Brasil está encalacrado e só vai desatar quando o sistema político ficar mais moderno e democrático. Antes estava inteiramente fechado. Agora desarrumou tudo. Que bom!


Folha de S. Paulo: Haddad precisa representar mais que o seu partido, diz Marcos Nobre

Filósofo diz que único caminho para o ex-prefeito é abrir mão do protagonismo petista e atrair adversários para seu governo

Patrícia Campos Mello e Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Há apenas um caminho para Fernando Haddad (PT) conseguir o feito improvável de derrotar Jair Bolsonaro (PSL) na eleição: mostrar que ele, Haddad, não é o candidato do PT, mas sim o de uma frente democrática.

Palavras, porém, não bastarão para convencer o eleitor e possíveis aliados de que o governo dele seria radicalmente diferente de qualquer governo anterior do PT: o partido terá de ceder poder e fazer gestos concretos, adverte o professor de filosofia da Unicamp Marcos Nobre.

Na avaliação de Nobre, o primeiro passo de Haddad deveria ser abrir mão de se candidatar à reeleição, caso eleito, e afirmar que Ciro Gomes(PDT) será o candidato dessa frente democrática em 2022.

O segundo passo seria incorporar pontos do programa de outros candidatos, de forma unilateral, sem exigir apoio em troca. Isso valeria para qualquer legenda que não tenha anunciado apoio a Bolsonaro, como a Rede de Marina Silva e o PSDB.

O PT também deveria renunciar a uma candidatura à presidência da Câmara, embora tenha a maior bancada, e integrar a sua campanha nomes como Nelson Jobim, para a pasta da Segurança, Joaquim Barbosa, sinalizando um compromisso com o combate à corrupção, e Marina no Meio Ambiente.

“Se quiser ser o candidato do PT, Haddad vai perder, e o peso de uma possível regressão autoritária ficará sobre as costas do PT; o partido tem uma tarefa histórica e, se jogar fora essa chance, as pessoas vão perguntar: por que então não deixaram o Ciro? ”

O senhor falou em artigo recente que, mais uma vez, o PT tem uma chance de renascimento. Qual seria o caminho para o candidato Haddad vencer as eleições, com essa vantagem tão grande para Bolsonaro? 

Se quiser ganhar, Haddad tem que ser o candidato de uma frente de defesa das instituições democráticas. Se quiser ser o candidato do PT, vai perder. E o peso de uma possível regressão autoritária vai cair sobre as costas do PT.

E como construir essa frente? 

Haddad deveria sinalizar claramente para o eleitorado que o governo dele será radicalmente diferente de qualquer governo anterior do PT.

A primeira coisa é chamar Ciro Gomes e dizer: “Eu abro mão de me candidatar à reeleição se for eleito e acho que nessa frente que montamos Ciro deveria ser nosso candidato em 2022”. Com isso, afasta-se o medo que as pessoas têm de que o PT vai se perpetuar no poder.

A segunda coisa é tomar pontos programáticos não só dos partidos que apoiarão Haddad, como PSOL, PDT e PSB, mas também tomar de outras candidaturas, de maneira unilateral, sem ter o apoio deles. De todas as forças políticas que disseram que não votam no Bolsonaro, ele tomaria unilateralmente os pontos do programa , sem negociar, sinalizando: “eu quero você dentro do meu governo”.

Poderia adotar, por exemplo, a agenda ambiental de Marina Silva, a proposta de Alckmin de criação de uma força de segurança nacional. Precisa abrir espaço para que Marina e Ciro participem. Deveria chamar uma figura como Joaquim Barbosa para representar, dentro do governo, o combate à corrupção. Chamar Nelson Jobim para ser responsável pela segurança pública.

Haddad precisa fazer movimentos nesse sentido. Se não fizer, não estará querendo de fato ampliar a sua base, não mostrará empenho em fazer um governo diferente.

É um desafio histórico, uma oportunidade de refundação. Para sair das cordas, o PT precisa de ajuda. E o PT pedindo ajuda, precisa também distribuir poder, de verdade.

Mas lideranças como Ciro, Marina e Fernando Henrique Cardoso têm se mostrado resistentes a um apoio aberto a Haddad... 

O que acabei de dizer significa fazer gestos concretos na direção dessas pessoas. Não é apenas, “eu quero conversar com você”. Palavras não bastam.

São gestos concretos para se formar uma frente. Uma frente não se forma apenas porque do outro lado há um risco à democracia. “És responsável pelo segundo turno que conquistas” —o “Pequeno Príncipe” aplicado à política.

Não pode simplesmente dizer, “perdemos”. Pode perder, evidentemente, mas tem que de fato tentar.

Pelo que conhecemos do DNA do PT, vê alguma chance de isso realmente acontecer?

Quando se tem uma tarefa histórica na sua frente, as pessoas e as instituições mudam. A situação é completamente diferente da de qualquer outra eleição. Se Haddad jogar essa chance fora, carregará esse peso. Vão perguntar: “por que, então, não deixou o Ciro ir?”.

Então Haddad deveria dizer ao eleitor: “Eu proponho essa frente e quero te convencer de que esse governo será muito diferente de todos os outros, que o PT não terá o protagonismo que teve nos governos anteriores. Então quero que seu voto, que hoje é de Bolsonaro, venha para mim. Mas se isso for impossível para você, se sua ojeriza ao PT é superior a qualquer outro sentimento, então, por favor, não vote em Bolsonaro”. Isso ele poderia dizer ao eleitor do PSDB.

Se FHC se mantiver neutro, isso mancha a biografia dele? 

Se queremos formar uma frente que tenha por princípio aceitar toda e qualquer pessoa que defenda as instituições democráticas, não pode ter pedágio. O primeiro pedágio é começar a acusar as pessoas. A formação dessa frente é uma dança, e cabe a Haddad dar o primeiro passo. São vários passos simultâneos.

Por enquanto, parece que a abordagem do PT tem um pedágio, usa a mensagem de “ou você nos apoia, ou apoia o fascismo”...

Também não digo que essa seja a abordagem do PT. Não quero botar pedágio nem de um lado, nem do outro. Cabe a Haddad, não ao PT, dar o primeiro passo.

Isso são sinais para o eleitorado, as pessoas têm que perceber isso. Haddad tem que dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho que esse sistema funcione de maneira diferente. Meu adversário quer que esse sistema seja destruído. Isso é que está em jogo”.

O senhor sente um movimento de setores da sociedade e da imprensa para normalizar Bolsonaro, ou existe de fato um exagero nessa ideia de que ele fará um governo autoritário? 

A normalização está sendo feita há muito pela mídia tradicional e pelo mercado. No momento em que ficou claro que as forças anti-PT e antissistema confluíram para a candidatura dele, passaram a tentar civilizar Bolsonaro.

Mas Bolsonaro já deixou absolutamente claro que é incivilizável. Há uma ilusão da elite pensante de que é um candidato controlável. Pergunto: se o New York Times fosse um jornal brasileiro, o que teria feito com Bolsonaro?

Bom, mas existe a discussão sobre o posicionamento do NYT em relação a Trump, que seria panfletário e enviesado, em comparação, por exemplo, com o Washington Post, que adotaria postura crítica, mas com maior distanciamento... 

O NYT tomou uma decisão: Trump não é um candidato normal, as instituições estão em risco, e nesse momento as regras mudam. O WP resolveu tratar Trump como um candidato normal. A imprensa brasileira foi WP, não o NYT. Acho a posição do WP equivocada.

E não estou aqui comparando Trump a Bolsonaro. São incomparáveis. Um dos movimentos mais fortes de normalização de Bolsonaro é compará-lo a Trump.

Nunca houve uma ditadura militar nos EUA. Nunca o cara que ganhou uma eleição nos EUA apoiou uma ditadura militar. As instituições americanas têm uma solidez que aguenta o Trump. Imagine um presidente autoritário no Brasil, com instituições em colapso, como são as nossas? Não há instituição democrática que aguente Jair Bolsonaro.

O fato de o PSL, o partido de Bolsonaro, ter feito a segunda maior bancada da Câmara, e que provavelmente será engordada com deputados de partidos nanicos que devem migrar para ele, isso não significa que haverá governabilidade? 

O partido com a maior bancada, o PT, tem apenas 11% da Câmara. A fragmentação é gigantesca. Você precisa ter uma capacidade de articulação, de reorganização do sistema, que o Bolsonaro não tem. A única resposta que poderá dar é truculência. Ele não tem equipe, nenhum requisito para reorganizar o sistema. Reorganizar o sistema não tem nada a ver com ter maioria parlamentar.

O risco de que o sistema político não consiga se reorganizar é muito alto. E, se não se reorganizar, a hipótese de um golpe volta à mesa.

Quando o senhor menciona a possibilidade de golpe, estamos falando de um golpe clássico ou algo mais insidioso, os golpes graduais, em sistemas com eleições, que vêm ocorrendo em países como Turquia e Venezuela? 

Seria uma mistura de Filipinas com Turquia. Nas Filipinas, virou uma coisa do tipo: você tem algum problema para resolver com seu vizinho, com lideranças indígenas, pode resolver que o Estado não vai mais arbitrar. O Estado deixa de arbitrar conflitos violentos na sociedade.

O senhor vê isso como uma possibilidade no Brasil? 

Isso já está acontecendo e vai piorar. Se Bolsonaro tivesse alguma responsabilidade, iria para a TV e diria para essas pessoas: parem. Só que ele tem um problema. Se disser para essas pessoas pararem, está aceitando que é responsável por essa violência. Então temos um impasse. Esse é o lado Filipinas. O outro lado é o de estrangular as liberdades, como é no caso da Turquia.

Como sabemos, a mídia tradicional está em crise profunda. Caso ele ganhe, teremos um presidente com tendências claramente autoritárias num momento em que a imprensa está com dificuldades enormes. Então é a receita para ter restrição, para o governo ir para cima da imprensa.

Você elege seus próprios canais oficiais, segue com campanha em redes sociais, em que não há nenhum controle, e diz : “não acredite em nada que a mídia tradicional diga”.

*Marcos Nobre, 53, é professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap. É mestre e doutor em filosofia pela USP. Escreveu os livros “Imobilismo em Movimento” (Companhia das Letras, 2013) e “Como Nasce o Novo” (Todavia, 2018)


Celso Rocha de Barros: Haddad encontrou sua voz, mas Bolsonaro esconde a sua

O candidato do PSL, se eleito, desmoralizaria a direita por uma geração inteira

Fernando Haddad (PT) encontrou sua voz, e, se você leu minha coluna da semana passada, deve imaginar que ela me soou bem. Jair Bolsonaro (PSL), por sua vez, não tem mais o atestado médico para esconder a sua.

Em sua entrevista ao Jornal Nacional na segunda-feira passada (8), Haddad deu os sinais certos. Anunciou que o PT deixou de lado a proposta de nova Constituinte, adotou um discurso moderado, deixou claro que Dirceu não participará de seu governo (o que era óbvio) e, o que passou despercebido, descreveu a proposta do PT como “social-democrata”.

Esse ponto é muito importante: o PT sempre foi reconhecido por todos os grandes partidos social-democratas do mundo como um igual, mas nunca admitiu esse parentesco muito claramente.

O PT pertence à mesma família dos movimentos de esquerda moderados do Chile, do Uruguai e da Costa Rica. É importante sinalizar isso.

Mas a sinalização mais clara de que o PT está falando sério no segundo turno foi o encontro de Haddad com Joaquim Barbosa, que, admito, nem eu esperava que acontecesse.

Pensem bem no peso disso: Barbosa foi indicado por Lula para o STF (Supremo Tribunal Federal), mas mandou para a cadeia grande parte da direção do PT. O PT passou anos gritando que o julgamento foi uma farsa, e que todos os condenados eram inocentes.

O gesto de Haddad foi importante. É difícil imaginar outro petista fazendo a mesma coisa nos últimos anos.

E pensem também no tamanho da aversão que Bolsonaro inspira em Joaquim Barbosa para que o ex-ministro tenha aceitado discutir com o PT.

Ao mesmo tempo em que faz os gestos necessários ao centro, Haddad bate em Bolsonaro em defesa dos pobres. Afinal, o programa de Paulo Guedes parece algo que João Santana inventaria para atribuir falsamente a um adversário de Dilma em 2014.

Vale lembrar, o PT não bateu em Bolsonaro no primeiro turno. Essa briga pelos pobres começa agora.

Por sua vez, Bolsonaro não tem mais a desculpa do atentado para se esconder do eleitorado. E isso é muito ruim para ele.

Graças à facada de 6 de setembro, Bolsonaro passou o primeiro turno escondido, apresentado como o antipetista genérico. Cada eleitor que não gosta do PT projetou nele suas próprias aspirações.

Agora vai ficar cada vez mais claro que Bolsonaro não é o antipetista genérico, é a caricatura que os petistas fazem do antipetismo.

Não, o DEM não é fascista. Bolsonaro é —pesquise o entusiasmo que os grupos de extrema direita têm por sua candidatura. O PSDB não quer que os pobres se explodam. Bolsonaro quer, como mostrei na última coluna do primeiro turno. Os evangélicos não são homofóbicos e preconceituosos. Bolsonaro é —há um vídeo dele dizendo que se orgulha de ser homofóbico. Ser de direita não faz de você um defensor da ditadura —mas Bolsonaro não defende só os governos da ditadura, defende os torturadores da ditadura individualmente. Seu livro de cabeceira são as memórias de Brilhante Ustra.

E esse é o ponto que a direita civilizada e os antipetistas de bom senso (que devem ser a maioria dos antipetistas) precisam levar em conta: Bolsonaro, se eleito, desmoralizaria a direita por uma geração inteira.

O petismo de Haddad não é exatamente aquele a que você se opõe. E o antipetismo de Bolsonaro, definitivamente, não é o seu.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Samuel Pessôa: A hora maior do PT

Partido, porém, preferiu manter sua pureza ideológica na oposição

Em tom emotivo de “sangue, suor e lágrimas”, ecoando filme que recentemente saiu de cartaz sobre a luta de Churchill para convencer os políticos ingleses a não fazer acordo com Hitler, meu colega Celso Barros, na coluna de segunda-feira (8), fez chamamento ao PT: “Que seja digno de sua hora!”.

Que supere ressentimentos, reconheça erros, se distancie das ditaduras latino-americanas, e que seja capaz de construir um programa econômico que incorpore todas as forças democráticas, da centro-direita até a esquerda.

Esse programa envolveria, na minha visão: reforma da Previdência na linha da de Michel Temer; elevação da carga tributária sobre os mais ricos; congelamento por alguns anos dos salários nominais dos servidores; congelamento por alguns anos do valor real do salário mínimo; alguma flexibilização do teto do gasto para permitir elevação do investimento, na linha dos Planos Pilotos de Investimento do acordo que tínhamos com o FMI; entre tantas outras medidas.

Adicionalmente teriam de ser abandonadas ideias como ampliar a participação social no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), controle social da mídia, e outras formas de democracia direta.

Tudo isto para evitar que Fernando Haddad, e com ele as forças democráticas, seja derrotado no segundo turno pelas forças autoritárias.

O movimento teve início com a autocrítica de Tasso Jereissati (PSDB), propositalmente antes do primeiro turno. Evidentemente o PT não aceitou o gesto.

Celso não percebeu. Seu chamamento requer mais do que o PT pode dar. Renegar Cuba, Venezuela, Nicarágua e fazer um claro movimento para o centro significa, entre outras medidas, repensar toda a narrativa que foi construída sobre como chegamos até aqui.

Refazer a narrativa não é algo menor. Requer abertura e capacidade de enxergar o outro que somente os verdadeiros democratas têm.

Para o PT, o crescimento da direita é de responsabilidade da campanha eleitoral reacionária que José Serra fez em 2010. Para o PT, a profundidade da crise é culpa de Aécio Neves que não aceitou o resultado eleitoral de 2014. Para o PT, o desastre da Venezuela, a maior tragédia social que se abateu sobre a América Latina nos últimos 50 anos pelo menos, é culpa da oposição venezuelana reacionária.

Essencialmente a culpa é do grupo político que perdeu as últimas cinco eleições.

Uma das características dos movimentos autoritários é acreditar piamente em suas próprias narrativas.

Mesmo Haddad, que representa o melhor do PT e na pessoa física é um democrata convicto, está cego. Não enxerga a outra margem do rio. Ficará em sua trincheira.

O PT, apesar do que parecia, não foi civilizado pela queda do Muro de Berlim.

José Álvaro Moisés, Francisco Weffort, Paulo Delgado, Airton Soares, Cristovam Buarque, Marina Silva, Eduardo Jorge, Hélio Bicudo, Marta Suplicy e tantos outros verdadeiros social-democratas saíram do partido.

A eleição saiu muito barata para o partido. O PT está no lucro: sólida bancada na Câmara e três governos estaduais, com a possibilidade de ganhar um quarto. O partido se prepara para fazer oposição a Jair Bolsonaro e talvez ganhar em 2022.

Entre atender ao chamamento de Celso de liderar uma frente democrática ampla ou manter a sua “pureza ideológica” na oposição, o PT optou pelo segundo caminho.

Votarei nulo ou em Haddad. Bolsonaro é o mal maior. No entanto, deverá ganhar. O PT tem dado mostras de que não está à altura de sua hora maior.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Bruno Boghossian: Mentiras e vilões imaginários afastam campanha do mundo real

Os problemas do Brasil são gigantes, mas há gente em campanha para derrotar moinhos de vento. Fantasmas, notícias falsas e teorias da conspiração vêm produzindo nesta eleição inimigos tão enganosos quanto os rivais imaginários que viviam na cabeça de Dom Quixote.

É mentira que um filho de Jair Bolsonaro tenha saído às ruas com uma camiseta com inscrição preconceituosa contra eleitores nordestinos. A montagem malfeita foi compartilhada 73 mil vezes por um único perfil no Facebook até ser contestada.

É mentira que o PT tenha aprovado um “plano de dominação comunista”. A frase circula há anos, com base em teses de uma corrente do partido que nunca foram adotadas pela sigla ou por seus candidatos.

É mentira que Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, tenha proposto o confisco de cadernetas de poupança no mesmo dia em que fez críticas ao 13º salário. Um blog publicou a informação falsa, que foi replicada por milhares de pessoas —incluindo um deputado federal.

É mentira que Fernando Haddad tenha dito que Lula é “o verdadeiro filho de Deus” e que “a igreja vai pagar caro” por sua prisão. A frase inventada tenta ressuscitar um pânico religioso sem fundamento. Foi divulgada por um eleitor de Bolsonaro e reproduzida mais de 80 mil vezes.

A imprensa verificou e desmentiu essa boataria. O combate a notícias falsas e a indignação com absurdos, como se vê, não são seletivos.

Há dois dias, Bolsonaro tratou os meios de comunicação como adversários e alegou que eles trabalham para desgastá-lo. Repetiu o discurso vazio dos poderosos de sempre.

O jornalismo independente é crítico de modo geral. Foi assim que vieram à luz erros e escândalos de Collor, FHC, Lula, Dilma e Temer —e de seus opositores. Nenhum partido, afinal, deve exigir obediência e aplauso irrestrito da imprensa.

A contestação e a fiscalização dos candidatos ajudam a expor problemas e mantêm a campanha no mundo real. O eleitor não deve se mover por vilões fabricados pela ficção.


PSDB não tem a linha do Bolsonaro e fará oposição a ele ou ao PT, diz Tasso

Tucano diz que 'ventania no Congresso derrubou bons e ruins' e articula 'grupo do bom senso'

Thais Bilenky, da  Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Senador com mais quatro anos de mandato e ex-presidente nacional do PSDB, o cearense Tasso Jereissati afirmou que Jair Bolsonaro (PSL) "não tem a linha" de seu partido, que será oposição no próximo governo, seja o militar o presidente, seja Fernando Haddad (PT).

Para Tasso, "o grupo de Bolsonaro é muito perigoso", e senadores já se articulam em um "grupo do bom senso" para resistir a empreitadas polarizantes. A "ventania no Congresso derrubou bons e ruins", lamentou.

O candidato tucano a governador de São Paulo João Doria "não representa a cara" do PSDB, afirmou Tasso.

Como está o clima no Senado?
Está pesado. Com a quantidade de gente que não se elegeu, está todo mundo para baixo, deprimido. Acho que nunca vi isso. A renovação, nas outras eleições, não era tão grande, e tem gente muito boa [que não se reelegeu]. Cristovam [Buarque (PPS-DF)], Armando Monteiro [(PTB-PE), que tentou o governo de Pernambuco], Ricardo Ferraço (PSDB-ES). É uma pena.

Os eleitos não têm o mesmo preparo?
A minha primeira impressão é que caiu [a qualidade] pelos que saíram. Não estou vendo gente com esse nível, não. Vai ter muita gente nova, pode ter surpresas, mas a primeira impressão é caiu. A ventania derrubou tudo, bons e ruins. Mas foram os bons, que eram poucos.

Essa onda conservadora reconfigurou o Congresso.
Não foi só conservadora, não, porque os líderes conservadores também foram [embora]. Armando, que era candidato ao governo, Ferraço... Quer um senador que tenha tido desempenho melhor que o Ferraço nesses anos na linha de economia liberal? Eu vejo alguns de extrema direita, que não são liberais na economia, são estatizantes até.

Têm às vezes viés autoritário. O sr. se preocupa?
Existe a preocupação aqui de fazer um bloquinho, bloquinho, não, um grupo do bom senso, seja de esquerda ou de direita, que vá se aglutinando para evitar essa polarização, e que o bom senso prevaleça.

Mas vai ser uma minoria, não?
Não sei, não sei quem vem.

Se Bolsonaro ganha, o sr. tem preocupação com a democracia?
O grupo dele é muito perigoso nesse sentido, mas acho que as instituições, pelo quadro que estou vendo aqui no Senado, serão uma coisa bem resistente, um ponto de equilíbrio bem forte. A confirmar, em função dos que estão chegando aí.

No segundo turno, o PSDB deveria tomar que postura?
Isso que foi decidido, nem um nem outro. [Nos estados], cada um nas suas eleições que tome a versão que quiser. Mas o PSDB não vai apoiar nem um nem outro, e a expectativa é que qualquer um que ganhe nós sejamos oposição. É a minha visão.

Como viu a postura do Doria na campanha?
Ele andou anunciando a posição bolsonariana antecipadamente. Não se empenhou [na campanha do Alckmin] e aparentemente participou de grupos com outra linha para a Presidência, mas eu não estava perto. A sensação que nós temos é que isso aconteceu e com intuito claro de se eleger, porque a corrente bolsonariana em São Paulo ficou muito forte, uma onda muito grande. No intuito de não perder voto e ganhar voto, ele foi para essa linha e abandonou o Geraldo.

Isso, politicamente, tem que efeito?
É ruim, claro. Tem consequências.

É uma traição?
Claro, principalmente em São Paulo, em se tratando do Geraldo. Afinal de contas, Geraldo foi quem fez ele de cabo a rabo. E é ali do lado, não é uma coisa de um sujeito lá no Piauí que não conhece o Geraldo e votou no Bolsonaro. É dentro da casa dele mesmo.

Doria tenta ter controle sobre o partido. Como vê esse movimento?
Ele pode ser uma saída para o PSDB neste momento de dificuldades? Não acho que ele seja a saída, não. Claro, se ele se eleger governador de São Paulo, terá peso muito grande. Mas não sei se ele representa a cara do PSDB nacional nem a cara do PSDB paulista.

Qual é a diferença dele para o PSDB? O que não se enquadra no perfil?
Pode ser até que o antipetismo seja mais forte do que tudo isso, mas a linha do Jair Bolsonaro não é a nossa linha.

O PSDB sofreu a pior derrota na eleição presidencial, encolheu a bancada.
É um momento bem difícil.


Demétrio Magnoli: A carta que Haddad não escreverá

O que o candidato do PT à Presidência deveria dizer na atual campanha eleitoral

O Datafolha mostrou que a democracia é um valor fundamental para 69% dos brasileiros. Dirijo-me a essa ampla maioria para pedir um voto contra o autoritarismo. O Brasil experimentou uma ditadura militar de 21 anos. Eleger meu adversário seria colocar no governo um grupo de saudosistas da ditadura que testarão a resistência de nossa democracia. Minha candidatura tornou-se a única alternativa a isso. O segundo turno não pode ser um plebiscito sobre Lula ou o PT, mas um plebiscito sobre as liberdades públicas e individuais.

Verde-amarelo no lugar do vermelho? O marketing não substitui a política. Hora de assumir erros históricos, falar a verdade. O PT dividiu o país em “nós” e “eles”. Isso acaba aqui. Não qualificarei como “golpistas” os que defenderam o impeachment, a quem também peço o voto. Nunca mais usaremos o rótulo “fascistas” para marcar os que divergem de nós. Não mais usaremos o rótulo “racistas” para marcar os que discordam de políticas de cotas raciais. Adotaremos, perante a sociedade, o “protocolo ético” que meu adversário rejeitou. A pluralidade de opiniões é a substância da democracia. De agora em diante, nós a respeitaremos.

Democracia exige coerência. Lula respeitou a regra do jogo democrático ao não buscar um terceiro mandato sucessivo. Mas, reiteradamente, o PT ofereceu apoio ao regime ditatorial em Cuba, à ditadura instalada por Maduro na Venezuela, à escalada repressiva de Ortega na Nicarágua. Jamais concordei com isso, que acaba agora. Não cultivaremos ditadores de estimação. O Brasil defende a democracia aqui e lá fora. Na China e na Arábia Saudita, na Rússia e na Turquia, em Cuba e na Venezuela.

Nas democracias, uma fronteira separa as esferas da política e da Justiça. Todos, inclusive eu, têm o direito de concordar ou não com decisões judiciais —mas os partidos e, sobretudo, o governo, não têm o direito de misturar as duas esferas. Lula está recorrendo aos tribunais superiores contra sua condenação. Meu governo não se envolverá nesse assunto e não o politizará. Sem independência do Judiciário, não existe democracia.

A imprensa livre é um pilar imprescindível da democracia. Trump, lá, e meu adversário, aqui, clamam contra o jornalismo profissional, enquanto seus seguidores difundem falsificações por meio de empresas oligopolistas da internet. Mas é preciso olhar nossa imagem no espelho. Durante anos, o PT pregou o “controle social da mídia”, como se a crítica, justa ou injusta, precisasse ser restringida. Chega dessa ladainha rancorosa. Difamação, injúria, calúnia são assunto para os tribunais. Fora disso, o “controle da mídia” deve ser exercido exclusivamente pelos leitores, espectadores e ouvintes, ao selecionarem os veículos de sua preferência.

Todos têm direito à ampla defesa. A caça às bruxas sempre foi ferramenta de tiranos ou pretendentes a tiranos. Mas não existe uma “corrupção do bem”. A “nossa” corrupção é intolerável, tanto quanto a dos outros. Os governos do PT têm pesada parcela de responsabilidade política pelos escândalos do mensalão e do petrolão. No meu governo, protegeremos os recursos públicos da sanha de corruptos de qualquer partido, inclusive do meu.

A economia não é um fim em si mesma: serve para as pessoas escaparem ao círculo da pobreza, viverem melhor, realizarem seus sonhos. Mas isso só ocorrerá de forma sustentada se recuperarmos o equilíbrio das contas públicas. A depressão dos últimos anos foi semeada pela irresponsabilidade fiscal do governo Dilma. Aprendemos a dura lição. Não repetiremos o erro desastroso, fonte última da crise que redundou no impeachment.

A disputa não é entre dois extremistas simétricos. Hoje, só há um extremista: meu adversário, que usa a democracia como plataforma para iniciar uma aventura autoritária. Derrotá-lo não é escolher o PT, mas escolher a democracia.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Roberto Dias: Democracia boa não é só a nossa, não

Esquerda jogou fora valores e caiu em armadilhas lógicas

Há enormes razões para não votar em Jair Bolsonaro. O problema é que existem também imensos motivos para não votar no PT.

No bolsonarismo, a agressividade embala a tosquice de sempre. A novidade vem da esquerda, que jogou fora valores, justamente o que diz prezar, e caiu em armadilhas lógicas. ​

A mais evidente é negar a democracia ao afirmar defendê-la. Dizer que votar em Bolsonaro é indefensável acaba sendo, esse sim, um argumento indefensável. Declarar que corrupção não é desculpa para votar no capitão embute premissa absurda: a de que um cidadão precisa de desculpa para exercer um direito.

A esquerda aponta (corretamente) o preconceito contra o Nordeste, que parou Bolsonaro. Mas ridiculariza SP por suas opções legislativas.

O veto à entrevista de Lula para a Folha foi (acertadamente) chamado de censura. Mas quando se anunciou a entrevista de Bolsonaro à Record, a esquerda gritou por censura.

O autoritarismo do elenão começa no nome. Mas há um problema: pela lei brasileira, só a Justiça pode vetar alguém. Segundo ela, Bolsonaro pode se candidatar, e ele, Lula, não. Aliás, é possível encontrar vídeos com inúmeras barbaridades ditas por Lula. A diferença? Para Lula tudo virava piada de salão —e para ele, Bolsonaro, não (nem deveria).

A banalização do termo fascismo mostra que ignorância histórica não é monopólio da direita. A seguir a lógica de quem acha que qualquer eleitor de Bolsonaro é um torturador em repouso, seria o caso de proteger a carteira cada vez que se aproximasse um petista. Trata-se de raciocínio esgarçado até perder o sentido.

A esquerda apontava ameaça democrática no bolsonarismo sem interlocução com o Congresso. Enquanto essa crítica era repetida, o PSL fazia campanha para eleger a nova grande bancada da Câmara. Ficou mais difícil sustentar o ataque por aí.

Numa luta legítima por corações e votos, muita gente da esquerda foi perdendo a lógica pelo caminho. Democracia boa não é só a nossa, não.

*Roberto Dias é secretário de Redação da Folha.


Fernando Canzian: Nova 'Classe D/E' do Congresso é incógnita com Bolsonaro

Segundo turno pode ser um passeio para o capitão; choque de realidade fica para depois

O primeiro turno da eleição trouxe uma espécie de invasão da "classe D/E" da política, e é ela que dará as cartas no Congresso. Embora tenha alguns contornos extravagantes e deputados pitorescos, essa nova turma é bastante representativa da sociedade em que vivemos. Isso vinha se desenhando há anos e põe fim à fase em que parlamentares do baixo (ou baixo-baixo) clero tinham de se fazer representar via pressões para cima, por meio de intermediários mais tradicionais que mantinham feudos no parlamento. Se Jair Bolsonaro (PSL) acabar eleito, essa transição de baixo para cima ficará completa. O desafio é que o novo arranjo não parece combinar muito com a agenda liberal que o candidato líder nas pesquisas agora abraça.

Na falta de coisa melhor, empresários e o mercado vêm apostando tudo em Bolsonaro, apesar do entulho retrógrado que ele traz consigo. Qual é a alternativa?

Desde do início da campanha, Fernando Haddad (PT) apenas reforçou o que os próprios petistas querem ouvir, chovendo no molhado ao encerrar o primeiro turno com Dilma Rousseff em Minas e ao começar o segundo com Lula em Curitiba.Na primeira oportunidade que teve, no Jornal Nacional de segunda (8), voltou a detonar o "teto dos gastos", que garante alguma previsibilidade no gasto público, e o sistema financeiro.Já o discurso de Bolsonaro e a equipe econômica que se desenha vai no sentido contrário, de cortes, racionalização de ministérios e da agenda liberal de Paulo Guedes, seu futuro ministro da Economia —já que Fazenda e Planejamento seriam fundidos.Na quarta (9), porém,

Bolsonaro jogou a tolha sobre a aprovação da reforma da Previdência que está no Congresso, embaçando pela primeira vez, e de forma não trivial, o entusiasmo do mercado em torno dele —o dólar subiu e a Bolsa caiu como resultado.Isso indica que toda a discussão em torno do tema crucial para as contas públicas terá de ser refeita, o que levará tempo diante de pontos espinhosos. Os benefícios dos PMs, que hoje se aposentam aos 49 anos em média serão mexidos? E os dos militares? Qual a economia que o novo projeto trará? Nesse contexto, o PT, que seguirá oposição, terá a maior bancada na Câmara, com 56 cadeiras. E pouco ou nada se sabe ainda dessa nova “classe D/E” que chega à Câmara. E qual preço cobrará de um novo governo que promete o fim da fisiologia.

*Fernando Canzian é jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.

Gustavo Bizelli : Os fascistas são a minoria

Quase metade do Brasil votou contra a democracia?

Jornalistas, cronistas e analistas políticos avaliam que os resultados das eleições vêm de uma onda conservadora, uma radicalização ou um sentimento de ódio ao partido adversário. Penso que poucos captaram até o momento os reais movimentos que nos levaram a esses resultados.

Bolsonaro se estabelece em 17% das intenções de voto e por meses lá permanece. Conheço alguns desses eleitores. Querem ter a liberdade de comprar uma arma, acreditam que bandidos sejam mais defendidos que as vítimas; uns poucos apoiam a pena de morte, não nutrem simpatia por minorias, negros e homossexuais, e em geral estão cansados das "safadezas", termo que generaliza corrupção e incompetência.

Não são pessoas ruins, mas têm um pensamento menos progressista. Tachá-los de fascistas, no entanto, parece exagerado.

Bolsonaro só sai da margem de erro dos 17% quando fica claro que Lula de fato não será candidato e que Fernando Haddad --que até então minguava com 2% a 4% nas pesquisas-- passa a receber votos que seriam de Lula e inflavam a votação de Marina e o contingente de nulos e de brancos.

Antipetismo, então? Quase isso!

Os 29% de votos que se somaram aos primeiros 17% não foram rapidamente migrando para Bolsonaro. Quanto mais pura a rejeição ao petismo, mais rápido o capitão recebeu tais votos. Quanto mais ponderado e informado, mais o eleitor tardou a embarcar na candidatura 17.

Mas, com o decorrer dos dias, ficava cada vez mais claro que a opção a Bolsonaro seria a volta de uma política de governo que, esta sim, é muito rejeitada. Estatais aparelhadas e a serviço de projetos políticos, capitalismo de compadre, déficit primário, perda do grau de investimento, BNDES financiando apoiadores e obras em outros países, uma névoa de projeto de poder bolivariano na América Latina, uma política externa marcada pela ideologia e não pela eficiência, controle dos meios de comunicação, tudo regado a corrupção.

Não é possível que se acredite que quase metade do Brasil votante optou por posições duvidosas quanto à democracia ou retrocessos na agenda progressista. Os eleitores que migraram para a candidatura 17 foram em blocos, engolindo a seco os pontos de rejeição para evitar o pesadelo da volta da nova matriz econômica e do jeito petista de governar.

Os últimos dois blocos que migraram para a candidatura, o primeiro entre quinta (4) e sexta-feira (5), que mudou o patamar de 36% para 41% das intenções de voto, e o segundo entre sábado (6) e domingo (7), que decretaram a subida final de 41% para 46%, são majoritariamente formados por pessoas progressistas, democráticas, que acreditam na igualdade de gênero, nas liberdades individuais, na necessidade de apoio aos mais pobres e nos direitos humanos, mesmo de pessoas que cometem delitos.

Tais pessoas não acreditam, porém, que essa agenda poderá ser alterada por essa candidatura. Acreditam, sim, que a sociedade e o país possuam bases e instituições sólidas que não permitirão retrocesso em conquistas de comportamentos, hábitos, costumes, liberdades etc.

Por outro lado, tais pessoas têm certeza de que, com um novo governo petista, a velha nova matriz econômica e o jeito petista de governar estarão conosco em 1º de janeiro.

O discurso aparentemente oportuno de união dos democratas não conquistará os 29% de eleitores que embarcaram na candidatura 17 por não querer a volta da política petista, e tão pouco chegará aos ouvidos dos 17% de eleitorado mais aderente de Bolsonaro.

Apenas a confiança de que a política praticada anteriormente pelo regime petista é considerada equivocada pelos seus autores e que nunca mais será repetida poderia conquistar eleitores que já optaram por dizer não à sua volta, a uma nova Carta aos Brasileiros. Mas tal discurso, neste momento, pareceria mais que oportuno; pareceria oportunista.

*Gustavo Bizelli é economista formado pela Unesp, pós-graduado pela FGV e especialista em inteligência de mercado pela Universidade da Califórnia; sócio da consultoria Diferencial Pesquisa de Mercado


Nelson de Sá: Solavancos esfriam 'amor' por Bolsonaro no mercado externo

'Investidores deveriam esperar a eleição', aconselha FT, citando sinais contra reforma da Previdência

WSJ noticia investigação por ‘suposta fraude’ com fundos de pensão

No Wall Street Journal, “Alto assessor de Bolsonaro é investigado por suposta fraude de investimento”. Logo abaixo, “Paulo Guedes é considerado um potencial ministro das finanças se Bolsonaro vencer”. E foram suas as “propostas de livre mercado que ganharam apoio do mercado financeiro”.

O jornal ouve de analista brasileira de finanças que, mesmo se a investigação “levar à queda de Guedes”, ele poderia ser substituído por outro de mesma linha. Os investidores estariam “mais preocupados com as declarações de Bolsonaro, abaixando o tom da necessidade de mudanças na Previdência”.
Também no Financial Times, “Procuradores brasileiros investigam assessor econômico de Bolsonaro”. Logo abaixo, o inquérito é “por suspeita de fraude do financista nos investimentos de fundos de pensão”.

O jornal destacou depois a análise “Investidores deveriam esperar a eleição”, listando a declaração do articulador político de Bolsonaro contra a reforma da Previdência no Congresso; o silêncio imposto pelo próprio candidato a Guedes; e por fim, “na quarta, a Folha estampou a notícia de que o financista estava sob investigação. Mr. Guedes não pôde ser encontrado para comentar”. O FT fecha com um alerta:

“Os investidores podem estar amando os acontecimentos no Brasil até agora. Um caminho sábio pode ser esperar para ver como eles vão terminar.”

TÁTICA DO MEDO
Os dois enviados do britânico Guardian à eleição brasileira, Tom e Dom Phillips, produziram longa reportagem sobre a “tática do medo” amplificada por Bolsonaro neste início de campanha para o segundo turno, sob o título “A nova Venezuela?”. No segundo enunciado, “O candidato de extrema direita buscou, com evidência escassa, vincular seu oponente do Partido dos Trabalhadores aos problemas do país vizinho”.

Observam que Donald Trump, em artigo no USA Today, também começou agora a usar a sombra venezuelana contra os democratas, “radicais socialistas”, na eleição legislativa nos EUA.

FUKUYAMA, O COMUNISTA
O filósofo Francis Fukuyama, de Stanford e referência do pensamento conservador das últimas décadas nos EUA, afirmou em mídia social que é “aflitiva” a aprovação de Bolsonaro pelos “mercados financeiros” —e também ele virou alvo de ataques. Depois ironizou:
“Muitos brasileiros parecem pensar que eu sou um comunista porque estou preocupado com uma presidência Bolsonaro. E você pensa que os americanos estão polarizados...”

LGBTQ, PROTEJAM-SE!
Influenciadores como o youtuber Rafucko noticiaram: “LGBTQ, protejam-se! Grindr emite alerta porque tem gente usando o app para atrair homens gays para emboscadas”. O aplicativo, citando preocupações de usuários “após a recente eleição”, aconselhou tomar “as medidas necessárias para manter-se seguro” (acima).
A violência homofóbica, entre outras, já repercute em veículos europeus como Le Monde.

PROVAVELMENTE
Em contraposição ao editorial de capa da própria revista, coluna de Michael Reid na nova Economist, com a ilustração acima, cita declaração do comandante do Exército para afirmar que os militares, "mais provavelmente, vão conter Bolsonaro" --e não apoiar seu autoritarismo.

* Nelson de Sá é jornalista, foi editor da Ilustrada.