Folha de S. Paulo

Folha de S. Paulo: 'Bolsonaro não é volta dos militares, mas há o risco de politização de quartéis', diz Villas Bôas

Para o comandante do Exército, o presidente eleito é mais político do que militar

Por Igor Gielow, da Folha de S. Paulo

O Exército está preocupado com o risco de politização dos quartéis na esteira da eleição do capitão reformado Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência. Seu comandante, general Eduardo Villas Bôas, quer estabelecer uma linha divisória entre instituição e governo.

“A imagem dele como militar vem de fora. Ele é muito mais um político. Estamos tratando com muito cuidado essa interpretação de que a eleição dele representa uma volta dos militares ao poder.

Absolutamente não é”, disse, em entrevista à Folha no Quartel-General do Exército.
O militar, que completou 67 anos na quarta (7), falou sobre a “inevitável associação” entre Exército e o novo governo e sobre a possibilidade de “ideias serem personalizadas” nos quarteis —um eufemismo para quebra de hierarquia. Considera o risco baixo, mas diz estar atento. Descarta riscos à democracia pelo voluntarismo do presidente eleito.

Villas Bôas revisita o turbulento período político de seu comando, iniciado em 2015, e diz ter agido “no limite” quando publicou no Twitter mensagens na véspera do julgamento de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 3 de abril.

Ali, sua “preocupação com a impunidade” foi vista como ameaça velada ao STF, o que nega. Hoje, o general considera o saldo do episódio positivo.

Fragilizado fisicamente por uma doença degenerativa do neurônio motor, ele falou de forma pausada e com auxílio de respirador por mais de uma hora. Deixará o comando, assim como os chefes das outras Forças, com o novo governo.

Faz considerações sobre o papel dos militares na segurança pública, para ele agora “segurança nacional”, dada a gravidade da situação. “Vai ter de participar”, disse.

O sr. esteve com o presidente na terça (6). Como foi a conversa?
Era mais uma visita de cortesia. Tivemos uns dez minutos de conversas específicas. Aqui no Exército será alguém da turma dele, e os quatro generais mais antigos são da turma dele. Sugeri que colocasse um civil na Defesa. Com o ministério com tantos militares, teria um equilíbrio interessante. Mas ele insistiu que fosse um oficial-general de quatro estrelas.

Eu sugeri que o general [da reserva Augusto] Heleno fosse para o GSI [Gabinete de Segurança Institucional], e ele já estava com essa ideia na cabeça.

Daí falamos um pouco sobre política externa, questionei quem eles tinham em mente para o Itamaraty. Achei curioso, eles estavam em um nível bem superficial, com vários nomes, inclusive de pessoas que eles não conheciam e estavam prospectando.

Senti que em alguns setores eles estão com a coisa bem definida, e em outros, ao contrário, estão tateando.

Bolsonaro é o primeiro militar eleito pelo voto direto desde 1945, é o primeiro no poder desde o fim da ditadura. Como o Exército vê um membro de seus quadros hoje na Presidência?
A imagem de Bolsonaro como militar é uma imagem que vem de fora. Ele saiu do Exército em 1988. Ele é muito mais um político.

Ele foi muito hábil quando saiu para se candidatar a vereador, passou a gravitar em torno dos quartéis, explorando questões que diziam ao dia a dia dos militares. Ele nunca se envolveu com questões estruturais da defesa do país. Mas aí criou-se essa imagem de que ele é um militar.

Estamos tratando com muito cuidado essa interpretação de que a eleição dele representa uma volta dos militares ao poder. Absolutamente não é.

Alguns militares foram eleitos, outros fazem parte da equipe dele, mas institucionalmente há uma separação.

E nós estamos trabalhando com muita ênfase para caracterizar isso, porque queremos evitar que a política entre novamente nos quartéis.

A rigor, desde 1977 [quando Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército, enquadrando a linha-dura] ela está fora.
Isso para nós é essencial.

Vocês identificam algum risco de isso acontecer? Uma coisa é o ambiente aqui, entre oficiais de quatro estrelas, mas o risco não é maior lá embaixo, de haver uma empolgação com a persona militarista do presidente?
Hoje as Forças Armadas estão muito afastadas das questões políticas no dia a dia. Mas não há dúvida de que há um risco de ideias serem personalizadas. De um fulano trabalhar por aumentos de salários.

Sempre há o risco de que esses interesses pessoais venham a penetrar na Força, e gerar alguma polarização. Mas vemos como um risco sério. De qualquer forma, há uma preocupação em se evitar isso.

O presidente tem essa persona militar e seu entorno é cheio de militares. A associação com o Exército é inevitável, não?
É inevitável. Até porque a população de certa forma estava pedindo isso. Houve uma pesquisa recente que perguntou se a população era a favor de uma intervenção militar. Deu um índice de 45%.

Eu não via nada de ideológico nisso, esquerda ou direita, é mais uma reclamação sobre a questão dos valores.

As Forças Armadas são consideradas um repositório de valores mais conservadores. Havia essa demanda por parte da população, então é decorrência natural essa interpretação de que há uma volta de militares ao poder.

Assessores de Bolsonaro creem que o ensino sobre 1964 é enviesado. O próprio Bolsonaro elogiou várias vezes a ditadura, tem o [antigo chefe do centro de tortura DOI-Codi] Brilhante Ustra como herói. O sr. acha que um movimento de reanálise de 1964 neste governo seria incômodo para o Exército?
Não digo incômodo, mas acho não produtivo. Em relação a 1964, muitos protagonistas estão vivos. Então, não há perspectiva histórica isenta possível.

Por outro lado, o Brasil dos anos 1930 a 1980 foi o país do mundo ocidental que mais cresceu. Tínhamos uma ideologia de desenvolvimento, um sentido de grandeza, de projeto.

O país perdeu isso, está meio à deriva. Estamos carecendo desse foco. A gente não tem uma política externa definida. Seria importante que se discutisse de forma prospectiva, de ter um sentido mínimo de coesão.

Olhar para trás impede que a gente convirja. É ridículo. De 1964 para cá, se passaram 54 anos. Imagine se em 1954 estivessem discutindo 1900. Não acho que devemos jogar para baixo do tapete. Até a Comissão da Verdade foi um desserviço nesse sentido.

Fiquei com a sensação de que a eleição do Bolsonaro liberou uma energia, algum nacionalismo que estava latente e que não podia ser ser expresso. Só podia haver nacionalismo de Copa do Mundo, seleção brasileira. Nesse sentido, acho a eleição positiva.

Desde que o presidente foi eleito, ele tem buscado fazer gestos simbólicos de deferência à Constituição e à democracia. Ao mesmo tempo, ele tem feito ameaças explícitas a órgãos de imprensa, como este jornal e outros, que não falem o que ele considera ser a verdade. Aliás, ele sempre fala em verdade...

Uma coisa meio messiânica, né?

Isso. Mas enfim, é compatível a defesa da democracia e esses chutes na canela de instituições que fazem parte da democracia?
Acho que, se nós olharmos da perspectiva dele, esse é um marketing que ele faz em torno de si, que  explora.

Eu não creio que ele vá materializar isso a ponto de ameaçar o funcionamento das instituições.

O país está amadurecido, tem um sistema de freios e contrapesos que não permite que essas coisas prosperem a ponto de ameaçar a eficiência do processo democrático.

O seu comando foi marcado pela moderação em momentos de crise, que foram vários. Como o sr. analisa o período? O que considera sua melhor marca e onde não deu certo?
Nós assumimos em fevereiro de 2015 e logo em seguida começou a crise que resultou no impeachment. Começou uma instabilidade, e ao mesmo tempo surgiu a demanda crescente pela tal da intervenção militar.

Intervenção militar constitucional, até hoje não descobri como é que faz isso. Até houve discussões de juristas sobre isso, que o Exército teria um mandato para intervir, e isso foi verbalizado pelo general Mourão, gerando uma pequena crise [em 2015].

Em função dessa pressão, elaboramos diretrizes que transmiti internamente e que passaram a preencher espaço externamente. A conduta seria baseada em três pilares.

Primeiro, a manutenção da estabilidade. Segundo, a legalidade: o Exército jamais agiria fora de preceitos legais, dentro do artigo 142 da Constituição e leis subordinadas.

O terceiro pilar, a legitimidade, que o Exército foi acumulando ao longo dos tempos exatamente pelo posicionamento apolítico.

Caso fôssemos empregados, jamais poderíamos ter essa intervenção interpretada como favorecendo um lado ou outro. Temos imparcialidade.

Os militares da reserva, com muita frequência, têm influência. Foram comandantes, instrutores do pessoal da ativa. Então quando eles se pronunciam, isso muitas vezes repercute interna e externamente.

Eu precisei ter o domínio da narrativa. Por isso, às vezes nós éramos mais enfáticos na expressão, sempre no limite para não invadir o espaço de outras instituições.

Eu reconheço que houve um episódio em que nós estivemos realmente no limite, que foi aquele tuíte da véspera da votação no Supremo da questão do Lula.

Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática. Me lembro, a gente soltou [o post no Twitter] 20h20, no fim do Jornal Nacional, o William Bonner leu a nossa nota.

Aí vieram as críticas.
Do pessoal de sempre, mas a relação custo-benefício foi positiva. Alguns me acusaram... de os militares estarem interferindo numa área que não lhes dizia respeito. Mas aí temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar.

O Exército resistiu a participar da segurança pública mais ativamente devido a questões como a segurança jurídica. Agora, novos governadores usam retórica mais linha-dura e buscam apoio do Exército, indicam militares para a segurança. Como o sr. vê essa militarização?
O chamamento de militares para ocupar cargos em outras áreas é uma volta à normalidade. Havia um certo preconceito, um patrulhamento. “Ah, está militarizando”, diziam, falavam em fascismo. Eu vejo de forma positiva.

Agora, o nível de gravidade está tão alto que deixou de ser segurança pública e já se transformou numa questão de segurança nacional. Mais de 60 mil pessoas assassinadas por ano, todos os indicadores, o narcotráfico, o crescimento das organizações criminosas, isso tem de ser tratado com abrangência.

Naturalmente, de acordo com o que a Constituição prevê, os militares inexoravelmente terão de participar desse esforço nacional.

Quer como protagonistas, quer como coadjuvantes. Vai ter de participar. O que nos preocupa é que, na maioria das situações, o pessoal considera que, em empregando as Forças Armadas, está resolvido.

Elas são o meio que dá condições para que outros setores, mais pertinentes, inclusive a política, venham a atuar e alterar a realidade de vida em determinadas regiões onde há o ambiente físico e de valores extremamente propício para a proliferação da doença.

Infelizmente, isso não é encarado assim. Eu acompanhei no comando a intervenção na favela da Maré. Ficamos lá 14 meses, gastamos R$ 1 milhão por dia. Houve períodos em que a prefeitura nem o lixo recolhia.

As Unidades de Polícia Pacificadora não foram instaladas. O ambiente era horroroso. Uma semana depois de termos saído de lá, tudo tinha voltado ao que era antes.

Acaba sendo inócuo.
Esse tipo de atuação é como o que ocorre em forças de paz da ONU. As forças estão lá para criar condições para a reconstrução, mas se a ONU não atua com a ênfase necessária... Nós saímos do Haiti e aquilo está em efervescência de novo.

E a intervenção no Rio?
Vamos deixar um legado. O problema é falta de gestão, mais do que de recurso.

RAIO X

Eduardo Villas Bôas

Nascimento: Cruz Alta (RS), em 1951 (67 anos)

Função: Comandante do Exército

Carreira: Desde 1967 na Força, é general-de-exército (quatro estrelas, topo da hierarquia). Foi comandante militar da Amazônia e comandante de Operações Terrestres. Comanda o Exército desde 2015, quando era o terceiro mais antigo na linha sucessória. é casado e pai de três filhos.


Aloysio Nunes Ferreira: A Apex no Itamaraty

Vincular agência às Relações Exteriores foi acerto

Estive nos últimos dias à frente da delegação brasileira na Feira de Importações de Xangai, com os ministros Marcos Jorge de Lima (Indústria, Comércio Exterior e Serviços) e Blairo Maggi (Agricultura), o embaixador Roberto Jaguaribe e representantes de aproximadamente 90 empresas brasileiras.

Pude confirmar, uma vez mais, o acerto de uma das primeiras decisões do presidente Temer na área externa: a incorporação da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) ao Ministério das Relações Exteriores.

O Brasil fez bonito em Xangai porque os técnicos da Apex e os diplomatas exerceram suas atribuições em estreita coordenação. Enquanto a agência mobilizou --com o apoio do Mdic (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços), Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Fiesp-- empresas competitivas nas áreas de alimentos e bebidas, serviços, bens de consumo e equipamentos médicos, a diplomacia viu a relação madura construída com a China refletida no usufruto pelo Brasil da condição de país homenageado na Feira.

Nossos empresários contaram com espaço diferenciado para promover seus produtos e serviços em um mercado consumidor cujo valor no próximo quinquênio é estimado em US$ 10 trilhões, para não mencionar o potencial para captação de investimento e ingresso em cadeias globais de valor.

Antes de 2016 tal coordenação não existia. Era corrente a duplicação de iniciativas e custos. Não foram poucas as vezes em que a Apex e o Itamaraty montaram estandes distintos em feiras internacionais.

A Apex chegou a estabelecer escritórios em dez países onde as embaixadas brasileiras já dispunham de setores de promoção comercial ativos e bem aparelhados.

Hoje não se bate mais cabeça. A Apex aproxima o tecido produtivo nacional do serviço de identificação de importadores e de mapeamento de oportunidades de comércio e investimentos realizado pelos 114 Secoms (Setores de Promoção Comercial) espalhados pelo mundo.

Seminários, participação em feiras, rodadas de negócios e inteligência comercial são desenvolvidos a quatro mãos, o que não teria sido possível sem que a Apex e a rede de Secoms estivessem sob a mesma instância de coordenação, que busca atender ao conjunto da economia brasileira --desde o agronegócio e a indústria até o setor de serviços, das pequenas e médias até as grandes empresas.

Os resultados falam por si sós. Em 2017, a agência coordenou com os Secoms mais de 160 ações em 41 países. Em 2018, até setembro, foram 193 iniciativas em 64 países. Nesses dois anos de trabalho conjunto, mais de 16 mil empresas receberam apoio para atuação em 227 mercados, sendo quase 5.000 exportadoras.

O valor das vendas por elas realizadas somou mais de US$ 115 bilhões. Na área de investimentos, 38 projetos foram incentivados, o que representou US$ 3,4 bilhões em aporte direto de capital.

Afirmo sem inibição que parte do mérito pela notável recuperação do comércio exterior e pelo elevado índice de investimentos estrangeiros é da Apex no Itamaraty.

Isso coincide com uma acentuada redução do custo Brasil --reconhecido há pouco em relatório do Banco Mundial-- e com um empenho sem precedentes de negociação de acordos comerciais a partir de um Mercosul reconstruído.

Avançamos muito nas tratativas com a União Europeia, iniciamos negociações com o Canadá, a Coreia do Sul, Singapura e a EFTA (Associação Europeia de Livre-Comércio), e articulamos uma ambiciosa aproximação com a Aliança do Pacífico.

São espaços que se abrem para um país dotado de um arcabouço institucional bem mais racional e eficaz para a promoção de exportações, captação de investimentos e internacionalização de suas empresas.

*Aloysio Nunes Ferreira, ministro das Relações Exteriores e senador licenciado (PSDB-SP)


Eugênio Bucci: Macarthismo e mau-caratismo

Brasil transita em direção a uma cultura da violência

O senador americano Joseph McCarthy (1908-1957), republicano, virou o ícone da sanha anticomunista que tomou conta dos Estados Unidos entre os anos 40 e 50. A ordem democrática não foi oficialmente quebrada, mas quase.

O "macarthismo" foi uma santa inquisição sem batina, perseguindo fanaticamente escritores, roteiristas, atores e jornalistas, sem prova. Queimou reputações e estripou a honra de suas vítimas, numa campanha trágica e ridícula, de uma só vez. Não tinha justificativa, mas tinha um contexto: a Guerra Fria.

O planeta se dividira entre comunismo e capitalismo. O Tio Sam temia que a União Soviética infiltrasse na "América" seus agentes malignos disfarçados de pessoas aparentemente "normais", como na série de televisão "Os Invasores". Era preciso incinerá-los. O cidadão pacato podia ser o inimigo "disfarçado".

Na ditadura militar brasileira, os governantes, convencidos de que a política era a continuação da guerra, destroçaram famílias, vidas e esperanças sob o pretexto imundo de combater o "inimigo interno", que estaria a serviço do "inimigo externo". O resultado foi uma farsa grotesca e sanguinária que, além de não ter justificativa, não tinha nem contexto.

Agora, com a vitória de Jair Bolsonaro, ganha estridência no Brasil uma fúria anticomunista de cunho patrioteiro, religioso, moralista --e anacrônico. Seus agentes gritam em defesa dos costumes da "família". Não admitem que adolescentes vejam beijos homoafetivos em livros ou na televisão, embora declarem não ter "nada contra" a "opção" (outro sem sentido) homossexual. Invocam o nome de Deus como cruzados. Consideram imorais as novelas da Globo.

Em seu credo, toda a corrupção é culpa da esquerda, e a direita representa toda a honestidade humana. Entre uma coisa e outra, essas falanges insultam a imprensa de todas as maneiras. Intimidam jornalistas e achincalham gratuitamente órgãos de imprensa.

O Brasil não está em transe, mas transita. Transita de uma cultura política que cultivava aspirações de pluralismo, liberdade e diversidade, com base nos valores dos direitos humanos, em direção a uma cultura da violência ("mirar na cabecinha", "direitos humanos para humanos direitos"), do nacionalismo furibundo de disciplina impositiva.

A prepotência já pôs duas de suas quatro patas na rampa do Palácio do Planalto. As outras duas logo virão: repressão aberta aos movimentos sociais, pregações contra a liberdade de cátedra nas universidades (e contra a gratuidade do ensino), ações deliberadas para ferir ou matar jornais independentes do governo.

Quando o presidente eleito prometeu cortar verbas do governo para esta Folha -- a primeira vez ainda antes da eleição, no comício de 21 de outubro, e a segunda vez, no dia seguinte à sua vitória, durante a entrevista que deu ao Jornal Nacional, no dia 29 --, foi coerente com seu projeto obscurantista.

Ele há de saber que não pode adotar um critério pessoal para orientar compras públicas (e a compra de espaço publicitário para veicular mensagens do governo é uma compra pública como qualquer outra, obrigada a observar o princípio constitucional da impessoalidade). Ele sabe e tem o dever de saber que o Estado não é uma extensão da personalidade do presidente. Tem o dever de saber que, se cumprir sua promessa de perseguir a Folha, afrontará o Estado de Direito.

No mais, o macarthismo nunca teve caráter. Fora de tempo e de lugar, tem menos ainda. A imprensa precisa resistir. Com reportagens apartidárias, crítica franca e profundidade analítica, terá de mostrar que o novo delírio autoritário que cresce no Brasil se situa perigosamente fora da razão e fora do campo democrático.

*Eugênio Bucci é professor da ECA-USP e articulista do jornal O Estado de S. Paulo


Vinicius Torres Freire: Ministro terá poder de investigação do governo e informação sobre crimes financeiros

O ministério que Sergio Moro deve assumir não seria mais do que a velha pasta da Justiça não fosse a incorporação de duas instituições importantes: a CGU (Controladoria-Geral da União) e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Com a CGU, Moro passaria a comandar uma espécie de polícia administrativa e a inspetoria do governo.

Com o Coaf, terá algum controle sobre uma agência de inteligência que recebe, analisa e encaminha ao Ministério Público e à polícia denúncias de lavagem de dinheiro e uso de recursos para fins criminosos, terrorismo inclusive.

Desde que foi criada, em 2003, a CGU teve ligação direta com o presidente da República —ora é um ministério. O Coaf é filho da lei de lavagem de dinheiro, de 1998, desde sempre abrigado no Ministério da Fazenda.

No mais, a Justiça de Moro vai reabsorver as polícias federais, deslocadas neste ano para o breve Ministério da Segurança.

Moro não será o xerife absoluto de CGU e Coaf, regulados por leis até bem estritas. Mas instituições podem ter sua atuação reforçada, ampliada ou até laceada, a depender de quem as comande e componha.

Além do mais, CGU e Coaf devem mudar, até porque serão necessárias leis para transferi-las para a Justiça e redefinir seus comandantes, pelo menos.

Não foi possível confirmar se Moro reivindicou a CGU, mas próximos de Jair Bolsonaro dizem que o futuro ministro pediu para ficar com o Coaf. Lê-se por aí que Moro levará apenas "parte do Coaf", o que ora não faz sentido.

A CGU avalia, audita, controla e pode investigar procedimentos, programas e servidores do governo inteiro.

É uma espécie de promotoria de defesa contra ineficiências, corrupção e outras irregularidades no Executivo. Agora, será subordinada a um ministro.

Quem vai comandá-la, com qual autonomia? Seja como for, um órgão de controle supraministerial estará sob Moro —como inspetor-geral, digamos, terá mais poder.

A lei de lavagem de dinheiro de 1998 obriga pessoas e instituições a prestar informações de transações suspeitas.

A lista de obrigados é aqui impublicável, de tão grande, mas o setor financeiro, seus órgãos de fiscalização e todos os envolvidos em transações de bens e serviços de grande valor estão obrigados a registrar ou notificar negócios a partir de certa monta ou suspeitos. Incluem-se aí transações financeiras, com imóveis, joias, arte e outros bens de luxo, produtos do agronegócio ou passe de atletas.

Tais informações devem ser enviadas ao Coaf, que pode requisitar dados cadastrais de pessoas, analisa o caso e reporta possíveis rolos ao Ministério Público ou à polícia. Órgãos muito parecidos existem em vários países civilizados. Gente graúda do Ministério Público diz que o Coaf funciona de modo razoável.

O Coaf não tem poder de investigação autônomo e no máximo aplica penas administrativas. É comandado por 11 conselheiros, funcionários de carreira indicados por vários ministérios e agências de Estado, com presidente nomeado pelo ministro da Fazenda. Vai mudar, claro. Mas como?

Em sua carreira, Moro trabalhou essencialmente com lavagem de dinheiro. Escreveu um livro sobre o assunto ("Crime de Lavagem de Dinheiro", Saraiva). Quer que as informações do Coaf sejam utilizadas para orientar sistematicamente a polícia e inquéritos.

No mais, sabemos apenas que os poderes e os inimigos de Moro não serão poucos.


Samuel Pessôa: Narrativas

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história

A democracia requer a distinção de fatos das narrativas. E requer reconhecer erros e corrigi-los.

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história. Construir uma nova narrativa. Certamente esse desejo não é compartilhado por todos os eleitores do capitão no segundo turno. Mas existe.

A narrativa que se deseja construir é que não houve ditadura militar, que não houve tortura e que a corrupção resulta da redemocratização. Essa narrativa fere fatos conhecidos de nossa história. E fatos são fatos, narrativas são narrativas.

A corrupção é perene na nossa história. Não há forma de combater a corrupção que não seja com independência do Judiciário e imprensa livre e vigilante. Ou seja, com democracia.

Mas, para diferenciar narrativas de fatos, será necessário reconhecer também que a narrativa de que a guerrilha defendia a democracia está factualmente errada.

Ou seja, se é fato que a ditadura torturou Dilma Rousseff, também é fato que toda a guerrilha lutou para instituir a ditadura que considerava correta.

Gente muito jovem, movida por paixões igualitárias e por uma ideologia não democrática, cometeu o erro de pegar em armas. Pagaram caro.

Não há simetria entre os crimes. Os guerrilheiros atuaram por conta e risco seus, enquanto a ditadura praticava seus crimes com o anteparo do Estado.

Também parece ser exagerada, e aqui ainda temos que esperar o juízo dos historiadores, a narrativa de que mensalão e petrolão sempre existiram, da forma e intensidade da de agora.

Analogamente, se é verdade que o Escola sem Partido pretende instituir práticas em sala de aula incompatíveis com a liberdade de expressão, é forçoso reconhecer que esse movimento reage a um processo de doutrinação nas disciplinas de história e geografia que constrói inúmeras narrativas factualmente erradas.

Não é verdade que a Inglaterra lutou contra o tráfico negreiro para vender tecidos na América, ou que a Guerra do Paraguai foi uma conspiração inglesa para destruir uma potência sul-americana autônoma, ou ainda que os europeus entravam dentro do território africano para aprisionar negros e escravizá-los, ou que os EUA enriqueceram pois exploraram os países pobres, e tantas outras bobagens a que nossos alunos são expostos.

Finalmente, se é verdade que a direita defendeu a ditadura por aqui, é verdade também que partidos de esquerda defendem ditaduras na América Latina ainda hoje. Não é coerente defender a Venezuela, como faz o PT, e achar que Bolsonaro é autoritário por afirmar que não houve ditadura por aqui.

Mesmo porque tanto as ditaduras venezuelana, nicaraguense e cubana quanto as ditaduras chilena, argentina e brasileira violaram, aquelas ainda violam, em massa os direitos humanos.

Ademais, na história do continente, as ditaduras ditas de direita terminaram. Algo acontece que faz com que os milicos retornem aos quartéis. As ditaduras ditas de esquerda não terminam e se mostram dispostas, para se perpetuar no poder, a expor seu povo a sofrimentos imensos na forma de desorganização econômica e perda de bem-estar.

A dita esquerda, se quiser continuar a pertencer ao campo democrático, terá de abandonar suas narrativas mentirosas e buscar os fatos. A democracia agradece.

Na coluna passada, referi-me ao presidente eleito, Jair Bolsonaro, como o tenente que se aposentou como capitão. A afirmação está errada. Quando Bolsonaro requereu a reforma, já era capitão. Agradeço aos colegas Pedro Jobim e Luciano Irineu de Castro pela correção.

*Samuel Pessôa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Bruno Boghossian: Pauta ruralista e evangélica será chave de Bolsonaro no Congresso

O próximo ministro da Fazenda não gostou de ver um deputado dando palpite em sua área. “É um político falando de economia”, reclamou Paulo Guedes ao desautorizar Onyx Lorenzoni, articulador do futuro governo.

Guedes terá que se acostumar. As medidas que propõe para colocar as contas do país em ordem dependerão de 513 Lorenzonis na Câmara e outros 81 no Senado.

A capacidade de formar maioria no Congresso para aprovar propostas impopulares como a reforma da Previdência será uma das principais provas para Jair Bolsonaro. Sob a promessa de romper a tradição de distribuir cargos aos partidos aliados, o presidente eleito usará sua popularidade como chave para uma lua de mel com o Legislativo.

A plataforma conservadora que teve êxito nas urnas deve ser uma das peças centrais desse jogo. Ainda em campanha, Bolsonaro sugeriu que aproveitaria a pauta de costumes para adoçar a boca dos parlamentares e convencê-los a engolir a pílula amarga do aperto fiscal.

“Se nós tipificarmos ações do MST como terrorismo, será que a bancada ruralista não vai estar conosco?”, perguntou o então candidato em uma palestra a empresários, em julho. “Se nós buscarmos resgatar os valores familiares, não vamos ter simpatia dos evangélicos?”

O apoio do governo aos interesses do agronegócio, das igrejas e da bancada da bala seria um torrão de açúcar barato. “Não estou falando em construir uma ponte até Fernando de Noronha”, disse Bolsonaro.

Formados por deputados e senadores de várias siglas, os grupos temáticos do Congresso são os canais que o presidente eleito quer usar para driblar os caciques partidários. Pode até funcionar, mas essa articulação fluida deve se tornar custosa.

Bancadas informais não têm mecanismos para disciplinar traidores ou negociar detalhes dos projetos em votação. Quando estiverem em pauta mudanças nas aposentadorias ou a criação de tributos, não haverá economista capaz de acomodar os palpites de centenas de políticos.


Demétrio Magnoli: Defesa da resistência pode dar a Bolsonaro triunfo que não teve na campanha

Um presidente autoritário não é o mesmo que um regime autoritário. O primeiro pode até levar ao segundo, mas o percurso exige ingredientes especiais. Na Turquia, demandou anos de uma insurgência separatista. Não somos a Turquia. As vozes que, em nome do espantalho do “fascismo”, desceram às trincheiras da “resistência” evidenciam profunda ignorância do significado da democracia.

“A tristeza tem que se transformar em resistência”, tuitou Manuela D’Ávila na hora da proclamação do resultado, pronunciando a senha clássica da política sectária.

Em 2010, batido por Dilma, Serra falou em “resistência”. Mas resistir a um governo escolhido em eleições livres equivale a negar a soberania popular. Haddad quase seguiu pela mesma trilha, negando o telefonema simbólico de congratulações que o derrotado deve ao vitorioso, mas corrigiu-se num tuíte, no dia seguinte.

Na direção oposta, Guilherme Boulos, ícone de um PSOL que retorna ao berço lulista, conclamou à “resistência” —e foi imitado pelo pobre Eduardo Suplicy. Serra falava só para emitir sons. Ele não pretendia “resistir”, mas apenas reativar sua crônica guerra interna pela legenda do PSDB na eleição seguinte.

Já o lulismo e seus satélites parecem decididos a cavar trincheiras. Gleisi Hoffmann atribuiu a Haddad a função de articulador de uma “frente de resistência” e chegou perto de negar a legitimidade do eleito. Ela classificou os resultados eleitorais como um “fato” (alguém duvida disso?), mas qualificou as eleições como “processo eivado de vícios e de fraudes” que “consolidam” o “golpe” do impeachment. Daí ao “Fora Bolsonaro!”, o passo é curto.

Ao lado de “resistência”, a palavra “fascismo” risca o céu. Fascismo, porém, é um fenômeno definido por traços políticos que não estão presentes no bolsonarismo: um partido fascista, a organização de milícias, um modelo de Estado corporativo. O abuso do termo, dirigido como insulto aos que não se alinham com o PT, esgarça o tecido do debate público. A polarização resultante forma o ambiente propício para a coesão da maioria em torno de Bolsonaro.

A pulsão autoritária do novo presidente testará nossas instituições e leis. A vigilância é um dever democrático de parlamentares, partidos, procuradores, magistrados, bem como da imprensa e das organizações da sociedade civil. Face a ameaças definidas às garantias, direitos e liberdades, será o caso de exercitar topicamente a resistência. Mas a “resistência” em geral e a tal “frente de resistência” em particular não passam de versão atualizada da narrativa do “golpe parlamentar” que tanto impulsionou a candidatura de Bolsonaro. Não é casual, nem sem motivo, que partidos como o PDT, o PSB e o PPS resolveram excluir o PT da articulação de um bloco parlamentar oposicionista.

Gleisi, Boulos e as demais vozes histéricas das trincheiras candidatam-se, involuntariamente, ao cargo de ministro da Propaganda do governo Bolsonaro. O chamado à “resistência” ao “fascismo”, antes ainda da posse, só comove os bolsões fanatizados da militância de esquerda. Fora desse círculo de ferro, até mesmo os eleitores que votaram contra Bolsonaro sentem nisso o gosto acre da ruptura da regra do jogo. A farsa da candidatura de Lula cartografou o caminho de Bolsonaro à Presidência. A campanha da “resistência”, um imprevisto terceiro turno, pode proporcionar a Bolsonaro o triunfo ideológico que a campanha eleitoral não lhe deu.

Parlamentares falam o que lhes dá na telha. Candidatos tendem a explodir as mais elementares barreiras éticas. Nas duas condições, Bolsonaro destacou-se como caso extremo de violência retórica. Agora, no Planalto, terá que se acostumar com a caixinha da democracia. Se tudo der certo, ele sofrerá mais que nós. Se der errado, hipótese que nunca deve ser descartada, restará a resistência. Sem aspas e sem demagogia.

* Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Contrato político torna Moro sócio do projeto de poder de Bolsonaro

Sergio Moro assinou um contrato político. Ao entrar no primeiro escalão do próximo governo, o juiz da Lava Jato se torna sócio inquestionável de um projeto de poder.

Embora não fosse um jogador inscrito no torneio, o futuro ministro da Justiça reconfigurou o tabuleiro da eleição. Ao longo dos últimos anos, autorizou operações contra caciques políticos, condenou dirigentes partidários e mandou prender o candidato que liderava as pesquisas antes de ir para a cadeia.

É difícil ignorar a influência de Moro sobre o resultado das urnas. O presidente eleito reconhece. "Em função do combate à corrupção, da Operação Lava Jato, as questões do mensalão, entre outros, me ajudou a crescer politicamente falando", disse Jair Bolsonaro, horas depois de confirmar a nomeação do juiz.

Quando aceita um cargo com superpoderes no novo governo, Moro se beneficia diretamente de suas ações. O juiz passa a ser um personagem da arena política e eleitoral que ele mesmo trabalhou para moldar.

Moro tenta pegar um atalho para evitar a repetição do que ocorreu com a Operação Mãos Limpas. Estudiosos do caso italiano dizem que a corrupção sobreviveu porque políticos eleitos na esteira das investigações minaram os mecanismos de combate ao crime. No centro do poder, o juiz quer blindar a Lava Jato.

O preço da migração é alto. Moro agora se confunde com o projeto Bolsonaro e passa a viver na engrenagem central do mecanismo da política. Por um lado, passa a ser citado como nome forte para a sucessão presidencial em 2022 ou 2026. Por outro, estará sujeito a pressões (como todo ministro) e será julgado na história pelos sucessos ou fracassos do governo que vai integrar.

Na mesma entrevista em que disse que jamais entraria na política, em 2016, Moro argumentou que o apoio da opinião pública foi fundamental para a Lava Jato. E emendou: "Mas tudo é passageiro, não é? Tem um velho ditado em latim que diz 'sic transit gloria mundi'. Basicamente, 'a glória mundana é passageira'".


O Estado de S.Paulo: Entidades condenam ameaça de Bolsonaro de retaliar jornais

Presidente eleito falou em cortar verba pública de veículos de imprensa que se ‘comportarem de maneira indigna’

Luiz Raatz, de O Estado de S.Paulo

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) criticaram nesta terça-feira, 30, as declarações dadas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, do PSL, sobre o jornal Folha de S. Paulo. Em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, na segunda-feira, Bolsonaro ameaçou retirar verbas públicas dos veículos de imprensa que se comportarem de maneira "indigna", e citou a Folha como um desses casos. Ele acusa o jornal de propagar notícias falsas a seu respeito.

“É preocupante que o presidente eleito tenha manifestado a intenção de usar verbas publicitárias oficiais como forma de punição a um jornal por discordar de seu noticiário", disse o presidente da ANJ, Marcelo Rech. "Os investimentos do governo em publicidade, como qualquer outra verba pública, devem seguir sempre critérios técnicos, e não políticos ou partidários”.

Já a Abraji disse receber com apreensão as declarações dadas por Bolsonaro a respeito da imprensa nos últimos dois dias. "O respeito à Constituição - à qual o presidente fará um juramento solene de obediência no dia 1º de janeiro de 2019 - não é pleno quando a imprensa se converte em objeto de ataques e de ameaças", afirmou a entidade em nota.

O texto afirmou ainda que “fiscalizar o poder público – e, em particular, as ações do presidente da República – sempre foi e seguirá sendo uma função inerente ao jornalismo, exercida em nome do interesse público”. “Zelar por essa função é missão primordial da Abraji, assim como deve ser objeto de zelo de todo governo democrático.”

Na entrevista dada ao Jornal Nacional, Bolsonaro prometeu respeitar a liberdade de imprensa, mas disse que o repasse de verbas da União seria uma coisa diferente. “Sou totalmente favorável à liberdade de imprensa, mas temos a questão da propaganda oficial de governo, que é outra coisa”, disse Bolsonaro. “Não quero que (a Folha) acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal. Por si só, esse jornal se acabou”, afirmou o presidente eleito.

Em sua conta no Twitter, o jornal respondeu ao presidente eleito. “Jair Bolsonaro, mesmo após eleito presidente, não deixa de ameaçar a Folha. Ainda não entendeu o papel da imprensa nem a Constituição que promete obedecer.”

Em outra iniciativa, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) chamou a atenção para mensagem distribuída por assessor da própria campanha de Bolsonaro com ataques a jornalistas.

A Procuradoria da República no Distrito Federal abriu investigação por improbidade administrativa para apurar a contratação pelo gabinete de Bolsonaro na Câmara da ex-funcionária Walderice Santos da Conceição.

Conduzida sob sigilo desde setembro pelo procurador João Gabriel Queiroz, a investigação busca saber se a mulher, ex-secretária parlamentar de Bolsonaro, recebia salário da Câmara e trabalhava em uma loja de açaí na Vila Histórica de Mambucaba, em Angra dos Reis (RJ), onde Bolsonaro tem uma casa de veraneio. A informação foi publicada pela Folha, e é base das críticas que o presidente eleito tem feito contra o jornal.

Walderice era funcionária no gabinete de Bolsonaro desde 2003 e recebia R$ 1.416,33 antes de pedir demissão, após a publicação. Bolsonaro exonerou a secretária parlamentar, mas contestou a reportagem durante a campanha e após eleito. Ele nega que Walderice tenha sido funcionária fantasma e diz que ela trabalhava atendendo demandas da região.

Leia a nota da ANJ na íntegra
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) rejeita com veemência os termos e o teor das declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro ao reiterar ataques ao jornal Folha de S. Paulo, um dos diários fundadores desta entidade, criada há quase 40 anos na defesa da liberdade de expressão.

Eventuais inconformismos com noticiário de veículos de comunicação não podem ser confundidos com inaceitáveis retaliações a jornais por meio de uso de verbas publicitárias oficiais. Investimentos em publicidade por governos, como as demais verbas públicas, devem seguir expressamente critérios técnicos, e nunca políticos ou partidários.

A ANJ espera que o princípio da liberdade de imprensa, saudavelmente afirmado pelo presidente eleito em seu discurso após a vitória nas urnas, se manifeste na prática, o que inclui o respeito a opiniões divergentes e à independência editorial, fundamentos da pluralidade de visões e da democracia.

Marcelo Rech
Presidente da AN


Bruno Boghossian: Fusão de Bolsonaro deixa país sujeito a propaganda ruralista

O ainda pré-candidato Jair Bolsonaro já considerava o Ministério do Meio Ambiente um problema. Num vídeo divulgado em março, o deputado disse que as “multagens” a produtores rurais acusados de desmatamento eram absurdas e propôs o fim da pasta.

“Nós inclusive pensamos em fundir o Ministério da Agricultura com o Meio Ambiente. Aí vai acabar a brincadeira dessa briga entre ministérios. E quem vai indicar vão ser os homens do campo. São as entidades que vão indicar”, declarou.

O agora presidente eleito vai levar o projeto adiante. Depois de negociações com representantes do agronegócio, marcadas por recuos sucessivos, Bolsonaro decidiu unir as duas pastas. Os órgãos de fiscalização ambiental, segundo o plano, ficarão submetidos à Agricultura.

As palavras do deputado ao longo da campanha mostram que seu futuro governo escolheu o lado mais pueril do lobby ruralista. Seus conselheiros para o setor conseguiram convencê-lo de que a maneira mais simples de acabar com as divergências era sufocar um dos lados.

Especialistas e até empresários do setor lançaram alertas ao longo dos últimos meses sobre o risco dessa cartada. A fusão das duas pastas, sob a tutela dos produtores, pode ser interpretada como um retrocesso num mercado internacional que cobra dos produtores cada vez mais garantias de proteção ambiental.

Bolsonaro pode até discordar das regras seguidas pelos órgãos de fiscalização, mas deixa de considerar que o desentendimento também é saudável no poder. Se um presidente da República só ouve a voz de um lado, está sujeito à propaganda de grupos de interesse, e não às ideias de quem formula políticas públicas.

No segundo governo Lula, o então presidente abraçou as posições de Dilma Rousseff em uma sequência de embates entre ela e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Sob bombardeio, Marina pediu demissão em 2008. Nesta terça (30), ela disse que a fusão de pastas de Bolsonaro é um “triplo desastre”.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a imprensa

Presidente eleito precisa resignar-se à ideia de que vivemos num Estado liberal

Jair Bolsonaro não gosta da Folha. É um direito dele. Mas, se opresidente eleito pretende cumprir sua promessa de obedecer à Constituição, precisa resignar-se à ideia de que vivemos num Estado liberal no qual vige a liberdade de imprensa.

Mais do que uma cereja decorativa no bolo da democracia, a liberdade de imprensa, ao lado das liberdades de expressão e de pensamento, são importantes porque ajudam a manter sob controle tanto o poder do Estado como o de maiorias circunstanciais.

O filósofo John Stuart Mill (1806-1873) já disse quase tudo o que é preciso dizer sobre o assunto. Não é só o soberano que pode cometer injustiças contra o indivíduo. As “opiniões e sentimentos prevalecentes”, que Mill chama de “tirania da maioria”, podem ser igualmente opressivas, se não mais.

Assegurar que ideias diferentes daquelas defendidas pelos poderosos e pelos numerosos possam circular é um passo necessário para que as teses oficiais e majoritárias sejam contestadas e, se estiverem erradas, como frequentemente estão, sejam abandonadas. Mill, como bom iluminista, aposta que, no longo prazo, as melhores ideias triunfam sobre as piores.

A liberdade de imprensa especificamente (separada da liberdade de expressão e de pensamento) adquire especial importância no atual momento, em que fake news ganham ampla circulação nas redes sociais. Não é que o jornalismo profissional vá resolver esse problema, mas a imprensa facilita um pouco a vida do cidadão ao oferecer-lhe uma primeira filtragem, levando-lhe notícias que passaram por um processo de verificação, ainda que imperfeito.

O jornalismo não tem respostas definitivas para os grandes problemas do país, mas pode dar sua contribuição para o debate público, quando amplia o leque das ideias em circulação, zela pelos fatos e, de vez em quando, consegue revelar aquilo que poderosos gostariam de manter escondido.


Bruno Boghossian: PT e esquerda saem defasados do ciclo que elegeu Bolsonaro

O PT e a esquerda saíram defasados do ciclo político que elegeu Jair Bolsonaro. O movimento de oposição ao novo governo deve preservar a relevância dos partidos derrotados, mas seu futuro dependerá de uma correção de rumos.

As principais marcas da eleição deste ano foram a renovação e a repulsa à política tradicional. Os petistas apostaram no caminho inverso: tentaram reciclar o governo Lula e formaram uma tropa composta especialmente por veteranos.

No PT, a atualização de quadros no Congresso ficou bem abaixo da média. Dos 56 deputados eleitos pela sigla, só quatro podem ser considerados novidades. Quarenta já estavam na Câmara, oito são deputados estaduais e outros quatro exerceram cargos relevantes nos últimos anos.

Embora o partido seja um dos únicos com uma vida partidária que estimule o surgimento de novos nomes, os petistas parecem ter perdido o bonde de 2018. Fernando Haddad, derrotado na corrida presidencial, desponta como principal aposta para recuperar o tempo perdido.

O presidenciável do PT enfrentará algumas barreiras nesse processo. Estará sem mandato (o que reduz o alcance de sua voz), enfrentará resistências de parte da burocracia da própria sigla e terá Ciro Gomes como concorrente na esquerda pelo papel de protagonista da oposição.

O maior desafio, no entanto, deve ser a reconfiguração de uma agenda partidária que parece obsoleta. O PT acreditou que a lembrança dos bons momentos do país sob Lula seriam suficientes na campanha, mas ignorou demandas sociais que foram os trampolins da eleição de Bolsonaro: a intolerância com a corrupção e o combate à violência.

A vitória de Haddad no Nordeste confirma o forte peso do legado petista de combate à miséria. A derrota nas demais regiões mostra que essa pauta se tornou insuficiente.

O desempenho de Bolsonaro no poder vai determinar se o anseio por renovação ficará vivo. Em quatro anos, o PT pode apresentar um novo estilo ou apostar numa onda retrô.