Folha de S. Paulo

Elio Gaspari: A reunião da irresponsabilidade fiscal

Para quem temia que depois da eleição viesse mais do mesmo, ressurge a maldição do príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”: “Depois será diferente, porém pior”

No mesmo dia em que anunciou um “momento de regeneração”, Jair Bolsonaro foi a uma esquisita reunião de governadores eleitos copatrocinada pelo paulista João Doria. Nada havia sido combinado com sua equipe. O que muitos governadores querem é suspender as exigências e os efeitos da Lei da Responsabilidade Fiscal. Uma legítima superpedalada, capaz de superar os çábios da “contabilidade criativa” que custou a presidência a Dilma Rousseff.

Como o presidente eleito ainda não desceu do palanque, fez brincadeira com a sua presença no conclave: “O que eles querem, eu também quero, dinheiro”. Antes fosse, o que eles querem é atropelar a lei que obriga os Estados a limitar em 60% o comprometimento das receitas com o pagamento de despesas de pessoal

O Rio está com um comprometimento de 81%. Minas Gerais, 79% e o Rio Grande do Sul, 78%. Isso para não se falar no campeão, o Rio Grande do Norte, com 88%. Ao todo, são 17 os Estados que ofenderam a LRF, mas nove governos comportaram-se como deviam.

Os governadores querem mais dez anos de prazo para cumprir uma lei de 2000 e prometem um conjunto de medidas para buscar o equilíbrio financeiro. Velha conversa, como a do Supremo Tribunal Federal que quer o aumento para já, prometendo o fim dos penduricalhos dos juízes para depois. Ademais, dentro de dez anos os governadores serão outros.

Bolsonaro deveria ter desarmado a cilada da reunião, expondo a irracionalidade do pleito. Doria, que governará o Estado que exibe melhor desempenho (54% de comprometimento, graças a Geraldo Alckmin), poderia ter evitado a ribalta.

Para quem temia que depois da eleição viesse mais do mesmo, ressurge a maldição do príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”: “Depois será diferente, porém pior”.

REGISTRO
Foram muitos os nomes que entraram na dança para a cadeira de ministro das Relações Exteriores, mas o nome do diplomata Ernesto Araújo foi o primeiro a surgir, logo depois do segundo turno.

CONTINUIDADE
Quando Lula era presidente, o chanceler Celso Amorim chamou-o de “nosso guia”. Ernesto Araújo anuncia que assumirá o cargo certo de que a “mão firme e confiante de Bolsonaro nos guiará”.

BILATERAL
As “caneladas” de campanha de Bolsonaro deram à sua política externa dois resultados:

1) Submeteu o chanceler brasileiro a uma molecagem do governo egípcio porque prometeu levar a embaixada brasileira para Jerusalém. Fez que não notou.

2) Demonizou a participação de cubanos no programa “Mais Médicos” e provocará a retirada de oito mil profissionais. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, 1.575 localidades ficarão sem médico.

Daqui até a posse ele perceberá que relação bilateral tem dois lados.

MÉDICOS
Com a partida dos médicos cubanos, os novos ministros da Saúde e da Educação poderiam examinar as exigências para que médicos brasileiros formados no exterior revalidem seus diplomas para trabalhar em Pindorama.

A lei exige que o médico esteja “em situação legal de residência no Brasil”, mas o programa do governo não diz quanto tempo demorará o processo de revalidação.

Enquanto isso, o que faz o médico que se formou nos Estados Unidos e trabalha num hospital de Boston, vende limão na praia?

Eremildo é um idiota e acha que os médicos têm direito a uma reserva de mercado. Mesmo assim, por cretino, acredita que pode dar entrada na burocracia mesmo que o médico more num dos anéis de Saturno, desde que cumpra todas as exigências posteriores.

BANCO CENTRAL
Com tanta gente querendo ir para o governo, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, preferiu ir para casa.

Sentou na cadeira em 2016, com a economia em pandarecos, e presidiu o BC falando pouco e fazendo o certo, longe dos holofotes. Leva consigo o estilo de economistas como Pedro Malan e Otávio Gouveia de Bulhões.

PALPITE
Um veterano conhecedor do funcionamento do Palácio do Planalto acredita que Jair Bolsonaro restabelecerá a rotina da “Reunião das Nove” que vigorou nos anos dos generais.

Pelo desenho de hoje, nela sentariam o presidente, o general Augusto Heleno, o economista Paulo Guedes e o deputado Onyx Lorenzoni. Trocando o ministério da Defesa pelo Gabinete de Segurança, logo depois da escolha de Sergio Moro para a Justiça, o general tornou-se um ministro que tem sala no Planalto. Não é pouca coisa.

RENOVA
O movimento Renova, que elegeu 16 parlamentares em diversos partidos, pretende se organizar de forma inédita no parlamento. Realizará reuniões periódicas e seminários para discutir projetos com empresários e organizações da sociedade civil.

SUPERPODERES
O economista Paulo Guedes, futuro “Posto Ipiranga” da economia, coordena 20 grupos temáticos.

Tomara que dê certo. Em 2004 o comissário José Dirceu coordenava 37 grupos de trabalho na Casa Civil. Um cuidava do hip hop.

DANÇA MINISTERIAL
Nos próximos dias, Bolsonaro concluirá sua dança ministerial. Anunciou fusões, desistiu, juntou abacaxi com banana e terminará cumprindo a sua promessa de redução do número de pastas.

Feito o serviço do primeiro escalão, começará o remanejamento de setores administrativos.

Nessa altura, vale lembrar uma história ocorrida com um oficial do Exército. Como capitão, serviu num quartel que tinha a forma de um quadrilátero. Voltou a ele como general e, surpreendido, comentou com um velho sargento:

— Fico feliz em ver que a barbearia continua no mesmo lugar.

O sargento esclareceu:

— General, a barbearia mudou tanto de lugar que deu a volta.

TUNGA NO LIVRO
As guildas dos livreiros e editores responderam ao que foi publicado aqui na semana passada contra a proposta que encaminharam a Michel Temer, para tabelar a mercadoria que vendem, limitando os descontos a 10% no primeiro ano de circulação de um volume.

Deram seus argumentos, reforçando-os com uma particularidade: “Para utilizar um exemplo conhecido do autor, seu título ‘A ditadura envergonhada’, lançado em 2002, com preço sugerido de R$ 40, custa hoje quase 50% a menos do que seu valor nominal de 15 anos atrás — corrigido pelo IGP-M, seria de R$ 115,80. No entanto, sua edição atual é vendida por R$59,90”.

Não entenderam nada. O signatário alegra-se quando seus livros são vendidos mais barato. Se alguém quiser vendê-los por menos de R$ 59,90, ótimo. Como ensinou o Conde Francisco Matarazzo, “mercadoria não tem preço de mercado, terá preço se tiver quem a compre”. Quando ele morreu, em 1937, era o homem mais rico do Brasil, com 20 bilhões de dólares em dinheiro de hoje.


Demétrio Magnoli: Do castrismo ao criacionismo

Escola sem Partido persistirá na sua cruzada enquanto existir uma chama de inteligência nas salas de aula

Qual é o comprimento do segmento de reta que liga o ponto CAS, de castrismo, ao CRI, de criacionismo? A escola descobrirá a resposta nos próximos anos, cortesia do Escola sem Partido.

A teoria da geração espontânea asseverava que a vida nasce da matéria não viva, como os sedimentos dos rios ou o lixo. O Escola sem Partido nasceu do lixo —no caso, a sujeira ideológica acumulada ao longo de duas décadas. Terceira lei de Newton: a escola que conviveu com a cartilha da esquerda de botequim encontra-se, agora, sitiada por uma horda de bárbaros da direita de shopping center.

A Guerra do Paraguai foi arquitetada pela Inglaterra para evitar o surgimento de uma potência sul-americana. Cuba simboliza a esperança de redenção da América Latina. A democracia não passa de um manto protetor da exploração capitalista. Os EUA planejam roubar o pré-sal, as águas superficiais da Amazônia e os recursos subterrâneos do aquífero Guarani.

Israel é um Estado racista que precisa ser abolido. O terror jihadista é uma contraofensiva de povos humilhados pelas potências ocidentais. Os direitos humanos são uma proclamação do Ocidente destinada a destruir as identidades culturais de asiáticos, muçulmanos, africanos e afrodescendentes. O caldo borbulhante de sandices fez seu caminho até os manuais escolares, os vestibulares, o Enem. No fim, originou uma reação destrutiva que pretende converter a escola em anexo do templo.

O Escola sem Partido não identifica o problema real para solucioná-lo, o que exigiria uma reflexão de fundo, especialmente nas universidades e no magistério. O movimento acende uma fogueira, seleciona as bruxas e emite veredictos implacáveis.

Sua verdadeira finalidade é aproveitar as vulnerabilidades para subordinar a escola a uma polícia ideológica e de costumes recrutada entre autoridades locais, políticos, promotores e pastores. Sob o álibi das “convicções da família”, trata-se de submeter o ensino ao dogma, substituindo um discurso ideológico por outro.

Há boas chances de que produza estragos, pois opera como militância profissional organizada e conta com o respaldo do novo governo. Nesse sentido específico, assemelha-se ao movimento racialista, que conseguiu impor sua agenda minoritária de cotas raciais.

A escola ficará à mercê dos Novos Inquisidores se não fizer a lição de casa, traçando uma linha nítida entre o discurso pedagógico e o discurso doutrinário. Num tópico, o Escola sem Partido tem razão: professor e aluno mantêm relação desigual, pois o primeiro concentra tanto o poder intelectual quanto uma série de prerrogativas funcionais. Da desigualdade, resulta uma obrigação de contenção.

A missão dos mestres é ensinar os alunos a pensar, não explicar-lhes o que devem pensar. Na sala de aula não cabem o comício, a persuasão política, a narrativa partidária, que são expressões de autoritarismo disfarçadas sob o rótulo enganoso do “pensamento crítico”.

A lição de casa precisa ser feita não para evitar o espantalho da “doutrinação dos jovens”, algo totalmente ineficaz, nem para apaziguar o Escola sem Partido, que persistirá na sua cruzada enquanto existir uma chama de inteligência nas salas de aula. A escola deve fazê-la porque é a coisa certa a fazer –ou seja, por respeito a si mesma. Daí, ganhará autoridade moral para fechar as portas aos Novos Inquisidores.

Tempos estranhos –e um tanto ridículos. Enquanto nomeia um ministro de Relações Exteriores que anuncia a “confluência da história com o mito” propiciada pelo “Deus de Trump”, o governo promete limpar a sala da aula do veneno da ideologia.

Na escola sob assédio, tudo está em jogo, desde a ciência da evolução biológica até a história do advento dos direitos humanos, passando pelo ensino de saúde e sexualidade. Hoje, para escapar ao ponto CRI, a escola deve apagar o ponto CAS.

*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Medidas amargas serão teste de popularidade para Bolsonaro

Por quase cinco anos, o Brasil adiou o ajuste de suas contas por razões políticas. Dilma Rousseff escondeu o rombo nos cofres do governo para garantir um segundo mandato. Michel Temer tentou, mas não conseguiu convencer sua base aliada a abraçar uma reforma da Previdência às vésperas de um ano eleitoral.

Jair Bolsonaro será obrigado a enfrentar um teste de popularidade logo na largada. A agenda econômica que serviu de pilar para sua campanha é sabidamente amarga e precisará ser apresentada o quanto antes.

A mudança no sistema de aposentadorias é um assunto especialmente incômodo. Nas últimas semanas, o próprio presidente eleito deu sinais de hesitação diante de medidas que podem ser dolorosas. “É complicado, mas você tem de ter o coração nessa reforma também. Não são apenas números”, disse, há três dias.

O equilíbrio entre ajuste fiscal e popularidade depende de certa habilidade política. No fim dos anos 1990, o professor Kurt Weyland estudou o sucesso de reformas neoliberais implementadas em países da América Latina, comparando duas hipóteses que poderiam explicar o apoio àqueles remédios amargos.

A primeira sugeria que governos poderiam criar benefícios sociais direcionados às classes afetadas pelas medidas de arrocho. A outra sustentava que os ajustes só conseguem respaldo da população quando a economia está em crise profunda.

Ao analisar seis países, Weyland afirmou que o segundo conceito, batizado de teoria do resgate, explica o apoio inicial às reformas. Depois que a economia se estabiliza, as recompensas da primeira hipótese ajudam a consolidar o aperto.

Em outras palavras, alguns presidentes tiveram sucesso em convencer os eleitores de que as coisas podem piorar um pouco antes de melhorar. Em um Brasil com 13 milhões de desempregados, a justificativa deve pegar mal, mas pode funcionar.


Alexandre Schwartsman: A 'farsa' do desemprego

Economia não é para aspirantes; antes de falar do assunto, não custa passar no posto Ipiranga

Na semana passada, o presidente eleito se manifestou sobre as estatísticas de desemprego no país afirmando: “Vou querer que a metodologia para dar o número de desempregados seja alterada no Brasil, porque isso daí é uma farsa. Quem, por exemplo, recebe Bolsa Família é tido como empregado. Quem não procura emprego há mais de um ano é tido como empregado. Quem recebe seguro-desemprego é tido como empregado”.

Segundo o IBGE, a população brasileira em setembro deste ano era de aproximadamente 209 milhões de pessoas. Nem todos, porém, estão aptos a trabalhar. O IBGE define a População em Idade Ativa, PIA, como aqueles com mais de 14 anos, em torno de 170 milhões de pessoas.

Obviamente, apenas parte dos maiores de 14 anos está no mercado de trabalho. Alguns, por exemplo, estudam (ainda bem!), outros já se aposentaram, e há quem decida não tomar parte no mercado por uma série de motivos, alguns dos quais trataremos à frente.

Os que participam, seja trabalhando, seja buscando emprego, são definidos como “força de trabalho”, ou PEA (População Economicamente Ativa), e montavam a 105 milhões de pessoas em setembro.

Desses, 92,6 milhões estavam ocupados, e 12,5 milhões, desempregados. Assim a taxa de desemprego atingiu 11,9% (12,5÷105).

Essa é a definição internacional da taxa de desemprego, adotada por todos os países com boas estatísticas na área. No caso, se a pessoa recebe o Bolsa Família (sem estar empregada) ou o seguro-desemprego, ela obviamente não conta como empregada.

Caso esteja procurando trabalho, contará como desempregada (e participante da PEA); caso contrário, não aparecerá nessa estatística de desemprego.

Ocorre que a taxa de desemprego descrita acima não esgota o conjunto de estatísticas sobre o mercado de trabalho. O IBGE também discrimina entre os ocupados aqueles que trabalham menos do que desejam e calcula a taxa de desempregados (12,5 milhões) e subocupados (6,9 milhões) com relação à PEA: 18,4% (19,4÷105).

Há, por outro lado, entre as pessoas que estão fora da PEA, as que gostariam de trabalhar, mas não estão buscando emprego, a chamada “força de trabalho potencial”, 8 milhões de pessoas.

A estatística mais ampla do IBGE a respeito (a taxa de subutilização da força de trabalho) junta os desempregados, os subocupados e a força de trabalho potencial, um conjunto de pouco mais de 27 milhões de pessoas como proporção da “PEA ampliada”, isto é, os 105 milhões da PEA mais os 8 milhões da força de trabalho potencial (123 milhões), revelando uma taxa de subutilização na casa de 24%.

A coexistência de várias medidas de desemprego não é uma jabuticaba.

Nos EUA, por exemplo, o Bureau of Labor Statistics publica a cada mês nada menos do que seis alternativas: a taxa denominada U3, calculada de forma similar à nossa, é a mais disseminada, 3,7% no mês passado; a taxa mais ampla, U6, se encontrava em 7,4%, o dobro da oficial, por incorporar também os que gostariam de trabalhar mais e os participantes da força de trabalho potencial.

Economia, apesar das aparências em contrário, não é para aspirantes. Como regra, antes de falar do assunto, não custa nada dar uma passada no posto Ipiranga.


Bruno Boghossian: Guerra ideológica de Bolsonaro incomoda até políticos conservadores

Não foram poucas as ocasiões em que Jair Bolsonaro disse que "a questão ideológica é tão ou mais grave que a corrupção". Parecia um exagero retórico para alimentar o antipetismo que o empurrou para a vitória nas urnas. Passada a campanha, aliados do presidente eleito ainda levam a máxima ao pé da letra.

Eduardo Bolsonaro acha razoável prender até 100 mil pessoas ligadas a movimentos sociais. Defende substituições em massa no corpo diplomático para se livrar do "marxismo" do Itamaraty. Também considera importante aprovar uma lei que torne crime o comunismo.

O tom que o filho do presidente eleito adotou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo incomodou até políticos conservadores. Dirigentes de partidos dispostos a apoiar as pautas do próximo governo temem que a equipe de Bolsonaro perca tempo e gaste energia à toa com sua guerra ideológica.

Embora a agenda de direita tenha aderência no Congresso que tomará posse em 2019, as tintas usadas por personagens como Eduardo costumam aborrecer potenciais aliados.

Para esses caciques, a eleição de Bolsonaro é uma oportunidade para aprovar a redução da maioridade penal e a flexibilização da posse de armas, por exemplo. Levar para a cadeia quem usa boné do MST, jogar o PC do B na ilegalidade e caçar embaixadores prestigiados está longe de ser uma prioridade.

O principal receio é que a overdose conservadora atrapalhe as articulações em torno da pauta econômica. Bolsonaro encontrará um Congresso menos refratário ao corte de despesas e à reforma da Previdência. Ruídos em outras áreas podem criar um congestionamento indesejado.

Líderes partidários dizem que a cruzada de Eduardo e companhia é só marketing, mas ele parece disposto a tentar vender seu produto. "Um dos papéis dos parlamentares é [...] usar sua posição de destaque, de ser um representante de parcela da sociedade, para falar dos perigos do comunismo. Assim como falo do câncer de próstata", declarou.


Folha de S. Paulo: 'Pessoas razoáveis já não têm espaço no Brasil', diz FHC

Ex-presidente atribui polarização do país a Bolsonaro e ao comportamento do PT

Por Sylvia Colombo, da Folha de S. Paulo

BUENOS AIRES - Em entrevista ao jornal argentino Clarín, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) disse que não se apresentaria novamente como candidato a presidente do Brasil porque é “um homem razoável e as pessoas razoáveis já não têm espaço num país polarizado.”

O ex-presidente disse que a polarização brasileira não se deve apenas ao presidente eleito Jair Bolsonaro, mas também ao comportamento do PT. “Eles sentenciavam que eram os bons e os demais, os maus. A mim, me acusavam de neoliberal, algo que nunca fui, mas era um modo de dizer que eu não servia.”

Indagado sobre se Bolsonaro é um fascista, FHC disse que não. “O fascismo é algo organizado. Ele representa um autoritarismo que pode ter qualquer tipo de base ideológica.”

Afirmou, ainda, que não gosta de ver Lula preso. “É ruim para ele e para o país, mas eu respeito a lei.”

Sobre Bolsonaro, disse que é preciso esperar e que faria resistência se houvesse “qualquer tentativa autoritária, a isso é preciso colocar freio.”

Acrescentou que a sugestão de mudança da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém foi uma ação “precipitada” do presidente eleito.

“A posição tradicional do Brasil e a minha é a favor do Estado de Israel e da Palestina. Por que adotar outra que pode ser entendida por uma parte como uma provocação?”

FHC concedeu a entrevista em Madri, onde tinha prevista uma visita mais longa, mas que teve de ser interrompida porque sua mulher, Patricia Kundrat, mais de 40 anos mais jovem que ele, passou mal. Então, brincou, “isso me acontece por ter me casado com uma anciã. Da próxima vez, caso com uma mais jovem.”


Leandro Colon: Eleição acabou e Bolsonaro ainda age como candidato

De um governo de transição exige-se transparência e informação e menos superficialidade

Jair Bolsonaro ainda age e fala como candidato duas semanas após ser eleito presidente. Não há um assessor próximo com influência sobre ele e bom senso para convencê-lo de que a campanha acabou e o jogo a partir de agora é outro.

No domingo (11), a assessoria do capitão reformado divulgou imagens dele, com uma camisa de time de futebol, tentando acender a churrasqueira em sua casa, no Rio. Bolsonaro deu uma escapada para sacar dinheiro em um caixa eletrônico e foi cumprimentado por banhistas na orla da praia. Imagens perfeitas para uma propaganda eleitoral.

Dois dias antes, ele deu uma declaração preocupante sobre o Enem. Disse que, como presidente, pretende tomar “conhecimento da prova antes”. Basicamente, quer interferir no sigilo que garante a segurança do exame nacional contra vazamentos.

Bolsonaro e nenhum outro cidadão, com exceção dos técnicos envolvidos diretamente com a prova, podem ter acesso ao conteúdo antes da aplicação aos estudantes do país.

Com declarações polêmicas, que provavelmente agradam boa parte de seu eleitorado, e cenas de positivo viés popular, Bolsonaro busca empurrar para segundo plano a inoperância mostrada até aqui pela equipe de transição que montou.

Pouco importa se ele sabe ou não preparar um bom churrasco. Se vai a um caixa de banco como um cidadão comum. O que o presidente eleito precisa é contar logo que modelo de reforma da Previdência pretende apresentar e quais as primeiras medidas que serão tomadas na economia daqui a menos de dois meses.

Fala-se muito do fim do Ministério do Trabalho. O problema nem é tanto esse. A palavra “ministério” não impediu que a pasta virasse um mercado de vendas de registros sindicais nos governos petistas e de Temer. A pergunta é o que Bolsonaro pretende fazer com temas ligados à área.

Tudo é obscuro. A superficialidade no trato de assuntos sérios pode ter sido estratégia eleitoral bem-sucedida. De um governo de transição exige-se transparência e informação.


Samuel Pessôa: Mercadores de ilusão

Oxalá Paulo Guedes, economista muito respeitado, não entre nessa categoria

Tudo o que um político deseja é que um técnico com credenciais acadêmicas tenha diagnóstico simples para problemas complexos.

Paulo Guedes, com a ênfase na privatização e, possivelmente, na redução das reservas internacionais como políticas para reduzir o endividamento público, pode se prestar a esse papel. O de mercador de ilusão.

Os políticos, felizes da vida, empurram os problemas para a próxima legislatura e para as próximas gerações. O país não sai do lugar.

Privatização e redução do nível de reservas podem ser políticas auxiliares importantes para reduzir o endividamento público e o custo da dívida, mas somente após haver caminho definido que solucione o problema fiscal.

É esse caminho que recuperará a confiança e o valor do patrimônio público.

Nos últimos anos, os economistas de “esquerda” têm sido pródigos em vender ilusões aos políticos. Um caso recorrente é a tese do “moto perpétuo” na política fiscal: a elevação do déficit público para financiar o aumento do investimento público gera impacto tão elevado sobre o crescimento e, portanto, sobre a arrecadação de impostos que, no fim do processo, a dívida pública como proporção do PIB cai.

No momento, o verdadeiro ornitorrinco representado pela coligação entre a extrema direita e a esquerda na Itália se prepara para testar essa tese.

Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI e pesquisador do Peterson Institute for International Economics, apontou, em recente post com colegas, que o impacto negativo sobre o crescimento da Itália da elevação dos juros de mercado, em consequência da maior percepção de risco pela piora fiscal, mais do que compensa possível efeito expansionista dos gastos sobre o crescimento.

Tese comum entre os economistas de “esquerda” é que impostos sobre ricos podem resolver o problema fiscal. A técnica é superestimar em muito —em até dez vezes mais— os ganhos de arrecadação com alguma modalidade de imposto sobre os ricos.

Os profissionais que fazem conta corretamente e, portanto, não inflam os números são tachados de “contrários aos pobres”.

No dia 3, Pochmann e Feldmann afirmaram que eu não gosto “do sentido de nossas (deles) propostas”, no caso um imposto de 50% sobre o lucro dos bancos que arrecadaria R$ 55 bilhões, pois o lucro do setor neste ano será de R$ 110 bilhões.

Tratei da importância de elevar a tributação sobre os mais ricos em minha coluna de novembro de 2015 na revista Conjuntura Econômica, bem como neste espaço em 8 de abril.

Novamente os mercadores de ilusão erraram as contas. O lucro dos bancos líquido de impostos foi em 2018 algo próximo de R$ 80 bilhões.

Os bancos já foram tributados em 45%. Descontando o abatimento do JCP, a alíquota foi de 36%, ou seja, para um lucro bruto (sem descontar os impostos) de R$ 125 bilhões, a arrecadação foi de R$ 45 bilhões.

Se a alíquota fosse de 50%, em vez de 45%, e se não houvesse a isenção do JCP, a arrecadação seria de R$ 63 bilhões, R$ 18 bilhões a mais, e não os R$ 55 bilhões propalado pelos mercadores de ilusão.

Essencialmente os mercadores de ilusão inflaram a receita de 2018, esqueceram que os lucros já são tributados em 45% e desconsideraram a importante isenção dada pelo juro sobre o capital próprio (JCP).

Oxalá Paulo Guedes, economista muito respeitado, formado em Chicago e com exitosa atuação no setor privado, não entre para a categoria dos mercadores de ilusão.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Jânio de Freitas: O governo é civil

Será crucial desvendar quanto os militares estarão dispostos a proteger Bolsonaro

O futuro das incertezas e dos temores com o governo Bolsonaro depende, a rigor, de um fator dominante sobre todos os demais. E ausente das cogitações atuais por ainda faltarem motivos que o tornem perceptível.

Em todas as possíveis circunstâncias que não sejam de aceitação majoritária com o andar de tal governo, os outros Poderes e a legislação dispõem de variadas medidas corretivas. Aplicá-las, porém, não decorre só de existirem.

As injunções políticas e os interesses representados no Legislativo e no Judiciário combinam-se como força decisória. Não, porém, no caso de Bolsonaro.

Se as coisas desandarem, o importante para antever o seu rumo será desvendar quanto os militares estarão dispostos a empenhar em barragem de proteção a Bolsonaro. O que dependerá da identificação, ou confusão, entre o Exército e o governo conduzido por ex-ocupantes das suas casernas.

O trabalho para criar essa identificação vem desde a campanha, à qual deu contribuição por certo significativa. Mas sua intensificação pós-resultado eleitoral ganha proporções mais do que inadequadas.

Fazer tocar o hino do Exército, por exemplo, no saguão do hotel onde ocorrem as reuniões do círculo de Bolsonaro é abusivo.

Até que se constate o contrário, se isso acontecer, o governo será poder civil. Mesmo os generais reformados que vão para ministérios administrativos estarão em cargos civis, sem diferença do advogado e do político em outro ministério.

E, com a forçada identificação, o que o Exército ganha não lhe convém, nem ao país: é o risco de ser identificado com possíveis insucessos de Bolsonaro e seu governo.

Além do mais, há uma contradição que inclui todos os modos de explorar a imagem do Exército utilizados agora e desde os primeiros passos de Bolsonaro na vida política. Se preza tanto o Exército, por que não agiu de modo a ser bem aceito nele? Citada várias vezes em dias recentes, a frase de Geisel é terminante: "Bolsonaro é um mau militar". Indesejado por desordem e insubordinação, foi induzido e conduzido à reforma.

A identificação é buscada, em parte está atingida, mas não é autêntica nem legítima.

O SITIADO
Os depoimentos de Emílio e Marcelo Odebrecht, pai e filho, no meio da semana, tiveram cara e coroa. Ambos disseram que antes das melhorias no sítio de Atibaia não houve doação alguma a Lula como pessoa. Desse modo, confirmavam aquela. Mas disseram também que foi "uma coisa pessoal", nada tendo, portanto, com retribuição a contratos na Petrobras.
Desse modo, derrubam a tese de Sérgio Moro.

O CRITÉRIO
O senador Blairo Maggi deu o sinal da péssima reação no agronegócio, extensiva a desdobramentos, à hostilidade de Bolsonaro a países árabes, com a mudança da embaixada brasileira em Israel para imitar Trump. Como meio de aplacar a reação, foi decidida a escolha às pressas, para o Ministério da Agricultura, de alguém ligado aos ruralistas.

Veio a ser a deputada Tereza Cristina. Com péssima repercussão dos críticos ao desmatamento, defensores dos povos e reservas indígenas, e dos preocupados com o uso disseminado de agrotóxinos na agricultura.


Bruno Boghossian: Cortina de fumaça

A cada choque, o presidente eleito ganha tempo para tapar os buracos de seu programa

Os desencontros entre o novo presidente e o velho Congresso funcionam como uma cortina de fumaça conveniente para JairBolsonaro. O impasse sobre a reforma da Previdência e a aprovação do reajuste para o Judiciário encobrem o fato de que, após meses de campanha e semanas depois da eleição, o futuro governo não apresentou os detalhes de seu plano para a economia.

A cada choque com o mundo político de Brasília, o presidente eleito ganha tempo para tapar os buracos de seu programa. Embora o ajuste das contas públicas seja considerado urgente, o gabinete de transição gasta mais tempo desmentindo a própria equipe do que expondo seus projetos prioritários.

Desde a vitória de Bolsonaro, sua equipe deu repetidas demonstrações de interesse em aprovar ainda este ano algumas mudanças no sistema de aposentadorias. O próximo governo pode ter ideias brilhantes para resolver o rombo da Previdência, mas não se empenhou por um único minuto em tirá-las do papel.

Os caciques da Câmara e do Senado não conhecem a reforma que o presidente eleito quer implantar —seja agora, seja a partir do ano que vem. Nem mesmo Bolsonaro tem certeza: na última semana, disse enxergar com “desconfiança” a proposta de seu time, que prevê um sistema de poupanças individuais para cada contribuinte.

O próximo governo também assistiu de longe à aprovação do aumento bilionário das remunerações do Judiciário. Antes da votação no Senado, o presidente eleito disse que não era o momento de aprovar a medida, mas não despachou nenhum articulador para impedir que a bomba fosse armada dentro do cofre que será repassado a seu governo.

Com a reforma da Previdência travada e a conta extra do salário dos juízes, Bolsonaro exercerá o direito de jogar a responsabilidade pela crise econômica sobre a antiga classe política. A partir de 1º de janeiro, a fumaça deve se dissipar. Empossado, o presidente será obrigado a mostrar suas cartas.


Folha de S. Paulo: Líderes mundiais celebram o centenário do fim da Primeira Guerra em Paris

Discurso do presidente francês alertou para os perigos do nacionalismo

No dia que marca os cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial, o presidente francês Emmanuel Macron recebeu mais de 70 líderes mundiais e monarcas para as comemorações em Paris.

Em seu discurso, o líder alertou para o ressurgimento do nacionalismo e defendeu o "legado de paz" deixado pelo fim do con

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel e estavam entre os convidados.

Aqueles que lutaram no conflito viveram em um "inferno inimaginável", afirmou Macron.

"O legado da Primeira Guerra Mundial não deve ser o ressentimento entre os povos e o passado não deve ser esquecido" disse o presidente francês diante de uma plateia que incluía ex-combatentes franceses.

A cerimônia faz parte de uma série de tributos em homenagem aos dez milhões de soldados que foram mortos durante os quatro anos do conflito, se se encerrou às 11h do dia 11 de novembro de 1918.

Na última semana, Macron fez várias visitas a cidades e antigos campos de batalha localizados no front ocidental. Nessas ocasiões, ele advertiu sobre os perigos da ressurgência do nacionalismo na Europa e afirmou que se tratava de uma ameaça ao continente —um tema que ele abordou novamente neste domingo.

"Patriotismo é o exato oposto de nacionalismo. Nacionalismo é traição", afirmou.​

"Velhos demônios estão despertando, prontos para semear caos e morte", disse o presidente, que fez um alerta sobre como religião, ideologias e desconsideração deliberada dos fatos podem ser explorados.

"A História às vezes ameaça repetir seus trágicos padrões e enfraquecer o legado de paz que nós achávamos ter selado com o sangue de nossos antepassados".

​No sábado, Macron e Merkel participaram de um encontro histórico em Compiègne, ao norte de Paris, no mesmo lugar onde, cem anos atrás, a Alemanha e as potências aliadas assinaram o armistício que encerrou o conflito.

Foi a primeira vez que os líderes máximos dos dois países visitam juntos o local que serviu de cenário também, duas décadas depois, para a capitulação da França ocupada diante da Alemanha nazista de Adolf Hitler.

Na tarde deste domingo, a capital francesa sediará o Fórum de Paz de Paris, cujo objetivo é promover uma abordagem multilateral a questões de segurança e, dessa forma, evitar os erros que levaram à eclosão da Primeira Guerra.

Trump, que tem promovido uma política externa nacionalista baseada no conceito "América primeiro", não comparecerá.

O presidente americano afirmou que também não se encontrará com Putin este final de semana. Há conversas bilaterais previstas entre os dois líderes na cúpula do G20 em Buenos Aires no fim de novembro.


Folha de S. Paulo: Mundo atual lembra o que emergiu da Primeira Guerra Mundial, diz historiador

Modris Eksteins afirma que falta "grau de alarme" à reação conservadora, mas crê que a crise é bem menos aguda

Por Igor Gielow, da Folha de S. Paulo

A obliteração da Europa na Primeira Guerra Mundial deu à luz o mundo moderno, e hoje vivemos um ambiente muito semelhante ao vivido naquela infância brutal dos anos 1920 e 1930: ressentidos e frustrados.

"O que falta é um grau de alarme", diz o historiador cultural Modris Eksteins, 74, sobre o risco da emergência de autoritarismos análogos ao fascismo no ambiente saturado da pós-verdade. Ele considera, contudo, pequena a chance de que isso ocorra.

Letão-canadense, Eksteins é autor de uma das mais inovadoras leituras da Grande Guerra, como o conflito cujo fim completa cem anos neste domingo (11) era conhecido até sua continuação anabolizada explodir em 1939.

Em "A Sagração da Primavera" (1989, fora de catálogo), ele situa o marco zero do moderno na cultura na estreia em Paris do balé homônimo de Igor Stravinski, em 1913. Um ano depois, uma geração inteira começaria a perecer em trincheiras em consonância estética com o modernismo.

Apesar da visão algo otimista sobre o que ocorrerá daqui para a frente, ele vê o trem da reação em marcha como nos anos 1920: daí a eleição de líderes como Donald Trump (EUA)Jair BolsonaroViktor Orbán(Hungria) e Rodrigo Duterte (Filipinas).

Nesta troca de emails, ele vê a arte atual como um ente sem vida, dissolvida no kitsch.

Citando o pintor holandês Vincent van Gogh e seu plagiador alemão Otto Wacker, cujo julgamento em 1932 Eksteins esmiuçou em outro livro sobre o pós-1918, "Dança Solar" (2012, não lançado no Brasil), ele diz: "Nosso mundo, com sua cultura de celebridades, é uma amálgama dos dois".

Em "A Sagração da Primavera", o senhor define a Primeira Guerra Mundial como o berço do mundo moderno. Quanto daquela centelha original pode ser reconhecida um século depois?
A verdade, nos dizem, foi substituída hoje pela verdade subjetiva. A crítica cultural Michiko Kakutani, que venceu um prêmio Pulitzer, inclusive fala num livro recente sobre a morte da verdade. Nada disso é novo de fato.

Um golfo sempre existiu entre os eventos e nossa habilidade de articular seu significado. Ainda assim, esse golfo se tornou intransponível na primeira metade do século 20, um processo acelerado pelas duas guerras mundiais.

Eventos, especialmente morte em massa e destruição da guerra total, afastaram nossa habilidade de representá-los. A linguagem falhou.

Se guerra e tecnologia foram as engrenagens da mudança no século passado, tecnologia hoje é o principal motor de uma inovação alucinante, cujas implicações são excitantes, mas também assustadoras. As consequências são potencialmente devastadoras.

Hoje, os ocidentais guerreiam à distância e assistem aos combates nos seus celulares. A arte como um meio de perceber o mundo parece ter sido sobrepujada por um tédio que se correlaciona com esse tipo de guerra sem heroísmo.
Todas as antigas normas foram erodidas. O que é arte? O que é guerra? Não há mais declarações formais, quem dirá definições, de nenhum dos dois. Tudo depende da percepção e do desejo do observador. Numa era da selfie, arte é o que eu digo que é. E meu inimigo é simplesmente "o outro".

A experiência das pessoas se sobrepõe à autoridade externa, sobre o "establishment" ou "o pântano", como Donald Trump insiste em chamá-lo. Como resultado, a imagem passada se fragmentou sucessivamente, e a realidade para muitos virou uma extensão narcísica do eu, uma forma de autoindulgência.

Como isso se conecta com a Primeira Guerra Mundial?
A Grande Guerra produziu uma estonteante erosão da autoridade tradicional. Como alguém poderia distinguir entre vitória ou derrota após talvez 10 milhões de mortos e 20 milhões de mutilados? Ninguém ganhou.

Palavras e todas as outras formas usuais de expressão perderam sentido, assim como velhos políticos, generais e pregadores. "Palavras escapam, deslizam, perecem, decaem", escreveu o poeta T. S. Eliot.

Fascismo, um fenômeno novo, um "movimento do povo" como Hitler chamava seu partido, foi o produto dessa crise. A guerra havia sido liderada por generais; Hitler foi um cabo.

A Grande Guerra democratizou a dúvida e empoderou o ressentimento. "Minha Luta", como a polêmica egomaníaca de Hitler foi intitulada, se transformou na estrela-guia.

Os enormes avanços tecnológicos desde então deram seguimento a essa tendência. A mídia eletrônica é o principal instrumento na transmissão de emoções pessoais, assim como a manipulação delas.

Se a informação é disponível para todos, nós também sofremos pela saturação e uma correspondente desconfiança das fontes. Nós estamos no comando do jogo.

No meio do tsunami informativo, incompreensão e confusão, em vez de iluminação, são frequentemente o resultado. Assim como o tédio e a ignorância, esses parentes de sangue da incompreensão.

Em "Solar Dance", o senhor diz que a República de Weimar era "uma instalação" que deu à luz tanto Hitler quanto [o arquiteto] Walter Gropius. É possível encontrar algum lugar ou movimento hoje com tais características?
No passado, numa era de impérios, todos os olhos estavam em Paris, depois em Londres e, então, em Nova York. No nosso mundo de fragmentos, com "notícias" e pizza sendo entregues 24 horas por dia, tal foco não é mais possível.

Uma hora é Riad, na próxima o Rio, e daí talvez Reykjavik, quando outro vulcão, literal ou figurativamente, entra em erupção.

Àquela altura, toda corporação proeminente tinha arte moderna em suas paredes; o Übermensch de Friedrich Nietzsche virou o Superman; as grades de Mondrian seriam logo apropriadas pelo Pac-Man. O modernismo foi domesticado. A euforia se foi.

Já o impulso moderno, com sua ética da provocação, obviamente ainda está entre nós. A única forma de conseguir atenção é com um slogan ou uma manchete chamativas. Mas no âmbito cultural, a maioria das tentativas para chocar deliberadamente agora inspiram bocejos.

Cansados do sistema político, os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro. Temos Rodrigo Duterte, Viktor Orbán, Matteo Salviniesposando diversos graus de cultura da morte e de kitsch. Cada país tem sua característica, mas há uma tendência mundial? Como ela se relaciona com 1918?
Há, sem dúvida, uma onda populista, alimentada por confusão, raiva e ressentimento em todo canto. A caravana da lei e da ordem está em marcha mundialmente, tentando retardar a mudança e domar a ebulição.

Há algumas semelhanças distintas com os anos 1920 e 1930. O que está faltando até aqui, contudo, é algum grau de alarme.

Creio que profunda frustração e desapontamento são os denominadores comuns unindo a polarização política e social de hoje com o mundo pós-1918.

O estranho agora é visto como um perigo. Ao mesmo tempo, a contínua secularização provocou extremismo religioso na forma de fundamentalismo e de farisaísmo moral. Resumindo, a cola social oriunda das instituições estabelecidas, da escola, da igreja, desmoronou.

Por outro lado, minha sensação é de que essa crise mundial de hoje não é nem um pouco próxima ou aguda como era nos anos 1920.


Modris Eksteins, 74
Historiador pela Universidade de Toronto, mestre por Heildelberg, doutor por Oxford; é professor emérito em Toronto. Escreveu "A Sagração da Primavera" (1989), "Caminhando desde a Aurora" (1999) e "Dança Solar" (2012)