Folha de S. Paulo
Ruy Fausto: Única coisa rigorosa no discurso de Olavo são os palavrões
Autor questiona ideias do guru de Jair Bolsonaro e sua aplicação em propostas e ações do presidente eleito e sua equipe
As boas almas acham que tudo vai se normalizando no Brasil depois da eleição de Jair Bolsonaro. A ordem é pacificar, reduzir as diferenças ou fazer oposição... Construtiva. Afinal, seria preciso manter a cabeça fria. E se as coisas não se passassem exatamente assim?
Bolsonaro não era um candidato igual aos outros, aos que se apresentaram nas eleições de outubro ou em eleições anteriores, nem aos presidentes que se elegeram anteriormente. Exagero? “Complotismo”? Infelizmente, acho que não.
O vencedor do pleito de 28 de outubro não oculta o seu projeto, mesmo se afirma respeitar a Constituição, o que pode ser lido de muitas maneiras. Ele diz quais são as suas convicções e, com os seus partidários, da cúpula ou da base, age. Deixa claro que quer “desmontar o sistema”. E, em setores fundamentais, não deixa dúvida sobre o que isso significa.
As universidades e as escolas devem ser submetidas pela proposta da chamada Escola sem Partido. Houve também o episódio da intervenção nas universidades, que o STF pôs em xeque. Os jornais, já sabemos, devem se comportar bem, se quiserem ter “subsídios”.
Nada de publicar notícias sobre uma funcionária do presidente eleito que é surpreendida pela reportagem muito longe do seu trabalho. E nada de notícias sobre o uso abusivo de uma mídia eletrônica pelo candidato e pelo seu partido, na realidade, a ponta emersa de um iceberg. Nada de escrever coisas incômodas ao presidente. Ou então: nenhuma publicidade oficial e entrada barrada às entrevistas coletivas do novo presidente.
O Judiciário? Uma parte está com ele. A manifestação de cem procuradores e promotores em favor da famigerada Escola sem Partido é um sintoma da maior gravidade. Parte do Judiciário assume com entusiasmo um projeto liberticida.
Há também o projeto de revogar a chamada “PEC da bengala”, o que permitiria a Bolsonaro nomear quatro ministros do Supremo... Uma deputada eleita diz que isso é necessário, já que por razões “ideológicas” (sic!) o STF tende a barrar as brilhantes iniciativas do presidente (Escola sem Partido, excludente de culpabilidade etc.).
A parte do Judiciário que não estiver com o novo poder, cuidado: o filho deputado, o “menino”, não deixou por menos. Não é necessário um jipe nem um sargento para fechar o STF. Militares a pé, dos dois graus inferiores da hierarquia (com o perdão deles), poderão fazer o serviço.
E a Câmara? Não sabemos. Claro que a maioria dos deputados e senadores não é flor de muito bom cheiro. Mas as duas instituições, estas, há que preservá-las. O futuro ministro da Economia quer “prensar” uma delas, e parece que o verbo “tratorar” andou também circulando.
O Congresso aprova aumento dos subsídios dos membros do Judiciário, contrariando a vontade do novo presidente? Organiza-se um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas. Claro que somos contra esse aumento. Mas que uso fará o novo poder desse abaixo-assinado? Serviria de arma para uma batalha contra um Congresso demasiado indócil para o gosto do presidente?
Eduardo Bolsonaro, deputado eleito por São Paulo, aquele mesmo do “soldado mais o cabo”, recidiva com nova entrevista. Dois pontos-chave: se precisar prender 100 mil, diz ele, a propósito da projetada criminalização dos movimentos sociais, prenderemos... Mais claro ainda: seu projeto é o de “proibir” o comunismo, como na Ucrânia, na Polônia e na Indonésia (!). O que significaria, está dito quase com todas as letras na entrevista, pôr fora da lei o PT, o PC do B, e o PSOL. Nada menos...
A verdade é que não só podemos dizer que há um perigo real de que evoluamos para uma forma atípica de ditadura. Sem exagero, acho que o processo que nos levaria por esse caminho já está em andamento.
Para entender quem é Bolsonaro, vale a pena se debruçar sobre sua relação estreita com Olavo de Carvalho. Olavo de Carvalho é um misto de mau filósofo, de iluminado e de ativista, um militante da mídia que é seguido por centenas de milhares de adeptos.
Católico fundamentalista, ele andou falando bem de certos regimes, como o de Viktor Orbán, na Hungria. Nesse país, as “instituições” foram em geral conservadas. Vota-se, há câmaras legislativas e tribunais superiores e ordinários. Entretanto, é muito difícil dizer que a Hungria seja hoje uma democracia.
Orbán assegurou uma maioria confortável no tribunal superior, por meio de nomeações devidamente controladas. Pôs a mão nas escolas e nas universidades. Graças ao controle dos jornais e de algumas medidas na organização das eleições, ele garante um domínio estável sobre o país e impõe práticas restritivas em matéria de costumes. A alternância se tornou quase impossível.
Se há risco de que esse modelo venha a ser implantado do Brasil, é preciso reunir forças, discutir o mais possível, e, “not least”, não se esquecer de desmontar o discurso do adversário. Esse trabalho é da maior importância.
É com essa perspectiva, que dedicarei o que segue a Olavo de Carvalho, em especial à entrevista que o mentor e ideólogo de Jair Bolsonaro deu, duas semanas atrás, à revista Carta Capital.
Vou passar por cima de tudo o que a sua fala tem de simples besteirol ou de puro sofisma: a escola de Frankfurt pregaria a guerra culturalatravés da propaganda do incesto e, por isso, Fernando Haddad, adepto da Escola de Frankfurt defenderia o incesto; a reza de Magno Malta por ocasião do discurso da vitória de Bolsonaro não mereceria crítica porque, afinal, é uma reza e não um ato pornográfico (ele não discute o essencial: a ocasião da reza). Há, ainda, o procedimento que consiste em reduzir relações muito diversificadas, que existem —ou não existem— entre certos elementos, a predicações idênticas ou a identidades, do tipo: candidato do PT remete a PT, PT remete a Foro de São Paulo, Foro de São Paulo remete a Farc, Farc remete a droga, candidato do PT remete a droga... Etc.
(Ver o discurso do futuro chanceler Ernesto Araújo. A postagem do diplomata em seu blog Metapolítica 17 é uma joia: “Haddad é o poste de Lula. Lula é o poste de Maduro, atual gestor do projeto bolivariano. Maduro é o poste de Chávez. Chávez era o poste do socialismo do século 21 de [Ernesto] Laclau. Laclau e todo o marxismo disfarçado de pós-marxismo é o poste do maoismo. O maoismo é o poste do inferno”.
O ministro diz apreciar divisas como “Deus, Família e Pátria”. A dos integralistas brasileiros —versão nacional do fascismo— era “Deus, Pátria e Família”. Já o programa do futuro ministro da Educação, como dá a entender Antonio Prata em coluna na Folha, é mais propriamente o programa de um ministro da Propaganda).
A Escola de Frankfurt visaria o domínio cultural? Falso —devemos responder—, isso seria aproximar “a revolução contra o Capital” de Gramsci, do discurso de Adorno, cético quanto à práxis (naquela conjuntura, pelo menos) e impregnado da dialética do Capital.
As metonímias sofísticas: uma referência menor de um autor ou de uma “escola” (Horkheimer falou uma vez do incesto, e falou sem pregar o incesto, “nota bene”) se transforma em bandeira da “escola” ou do autor. Olavo de Carvalho é antes de tudo um mitômano, e o seu discurso é um tecido de disparates, uma enxurrada de embustes.
Olavo tempera os seus argumentos com dois molhos essenciais: abraços e palavrões —a baixaria mais chula por um lado e, por outro, sorrisos, tapinhas nas costas, conselhos e confissões, em tom de colóquio entre amigos. Esses ingredientes estão presentes em toda fala de Olavo.
Já me ocupei do Olavo filósofo (em “Caminhos da Esquerda”, Companhia das Letras, 2017, pp 47-53). O que o personagem diz sobre Epicuro é besteira, o que escreve sobre Hegel é banalíssimo e ainda por cima errado, o que diz sobre Marx é superficial e também não bate, o que escreve sobre Adorno é falso...
Na realidade, a única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões. Os palavrões cumprem por si sós duas funções: violência e familiaridade. Em vez de se pavonear com pitorescos filósofos de extrema direita da Europa central, Olavo deveria bater à porta de alguma universidade séria da Europa ocidental ou dos EUA.
Vejamos o que ele dizia sobre a Escola sem Partido. O entrevistador pergunta se convidar os alunos a filmar os professores para ver se eles propagam ou não “ideias subversivas” não representaria uma forma de censura à livre manifestação. Como faz com frequência, Olavo começa com um jogo de inversão, respondendo à pergunta mais ou menos do seguinte modo.
Censura? Quem censura não são aqueles que convidam os alunos a filmarem, mas são os professores que se recusam a ser filmados. Afinal, o ensino é uma atividade pública. Todos têm o direito de saber o que se passa na sala de aula. Por que os professores se recusam, por que não querem que todos tenham acesso ao conteúdo das suas aulas? Isso, sim, é censura. E se se empenham tanto na recusa é por uma das três razões seguintes. A comunicação pública de suas aulas revelaria: 1) que eles são comunistas; ou 2) que eles são incompetentes ; ou 3) que eles são pedófilos (sic, fim da referência).
Para responder de maneira convincente e rigorosa a essa argumentação sofística, é preciso começar pelas raízes. O ponto de partida é a sociedade brasileira e sua característica principal: uma sociedade que está no ranking das dez mais desiguais do mundo.
Em sociedades desse tipo, como naquelas em que se tem alternativa ou cumuladamente um poder brutalmente opressivo (por exemplo a russa do início do século 20), a intelligentsia (isto é, a intelectualidade preocupada com as injustiças que reinam no seu país) assume uma atitude crítica para com esse estado de coisas.
Quando se trata de professores, o que ocorre? Pode ser que algum imprudente faça proselitismo, mas isso parece ser raro. O que ocorre é que, ao falar do país, numa aula de história, geografia ou economia, ele deixa transparecer que se situa mais entre os críticos do que entre os que dizem sim ao statu quo.
Isso significa tomar partido? Essa atitude se configura como proselitismo partidário? Nada disso. Os professores reagem como seres humanos e cidadãos do país, como seres dotados de inteligência, de informação e de generosidade.
Ora, é essa situação que os partidários da chamada Escola sem Partido não toleram. Eles querem obrigar os professores a ocultar seus sentimentos, o que é na realidade impossível e teria o efeito de prejudicar o nível do ensino.
É evidente que, se não houver um mínimo de investimento emocional com verniz valorativo, o ensino de disciplinas como a história se torna impossível. Observemos o essencial: essa situação não configura de forma alguma uma “escola com partido”. Nem a recusa do controle indica uma atitude qualquer de censura por parte dos professores, como pretendeu Olavo.
Ela remete simplesmente à liberdade elementar de exercer o seu trabalho, no caso de professor, expondo o conteúdo da sua “matéria”, com o investimento normal afetivo-valorativo que essa atividade exige. Assim, do lado do professor (fora os casos aparentemente raros de proselitismo, usados no entanto como se fossem a regra), não há nem “escola com partido” nem “censura”.
E do outro lado? O que significa o convite a registrar a fala e a imagem do mestre cada vez que o aluno supuser que aquele toma posição política ou partidária? Considero sempre a situação dominante, que é aquela em que o professor, se não assume bandeiras, não se dispõe, entretanto, a inibir completamente suas simpatias pessoais —que, na maioria dos casos, vão na direção das causas progressistas.
Assim, a cada vez que o aluno se convencesse de que o professor não estivesse sendo “neutro”, ele se poria a filmá-lo e, de volta para casa, encaminharia tudo para o pai. Este remeteria o vídeo às autoridades competentes —diretor da escola, polícia ou Ministério Público.
Desse lado, haveria censura, ou anticensura, como quer Olavo? Claro que existe censura. No sentido de que quando o pai do aluno instrui o seu filho a filmar o professor (a narrativa começa por aí) e este procede à filmagem no momento em que lhe parece conveniente, não se está defendendo um direito elementar, como no outro caso.
Trata-se de reprimir o que representa, no caso geral, um verniz de expressão das convicções de quem ensina. Essa repressão não é, por isso, reivindicação de liberdade, mas ato de censura. Também não se diga que, sendo o ensino uma atividade de interesse público, é normal que todas as aulas sejam acessíveis ao público. Há acessibilidade e acessibilidade.
Em muitas circunstâncias as aulas são públicas. Mas a publicidade se faz com vistas ao interesse teórico das aulas e à transmissão do saber. Isso é completamente diferente da gravação que visa o controle policial do professor.
Porém imaginemos que este tenha de fato ultrapassado os limites. Estou convencido de que isso não ocorre com frequência e que tampouco esse seja o maior problema da educação brasileira. Mas, se ocorrer, o mal que poderia haver nisso é certamente muito menor do que aquele que se produz ao introduzir um dispositivo repressivo que ninguém controla, nem o pai nem o filho.
Desencadeia-se uma caça às bruxas que leva ao pior: no limite, ao fascismo. Os professores ficam com medo de dar aulas (o que já está acontecendo), temem a presença dos alunos, o que afeta não o professor partidário, mas o comum dos mestres, que não é sectário e, na maioria dos casos, é sério e responsável.
Hoje já não se dá aula no Brasil sem um estresse terrível, derivado da ideia de que um aluno poderia denunciar o professor porque este lhe pareceu animado demais ao falar, por exemplo, da queda do czarismo ou da revolução de 1848.
A atitude da dupla pai de aluno/aluno, que o pessoal da “nova ordem” quer impor ao país, é assim repressiva, uma atitude de censura, não de contracensura.
Desse modo, não só não se pode inverter os sinais como pretende Olavo de Carvalho (a censura seria, na realidade, reivindicação de liberdade, e vice-versa) mas também não teríamos nem mesmo uma espécie de “empate”, como se as duas causas tivessem a mesma legitimidade.
Na realidade, não existe simetria no caso, e o julgamento que se impõe intuitivamente é, de fato, o mais rigoroso. A disposição de filmar o professor para registrar eventuais transgressões à neutralidade é alimentada por um impulso político, o de dizer amém ao statu quo —impulso que pode e deve ser chamado de partidário, no sentido de que, mesmo se ele não vier de um único partido (e no caso talvez venha), brota de uma filosofia política bem definida, a que visa conservar a situação presente com as suas violências e injustiças. O que significa: a suposta Escola sem Partido é, na realidade, escola com partido.
Mas, se dizemos que há partido aí, não deveríamos dizer que também há partido no lado de lá? Não: se não há simetria quanto a “censura”, também não há quanto a “partido”. A não simetria se conserva quando passamos de um termo ao outro. É que a democracia, que inclui o direito de ser fiel às suas ideias (desde que não se trate de ideias liberticidas), não é propriamente simétrica a um projeto antidemocrático. A democracia é a regra definida pela Constituição. A ruptura da democracia é a transgressão dos institutos da Constituição.
Olavo, no entanto, continua, enveredando por um caminho insólito (que vai ser o que ele seguirá, em declaração posterior, em que se reafirma partidário da Escola sem Partido quanto ao conteúdo, mas adversário dela na denominação e na tática). Ele diz que não pede neutralidade absoluta. Isso não existe; todas as pessoas tomam posição (fim da referência).
Há aí uma virada, que na sua essência —se nesse registro a essência fosse o decisivo— seria considerável. De fato, o interessante nessa suíte é que, levada a sério, ela poderia servir como ponto de partida para desconstruir a fala inicial, e foi este novo argumento que serviu como ponto de partida para a minha contra-argumentação.
De fato, o reconhecimento de que não há neutralidade absoluta corrói (ou começa a corroer) o dispositivo de justificação da censura, porque abre os olhos para a possibilidade e a realidade de um envolvimento discreto com valores, que é aliás a regra em aula sem proselitismo.
Assim, Olavo como que introduz pelo menos parte do argumento do adversário, o que em princípio invalidaria o que ele disse no início. Só que Olavo o faz de tal maneira que se tem a impressão de que essa continuação não desmente o início, mas o confirma. Esse efeito se obtém simplesmente pela continuidade do seu discurso e pelo silêncio em torno da virada que nele se opera.
Porém o prestidigitador segue, e a argumentação se completa —cereja no bolo— por uma afirmação que desarma o interlocutor. Depois de dizer que não quer neutralidade absoluta, porque ela não existe, ele acrescenta que não deseja censurar ninguém, pelo contrário, que ele quer que todas as opiniões se manifestem, quer o pluralismo. Nas condições atuais —ele explica—, quem pensa diferente não pode se manifestar (fim da referência).
Nesse momento, o interlocutor vencido dirá aliviado, como num filme de Eisenstein com letreiros em inglês: “What a democrat!”. Ele quer o pluralismo, nada melhor, é isso mesmo que todos queremos, e os que dizem que ele é autocrata se enganam redondamente.
Só que... Essa cereja no bolo contradiz de novo a fala inicial (a censura aos professores impede o pluralismo), mesmo se ela é apresentada, ainda uma vez, como se não a desmentisse, mas a confirmasse. Ele não dá um pio sobre a dificuldade que existe aí: censura a professores contradiz a liberdade plural.
O pretenso direito de filmar as aulas não terá certamente o suposto efeito democrático. Os que procederem às filmagens, como os que as ordenaram, continuarão visando denunciar os professores por proselitismo. Eles não adotarão a filosofia da transparência nem acreditarão nisso. E Olavo sabe disso.
De resto, ele próprio não acredita nessa fábula que o faria passar por defensor de uma escola à sueca ou à finlandesa. Quanto à ideia de que ninguém pode abrir a boca numa discussão em aula, isso é falso —mesmo que seja verdade que é sempre mais fácil falar quando a maioria concorda consigo do que quando a maioria discorda. Enquanto Olavo finge que tira o corpo, para desarmar a crítica, a lei famigerada segue o seu curso. Ele sabe disso e vai falando.
O repórter pergunta a Olavo se se justifica o elogio que Bolsonaro fez do torturador Ustra. Olavo responde que Bolsonaro não defendeu a tortura, apenas disse que Ustra não era torturador. Isto é duvidoso, já que, na famosa votação do pedido de impeachment, Bolsonaro prestou homenagem a Ustra, referindo-se a ele como “o pavor de Dilma Rousseff”. O pavor de Dilma Rousseff? Mas se é pelo menos incerto que a recusa em imputar a prática da tortura a Ustra (ou a dúvida sobre essa imputação) tenha sido a justificação fornecida por Bolsonaro para elogiar o coronel, este é certamente o argumento de Olavo para justificar Bolsonaro.
Tentemos desenredar esse imbróglio. De que Ustra tenha sido torturador, não parece haver dúvida. Torturador e/ou chefe “omisso” diante da tortura (que, em matéria de violência, a responsabilidade direta e a indireta não são tão diferentes, foi afirmado pelo próprio Olavo ao discutir com um ex-guerrilheiro). O que não o impede de tentar eximir Ustra, insistindo no fato de que este foi condenado pelo STF só por omissão.
As vítimas que sobreviveram contam como foi essa “omissão”. Ustra pôs, sim, a mão na massa e até mandou virem os filhos das vítimas para assistir ao espetáculo. Não há razão para duvidar desse tipo de testemunhas. Assim, não há problema a esse respeito, e, como vimos, o próprio Bolsonaro, prudente, parece evitar um desmentido direto da imputação.
A verdadeira questão é: pode-se elogiar um torturador? A qual nos leva à pergunta fundante ou fundamental: a tortura é admissível? Vê-se o sentido do passe de mágica de Olavo de Carvalho. Ao ser inquirido sobre o seu juízo a respeito do pronunciamento de Bolsonaro, ele substitui as perguntas pertinentes por uma pergunta que não tem interesse, porque a resposta é conhecida.
Pois Olavo se arranja para dizer que seria essa pergunta desinteressante a que estaria na base da declaração de Bolsonaro. Pergunta a que este responderia afirmando que Ustra era inocente. De defensor de um torturador, Bolsonaro passa, assim, a desempenhar o papel de advogado de um inocente.
Como isso foi possível (refazendo ainda uma vez o caminho)? Pela sub-repção das respostas pertinentes (é legítimo defender a tortura e os torturadores, ou então, é ilegítimo defender a tortura e os torturadores), através do método da substituição da pergunta.
Uma vez posta a nova pergunta (Ustra torturou ou não torturou?), basta optar pela resposta que tem mais cara de generosa e respeitadora de direitos. Presunção de inocência, ou “in dubio pro reo”, o bom Bolsonaro teria declarado que não é verdade que Ustra torturou, defendendo assim um presumido inocente. Conclui-se que, longe de ser o ogro que se supõe —valha a velha sofística!—, Bolsonaro defende na realidade as boas causas e até os direitos do homem, Q.E.D.
Olavo acha que houve tortura no Brasil, mas “pouca”. A ditadura militar não teria matado quase ninguém, e eu acrescentaria, nem —a frio— um bom número de prisioneiros de guerrilhas (nenhuma ética civil ou militar justifica, em quaisquer circunstâncias, a liquidação a frio de prisioneiros)? Quanto à exigência de que se exibissem “olhos furados”, “ossos partidos”, todo mundo sabe que os torturadores faziam questão de deixar um mínimo de marcas.
Na entrevista a Carta Capital, como também em seus livros, Olavo de Carvalho se declara adversário do fascismo. As pessoas não sabem o que é fascismo, diz.
(A propósito: a tese de Olavo de que Hitler é de esquerda é pura charlatanice. Certo, o partido de Hitler, ou antes, aquele ao qual ele aderiu, se chamava Nacional Socialista, mas Hitler apreciava a hierarquia, detestava a igualdade, era inimigo mortal da Revolução Francesa e de toda a tradição socialista etc).
Olavo acrescenta: eu até discuti com um fascista, o ideólogo fascista russo Aleksandr Dugin, amigo de Putin. Imaginem. Eu, que discuti com Dugin, sou chamado de fascista (fim da referência).
Afinal, quem é Olavo, em termos políticos? Dados os limites de espaço, vou utilizar referências suficientes. Já falei da sua simpatia pelo regime de Viktor Orbán, na Hungria, e sobre o que representa esse regime. Um outro elemento essencial, um dado tão imediato que até o perdemos de vista, é o fato de que ele apoiou e apoia Bolsonaro.
A declaração desse apoio pode ser encontrada no vídeo “Bolsonaro não é o verdadeiro candidato”. Nele, Olavo conta a história dos seus livros e termina declarando apoio ao capitão. Este não seria nem de direita nem de esquerda, já que é o único candidato que “não tem ideologia”, tem apenas opiniões (impostura evidente: o evangelho ideológico de extrema direita que o candidato pratica e prega é ideologia, sim, e muito mais perigosa do que qualquer grande ideologia, o liberalismo ou o socialismo democrático).
Bolsonaro teria o mérito de ir contra todos os partidos (engano: apesar das aparências, isto não é mérito. Bolsonaro não está além dos partidos, está aquém deles; ele combate aquilo que, apesar de tudo, eles têm de positivo —o respeito à ordem democrática).
Além do que, ele escaparia da dominação esquerdista (mitologia pesada: os partidos de esquerda não são de forma alguma dominantes e, bem ou mal, são os que defendem um mínimo de justiça social, coisa que o ideólogo detesta).
Ao recomendar Bolsonaro, bom candidato, Olavo diz, entretanto, que preferia o caminho da formação de comitês de bairro (!). Vê-se que o filosofastro-ativista sonha com uma política de massa... Mas no meio dessa peça lírica, em que se alternam considerações teóricas ou pseudoteóricas com histórias pessoais da família ou de seus amigos, emerge o segredo.
Ao falar do que precisa ser feito no Brasil, diz inocentemente: é preciso pôr na ilegalidade o PT (e, acrescentemos, também o PSOL e o PC do B, é claro), porque é um partido ligado a um centro internacional. Nada menos do que isso (conforme a fala do filho de Bolsonaro). A quantos eleitores Olavo quer negar o voto, 50 milhões?
A justificativa é de que o PT depende de um centro que seria o Foro de São Paulo. Tolice. A internacional comunista morreu há muito tempo. O tal Foro de São Paulo teve uma importância muito relativa. Não foi nenhum verdadeiro centro e hoje deve vegetar. Atualmente, o PSL talvez tenha mais contatos internacionais do que qualquer dos partidos de esquerda.
Se Bolsonaro e os seus querem tirar da legalidade os partidos da esquerda, não é por temor ao “comunismo”. O “comunismo”, a rigor, não existe mais. Na sua forma autêntica, a do marxismo ortodoxo, nunca existiu; na sua caricatura stalinista restam, é verdade, governos como os de Cuba, Coreia do Norte ou Venezuela, respectivamente um Estado burocrático opressivo, um totalitarismo sangrento e um populismo corrupto que não hesita em abrir fogo contra manifestantes.
É contra eles que vai a campanha de Olavo contra o comunismo? Também (os inimigos de nossos inimigos não são nossos amigos), mas de modo acessório. O que ele chama de “comunistas” são sobretudo as diversas tendências da esquerda democrática no mundo (social-democracia, esquerdas trabalhistas, esquerda cristã etc.). E são estas que ele de fato combate.
O projeto político de pôr na ilegalidade todos os partidos de esquerda caracterizaria que tipo de política? Fascista? Mas Olavo não se declara inimigo dos fascistas?
Houve até aqui duas ondas autocráticas de direita, a da primeira metade do século 20 e a das primeiras décadas do século 21. Nas duas levas, temos uma variedade de casos, desde exemplares muito virulentos a formações menos brutais.
Na primeira onda, estas últimas foram dominantes, e uma delas levou a um genocídio de proporções gigantescas. Mas o nazismo foi contemporâneo de governos menos radicais, como o autocratismo português e mesmo o franquismo, passada a guerra civil.
Na segunda leva, há também uma variedade de modelos, porém não domina até aqui a forma genocida —das variedades modernas, a mais homicida é o governo de Duterte, nas Filipinas. O modelo que hoje parece dominante é o de Orbán na Hungria, que vai se impondo na Polônia (uma das referências de Eduardo Bolsonaro), na República Tcheca e na Eslováquia.
Como denominar essa nova onda, e em particular como chamar a figura que corresponderia eventualmente ao caso brasileiro? Para a forma típica do regime de Orbán e de outros análogos, há o neologismo “democratura”, que é interessante e talvez convenha para designar igualmente a nova onda em geral, do mesmo modo que “fascista” nomeava um caso particular mas também, com frequência, o conjunto da primeira leva.
Mas continuemos: Olavo diz que não é fascista e que até já discutiu com fascistas. Será que esse fato se ajusta à minha leitura? Ou eu estaria forçando a barra? Pois tome-se o modelo: Viktor Orbán. O regime de Orbán e do seu partido, o Fidesz, tem como adversário um outro partido, pequeno e mais ou menos neutralizado pelo Fidesz, porém existente.
Esse partido é o Jobbik. Apesar de uma tentativa de “desdemonização“ recente, esse partido é notoriamente racista e antissemita; ele tem a sua própria “guarda”, com um núcleo “viril”, é acusado de violências e de homicídios contra a população cigana e simpatiza com Dugin. Assim, Orbán é, à sua maneira, adversário dos fascistas. Estes encarnam demasiado —mais do que seria “necessário” hoje— a primeira onda e, por isso mesmo, na segunda, só podem ser marginais.
É com legitimidade idêntica à de Orbán que Olavo pode se declarar antifascista ou antinazista. É a oposição entre a forma moderna e a forma antiga do autocratismo. Os neofascistas contra os fascistas. Contudo, não é preciso ser nazista nem fascista à antiga para dar o apito inicial para muitos horrores (ver Duterte, nas Filipinas).
Dirão talvez que exagero: não é certo que a ameaça se efetive. De fato não é certo que ela se efetive por inteiro. Entretanto, é certo e provado que o projeto político de Bolsonaro e de seu mestre Olavo vai no sentido indicado, que não é o da democracia; e que o projeto já está sendo implementado.
Em resumo, não se deve dar ouvidos aos “cientistas políticos” que nos garantem que as “instituições brasileiras” são “sólidas”. Hoje, menos do que destruir as instituições, os inimigos da democracia as ocupam e as cristalizam em seu proveito.
Entretanto, ainda é possível evitar que a tragédia se consume. Não há outro caminho senão o de denunciar o verdadeiro caráter do poder que vai se instalando no Brasil e o de tentar pôr em xeque, no limite das nossas forças, suas jogadas. Para os próximos dias e as próximas semanas, a urgência absoluta é dar parada ao seu primeiro lance, a —ó, quão funesta— lei da Escola sem Partido.
(Com agradecimentos a meu amigo Arthur Hussne Bernardo, uma das primeiras pessoas a se dar conta, no Brasil, dos laços estreitos que unem Bolsonaro e Olavo. Este ensaio tem dívidas para com um artigo de Arthur, “O Bolsonarismo É um Olavismo”, que sairá em breve).
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Ruy Fausto é professor emérito do Departamento de Filosofia da USP e autor de “Caminhos da Esquerda” (Companhia das Letras).
Vinicius Torres Freire: O dinheiro que não existia sumiu
Estados e até Bolsonaro podem ficar sem recursos de megaleilão de petróleo em 2019
O futuro governo de Jair Bolsonaro pretendia entregar a estados e municípios parte de um dinheiro que talvez arrecade no ano que vem. Esse repasse viria de uma venda de direitos de exploração do petróleo do pré-sal. Nos sonhos de governadores e prefeitos, seriam mais de R$ 20 bilhões.
Em troca, economistas de Bolsonaro queriam apoio de governadores à reforma da Previdência e até compromissos de controle de gastos (ilusões). Deu chabu. Esse dinheiro que ainda não existia evaporava na tarde desta quarta-feira (28).
Mesmo se voltar a chover na horta de estados e cidades, não viriam tantos bilhões do petróleo. De resto, essa ajuda encrenca o governo federal. Repasse extra para estados e municípios é despesa, sujeita ao teto de gastos. Se repassa o dinheiro, o governo tem de cortar mais em outra área (reduzir o investimento em obras a quase nada).
No Senado, dizia-se que o governo poderia arrecadar até R$ 130 bilhões com esse leilão especial de petróleo. Na equipe bolsonarista, a projeção chegava a R$ 100 bilhões. Na estimativa mais pessimista do governo de Michel Temer, a R$ 60 bilhões.
Além das estimativas disparatadas, há mais problema. Parte desse dinheiro seria usada para pagar um acerto de contas do governo com a Petrobras. Quanto? O pessoal do governo Temer não pode revelar o valor. Há chutes em torno de R$ 20 bilhões.
Pelo acordo entre Senado e o pessoal de Bolsonaro, estados e cidades ficariam com 20% do dinheiro desse leilão de petróleo. Na pior das hipóteses dos chutes listados acima, o repasse federal ficaria então perto de uns R$ 8 bilhões.
Há mais problema.
Em 2010, o governo Lula vendeu à Petrobras o direito de explorar até 5 bilhões de barris de petróleo em áreas do pré-sal (isso teve o nome horrendo de "cessão onerosa"). Como não se sabia de fato quanto petróleo haveria ali, entre outras indefinições, esse contrato seria revisto assim que houvesse informação melhor (para piorar, o contrato da "cessão" tinha buracos).
Deve haver pelo menos mais 6 bilhões de barris naquela área do pré-sal, sabe-se agora. O governo pode leiloar o direito de explorar esse petróleo ("excedentes da cessão onerosa"). É dessa venda que se trata aqui.
A Petrobras acha que tem dinheiro a receber nessa revisão de contrato (teria pago caro demais etc.). União e Petrobras não chegaram a um acordo; o pessoal de Temer teme ser legalmente frito se assinar um contrato que leve o governo a pagar o que a Petrobras quer.
Para haver segurança, as bases de um acordo foram enfiadas em um projeto de lei, o qual permitiria à Petrobras vender áreas que levou na "cessão onerosa" (isso faz parte do programa de abatimento de dívida da petroleira).
Esse projeto estava para ser votado no Senado, que quer uma contrapartida, com apoio do pessoal de Bolsonaro: Temer teria de baixar medida provisória dando parte do dinheiro desse leilão de "excedentes da cessão onerosa" a estados e municípios. Não rolou.
A equipe econômica de Temer se opõe ao repasse a estados e municípios, que criaria outro rombo nas contas federais (a não ser que se inventasse uma gambiarra para contornar leis fiscais).
O Senado pode, claro, mudar a lei, mas sua tramitação demoraria. Com o atraso, dadas as exigências do TCU (Tribunal de Contas da União), esse leilão gordo de petróleo pode até ficar para 2020; Bolsonaro ficaria sem dinheiro para tapar rombos em 2019, com estados e cidades ainda pedindo dinheiro.
Bruno Boghossian: Bolsonaro acena a Valdemar, dá cargo a MDB e encontra política tradicional
Ministro encontra mensaleiro e novo governo abraça aos poucos as regras do jogo
Com passos desajeitados, a equipe de Jair Bolsonaro começa a procurar um espaço nas rodas da política tradicional. Onyx Lorenzoni, próximo chefe da Casa Civil, parou sua agenda nesta quarta (28) para cumprimentar o célebre Valdemar Costa Neto no almoço que o mensaleiro ofereceu à bancada do PR.
Apesar dos sinais em sentido contrário, aos poucos o novo governo abraça as regras do jogo. O aperto de mãos com Valdemar numa churrascaria foi um dos gestos de articulação política mais relevantes feitos pelo futuro ministro até agora.
Por mais que Bolsonaro e seus aliados insistam em inventar um novo modelo de governabilidade, algumas acomodações se mostram inevitáveis. Os votos dos 33 deputados do PR se encaixam nessa categoria.
O novo governo prometeu espremer a administração federal em 15 ministérios. Chegou a 19 nesta quarta e deve bater 21 ou 22 até o fim da semana que vem. A pressão de grupos de interesse e, principalmente, dos parlamentares obrigou o presidente eleito a desenhar puxadinhos no projeto de sua Esplanada ideal.
As concessões são feitas num momento em que o próprio Bolsonaro admite uma fragilidade na articulação política de seu futuro governo. Ele disse ao portal Poder 360 que Onyx “não daria conta do recado” e que, por isso, nomeou um general sem experiência direta na área para lidar com os congressistas.
As escolhas feitas pelo presidente eleito nas últimas 24 horas têm um DNA claramente político. O Turismo será entregue ao deputado Marcelo Álvaro, que é do PSL de Bolsonaro e tem o aval das bancadas evangélica e mineira. No Desenvolvimento Regional, ficará um servidorque era um dos responsáveis por destravar emendas dos políticos na Integração.
Era para ser um governo basicamente de técnicos e notáveis, mas quem vai cuidar do desenvolvimento social, do esporte e da cultura é um deputado do MDB de Michel Temer. Osmar Terra disse à Folha, inclusive, que não entende nada das duas últimas áreas: “Só toco berimbau”.
Bruno Boghossian: Velho Congresso faz queima de estoque para salvar a própria pele
Parlamentares tentam votar propostas que protejam classe política antes de 2019
Ainda no intervalo entre os dois turnos da eleição, o chefe de um dos partidos tradicionais do Congresso procurou Michel Temer para propor um pacto. O plano era fechar um acordo e aproveitar os meses finais do ano para votar a jato um projeto que desse anistia a quem recebeu dinheiro por caixa dois.
A proposta seria pautada na Câmara e no Senado às vésperas do feriado da proclamação da República. A trama naufragou após a hesitação de alguns líderes e com a escolha de Sergio Moro, detrator do financiamento eleitoral “por fora”, como próximo ministro da Justiça.
Os políticos que não tiveram o passaporte carimbado para continuar no poder em 2019 ficaram com os sentidos de autopreservação aguçados. A renovação dos quadros do Congresso pode fazer com que as semanais finais do ano sejam a última oportunidade para emplacar artimanhas para proteger alguns deles.
A anistia ao caixa dois não foi adiante, mas PP, PR e companhia ainda tentam articular a votação de um projeto que afrouxa a punição a alguns crimes, incluindo corrupção. A Folha revelou que essas siglas pressionam o presidente da Câmara a pautar o texto até dezembro.
Moro criticou a ideia e disse confiar que os parlamentares tenham “a sensibilidade de aguardar o próximo governo para uma matéria tão importante”. É exatamente o contrário.
No Congresso de hoje, o espírito de corpo é capaz de unir até partidos tão distintos quanto DEM e PC do B. No próximo ano, deputados e senadores devem ter mais dificuldade para convencer os novatos a aprovarem medidas que se choquem com o discurso de combate à corrupção que ajudou a elegê-los.
No pacote de fim de ano, os congressistas também tentaram reduzir o tempo pelo qual ficam inelegíveis alguns políticos enquadrados na Lei da Ficha Limpa, mas a ideia saiu de pauta. Só teve sucesso no saldão o aumento de salário de ministros do STF e juízes. A turma de Brasília não quer ficar mal com aqueles que poderão julgá-los daqui por diante.
Folha de S. Paulo: Comandante do Exército determina análise sobre Intentona Comunista
Villas Bôas disse que medida tem objetivo de evitar derramamento de 'sangue verde e amarelo'
Bernardo Caram, da Folha de S. Paulo
BRASÍLIA - O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, disse neste domingo (25) ter determinado que seja feita uma análise sobre a Intentona Comunista, de 1935. O objetivo, segundo ele, é evitar derramamento de “sangue verde e amarelo”.
Intentona Comunista foi a tentativa de derrubar Getúlio Vargas da presidência da República em novembro de 1935.
“Determinei ao Exército que rememore a Intentona Comunista ocorrida há 83 anos”, afirmou, em postagem no Twitter. “Antecedentes, fatos e consequências serão apreciados para que não tenhamos, nunca mais, irmãos contra irmãos vertendo sangue verde e amarelo em nome de uma ideologia diversionista”.
Deflagrada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Intentona Comunista foi uma rebelião político-militar liderada pelos tenentistas, entre eles Luís Carlos Prestes – que antes havia criado a Aliança Nacional Libertadora.
Quando Vargas declarou a ANL ilegal, foram iniciados levantes em quartéis de Natal, Recife e Rio de Janeiro. A rebelião foi contida pelo governo, após batalhas que resultaram na morte de oficiais.
Anualmente, o Exército promove uma solenidade em homenagem aos mortos.
O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) já se manifestou sobre a Intentona Comunista, em discurso na Câmara em 1995. Na ocasião, ele disse que os comunistas foram derrotados em 1935 e, depois, em 1960, década que se iniciou o regime militar. Bolsonaro ainda sugeriu que o movimento persistia por meio dos trabalhadores sem-terra.
“Incansáveis, os agentes do satanismo marxista-leninista, mesmo privados de um de seus eixos de poder geopolítico, Moscou, continuam assanhadíssimos. Prova concreta disso são essas tropas, bem treinadas, municiadas, apetrechadas e muito mal disfarçadas, no movimento dos sem-terra”, disse na época.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro no apocalipse estatal
Presidente delegou a gente que mal conhece a liberdade de fazer uma revolução
A esquerda dizia que o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) era "neoliberal". A esquerda, petistas inclusive, dizia até que o primeiro governo de Lula da Silva (2003-2006) se rendera ao "neoliberalismo". Que nome vai dar ao projeto de governo da economia de Jair Bolsonaro?
Sim, projeto, pois sabe-se lá o que vai Paulo Guedes "entregar", como diz o anglicismo horrível dos mercadistas.
Guedes levou para o governo seus companheiros de escola, mercado, conselhos empresariais e dos institutos Liberal e Millenium, as bestas do apocalipse, aliadas do Satanás da conspiração liberal globalizada, segundo a demonologia de esquerda.
Desde que há um Estado com derramamentos importantes pela economia (isto é, depois de Getúlio Vargas), não houve no governo do Brasil equipe liberal como esta de Guedes. Relaxando as dificuldades de comparação, mesmo quando o Estado era uma merreca, sob o governo dos fazendeiros de Império e República Velha, jamais houve essa unanimidade liberal radical.
Sim, ainda é projeto, é ambição, restritos desde o início porque a Casa Militar e o velho espírito de Bolsonaro acham que o "Petróleo é Nosso" e que bancos públicos têm funções sociais e estratégicas. Sabe-se lá o que Jair Bolsonaro vai pensar desse projeto, se e quanto dele for implementado, se e quando compreendê-lo, se ou quando houver revolta antiliberal (de servidores a industriais, passando por políticos e o povo das aposentadorias).
Assim como a esquerda não tem nome para a coisa, Bolsonaro não sabe e, aparentemente, não quer saber do sentido e do tamanho da coisa. Gosta mesmo é de cruzadas, para as quais nomeou essas pessoas que vão comandar Itamaraty e Educação, as quais também mal conhece, no entanto.
O presidente eleito converteu-se a alguma ideia vaga liberal em algum momento do governo Dilma Rousseff, uma história que ainda se está a apurar. Conheceu Guedes de fato apenas no ano passado.
Jamais teve ligação com grupos organizados da elite econômica, menos ainda de grupos de estudo ou de pensamento da elite econômica, liberais ou outros. A julgar pela sua incompreensão quase total do que seja um Banco Central, do que se passa com a dívida pública ou o que são estatísticas econômicas, deve ter remota ideia das consequências do que propõe Guedes, se alguma.
No entanto, não parece dar a mínima para isso, como ficou evidente desde que encaminhou todas as questões de programa a Paulo Guedes durante a campanha. Apenas calou seu economista-chefe quando a conversa econômica baixava às redes sociais como polêmica (o caso da CPMF, por exemplo). Como vai ser se houver mais furor nas redes insociáveis?
Também relevante, Bolsonaro não se importa ou faz questão de ser um estranho no ninho da imensa equipe econômica. O presidente eleito arrendou a economia a Guedes e o insulou do restante do governo ou, melhor dizendo, do seu núcleo palaciano, sob controle maior dos generais, seus amigos de escola, irmãos mais velhos, conselheiros maiores.
É neles, nos oficiais-generais, que Bolsonaro confia a fundo, com eles compartilha mentalidade e camaradagem, faz mais de 40 anos. São eles que vão coordenar seu governo, formal ou informalmente. No limite, Guedes e seus colegas de mercado são fusíveis que podem queimar. Os militares são a estação de força.
Demétrio Magnoli: Os dois Bolsonaros
Ao planejar a ofensiva, Bolsonaro desenha também o caminho da retirada
Sabe-se que, historicamente, Bolsonaro não é um, mas dois. A narrativa convencional registra uma ruptura radical. O capitão turbulento que evoluiu como parlamentar de convicções nacional-estatistas converteu-se, no umbral de sua campanha presidencial, ao manual econômico do ultraliberalismo.
Sob essa luz, um Bolsonaro sucedeu ao outro, abandonando o personagem original numa reentrância do passado. Contudo, a montagem do governo conta-nos uma história diferente, sugerindo a hipótese de que os dois Bolsonaros convivem num mesmo indivíduo dilacerado entre personas contraditórias.
Paulo Guedes, o ultraliberal de caricatura, concentra poderes inauditos, enfeixando as pastas da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O czar da Economia nomeou os integrantes de uma equipe econômica composta por liberais competentes, de credenciais impecáveis. Já o núcleo militar do governo é composto por generais da reserva oriundos da tradição geiseliana.
Os tempos são outros, a obsessão estatista passou, dissolveu-se a geopolítica da Escola Superior de Guerra. Mas, entre os deuses do mercado e os do planejamento, as “forças da ordem” sempre penderão para o segundo. O Bolsonaro original vive nesse núcleo militar, selecionado por ele mesmo, não por um terceiro.
Os dois Bolsonaros são extremistas ideológicos, mas de sinais opostos. Um Bolsonaro tem consciência da presença do outro. De certo modo, o primeiro vigia o segundo, traçando-lhe limites. O presidente eleito refutou a proposta de Guedes de saltar para um regime previdenciário de capitalização individual recordando-lhe que os cidadãos confiam na promessa constitucional de que suas futuras aposentadorias têm a garantia do Tesouro.
Roberto Castello Branco descartou a privatização integral da Petrobras alegando não possuir um “mandato” político para tanto. A visão otimista diz que a convivência de extremismos simétricos arredondará as arestas agudas, produzindo um vetor reformista e pragmático.
Os dois Bolsonaros conversam a sós, divergem e convergem, esboçam planos de contingência. Desses diálogos ocultos, vazam indícios indiretos, colunas de fumaça em meio aos campos sujos.
O presidente eleito atribuiu a nomeação de Joaquim Levy ao livre arbítrio de Guedes (“Ele é quem está bancando o nome”) e foi além, marcando nitidamente as posições no palco do poder: “Quem ferrou o Brasil foram os economistas. Eles são parte importante do nosso plano de governo. Eles não podem errar, não têm o direito de errar.”
A tradução óbvia: Bolsonaro investe numa apólice de seguro para a hipótese de fracasso, que seria jogado às costas dos economistas, os “eles” inclinados a “ferrar o Brasil”. A tradução menos óbvia: a apólice do segundo Bolsonaro é o primeiro. A visão pessimista diz que, diante das esperadas resistências corporativas às reformas econômicas, o Bolsonaro liberal renunciará à Presidência em favor do Bolsonaro estatista.
No centro da mensagem da campanha de Bolsonaro não estava a economia, mas a agenda de valores e costumes. O “mercado”, essa entidade flácida, pervasiva, excitável, apostou especulativamente na mensagem secundária vocalizada por Guedes.
A escalação da equipe econômica preserva as expectativas criadas à margem dos palanques, mas os observadores menos tolos registram elevadas taxas de incerteza. Quando escolhe a terceira pessoa do plural —“eles”— para se referir à sua própria equipe econômica, o presidente eleito sugere que, ao planejar a ofensiva, desenha também o caminho da retirada.
“Guedes não dura seis meses”. A profecia partiu de Cid Gomes, porta-voz informal do irmão, que é pretendente a líder da oposição. O profeta interessado pode estar certo ou errado, mas entendeu algo relevante: no caso de Bolsonaro, em lugar de se sucederem, os estágios crisálida e borboleta se confundem.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Alexandre Schwartsman: Irresponsabilidade revelada
O governo não pode salvar os estados sem exigir contrapartidas duras e claras
O Tesouro Nacional, antes sob o comando de Ana Paula Vescovi, hoje liderado por Mansueto Almeida, tem feito um esforço louvável para detalhar o estado das contas públicas, não só no que se refere ao governo federal, mas expondo também as mazelas dos governos locais.
O exemplo mais recente deste trabalho é o Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais, publicação que traz dados sobre estados e municípios até 2017.
Os números são preocupantes. A começar pelo aumento do déficit primário dos estados, que pulou de R$ 1,8 bilhão em 2015 e R$ 2,9 bilhões em 2016 (valores irrisórios na comparação com o PIB) para R$ 13,9 bilhões em 2017 (0,2% do PIB).
Note-se que esta medida leva em consideração a despesa empenhada naqueles anos, não a efetivamente paga. A diferença reflete principalmente o atraso no pagamento de fornecedores e servidores, mecanismo adotado por vários estados, na prática “empurrando com a barriga” o problema, ao invés de atacá-lo frontalmente.
A piora do desempenho não decorre da receita. Pelo contrário, durante o período destacado esta cresceu relativamente ao PIB, embora não muito.
Por outro lado, a despesa do conjunto dos estados cresceu bem à frente do PIB, em parte pela recessão observada até 2016, mas além da modesta expansão da atividade no ano passado.
A verdade é que os gastos estaduais vêm aumentando mais do que a inflação, reproduzindo o padrão do gasto federal até 2016.
Dentre esses, a despesa com pessoal, R$ 403 bilhões, merece atenção, representando pouco mais da metade do dispêndio primário registrado no ano passado, R$ 766 bilhões. Segundo o Tesouro, os gastos dos estados com pessoal aumentaram 32% acima da inflação entre 2011 e 2017.
Nada menos do que 14 dos 27 estados (incluindo o Distrito Federal) superaram no ano passado o limite (fixado na LRF) de 60% entre despesas de pessoal e receita corrente líquida.
Há muito mais a ser explorado na publicação, mas acredito que os números acima já deixam claro que boa parte dos estados está na lona por conta da péssima administração fiscal a que foram submetidos.
Não é por outro motivo que, mais uma vez, se fala em novo resgate por parte do governo federal, apenas dois anos depois da última tentativa.
A questão parecia superada com a reestruturação firmada no final dos anos 90, quando o governo federal assumiu a dívida de alguns estados e capitais, os mais ricos, em troca de programas de ajuste fiscal que foram bastante bem-sucedidos por praticamente uma década.
Em particular, esta dívida —apesar da choradeira de governadores e prefeitos —caiu de 13% do PIB para pouco mais de 7% do PIB de 2002 a 2014.
Todavia, sob a gestão de Dilma Rousseff, Guido Mantega e Arno Augustin os estados foram liberados das amarras fiscais, o que acabou nos levando à crise atual.
Muito embora a experiência daquela reestruturação não tenha sido perfeita, seu longo período de sucesso nos deixa lições importantes.
Em hipótese alguma o governo federal pode salvar os estados sem exigir contrapartidas muito duras e claras em termos de redução de gastos, privatização e modernização das práticas públicas, sem as quais nenhum recurso pode ser adiantado.
Por óbvio, nenhum estado é obrigado a aceitar quaisquer condições, mas é ainda mais certo que o governo federal não pode empurrar novamente para a população as contas de governos fiscalmente irresponsáveis.
Roberto Castello Branco: É urgente a necessidade de se privatizar não só a Petrobras, mas outras estatais
Precisamos de várias empresas privadas competindo nos mercados de combustíveis
As crises políticas sempre demandam um culpado. No caso da greve dos caminhoneiros, os políticos e parte da opinião pública elegeram a política de preços da Petrobras, cujo responsável era seu presidente, Pedro Parente. Então, "fora, Pedro Parente" e todos voltamos a ser felizes.
Ninguém se deu ao trabalho de observar que o preço do óleo diesel no Brasil é inferior à média global, US$ 1,02 contra US$ 1,07 (dados de 28 de maio da Global Petrol Prices).
O diesel é commodity global e a principal fonte de diferenciação de preços entre países são impostos e subsídios.
Na Venezuela o preço é quase zero, nos Estados Unidos, onde a tributação é baixa, US$ 0,85 e na Noruega, onde os impostos são muito elevados, US$ 2,03 por litro.
Há dois anos, os preços de alimentos sofreram forte alta, o que afetou principalmente as famílias mais pobres. Não houve greve, nem protestos, nem foi pedida a demissão de ninguém.
A razão fundamental é que não havia ninguém para culpar, o culpado foi o mercado, uma entidade impessoal.
No caso do diesel, embora seguindo o mercado global, é o comitê de uma única empresa, uma estatal dona de 99% do refino, quem anuncia os preços.
Essa é mais uma razão para privatizar a Petrobras. Precisamos de várias empresas privadas competindo nos mercados de combustíveis.
As pressões sobre o governo para resolver uma situação de excesso de oferta de fretes rodoviários, criada pelo desenvolvimentismo do BNDES, encontraram terreno fértil. Um governo populista, politicamente enfraquecido e num ano eleitoral, foi facilmente capturado.
A greve produziu choque de oferta que afetou toda a atividade econômica.
Vai se processar significativa transferência de renda da sociedade para um grupo de interesse, parte do jogo populista de soma zero. O que acontecerá se amanhã o preço do petróleo chegar a US$ 100 por barril e/ou o dólar a R$ 4?
O tabelamento dos preços dos fretes é uma distorção com significativas implicações negativas.
O fato gerador da greve, o excesso de oferta de caminhões de carga, permanece intacto. A intervenção do Estado só contribuiu para agravá-la, pois a demanda por fretes crescerá mais lentamente.
Existe um velho ditado popular que se aplica muito bem a esta situação: "é possível ignorar as leis da economia, mas elas nunca nos ignorarão".
A crise e a resposta dada pelo governo Michel Temer agravam sem dúvida as incertezas de um ano eleitoral, com repercussões bastante negativas sobre a recuperação da economia.
Uma das lições que se tira desta crise é a urgente necessidade de privatizar não só a Petrobras, mas outras estatais.
É inaceitável manter centenas de bilhões de dólares alocados a empresas estatais em atividades que podem ser desempenhadas pela iniciativa privada, enquanto o Estado não tem dinheiro para cumprir obrigações básicas, como saúde, educação e segurança pública, que até mesmo tiveram recursos cortados para financiar o subsídio ao diesel.
*Roberto Castello Branco é Diretor do Centro de Estudos em Crescimento e Desenvolvimento da Fundação Getúlio Vargas. Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 02/06/2018.
Samuel Pessôa: Os erros de Krugman
Melhor que o Nobel estude mais antes de escrever sobre economia da qual nada entende
Em artigo publicado no dia 9 no jornal The New York Times e reproduzido pela Folha, o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman argumentou que a crise brasileira é fruto de três fatores: queda dos preços das commodities, excesso de endividamento das famílias e política monetária e fiscal contracionista.
Concordando com os economistas heterodoxos brasileiros, a crise é essencialmente culpa do ajuste fiscal de Joaquim Levy.
A atual crise representa a maior perda de PIB, a segunda maior de PIB per capita e a recessão mais longa dos últimos 120 anos. No atual episódio, os termos de troca caíram 11%, se consideramos a média para os quatro anos findos no ano da crise em comparação aos quatro anos posteriores.
Nos outros quatro episódios, a queda equivalente foi de 44% para a crise de 1914, 32% em 1930, 32% em 1981 e 7% em 1990. Adicionalmente, o nível dos termos de troca no atual episódio, após a queda, ainda se manteve historicamente elevado.
Finalmente, esse foi um período de juros internacionais extremamente baixos, condição muito favorável para uma economia que importa capitais.
Houve uma elevação do endividamento das famílias, mas muito pior foi o endividamento das empresas —por exemplo, a Petrobras, que, sozinha, chegou a ser responsável por 8% de todo o investimento nacional, atingiu um nível de dívida equivalente a cinco vezes a geração de caixa. Na prática, estava quebrada.
Evidentemente, o investimento foi cortado.
Histórias com essa aplicam-se para indústria naval, toda a cadeia de óleo e gás, setor sucroalcooleiro e para diversas construtoras que se prepararam para atender os ambiciosos e irrealistas cronogramas do Minha Casa, Minha Vida.
Adicionalmente houve claros sinais de sobreinvestimento na indústria automobilística e toda sua cadeia produtiva.
O diagnóstico heterodoxo de crise keynesiana clássica de carência de demanda é incompatível com juros reais elevados e inflação também.
A política fiscal esteve longe de ser particularmente contracionista. As taxas de crescimento real do gasto primário nos anos de 2012 até 2016 foram respectivamente de 5,8%, 7,7%, 6,0%, -3,2% e 2,1%. Note que em nenhum ano o gasto primário cresceu abaixo do PIB. Estranho uma queda em cinco anos produzir esse estrago.
Finalmente, considerar a política monetária muito contracionista não faz o menor sentido, dada a experiência brasileira. As estimativas indicam que a taxa de juros neutra no Brasil era, em 2015,
da ordem de 5,5%.
O ciclo de alta das taxas de juros iniciou-se no primeiro semestre de 2013, após a inflação do tomate, e terminou em meados de 2015, com a taxa a 14,25%. Na média de 2015, a taxa real, considerando a inflação futura, rodou em torno de 7,5%, dois pontos percentuais acima da taxa neutra.
Para termos uma comparação com episódios passados, em 2003 a taxa de crescimento do gasto público foi de -3,7%, e o juro real foi de 13%. O crescimento foi 1,1%, e não a queda de 3,5% que tivemos em 2015.
Se Krugman tivesse olhado a evolução da inflação de serviços, o componente que responde à demanda, notaria que ela rodou em torno de 9% ao ano até o fim de 2016.
Achar que uma crise que se inicia no segundo trimestre de 2014, com queda de investimento desde o quarto trimestre de 2013 e tendo serviços rodando a 9% até o fim de 2016, se deve à carência de demanda agregada é verdadeira estultice.
Melhor que, da próxima vez em que Krugman for escrever sobre uma economia da qual ele nada entende, estude um pouco mais.
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Clóvis Rossi: O Brasil a caminho do rebaixamento
Simpatia do novo chanceler é pela terceira divisão
Desde a redemocratização e, principalmente, desde a estabilização da economia, o Brasil passou a ser convidado para a mesa dos grandes do mundo. Faz bem para a autoestima e pode ser útil diplomática, comercial e financeiramente.
Agora, se o novo chanceler, Ernesto Araújo, levar a cabo as ideias estapafúrdias que destila em seu blog e em ensaio para Cadernos de Política Externa, o Brasil ficará relegado à mesa dos marginais da política.
Um pouco de memória: durante a ditadura, não era de bom tom para as democracias ocidentais serem vistas abraçando o regime militar. Podiam, claro, fazer negócios, receber os ditadores, como fazem com tantos outros, mas havia sempre um certo pudor.
Com a democracia, a super-inflação fazia com que americanos e europeus não conseguissem entender como o Brasil funcionava. Por extensão, tinham dificuldades para abraçar esse país tão grande e tão disfuncional.
Estabilizada a economia, Fernando Henrique Cardoso passou a ser convidado para as reuniões da chamada Terceira Via, rebatizada para Governança Progressista.
Congregava os então líderes dos principais países ocidentais: Tony Blair, Bill Clinton, o alemão Gerhard Schroeder, o francês Lionel Jospin, o italiano Massimo D’Alema —a nata enfim do mundo rico.
Os hidrófobos do bolsonarismo certamente dirão que se tratava de um bando de perigosos comunistas, mas o superministro de Economia, Paulo Guedes, liberal de carteirinha, teria orgasmos ao ler algumas frases do manifesto de lançamento do grupo: “O Estado não deve crescer, mas reduzir-se”; “menos regulamentação e mais flexibilidade”.
Luiz Inácio Lula da Silva também foi convidado para a mesa do grupo e, depois, teve papel de destaque nas cúpulas do G20, o clubão das maiores economias. Nesse fórum, no entanto, a participação do Brasil não era escolha de qualquer governante de turno, mas imposição dos fatos: o Brasil é uma grande economia e tem, inexoravelmente, lugar à mesa.
Com Bolsonaro, continuará, pois, a fazer parte do G20, se o grupo resistir à aversão de Donald Trump pelas instâncias multilaterais —aversão de resto compartilhada pelo chanceler designado pelo presidente eleito.
G20 à parte, se Ernesto Araújo levar à prática o seu ideário de cruzado disposto a salvar o Ocidente, o Brasil de Bolsonaro acabará sentando-se à mesa da terceira ou quarta divisão.
Acontece que Araújo manifestou admiração por Steve Bannon, o ideólogo da chamada “alt-right” (piedosa designação para extrema direita). Tão extrema que nem Trump o suportou na Casa Branca: demitiu-o depois de receber críticas do antigo aliado.
Agora, Bannon bandeou-se para a Europa, na tentativa de criar O Movimento, um grupo da direita nacional-populista. Até agora, só tem apoio de partidos absolutamente inexpressivos. O único líder saliente na lista do Movimento é o italiano Matteo Salvini (da Liga, ex-Liga Norte, xenófoba). Mesmo assim, Salvini só chegou ao governo porque coligou-se com outro grupo populista, à esquerda, o 5 Estrelas, refratário ao clube que Bannon tenta montar.
O Brasil pode estar numa draga de fazer gosto, mas, ainda assim, merece companhia mais asseada do que a desse bando de alucinados.
Vinicius Torres Freire: Névoa forte um mês antes da posse
Economia pode emperrar com planos genéricos e ambiciosos demais de reformas
Faz três semanas, o país está entretido com a remontagem das peças do Lego Ministério do presidente eleito, Jair Bolsonaro. De seu plano de ação, sabe-se apenas de reformas ainda indistintas em uma névoa de ambições grandes. No entanto, afora a semana de festas, falta um mês para a posse.
Em parte, o jogo da transição interessa, pois se trata de definição de grupos de poder, de alianças sociais (ou da falta absoluta delas) ou de preliminares de reformas graves na administração e nas políticas públicas.
Em parte, se trata apenas de fetichismo, da tentativa de chegar ao corte prometido em campanha, a um número cabalístico e populista de ministérios, o que na imaginação popularesca passa como “corte na carne”.
Pode bem ser que o governo tenha planos secretos. Mas a gravidade anormal da situação econômica requer urgência em certas decisões.
O governo de transição de Bolsonaro pretendeu por um momento votar a reforma da Previdência de Michel Temer, que pouco antes chamara de “porcaria”. Dada a indiferença do Congresso, cogitou aprovar pedaços apenas do projeto temeriano lipoaspirado.
No caso de reforma alguma em 2018, diz que vai começar do zero, propor uma reforma dupla e gigante (a do sistema atual e a criação de um novo, de poupança individual), de elaboração complicada e aprovação mais ainda, que pode levar o 2019 inteiro no Congresso.
Esse prazo dilatado em si mesmo já seria um problema, mas o menor deles. Uma reforma mais ambiciosa, de caráter duplo, em um Congresso novo, com velhas lideranças dizimadas, conduzido por uma coordenação política inexperiente e ainda incompleta tende a gerar incerteza, que desidrata o crescimento econômico desde 2014, inclusive o de 2018.
Haverá mais poças visguentas de incerteza pelo caminho, a julgar pelas vastas ambições e pensamentos ainda imperfeitos do futuro überministro da Economia, Paulo Guedes.
Além de coordenar a organização de seu megaministério, Guedes diz que pretende implementar um plano amplo de mudança dos impostos federais.
Além disso e ao mesmo tempo, reduziria as proteções comerciais (impostos de importação e outras), que guarnecem empresas brasileiras.
Em si, assim genérica, a ideia é boa. Mas nada se sabe do ritmo de proposição e implementação dessa reforma comercial e tributária (dependente de leis novas). Mais sabido é o impacto que tal intenção de mudança pode ter sobre planos empresariais.
Impostos, proteções comerciais e de outra espécie definem parte da rentabilidade de um empreendimento. Quanto mais incertas e amplas as mudanças, mais empresas podem ficar com o investimento na retranca. Não é destino ou previsão de fracasso, de confusão inevitável. Mas confusão pode haver sem que se explicitem sequência, viabilidade e transparência dos custos e dos benefícios da mudança tributária.
Muito plano de pré-governo é mera ficção, que se desmancha em realidade assim que o ministro toma pé do que se passa em sua pasta ou conhece projetos de longo prazo propostos e tocados pelos técnicos estáveis. Outros projetos se desmancham no ar ou são revistos no confronto político com o Congresso ou com a sociedade. Mas certos planos fundamentais têm de ser claros e prioritários.
Ambição demasiada cria incerteza e amplia riscos, o que pode emperrar a economia, o que, por sua vez, azeda o ambiente para reformas: entra-se em um pântano, em um círculo vicioso.