Folha de S. Paulo
Folha de S. Paulo: 'Poder popular não precisa mais de intermediação', diz Bolsonaro ao ser diplomado
Presidente eleito exaltou papel das redes sociais na eleição deste ano
Talita Fernandes , Reynaldo Turollo Jr. , Marina Dias e Letícia Casado, da Folha de S. Paulo
BRASÍLIA - Disposto a estabelecer um novo modelo à frente do Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro fez um discurso conciliatório nesta segunda (10), em que afirmou que governará para todos os brasileiros, sem distinções, e ressaltou que o poder popular “não precisa mais de intermediação”.
Diplomado presidente da República em cerimônia no Tribunal Superior Eleitoral, Bolsonaro foi orientado por auxiliares a fazer um pronunciamento “mais solene”, no qual pediu a confiança inclusive dos que não o apoiaram em outubro. Além disso, fez acenos à Justiça Eleitoral, criticada por ele durante toda a campanha.
“As eleições revelaram uma realidade distinta das práticas do passado. O poder popular não precisa mais de intermediação. As novas tecnologias permitiram nova relação direta entre o eleitor e seus representantes”, declarou.
Bolsonaro foi eleito com forte presença nas redes sociais e pouquíssimo tempo de propaganda eleitoral de TV.
“Serei presidente dos 210 milhões de brasileiros, governarei em benefício de todos, sem distinção de origem social, raça, sexo, cor, idade ou religião”, completou.
Durante quase três décadas de vida pública, Bolsonaro fez discursos contra minorias. Como presidente, ponderam aliados, o capitão reformado precisará rever o tom de algumas de suas falas pelo menos em eventos como o de sua diplomação.
Antes de subir ao púlpito para ler o discurso de cerca de dez minutos, Bolsonaro bateu continência a uma plateia repleta de autoridades e militares fardados, que o aplaudiam e o chamavam de “mito”.
Ainda dentro da linha conciliadora exaltou o processo eleitoral, tantas vezes criticado por ele, e disse que o compromisso com a soberania do voto popular é “inquebrantável”.
A presidente do TSE, Rosa Weber, defendeu os direitos humanos e as instituições democráticas em seu discurso durante a cerimônia.
“A democracia não se resume a escolhas periódicas, por voto secreto e livre, de governantes. Democracia é, também, exercício constante de diálogo e de tolerância, de mútua compreensão das diferenças, de sopesamento pacífico de ideias distintas, até mesmo antagônicas, sem que a vontade da maioria, cuja legitimidade não se contesta, busque suprimir ou abafar a opinião dos grupos minoritários, muito menos tolher ou comprometer-lhes os direitos constitucionalmente assegurados”, afirmou.
“Em uma democracia, maioria e minoria, como protagonistas relevantes do processo decisório, hão de conviver sob a égide dos mecanismos constitucionais destinados à promoção do amplo debate [...]. Mais do que isso: a todos os cidadãos, sem qualquer exclusão, se assegura um núcleo essencial de direitos e garantias que não podem ser transgredidos nem ignorados pelo simples fato de não refletirem em dado momento histórico a vontade dos grupos majoritários.”
Rosa lembrou que nesta data se comemoram os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, como ela afirmou, foi promulgada pela terceira Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e subscrita pelo Brasil.
“Nunca nos esqueçamos: os diretos fundamentais da pessoa humana, além de universais, são inexauríveis”, disse Rosa, acrescentando que todos têm “direito à vida, à liberdade, à segurança em sua projeção global e o direito a ter direitos”. Bolsonaro já afirmou em algumas ocasiões que o Brasil tem direitos demais.
“Inquestionável é que o Estado brasileiro se encontra comprometido com a efetivação dos direitos humanos. Isso resulta claro não só dos deveres assumidos perante a comunidade internacional, mas sobretudo pelo que a própria Constituição, que vem de completar trinta anos, determina. Por isso, é de inegável relevo, senhor presidente eleito, o compromisso de Vossa Excelência, reafirmado nesta Casa quando aqui esteve em visita, de que o respeito incondicional pela supremacia da Constituição será o norte do seu governo”, concluiu.
A fala da ministra foi criticada por aliados do presidente eleito. “Após ser ovacionado de pé, o presidente diplomado, Jair Bolsonaro, é submetido a aulinha de direitos humanos em longo discurso de Rosa Weber”, reclamou a deputada federal eleita Bia Kicis (PRP-DF).
A também deputada eleita Joice Hasselmann (PSL-SP) disse que a ministra foi “desapropriada e deselegante”. “Achei que ficou um pouco chato, e até deselegante, desnecessário. Mas ela é a presidente do TSE, não sou eu.”
A diplomação é uma etapa indispensável para que os eleitos possam tomar posse, no primeiro dia do ano. Ela confirma que o político cumpriu as formalidades previstas na legislação eleitoral e está apto a exercer o mandato. O vice-presidente, general Hamilton Mourão (PRTB) também foi diplomado.
Folha de S. Paulo: Declaração dos Direitos Humanos faz 70 anos
Confira a íntegra dos 30 artigos da declaração, documento mais traduzido do mundo e que foi elaborado por dois anos
SÃO PAULO - Assinada há exatos 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa o reconhecimento de que os direitos básicos e as liberdades fundamentais são inerentes a todo ser humano e foi responsável por avanços na defesa desses direitos em diversas partes do mundo.
Elaborada durante dois anos, numa época em que o mundo sentia os efeitos da Segunda Guerra Mundial e estava dividido entre países capitalistas e comunistas, foi pontuada por desacordos entre nações dos dois blocos até ser aprovada, em Paris, às 23h56 de 10 de dezembro de 1948.
Com 30 artigos, a declaração é considerada o documento mais traduzido do mundo —para mais de 500 idiomas— e inspirou as constituições de vários Estados e democracias recentes.
O texto condena a escravidão e a tortura, defende o asilo para indivíduos perseguidos e o direito à educação gratuita, à liberdade de reunião e à propriedade privada e proclama que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, “sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.
Foi aprovado na 3ª Sessão da Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), que na época reunia 58 países. Entre os que 48 que votaram, houve unanimidade.
União Soviética, Belarus, Ucrânia, Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul se abstiveram. Honduras e Iêmen não estavam presentes.
A pedido do delegado polonês Julius Kitzsoctly, foram lidos todos os artigos. Silêncio significava consentimento da audiência. A leitura durou quatro horas.
A ex-primeira-dama dos EUA e então presidente da Comissão de Direitos Humanos, Anna Eleanor Roosevelt (1884-1962), atingiu o cargo de coordenadora da Declaração por votação direta, no começo dos trabalhos, em 1946, e teve papel decisivo na aprovação do documento.
Confira abaixo a íntegra do texto de introdução e os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.
Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,
Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,
Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Países-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do ser humano e a observância desses direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,
Agora portanto a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Artigo 1
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo 2
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
Artigo 3
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo 4
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo 5
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Artigo 6
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.
Artigo 7
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Artigo 8
Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo 9
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo 10
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Artigo 11
1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
Artigo 12
Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo 13
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.
Artigo 14
1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Artigo 15
1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
Artigo 16
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
Artigo 17
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo 18
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.
Artigo 19
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo 20
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo 21
1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo 22
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Artigo 23
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.
Artigo 24
Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
Artigo 26
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
Artigo 27
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.
Artigo 28
Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.
Artigo 29
1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Artigo 30
Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.
Bruno Boghossian: País encontrará ponto crítico da política de drogas em 2019
Governo Bolsonaro testará novo modelo, enquanto STF caminha para descriminalização
O Brasil deve encontrar um novo ponto crítico da política de drogas em 2019. Os métodos tradicionais da guerra ao tráfico fracassaram, as ações policiais se limitam a uma disputa de armamentos e o país não parece disposto a atualizar sua legislação sobre o tema.
O novo governo quer ser uma máquina mortífera, enquanto o STF abre caminho para finalmente descriminalizar o porte de maconha.
Na bifurcação, há planos de inteligência para reduzir a letalidade das operações e sobram dúvidas sobre o futuro das políticas de saúde pública.
No gabinete de transição para o governo Jair Bolsonaro, o plano promissor partiu do time de Sergio Moro (Justiça). A equipe do novo ministro pretende montar uma estrutura para seguir o dinheiro das grandes quadrilhas, confiscar bens e sufocar grupos como o PCC.
O próximo secretário nacional de Segurança Pública, Guilherme Theophilo, fala em “matar facções criminosas por inanição”. Para isso, o combate aos traficantes precisaria se expandir de vielas e barracos, onde morrem também inocentes, para encontrar os “barões da droga”.
Bolsonaro já emitiu diversos sinais de estímulo a ações policiais violentas. Embora o fortalecimento da segurança pública seja essencial, o modelo conhecido até aqui se mostrou saturado. Sob intervenção das Forças Armadas, o Rio continua sendo o cartão-postal do tráfico.
A questão do consumo e do tratamento de usuários de drogas pode entrar em uma área ainda mais nebulosa no ano que vem. O próximo ministro da Saúde, por exemplo, coloca em dúvida a eficácia dos centros de atendimento a dependentes, mas ainda não sugere alternativas.
Já os titulares da Cidadania e dos Direitos Humanos fazem há anos um ativismo proibicionista, enquanto o Judiciário caminha em sentido contrário. O plenário do Supremo deve retomar em 2019 o julgamento da ação que decidirá se é crime o porte de maconha em pequenas quantidades. Três dos 11 ministros já votaram contra a criminalização.
Hélio Schwartsman: Golpe à moda antiga
Se a ideia de Bolsonaro é comer a democracia pelas bordas, ele está uma guerra atrasado
Dizia-se do Estado-Maior francês que ele era despreparado e estava sempre uma guerra atrasado. A expressão “uma guerra atrasado” surgiu após o desastre de 1940, no qual o Exército francês, tendo apostado todas as suas fichas na construção da linha Maginot, que se revelou totalmente inútil (ela talvez tivesse funcionado na Primeira Guerra Mundial), sucumbiu em apenas 38 dias e com enormes perdas às Panzerdivisionen de Adolf Hitler.
Se a intenção de Jair Bolsonaro e seus colaboradores próximos é ir comendo a democracia pelas bordas para aumentar os poderes do Executivo, a exemplo do que fizeram outros populistas autoritários contemporâneos, como Vladimir Putin, Viktor Orbán ou Recep Erdogan, então eles estão, como o Estado-Maior francês, uma guerra atrasados.
David Runciman, autor de “Como a Democracia Chega ao Fim”, ensina que há uma diferença fundamental entre os golpes do passado e os do presente. Nos primeiros, os conspiradores tinham de ser tão explícitos quanto possível, para não deixar margem de dúvidas sobre quem estava no poder e deveria ser obedecido. Não é uma coincidência que as primeiras movimentações de um Putsch incluíssem sempre capturar as estações de rádio e TV e fechar os jornais não cooptados.
Nas escaladas autoritárias modernas, a regra é o oposto. Os conspiradores precisam esconder a todo custo suas reais intenções. Não podem, como faz o clã Bolsonaro, falar em fechar cortes ou limitar o funcionamento do Legislativo. Ao adotar as medidas que lhes asseguram maiores quinhões de poder, golpistas modernos devem dizer que estão aprofundando a democracia e devolvendo ao povo a capacidade de decidir seu destino. Até Nicolás Maduro, que não é exatamente um estrategista nato, faz isso.
De uma forma meio perversa, não deixa de ser alentador constatar que Bolsonaro e o grupo que o cerca parecem despreparados para um golpe à moda moderna.
Clóvis Rossi: Guia de Davos para Bolsonaro
Salvar o Ocidente não é prioridade no Fórum
Imbuído do mais profundo sentimento patriótico, ouso formular um guia de Davos para iniciantes. No caso, um guia do encontro anual-2019 do Fórum Econômico Mundial, ao qual se anuncia que o presidente Jair Bolsonaro irá. É sempre bom que presidentes brasileiros compareçam a esse grande convescote, mas aviso ao presidente que Davos é a maior concentração de “globalistas” por metro quadrado que o mundo reúne em um só lugar. Logo, Bolsonaro estará cercado de inimigos.
Por isso, o ideal é que instale seu Posto Ipiranga, Paulo Guedes, no lugar de honra. A clientela de Davos ama de paixão o discurso liberal.
Anunciar privatizações, então, será como pingar sangue na água (no caso, no gelo). As piranhas virão assanhadíssimas para tentar beliscar a sua parte no futuro negócio.
Falar em reformas é igualmente uma iguaria. Nos 25 anos em que frequentei Davos, reformas era a palavra mágica, o mantra que os mais diferentes governantes recitavam para encantar a plateia.
Quando eram ministros (ou presidentes) de países em desenvolvimento, a plateia balançava a cabeça em sinal de aprovação, ao mesmo tempo em que fazia cara de ponto de interrogação. Aposto que pensavam: será que esses bugres vão fazer a lição de casa?
Mesmo líderes de países ricos eram convocados a repetir o mantra. Reforma passou a ser a muleta retórica para caminhar no mundo supostamente civilizado de que Davos é um microcosmo.
Fica claro, assim, que o nosso Posto Ipiranga será um sucesso, o que, a bem da verdade, não quer dizer nada. Guido Mantega, que, na comparação com Guedes, seria o Posto Petrobras de Lula e Dilma, foi também bem recebido em Davos, mas fracassou no Brasil.
A rigor, o único que fracassou em Davos foi Marcílio Marques Moreira, ministro de Fernando Collor. Coitado, compareceu em 1992, o ano em que seu chefe já caminhava para o cadafalso e o Plano Collor rolava para o ralo.
Deixar a ribalta para Paulo Guedes tem a vantagem de evitar que Bolsonaro e seu chanceler, Ernesto Araújo, tentem vender ao público de Davos sua cruzada para salvar a civilização ocidental e cristã.
Davos não tem o menor interesse em salvar o Ocidente. Seu foco é fazer bons negócios, com ocidentais, com orientais, com cristãos, com muçulmanos, com capitalistas e com comunistas igualmente.
A China, à qual Bolsonaro tem restrições, é presença frequente e volumosa. Ouso dizer que, nos últimos anos, têm ido a Davos mais funcionários chineses que americanos. Empresários, sim, são mais americanos, porque os empresários chineses acabam sendo, em boa medida, funcionários públicos.O capitalismo chinês de partido único tem dessas coisas.
Ou seja, Davos está recheada, nessa época do ano, dos “vermelhos” que o novo governo brasileiro pretende erradicar.
Ah, Luiz Inácio Lula da Silva, esse hiperdemônio vermelho, passou duas vezes por lá e foi aplaudido em ambas. Donald Trump, o ídolo dos Bolsonaros, também, assim como Bill Clinton, esse perigoso esquerdista.
O negócio de Davos são os negócios, exatamente como se diz dos Estados Unidos. Salvar o Ocidente não tem sido bom negócio ultimamente.
Folha de S. Paulo: AI-5 atingiu pelo menos 1.390 pessoas nos dois primeiros anos
Capítulo 1
Por Rubens Valente, Naief Haddad, Marco Rodrigo Almeida e Laíssa Barros, da Folha de S. Paulo
Por volta das 23h de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, Gama e Silva, ministro da Justiça, e o locutor Augusto Curi anunciaram o texto do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Minutos antes, Gama e Silva tinha participado de reunião com o presidente da República, Costa e Silva, e os integrantes do Conselho de Segurança Nacional, formado pelos ministros e pelos principais chefes militares.
Nesse encontro, o governo federal havia sacramentado as medidas do decreto. Quatro anos e oito meses depois do golpe, começava o período mais duro da ditadura.
O AI-5 conferia ao presidente poderes quase ilimitados, como fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos.
Também poderia suspender direitos políticos e demitir ou aposentar servidores públicos. Suspendia-se ainda a garantia de habeas corpus em casos como crimes políticos.
Nenhuma dessas medidas estava sujeita à apreciação da Justiça. "Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime", diz o historiador José Murilo de Carvalho. "O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, cujas medidas afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia."
No dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, é editado pelo então presidente Artur da Costa e Silva o Ato Institucional nº 5. Com o AI-5. Foto: Folhapress |
Documentos produzidos pelos militares e relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) mostram que o endurecimento promovido pelo AI-5 atingiu pelo menos 1.390 brasileiros até 31 de dezembro de 1970 em diversos setores e diferentes escalões da vida pública no país.
De três ministros do Supremo Tribunal Federal (Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), aposentados à força, a dois auxiliares de portaria do Ministério do Trabalho (Gumercindo Libório Morais e José Zacarias da Silva), que foram demitidos sumariamente.
De cinco senadores (Aarão Steinbruch, João Abrahão Sobrinho, Arthur Virgílio Filho, Mário de Souza Martins e Pedro Ludovico Teixeira), cujos mandatos foram cassados, a um encanador demitido pelo Exército (Aloisio Rocha).
Em relação aos documentos militares, a Folha compilou os dados que constam de papéis guardados no Arquivo Nacional, em Brasília, e produzidos pelo extinto CSN (Conselho de Segurança Nacional), órgão de assessoramento direto do presidente da, e pelo Ministério da Aeronáutica.
Ao longo desse período, foram atingidas 80 mulheres, incluindo professoras, advogadas, deputadas, militantes da esquerda armada e até duas militares das Forças Armadas. Elas representam 6% do total.
Os efeitos do ato envolvem diversas patentes, de soldados do Exército a um almirante da Marinha (Ernesto de Mello Baptista), transferido de unidade. Além dos ministros do STF, outros 27 magistrados foram atingidos, incluindo oito da área trabalhista e o ministro do STM (Superior Tribunal Militar) Pery Constant Bevilacqua (1899-1990), aposentado à força por ser considerado adversário do governo.
Em 1976, o ex-ministro disse a escritores que o entrevistaram: "O AI-5 foi o maior erro jamais cometido em nosso país e comprometeu os ideais do movimento de 31 de março [de 1964]. Os fatos a que nos referimos levam à conclusão de que será sempre preferível suportar um mau governo a fazer uma boa revolução".
Em janeiro de 1969, a jornalista e dona do "Correio da Manhã", Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), teve os direitos políticos suspensos e foi presa. Além dela, que estava à frente de um jornal crítico da ditadura desde o golpe militar, em 1964, seis jornalistas foram afetados nos dois primeiros anos da vigência do AI-5.
Também em 1969, em abril, os direitos políticos de um dos mais importantes jornalistas e romancistas do país Antonio Callado (1917-1997) foram suspensos. O autor de "Quarup" também acabou sendo preso -a cassação foi revogada posteriormente.
O poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) foi aposentado à força no Itamaraty em abril de 1969, no mesmo dia em que foi punido, com a aposentadoria na USP, Caio Prado Júnior (1907-1990), político, historiador e considerado um dos principais intelectuais do país.
Os expurgos ocorriam em ondas, após decisões sumárias tomadas pelo CSN a partir de processos administrativos que não abriam espaço para defesa e duravam poucos dias ou semanas.
Para provar que a pessoa merecia ser punida, o CSN se valia de todo tipo de informação produzida pela repressão, como informes confidenciais produzidos pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), peça da máquina de espionagem criada logo após o golpe de 1964.
Os informes eram feitos sem o conhecimento da pessoa sob investigação e podiam ser alimentados com meros boatos não confirmados, distribuídos por adversários do político.
As listas dos punidos eram publicadas no Diário Oficial e anunciadas pela imprensa. Em 15 divulgações de dezembro de 1968 a abril de 1969, 452 pessoas foram atingidas de alguma forma, incluindo 93 deputados federais em exercício do mandato. A maioria teve os direitos políticos suspensos por dez anos, o que implicava a perda imediata do cargo.
"Na fase inicial do AI-5, havia muito improviso na organização do sistema repressivo. Era um trabalho por espasmos", diz à Folha David Lerer, à época deputado federal do MDB paulista. O nome de Lerer, 81, apareceu na primeira lista de cassações após a decretação do ato.
O AI-5 também abriu caminho para o recrudescimento da repressão militar contra opositores à ditadura e integrantes dos grupos de esquerda que haviam adotado o caminho da guerrilha.
Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Foto: Divulgação |
Sete meses depois do ato, em julho de 1969, o 2º Exército e o governo de São Paulo criaram, com apoio financeiro de empresas privadas, a Oban (Operação Bandeirante), unidade formada por policiais civis e militares para perseguir militantes da esquerda.
A ditadura ainda estava abalada pelo ataque, em janeiro, liderado pelo capitão Carlos Lamarca (1937-1971) ao quartel de Quitaúna, em Osasco, na Grande São Paulo, de onde levou armas e munições.
No ano seguinte, em outubro de 1970, o modelo criado pela Oban foi difundido pelo interior do país, mas agora sob o guarda-chuva do próprio Exército, com a criação de unidades do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), que deu sequência à caçada aos integrantes da esquerda armada, com muitos episódios de tortura e execução de presos já dominados.
Da edição do AI-5 a dezembro de 1970, ao menos 44 militantes de esquerda foram mortos, incluindo um dos nomes mais procurados pelos militares, Carlos Marighella (1911-1969), abatido a tiros em São Paulo, e outros 11 foram presos e dados como desaparecidos.
O total de 55 em dois anos corresponde a 13% de todos os mortos e desaparecidos nos 21 anos de ditadura militar, segundo o número da Comissão Nacional da Verdade.
Como se sabe, o ano de 1968 foi um período marcado pela contestação política e comportamental em todo o mundo. No Brasil, a resistência civil também exibia um fôlego crescente.
O enterro do estudante Edson Luís, assassinado por policiais no Rio, atraiu dezenas de milhares de pessoas a um protesto contra o regime militar, em março. Três meses depois, ocorreu a manifestação contra o governo e a violência policial, que ficou conhecida como a Passeata dos Cem Mil.
Os movimentos estudantis e operários ganhavam força ao longo do ano.
No campo oposto, a chamada linha dura (os militares mais radicais) defendia medidas enérgicas para fazer frente ao que via como uma "guerra revolucionária".
"Havia em 1968 um movimento gigantesco de contestação nas ruas. Era um ambiente de grande tensão", diz Delfim Netto, à época ministro da Fazenda do governo Costa e Silva. Entre os 24 membros do Conselho de Segurança Nacional que participaram da reunião no Rio, Delfim, 90, é o único que está vivo.
O ex-ministro critica a linha dura ("extremamente nacionalistas, de uma visão muito curta"). No entanto, ele pondera que a situação do país naquele momento era "bastante complicada".
Para o ex-deputado David Lerer, a tensão poderia ter sido contornada. "O limiar do ponto de ebulição dos militares era extremamente baixo. Ferviam com qualquer coisa."
De qualquer modo, o atrito entre o Planalto e os parlamentares da oposição cresceu em 12 de dezembro com a decisão da Câmara de negar a licença pedida pelo governo para processar o deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009).
Pouco mais de três meses antes, em discurso na Câmara em 3 de setembro, Moreira Alves (MDB-RJ) havia protestado contra a violência dirigida a estudantes e a outros ativistas da oposição e convocado a sociedade a boicotar os desfiles militares de Sete de Setembro. "Quando o Exército deixará de ser um valhacouto de torturadores?", indagou.
Policiais prendem 920 estudantes durante congresso clandestino da UNE, em Ibiúna (SP), em 11 de outubro de 1968. Foto: Folhapress |
Para Delfim, "foi uma provocação inteiramente despropositada". O discurso "caiu muito mal entre os militares. Foi a gota d"água para o endurecimento do regime", recorda-se David Lerer, colega de partido e amigo de Moreira Alves.
Em uma sessão marcada pela fala do deputado Mário Covas (1930-2001) em defesa da autonomia do Poder Legislativo, o pedido pela punição de Moreira Alves foi rejeitado por 216 votos a 141.
Era a pior derrota política do regime militar desde a tomada do poder em 1964. Mais de 90 parlamentares do partido governista, a Arena, votaram a favor de Moreira Alves.
No plenário, a vitória foi celebrada ao som do Hino Nacional e com vivas à democracia. Estava criada uma crise institucional, opondo o Congresso às Forças Armadas.
No dia seguinte, uma sexta-feira 13, o presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) convocou a reunião do Conselho de Segurança Nacional. Surgiram poucas objeções, mesmo que veladas, às medidas propostas pelo ato.
"O que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é [...] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura", afirmou o vice-presidente, Pedro Aleixo, o único integrante da mesa a revelar uma preocupação clara com as novas propostas.
É preciso "acabar com estas situações que podem levar o país não a uma crise, mas a um caos de que não sairemos", declarou Augusto Rademaker, ministro da Marinha.
Delfim, que também apoiou enfaticamente as medidas durante a reunião do conselho, diz não se arrepender da posição tomada 50 anos atrás.
"Quando o futuro virou passado, você adquire uma outra visão. Com a situação que eu via naquele instante e com o conhecimento que tinha, eu repetiria o fato", afirma Delfim, colunista da Folha.
"Mais tarde, eu assinei a Constituição de 1988, com todos os direitos do artigo 7º [abrange direitos dos trabalhadores urbanos e rurais]."
No texto do AI-5, Costa e Silva alegava que seu governo resolvera editar o decreto em concordância com os propósitos da "revolução brasileira de 31 de março de 1964", que visavam dar ao país "autêntica ordem democrática".
Era imperiosa, dizia, a adoção de medidas que impedissem que tal ordem e a tranquilidade fossem comprometidas por processos subversivos.
No livro "A Ditadura Envergonhada", primeiro dos cinco volumes de série sobre o governo militar, o jornalista Elio Gaspari assim resume o encontro no Laranjeiras:
"Durante a reunião falou-se 19 vezes nas virtudes da democracia, e 13 vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e 18 dias."
O Congresso Nacional foi fechado e só reabriu em 21 de outubro de 1969.
Três meses depois da decretação do AI-5, permitiu-se a encarregados de inquéritos políticos prender quaisquer cidadãos por 60 dias, 10 dos quais em regime de incomunicabilidade. Segundo Gaspari, colunista da Folha, esses prazos se destinavam a favorecer o trabalho dos torturadores.
Há registros de tortura desde os primeiros dias da ditadura militar, mas a repressão ganhou intensidade após o AI-5, sobretudo no governo de Emílio Médici (1969-1974).
Rompia-se, a partir daí, parte expressiva do apoio civil ao regime. "O AI-5 aumentou a repressão e fez com que setores da oposição recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país", afirma o historiador José Murilo de Carvalho.
Em artigo recém-publicado pela Revista Brasileira de História, Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, examina as origens do ato.
De acordo com ele, a perda de prestígio e o isolamento político da ditadura, materializados na derrota na Câmara no caso Moreira Alves, estimularam a resposta autoritária dos agentes militares.
Pressionado à esquerda e à direita, vendo ruir os pilares de seu governo, Costa e Silva aceitou a demanda dos grupos militares mais radicais.
O governo já dispunha de instrumentos para reprimir revolucionários de esquerda. O novo ato autoritário, conclui Sá Motta, se prestava sobretudo a enquadrar dissidentes da própria ditadura, segmentos da elite (Congresso, Judiciário, imprensa, universidades) que apoiaram o golpe de 1964, mas se distanciaram em seguida.
"Se havia ainda dúvida de que o regime era uma ditadura governada por militares, isso cai em 68. Os militares foram ainda mais preponderantes no governo, e os parceiros civis tiveram papel mais apagado. A Arena, que servia para dar algum verniz democrático ao regime, entrou em ostracismo nos anos seguintes."
O AI-5 teve seu fim em 31 de dezembro de 1978, no governo Ernesto Geisel, em meio ao processo de abertura política. A ditadura, porém, resistiu por mais seis anos.
Colaborou EDMIR FARIAS
Cronologia do AI-5
Antes, durante e depois
28 de março de 1968 - O estudante Edson Luís é morto pela Polícia Militar durante protesto no Rio. Sucedem-se manifestações contra a violência policial
16 de abril de 1968 - Trabalhadores de siderúrgica de Contagem (MG) fazem a primeira grande mobilização operária no país desde o golpe de 1964. Acordo põe fim ao movimento no dia 26
17 de abril de 1968 - 68 municípios são considerados áreas de segurança nacional e proibidos de realizar eleições municipais
12 de junho de 1968 - Brigadeiro José Paulo Burnier revela ao capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho o plano de explodir o gasômetro do Rio, atentado que mataria milhares de pessoas. O objetivo era atribuir a culpa à esquerda. O plano não se consuma devido à recusa do capitão de levá-lo adiante; mais tarde, Carvalho é preso e reformado. O episódio passa a ser conhecido como caso Para-Sar
25 de junho de 1968 - Na manifestação que ficou conhecida como Passeata dos 100 Mil, no Rio, estudantes, artistas e representantes da classe média e da Igreja Católica se opõem à violência policial e pedem a volta da democracia
16 de julho de 1968 - Três meses depois de Contagem, acontece a greve de Osasco (SP). Metalúrgicos e estudantes ocupam a Cobrasma (Companhia Brasileira de Material Ferroviário). Três dias depois, mais de 400 são presos, e reivindicações não são atendidas
2 de setembro de 1968 - Márcio Moreira Alves, deputado federal pelo MDB, faz discurso enfático na Câmara. "Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?", questiona. Também sugere que a população boicote a parada militar de 7 de setembro
3 de outubro de 1968 - Acontece a Batalha da Maria Antônia. Com bombas, tiros e coquetéis molotov, estudantes do Mackenzie (alguns deles ligados ao CCC, Comando de Caça aos Comunistas) atacam os estudantes da Filosofia da USP. Esses últimos reagem, mas têm menor poder de fogo. Um jovem, que estava no prédio da Filosofia, é morto
Batalha da Maria Antônia - 1968. Foto: Acervo UH/Folhapress |
12 de outubro de 1968 - Polícia invade sítio em Ibiúna (SP), onde acontece o 30º Congresso da UNE. Mais de 900 estudantes são presos
12 de dezembro de 1968 - Em votação no plenário, marcada por discurso de Mário Covas (MDB-SP), Câmara não suspende a imunidade parlamentar de Moreira Alves. Decisão desagrada ao governo militar, que pretendia processar o deputado
13 de dezembro de 1968 - Após reunião do presidente Costa e Silva com membros do Conselho Nacional de Segurança, entra em vigor o AI-5 (ato institucional número 5), que impõe o recesso do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores. A partir daí, o presidente pode intervir em estados e municípios e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão. Habeas corpus também é suspenso
30 de dezembro de 1968 - Sai a primeira lista de cassações, que inclui 11 deputados federais, como Márcio Moreira Alves (MDB-RJ). Ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda tem seus direitos políticos suspensos
16 de janeiro de 1969 - Mais 35 deputados federais são cassados, entre eles Mário Covas (MDB). Lista também inclui dois senadores, Aarão Steinbruck e João Abraão, e três ministros do STF, Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva
25 de janeiro de 1969 - O capitão do Exército Carlos Lamarca foge do 4º Regimento de Infantaria, em Osasco (SP), levando dezenas de fuzis e metralhadoras
1º de julho de 1969 - Governador Abreu Sodré cria a Oban (Operação Bandeirantes), centro de repressão em São Paulo
31 de agosto de 1969Depois da saída da presidência de Costa e Silva, incapacitado por uma trombose, junta de ministros militares assume o poder
7 de setembro de 1969 - O embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, é libertado após passar quatro dias em poder dos sequestradores, integrantes de movimentos da luta armada. Os 15 presos políticos libertados embarcam para o México
O embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Foto: Acervo |
18 de setembro de 1969 - O governo aprova nova Lei de Segurança Nacional, que prevê pena de morte e prisão perpétua
30 de outubro de 1969 - O general Emílio Garrastazu Médici assume a presidência
4 de novembro de 1969 - Carlos Marighella, líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional), é morto a tiros em São Paulo
15 de março de 1974 - Ernesto Geisel assume a presidência
25 de outubro de 1975 - O jornalista Vladimir Herzog é morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Seis dias depois, mais de 10 mil pessoas participam de ato ecumênico na Catedral da Sé em memória de Herzog
17 de janeiro de 1976 - O metalúrgico Manuel Fiel Filho morre nas dependências do DOI-Codi. Como ocorreu com Herzog, versão oficial indica suicídio; mais adiante, fica comprovada a morte sob tortura
1º de abril de 1977 - Geisel fecha o Congresso Nacional
13 de outubro de 1978 - Sob o governo Geisel, é promulgada emenda constitucional que revoga todos os atos institucionais e complementares contrários à Constituição. Emenda passa a vigorar em 1º de janeiro de 1979. O AI-5 durou pouco mais de dez anos
Veja as nove páginas do Ato Institucional nº 5
Documento original está no Arquivo Nacional em Brasília
O primeiro ato institucional foi decretado nove dias após o golpe militar de 1964. O segundo foi editado em 1965, e outros dois em 1967. O mais radical e abrangente deles, o AI-5, é de dezembro de 1968. Foi seguido por outros 12 atos, todos decretados em 1969.
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O preâmbulo indica a necessidade de manter a "ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana" e a "luta contra a corrupção" como meios para atingir "reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil"
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Cita o AI-2 e o AI-4 para justificar um novo ato a fim de continuar a "Revolução" iniciada em 1964. Embora não haja referência explícita, umas das motivações do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), em que fez críticas duras aos militares
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Ao mencionar "fatores perturbadores da ordem", refere-se à votação na Câmara no dia anterior, contrária ao governo, aos movimentos estudantis e grevistas, aos atentados de grupos de esquerda, entre outros pontos. Dá aval ao presidente para decretar o recesso do Congresso
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Já no primeiro item do artigo 2, o regime impõe o recesso parlamentar. O presidente ganha poder para enviar interventores para estados e municípios
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Um dos trechos mais duros do documento. A partir de então, "para preservar a Revolução", o presidente pode suspender direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos, além de cassar mandatos eletivos
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Gama e Silva, ministro da Justiça, ganha poder no governo Costa e Silva para vigiar os cidadãos e limitar seu acesso a determinados lugares
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O artigo 8 dá poderes para que o presidente, após investigação, decrete "o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública"
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O ponto central da penúltima página é o artigo 10, que suspende o habeas corpus em casos como crimes políticos e crimes contra a segurança nacional
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Nas duas últimas páginas, estão as assinaturas de Costa e Silva e de 16 dos 24 membros do Conselho de Segurança Nacional
Capítulo 2
"Sacrificamos algumas coisas não fundamentais", disse Costa e Silva aos EUA sobre o AI-5
Arthur da Costa e Silva em 1965. Foto: Folhapress
Por Rubens Valente e Marco Rodrigo Almeida
BRASÍLIA E SÃO PAULO
Em janeiro de 1969, menos de um mês após o AI-5, o então presidente brasileiro, o general Costa e Silva (1899-1969), reconheceu numa conversa com o embaixador norte-americano em Brasília, John Tuthill (1910-1996), que a ditadura havia "sacrificado algumas coisas não fundamentais" com o Ato para "preservar as fundamentais", conforme argumentou. Ele tachou a imprensa de "irresponsável", os políticos como adversários das "realizações da Revolução", referindo-se ao golpe de 1964, mas reconheceu que o Brasil entrava para o grupo de países latinoamericanos (ao lado de Peru, Bolívia e Argentina) que viviam sob "regimes de exceção".
O documento mostra que Costa e Silva procurou ganhar tempo com o embaixador americano: pediu que ele dissesse ao governo dos EUA que havia uma "completa tranquilidade" no Brasil e que as coisas voltariam "ao estado de normalidade oportunamente", com a cautela necessária. O AI-5, contudo, só foi revogado quase dez anos depois, em outubro de 1978.
Ocorrida no palácio presidencial de verão em Petrópolis na presença do chanceler Magalhães Pinto (1909-1996), a conversa de meia hora foi registrada num telegrama, então classificado como confidencial e atualmente disponível para consulta no arquivo virtual do Departamento de Estado dos EUA, produzido pelo embaixador, que se despedia do Brasil.
Costa e Silva recebeu Tuthill com "cumprimentos efusivos" e logo "se lançou em um de seus longos monólogos", ao qual deu um fim abrupto, quando soou "o toque de recolher", às 18h00. O embaixador reclamou depois que "mal conseguiu encaixar uma palavra".
Depois de uma introdução "longa e desconexa" sobre os méritos das lentes de contato, o general comentou que Tuthill deixava a América Latina num momento "confuso" para a região, com a Colômbia em estado de sítio e outros quatro países, nos quais incluiu o Brasil, em "regime de exceção". O Uruguai era "um bom vizinho", mas estava "virtualmente "entregue aos comunistas"", escreveu o embaixador.
O presidente brasileiro, segundo Tuthill, demonstrou estar "consideravelmente cônscio das críticas dos EUA" sobre o AI-5 e "aparentemente as compreende". Em defesa da decisão brasileira, Costa e e Silva argumentou que os EUA têm uma "vida estratificada" e que "não se pode esperar que compreendam os problemas dos países em fase de desenvolvimento".
Foi a deixa para uma das poucas intervenções do embaixador. Ele afirmou a Costa e Silva que os EUA não desejavam "impor seu padrão a qualquer outro país", mas apontou que antes de sua eleição indireta, em 1967, escolhido de forma simbólica pelo Congresso, o presidente havia falado "três coisas que eu precisava ter em conta": "1) As Forças Armadas são a instituição mais importante do Brasil; 2) as Forças Armadas queriam que Costa e Silva fosse presidente; e 3) ele, Costa e Silva, trabalharia por um retorno a uma situação na qual um civil ou militar poderia ser escolhido como presidente".
Tuthill contou ter usado essas declarações em seus relatórios para o governo dos EUA em Washington, que agora "vinha acompanhado os atuais desdobramentos com preocupação". O embaixador indagou à queima-roupa: "O presidente gostaria que eu transmitisse alguma mensagem?"
Costa e Silva demonstrou preocupação sobre o imagem que o Brasil passava aos EUA naquele momento com o AI-5. Pediu que que o embaixador explicasse "toda a situação" para seus superiores e pontuou que havia "completa tranquilidade" no Brasil, em uma de suas expressões favoritas, que repetiu "diversas vezes" na conversa. O general falou do sacrifício "de algumas coisas não fundamentais" e culpou basicamente dois setores para o estado de coisas: os meios de comunicação e "a classe política", a exemplo do que já havia feito dias antes em seu discurso de Ano Novo.
"Ele [general] disse ter trabalhado por um entendimento entre os políticos e os militares, mas que os políticos não querem um entendimento. Se estivéssemos [EUA] cientes de todos os fatos, saberíamos que os políticos desejam desmantelar todas as realizações da Revolução. "Ninguém trabalhou com mais afinco do que eu [general] junto aos políticos, mas eles se recusaram a compreender"", escreveu o embaixador.
Sobre a imprensa, Costa e Silva reclamou "das dificuldades que enfrentou", citando como exemplo o "Correio da Manhã", jornal do Rio fundado em 1901 que fazia uma cobertura crítica sobre o regime militar desde o golpe. Sua proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), naquele mesmo mês teria seus direitos políticos cassados e depois seria presa e processada pela ditadura. Ficou num cárcere em Bangu, no Rio, em uma ala reservada a ladras e prostitutas, segundo texto de 2009 do escritor e jornalista Ruy Castro. Niomar foi absolvida em 1970 mas o jornal, sob intensa pressão política e financeira, faliu em 1974. O jornal fora invadido por agentes da repressão na mesma noite do AI-5, 13 de dezembro de 1968.
Na conversa, Costa e Silva reclamou com o embaixador que "desejava afrouxar a censura, mas tão logo o fez o "Correio da Manhã" imprimiu uma carta que ele [general] estaria supostamente enviando ao presidente eleito [Richard] Nixon". "Não existe uma carta como essa. Uma coisa desse tipo não seria permitida nos EUA, e o "Correio" teria sido processado, mas nossas leis não são fortes o suficiente para lidar com uma imprensa irresponsável ("a de vocês nos EUA é mais responsável"). O "Correio" publicou até todas as críticas na imprensa americana e europeia. Por isso o governo confiscou a edição de ontem do jornal", escreveu Tuthill.
Costa e Silva encerrou a conversa pedindo ao embaixador "para garantir ao governo americano que o Brasil hoje é um amigo verdadeiro dos EUA. Isso talvez não fosse verdade sob "os outros" (ele estava se referindo presumivelmente ao grupo de [João] Goulart antes de 1964)".
Em um balanço do encontro, o embaixador não ficou convencido. "É difícil saber até que ponto ele mesmo acredita no que diz. É evidente que agora está ciente das forças irrequietas entre os militares brasileiros, mas pode ser que esteja convencido (ou tentando se convencer) de que é capaz de contê-las. A impressão geral que ele nos deu foi a de que, a despeito de sua astúcia natural, talvez esteja subestimando as forças que estão em ação em seu país."
"Direitos deixaram de existir"
As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmente pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do Ato.
Na conversa de 20 de dezembro de 1968, acompanhada pelo secretário-geral e futuro ministro do Itamaraty, Gibson Barboza, segundo telegrama dos EUA, Magalhães Pinto deixou claro que seu interesse principal era como os EUA lidariam "com os programas de assistência" entre os dois países.
Tuthill respondeu que "não havia problema de reconhecimento e que o governo americano não cortaria suas assistência", mas deixou claro a Magalhães Pinto que "a reação em Washington aos acontecimentos recentes havia sido muito forte".
O embaixador pontuou que era necessária "uma indicação melhor de se o Brasil revolveria na direção da restituição de direitos democráticos básicos". Nesse momento, Magalhães Pinto "concordou rapidamente que esses direitos deixaram de existir".
Tuthill disse que governo americano cumpriria suas obrigações contratuais, mas ""esperaria para ver" quando a futuros programas da AID [Agência de Desenvolvimento Internacional] e quanto aos programas em negociação no momento".
Magalhães Pinto ofereceu uma lona explicação sobre os acontecimentos que, segundo ele, conduziram ao AI-5. Afirmou que "as pressões vinham crescendo há algum tempo" e que o discurso do então deputado Marcio Moreira Alves, considerado o estopim do Ato, "não representava mais que 10% ou 15% do problema, mas seu caso foi mal conduzido e mal resolvido". Depois da votação no Congresso que negou autorização para processar Moreira Alves, segundo o chanceler, "ficou claro que as Forças Armadas desejavam que o presidente agisse".
O chanceler disse que "o presidente resistiu". Tuthill escreveu no telegrama que "outras fontes confirmam". "Na primeira noite, ele [Costa e Silva] disse aos militares que não haveria solução naquele dia. Pelo segundo dia, já estava claro que se ele não agisse seria "ultrapassado". Assim, ele escolheu o caminho menos pior, que foi promulgar o Ato Institucional número 5."
O chanceler brasileiro argumentou que "a intenção do presidente é usar os imensos poderes de que dispõe de maneira firme mas moderada. O maior medo dos militares é a subversão, que também afetaria o desenvolvimento econômico. Parte disso é imaginário mas parte representa fatos sólidos. A intenção do presidente é resistir a grupos radicais e evitar a imagem de um governo militar".
Tuthill tinha muitas dúvidas sobre a promessa do chanceler de um rápido retorno à normalidade. "O presidente deseja o retorno da plena liberdade de imprensa o mais breve possível, "mas a poeira do ato institucional ainda não se assentou". O maior problema é que as forças armadas consideram a imprensa responsável pela agitação estudantil. Fica claro que o FonMin [Magalhães Pinto] enfrenta dificuldade para explicar exatamente como a liberdade de imprensa poderá ser restaurada, agora", escreveu Tuthill. O Ato só seria extinto dez anos depois.
SÃO PAULO CINQUENTA ANOS DEPOIS, O PAÍS ESTÁ LIVRE DO RISCO DE UM NOVO AI 5?
Num exercício teórico -que, se espera, nunca chegue ao plano da prática- a Folha ouviu especialistas em direito e comunicação para especular de que maneira um decreto tão arbitrário poderia ser implantado hoje.
Os entrevistados foram unânimes em dizer que um novo AI 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.
O decreto militar de 13 de dezembro de 1968 permitia ao presidente censurar a imprensa, correspondências, telecomunicações e diversões publicas. "As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais", escreveu o jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha, no livro "A Ditadura Envergonhada".
Hoje o controle da informação exigiria uma atuação mais ampla e intensiva que ocupar órgãos de comunicação.
"A experiencia com países autoritários demonstra que a primeira coisa a ser controlada é a internet. Foi o que ocorreu no Egito e, mais recentemente, na Turquia e na Ucrânia. Um dos efeitos imediatos poderia ser o bloqueio à internet em todo o país", diz Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.
Não seria algo muito complexo de realizar, explica -o país já teve amostras disso nos episódios em que o servio de mensagens instantâneas WhatsApp foi interrompido por conta de ordem judicial. O bloqueio em toda a rede seria efetuado por meio de uma ordem coercitiva ilegal, que coagiria as empresas de telecomunicação a suspender a conexão.
"Seria um rompimento institucional muito grave e as empresas deveriam resistir a qualquer tipo de ordem nesse sentido, sob pena de cumplicidade com uma medida de exceção."
Pablo Ortellado, professora da USP que se dedica ao estuda das redes sociais, lembra o caso da China. Lá os principais sites e aplicativos sociais do Ocidente foram banidos e substituídos por similares desenvolvidos por empresas chinesas subordinadas ao poder do Estado. Dessa maneira é possível vetar conteúdos e proibir buscas a respeito de determinados temas e palavras.
"Se o país não desenvolver programas nacionais, é muito difícil controlar esses serviços, pois essas grandes empresas operam todas nos EUA, estariam fora do alcance do governo de um determinado país. Num caso extremo, o mais fácil seria suspender sites e redes sociais".
Ele destaca o nefasto processo de submissão pelo qual passaria a sociedade civil após uma ação absolutista como essa, uma vez que as redes sociais cumprem uma função de informação e mobilização social.
Daniel Fink, engenheiro de telecomunicação, cita outros modelos externos totalitários. Na Síria, conta, houve investimento em espionagem na rede para identificar usuários influentes que estimulassem ações contra o governo.
"Na verdade, a internet até ajuda na perseguição, pois acaba sendo uma ferramenta informatizada de delação premiada. Tudo o que se faz gera um registro. Tecnicamente é muito simples identificar o usuário", diz.
Esse método, diz ele, permitiria uma perseguição mais velada, dando ao país a oportunidade de ostentar um pretenso verniz democrático, em contraposição ao ato escancarado de vetar a internet. Exemplo mais extremo é o caso da Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informações autorizadas pelo governo.
Para o advogado Diogo Rais, uma novo de AI 5 teria uma roupagem mais diversa. No lugar da informação, o Estado totalitário controlaria a desinformação. As forças da ditadura teriam um setor de distribuição em massa de notícias falsas.
"Uma propagação intensa de notícias falsas teria o efeito de ludibriar a população em favor do governo, criando um ambiente de desconfiança em relação às instituições, à imprensa tradicional. Poderia levar a uma erosão perigosa dos princípios democráticos", especula.
Um novo AI 5 parece ser um cenário apocalíptico demais para ser concretizado, mas a prudência sugere a eterna vigilância em relação ao Estado.
"A democracia é um processo de construção permanente, incessante, não é um dado posto e estático. Por isso é que devemos defendê-la radical e incondicionalmente", afirma o advogado constitucionalista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
"Os meios de resistência contra o arbítrio são lutar para manter nossas instituições fortes, independentes e imparciais, e a garantia da possibilidade do dissenso democrático, de organizações da sociedade civil e da liberdade de expressão."
Capítulo 3
'Brasil perdeu um pedaço da história', diz deputado cassado na 1ª lista do AI-5
Naief Haddad
SÃO PAULO
Em 1978, o ex-deputado federal pelo MDB paulista David Lerer voltou ao país depois de jornadas pela América do Sul, Europa e África. Havia deixado o Brasil uma década antes com medo de ser preso.
"Nas semanas anteriores ao AI-5 [ato institucional número 5], todos [no Congresso] já sabiam que algo iria acontecer. O ministro Gama e Silva circulava com um rascunho do ato. Era um segredo de polichinelo", conta ele, também médico aposentado.
David foi um dos primeiros deputados federais cassados pela ditadura militar após a decretação do AI 5.
Ele ficou exilado 9 anos e meio. Foto: Eduardo Knapp - Folhapress
No dia 13 de dezembro de 1968, poucas horas antes da reunião da cúpula do governo que sacramentou o AI-5, ele esteve na Câmara, em Brasília. Foi uma passagem rápida porque Lerer e os raros parlamentares que estavam na capital temiam que os militares invadissem o Congresso Nacional a qualquer momento.
Com seu fusca, Lerer saiu em direção a uma agência do Banco do Brasil para sacar todo o dinheiro que tinha. Em seguida, foi ao hotel onde se hospedava para fazer a mala.
Decidiu permanecer em Brasília, mas agora instalado numa casa de estudantes, que estava vazia àquela altura.
Três dias depois, os jipes da Polícia Militar estacionaram em frente à residência. "A PM arrombou a porta e me deu uns tabefes. Eu estava de cueca, me pegaram de samba-canção [risos]. Botei a calça do pijama, peguei minha mala e fui com eles".
Ele estava na carceragem em Brasília quando saiu a primeira lista de cassações, em 30 de dezembro de 1968. A relação divulgada pelo governo federal trazia dez nomes de deputados federais, entre eles o de Lerer. Além dele, estão vivos Gastone Righi e José Lurtz Sabía, ambos pertencentes ao MDB paulista.
Nas semanas seguintes, outras listas com cassações foram anunciadas pelo regime.
Além das cassações, o endurecimento promovido pelo AI-5 resultou em aposentadorias compulsórias, direitos políticos suspensos e demissões, além de mortes de militantes da esquerda armada.
Liberado pelos policiais em 31 de dezembro, Lerer pegou um ônibus na rodoviária de Brasília dias depois e retornou a São Paulo, onde viviam seus pais. Proibido de atuar na política, voltou a trabalhar como médico.
Não manteve, contudo, uma rotina normal. "Eu via uma farda militar na rua e já ficava aflito", recorda-se. Era obrigado a se apresentar à Polícia Federal uma vez por semana.
Após a prisão de Hélio Navarro, deputado da oposição cassado como ele, Lerer se deu conta que a sua detenção estava prestes a acontecer. Embora seu passaporte tivesse sido confiscado pelos policiais, ele estava determinado a deixar o país.
Depois do AI-5, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de
dois países africanos, Moçambique e Angola. Foto: Eduardo Knapp -Folhapress
Com a ajuda de um amigo advogado gaúcho, passou por Canoas (RS) e Porto Alegre até desembarcar em Santana do Livramento (RS), na fronteira com o Uruguai. De lá, incomodado pelo frio intenso, mas não pelos guardas, atravessou a divisa caminhando e chegou a Rivera, no país vizinho.
Nos anos seguintes, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos, Moçambique e Angola.
Hoje vive com a mulher, Katia, em São Sebastião, no litoral paulista. Está afastado de atividades partidárias, mas se mantém atento à política.
"Houve um grande desestímulo à juventude [com o AI-5], o sentimento de "podemos mudar o mundo" foi perdido. Entre 1968 e 1978 [período em que vigorou o ato], o Brasil perdeu um pedaço da história", afirma Lerer. "O vício do autoritarismo se reforçou nessa época."
Julianna Sofia: É horrível ser trabalhador no Brasil
Com FAT e FGTS nas mãos, Guedes deve inovar no uso de dinheiro do trabalhador
O futuro governo de Jair Bolsonaro fatiará tal qual um salame o quase secular Ministério do Trabalho. As rodelas graúdas e cobiçadas ficarão sob a aba do poderoso Paulo Guedes (Economia), restando a Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) e Osmar Terra (Cidadania) administrar os nacos menos apetitosos — registro sindical e economia solidária, respectivamente.
A emissão das cartas sindicais virou caso de polícia e faz sentido remeter a tarefa à alçada de Moro.
O envolvimento de parlamentares, políticos e burocratas do Ministério do Trabalho em um esquema de propina para liberação de registros para sindicatos foi desvendado pela Operação Espúrio, que já mandou para o banco dos réus peixes grandes como o ex-deputado Roberto Jefferson.
Ainda está indefinido se o ex-juiz herdará também o combate ao trabalho escravo, tema controverso numa gestão em que a ascendência da bancada ruralista será inquestionável. Há chance de a fiscalização desse tipo de atrocidade ficar com Guedes.
Duas joias da coroa do reinado trabalhista, o FGTS e o FAT —donos de um patrimônio calculado em R$ 800 bilhões— foram estrategicamente capturadas pelo czar da economia bolsonarista. Não é de hoje que sucessivas equipes econômicas tentam inovar no uso desses fundos, que asseguram aos trabalhadores benefícios como seguro-desemprego e abono salarial, além de acesso a habitação popular e saneamento básico.
Guedes terá franco acesso a essas poupanças. No receituário, há propostas para extinguir o abono e usar o FGTS num sistema complementar ao seguro-desemprego. Isso reduziria o gasto do Estado com essas despesas —R$ 60 bilhões/ano. Outra ideia é usar até 25% dos depósitos do fundo de garantia na capitalização de contas individuais dentro de um novo modelo previdenciário.
Num país com 12,3 milhões de desempregados e taxa decrescente graças à destruição de vagas formais, a revolução liberal causa arrepios. Não está horrível apenas para patrões o Brasil dos dias atuais.
Demétrio Magnoli: A hora dos alunos
Como petistas, bolsonaristas tacham adversários de 'inimigos do povo'
As savanas, como o nosso cerrado, são ambientes sujeitos à combustão espontânea —mas a maior parte das queimadas "naturais" nascem de um foco de fogo humano, que pode ser um fósforo aceso ou a bituca de um cigarro.
Na política, quase nada é espontâneo. A ofensa lançada pelo advogado Cristiano de Acioli ao ministro do STF Ricardo Lewandowski no espaço restrito de uma aeronave não foi um gesto impulsivo de indignação, mas um ato inscrito numa estratégia política.
No episódio, de fortuito existiu apenas o encontro com o ministro num voo de carreira.
Não fosse aquele dia, seria outro. Não fosse Acioli, seria outro. A frase ofensiva circula há tempo, como mantra, nos blogues e redes sociais bolsonaristas. No dia seguinte ao episódio, ressurgiu como projeção de luz na fachada do edifício do STF, por obra do MBL.
Acioli agiu como militante, ativando previamente seu celular para registrar a cena, a fim de difundi-la nos territórios da "guerrilha da informação".
Para livrar-se de acusações legais, o militante bolsonarista alega que seu alvo era a corte suprema, não a pessoa de Lewandowski. Mas —com o perdão de Derrida— o texto nada significa sem o contexto.
A "vergonha de ser brasileiro" de Acioli relaciona-se aos votos e opiniões de Lewandowski, de Gilmar Mendes e de Toffoli, não aos de outros integrantes do STF. O problema dele —um advogado!— é a existência do habeas corpus e, de modo geral, do devido processo legal.
O governo Bolsonaro é, sob certo sentido, o fruto maduro da "era do lulismo". Da militância petista, os bolsonaristas aprenderam a demonizar a opinião divergente e a exibir seus adversários como "inimigos do povo".
A prolongada pedagogia do PT os ensinou a constranger publicamente os "desviantes", para depois difamá-los no conforto anônimo das redes sociais. O lulismo tinha seus blogueiros de estimação; o bolsonarismo já os tem. Nas artes da "guerrilha da informação", os alunos já ultrapassaram seus mestres.
O PT inspirou-se na tradição do castrismo para promover "atos de repúdio". O bolsonarismo reativa a prática, talvez sem conhecer sua origem.
Acioli, muito esperto, não gravou tudo. Depois da provocação registrada, ele conclamou os passageiros a vaiarem Lewandowski. O "indignado" Acioli é um farsante —tanto quanto os "indignados" petistas que injuriaram a blogueira cubana Yoani Sánchez em 2013 ou os que vandalizaram a mesa de debate na qual eu estava, numa festa literária na Bahia, no mesmo 2013.
Na Cuba castrista, o "ato de repúdio" contra dissidentes é uma rotina semioficial, patrocinada pelos Comitês de Defesa da Revolução, ou seja, pelo partido único.
Por aqui, é um evento político que precisa ocultar sua natureza. Sem o amparo formal do Estado, a militância envolvida invoca o princípio da liberdade de expressão. Foi sob esse pretexto que uma matilha de delegados ao congresso do PT afogou em insultos a jornalista Miriam Leitão, casualmente também durante um voo de carreira. Acioli, o bolsonarista, é um petista tardio.
No Brasil, é livre a crítica ao STF, como a qualquer de seus juízes. Acioli tem o direito de escrever que a corte é uma vergonha ou que os votos de Lewandowski o envergonham. Ninguém lhe negará a prerrogativa de falar isso tudo em espaços apropriados de debate.
Mas, como os demais, a liberdade de expressão é um direito relativo, que convive com outros. Acioli sequestra a palavra liberdade quando a utiliza para fantasiar a ofensa, o constrangimento público e a violação da privacidade.
O bolsonarismo nutre-se da intolerância raivosa, tanto quanto antes nutriu-se o lulismo. A agressão a Lewandowski parece singular, até admissível, pois se trata de uma autoridade.
As aparências enganam: hoje é ele; ontem fomos eu, Yoani e Miriam Leitão; amanhã é você. Os alunos imitam seus mestres —e os superam.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Vinicius Torres Freire: Sabrina e a guerra fria de EUA e China
Donos do dinheiro andam nervosos, desde o começo de outubro
Soube-se nesta quinta-feira (6) que o Canadá prendeu uma alta executiva chinesa a pedido dos Estados Unidos. A notícia foi bastante para provocar grandes baixas nas Bolsas. Sim, a história afetou o Brasil também.
Segundo essa teoria, a prisão seria outro indício de degradação das relações sino-americanas, de que a disputa comercial entre os dois países iria de mal a pior, o que elevaria o risco de desaceleração econômica nos países mais relevantes, EUA e China inclusive.
No meio para o fim da tarde, essa bola de neve derreteu. Reportagem do Wall Street Journal contava que a direção do Fed, o banco central dos EUA, cogita esperar para ver como é que ficam preços e atividade econômica antes de prosseguir na campanha de alta das taxas de juros, em 2019.
O preço das ações subiu. Também aqui no Brasil, a Bovespa recuperou quase todas as perdas feias do dia; o dólar passou a cair. Se os juros subirem menos nos EUA, melhor também para as nossas taxas.
Esses paniquitos do mercado e suas explicações têm algo de ridículo e a racionalidade gelatinosa da finança. Mas os donos do dinheiro andam nervosos, desde o começo de outubro.
Sim, a guerra de Donald Trump contra o comércio mundial é uma estupidez daninha. A economia americana dá um ou outro sinal de desacelerar, mas não há indício razoável de recessão. Episódios aparentemente menores como a prisão da executiva por vezes são uma gota d'água. De qualquer modo, por um lado, as reações do mercado parecem exageradas. Por outro, os surtos que já duram dois meses são inquietantes.
O episódio da prisão, enfim, foi menor?
A executiva presa não é peixe pequeno. É Meng Wanzhou, conhecida como Sabrina ou Kate no Ocidente, diretora financeira, vice-presidente do conselho da Huawei e filha do fundador da empresa, muito ligado ao Exército e ao governo da China. "Sabrina" teria sido presa porque comanda negócios que violam as sanções americanas contra o Irã.
A Huawei é a maior do mundo no ramo de equipamentos de infraestrutura de telecomunicações, para redes de 5G, por exemplo, e a segunda maior fabricante mundial de celulares, depois da Samsung.
Já faz telefones com processadores tão avançados quanto os da Apple. Fatura mais de US$ 92 bilhões por ano (R$ 356 bilhões, uma Petrobras e uma Vale somadas). Seja qual for o motivo, é tida como ameaça pelos americanos.
Desde 2012, pelo menos, parlamentares americanos dizem suspeitar que a Huawei venda equipamentos com aparelhos de espionagem embutidos, além de acusarem a empresa e outras chinesas de roubar tecnologia.
Em agosto, Trump sancionou lei que vai proibir o governo de comprar certos equipamentos da Huawei e de outras chinesas do ramo. A mesma lei, feita com o olho na China, reforça o Comitê de Investimento Estrangeiro, conselho formado por várias agências do governo, responsável por verificar se empresas estrangeiras representam risco para a segurança nacional.
Vários governos e empresas ocidentais, em parte pressionados pelos americanos, passaram a recusar negócios com a Huawei, tais como as firmas que ora instalam redes de 5G, o que já aconteceu no Reino Unido e na Austrália.
Pode não ser motivo de recessão ou outros exageros imediatistas, mas a guerra fria de Trump e, em geral, o desconforto ocidental com o progresso chinês estão bulindo não só com os mercados mas com pactos da ordem econômica do mundo.
Bruno Boghossian: Com sorte, nova ministra não terá poder sobre educação e saúde
Área de direitos humanos tem problemas e não precisa de invencionices ultraconservadoras
Segundo Damares Alves, em breve a princesa do desenho “Frozen” acordará a Bela Adormecida com um “beijo lésbico”. Ela também reclamou quando viu o pai gay de uma ilustração usando um tênis da moda, que o faz parecer mais descolado do que um pai heterossexual.
Com sorte, a futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não terá poder para interferir em políticas públicas na saúde, na educação, na cultura e em outros temas fora de seu guarda-chuva.
A pasta que será comandada pela advogada e pastora não toma decisões nessas áreas, mas costuma ser ouvida. Caso ela abasteça o governo com as informações que usou em palestras nos últimos anos, o país corre o risco de enfrentar retrocessos.
Damares já distorceu dados sobre saúde pública para mobilizar fiéis de igrejas evangélicas. Em 2013, disse que não há milhares de mulheres que morrem em consequência de abortos ilegais e desafiou qualquer pessoa a mostrar seus túmulos.
Também exibiu uma propaganda italiana sobre discriminação sexual e disse falsamente que ela seria reproduzida no Brasil. Ao falar de turismo sexual, afirmou: “Tem muito hotel fazenda de fachada por aí para os homens transarem com animais”.
Nesta quinta-feira (6), Damares disse estar interessada em combater preconceitos, a pedofilia e a violência contra a mulher. O ministério já tem um prato cheio de problemas para resolver sem as invencionices de alas ultraconservadoras.
Se não surgirem explicações convincentes, a revelação de que um ex-assessor de Flávio Bolsonaro movimentou R$ 1,2 milhão em um ano e assinou um cheque de R$ 24 mil para a mulher de Jair Bolsonaro abrirá a primeira crise do novo governo.
O azar do futuro presidente é que ele não poderá usar a caneta Bic para demitir o filho, senador eleito, caso precise se distanciar do problema. Nesta semana, Flavio disse que, por causa do sobrenome, não será “um senador comum”. Ele tem razão.
Matias Spektor: Aliança com 'Lula do Oriente Médio' traz custos para Bolsonaro
Presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha
Jair Bolsonaro está prestes a cometer equívoco do qual pode se arrepender com amargura: colar sua imagem ao "Lula do Oriente Médio".
Pela terceira vez consecutiva, a polícia de Israel denunciou Binyamin Netanyahu por recebimento de propina, fraude e quebra de decoro.
O esquema envolve conglomerados de mídia e indústria de defesa, sua própria esposa, parentes e assessores.
Assim como Lula, Netanyahu se apresenta como vítima de uma conspiração das “elites” incapazes de derrotá-lo pelo voto. Acusa também os investigadores de vazarem informações sensíveis à imprensa.
Como uma parcela do eleitorado acredita cegamente em suas palavras, Netanyahu pode até vencer as próximas eleições, mas seu nome está definitivamente maculado.
Sua perspectiva de poder também. Chefes militares israelenses começaram a criticá-lo, e deputados de sua base iniciaram o desembarque da aliança.
Esse revés cria um problema para Bolsonaro.
O presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha, visitando o país com os filhos e defendendo a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém.
No entanto, Bolsonaro e sua equipe passaram a perceber o tamanho da conta a pagar, caso o Brasil abandone a postura de equilíbrio na questão Israel-Palestina, que é marca registrada da política externa pelo menos desde o governo do general Costa e Silva.
O primeiro custo seria diplomático: isolamento. Apenas os EUA e a Guatemala têm embaixadas em Jerusalém. O Paraguai tentou, mas foi forçado a recuar. O Brasil faria seu movimento por romantismo, a troco de nada. É o pesadelo de qualquer especialista em geopolítica.
O segundo custo seria material: há superávit de quase US$ 8 bilhões com o mundo árabe, em produtos de defesa e proteína animal.
Haveria, ainda, um custo político para Bolsonaro, na forma de articulação entre a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e as grandes multinacionais verde-amarelas com presença no Oriente Médio. De quebra, o custo humano: como disse o comandante da Força-Tarefa da ONU no Líbano, a eventual transferência da embaixada pode tornar tropas brasileiras alvo de terrorismo.
Agora, o custo da guinada acaba de ficar ainda mais alto.
Afinal, o que dá lastro ao alinhamento entre Bolsonaro e Netanyahu é a promessa de vultosos negócios nas áreas militar e de segurança cibernética. O governo brasileiro tem muito a ganhar cooperando com Israel em segurança das fronteiras e combate ao crime organizado e ao narcotráfico.
Só que Netanyahu acumula as pastas de Defesa e Relações Exteriores. A devassa da polícia promete respingar para tudo quanto é canto. Inclusive no exterior.
*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.
Fábio Konder Comparato: Por falar em democracia
Soberania popular é hoje confundida com populismo
Desde a Antiguidade clássica até a segunda metade do século 19, a democracia sempre foi tida como regime político subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democrática, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteriam a ninguém, já não haveria bons costumes, amor à ordem, virtude, enfim.
Por sua vez, James Madison, um dos "founding fathers" dos Estados Unidos, sublinhou que a democracia, por ele entendida como a "sociedade consistente num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo diretamente", incentivaria o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social.
Entre nós, menos de um ano após a independência, quando se elaborava a Constituição do novo Estado, o jovem imperador lançou um brado de alerta:
"Algumas Câmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus deputados em que reina o espírito democrático. Democracia no Brasil! Neste vasto e grande Império é absurdo; e não é menor absurdo o pretenderem elas prescrever leis aos que as devem fazer, cominando-lhes a perda ou derrogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes compete dar".
Durante todo o século 20, contudo, o juízo de valor que se fazia sobre a democracia era exatamente o inverso. Com raras exceções, nenhum partido ou movimento político ousava dizer-se antidemocrático. Todos, ao contrário, esforçavam-se por se apresentar como os únicos verdadeiros defensores do "governo do povo, pelo povo e em prol do povo".
Tal unanimidade a propósito de democracia era evidentemente suspeita. Ao fazer do elogio desse regime um simples chavão político, ela revelava formidável confusão semântica. O povo, que pela própria etimologia (demos, povo + kratos, poder) seria o principal beneficiário dessa forma de organização política, sempre pareceu ter sérias dificuldades em entender o que está por trás das palavras encantatórias da propaganda.
Pesquisa realizada pelo instituto Latinobarômetro revelou que o apoio dos latino-americanos à democracia chegou em 2018 ao nível mais baixo já registrado: 48%, uma queda de cinco pontos percentuais em relação à 2017. No Brasil, esse apoio é ainda menor: 34%.
Pois bem, atualmente a aprovação da democracia se enfraquece no mundo todo; isso tem suscitado apreciável número de estudos sobre o fenômeno, até mesmo nos Estados Unidos, apresentado como parâmetro desse regime político após a Segunda Guerra Mundial.
A soberania popular é hoje, cada vez mais, como se acaba de ver em nosso país, confundida com populismo; ou seja, a revolta do "povão" contra as elites e a busca de um homem forte no governo; se possível, um militar da ativa ou da reserva, cercado de seus colegas de farda.
Pergunta-se: é possível vencer essa tendência declinante? De minha parte, respondo afirmativamente, desde que se compreenda qual a condição essencial de um regime de autêntica soberania popular, e não de uma oligarquia fantasiada em democracia, como sempre aconteceu em nosso país.
Esse pré-requisito essencial implica a ausência de uma profunda desigualdade social, a qual sempre existiu entre nós. Hoje, conforme relatórios da prestigiosa ONG internacional Oxfam, sabe-se que as seis pessoas mais ricas do Brasil têm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre do país. De sua parte, a WID (World Wealthand Income Database) colocou nosso país como líder mundial em desigualdade, atrás até mesmo dos países do Oriente Médio.
Tudo isso, como ninguém ignora, tem consequências políticas arrasadoras. A Constituição em vigor, como várias que a precederam, declara solenemente que "todo o poder emana do povo". Mas este jamais teve a mínima condição de exercê-lo.
*Fábio Konder Comparato é professor emérito da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra