Folha de S. Paulo

Hélio Schwartsman: Livrarias orgânicas

A concorrência dos eletrônicos não é a única a assombrar livreiros tradicionais

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Por ações e omissões, sinto-me em parte responsável pelo que muitos já chamam de morte das livrarias. É que há dez anos leio quase que exclusivamente no Kindle. Nesse período, deixei de adquirir 548 itens de livreiros tradicionais.

Compreendo perfeitamente a resistência dos fãs do papel. Também tenho meu lado fetichista. Adoro o cheiro de uma edição da Bibliothèque de la Pléiade e, num lance tipo Jack, o Estripador, sinto falta de talhar as páginas dos exemplares não cortados com que a Belles Lettres às vezes me brindava.

Curvei-me, porém, às imposições do pragmatismo. O diabólico aparelhinho da Amazon serve melhor aos meus propósitos. Os livros eletrônicos chegam instantaneamente às minhas mãos (contra semanas numa importação física) e custam menos. Igualmente importante, o Kindle me permite fazer buscas no conjunto de obras da minha biblioteca e acessar anotações feitas durante a leitura.

A concorrência dos eletrônicos não é a única a assombrar livreiros tradicionais. Há também a competição das livrarias virtuais, que, por dispensar os caros aluguéis de espaço em shopping centers, a contratação de equipes de profissionais e por reduzir o capital que fica empatado na forma de livros que demoram a vender-se, conseguem praticar preços consideravelmente menores.

Não penso, porém, que as livrarias tradicionais irão todas desaparecer. Num mundo com mais de 7 bilhões de habitantes, sempre haverá um número não desprezível de leitores irredutivelmente fetichistas ou que apenas apreciam flanar entre as estantes de uma livraria em busca de uma serendipity e depois tomar um café folheando a obra. Desde que esses leitores estejam dispostos a pagar um pouco mais em cada exemplar assim adquirido, boas livrarias podem continuar existindo. É mais ou menos o mesmo modelo da agricultura orgânica, que prospera.


Bruno Boghossian: Caso Coaf é o primeiro teste da estratégia de poder de Bolsonaro

Governo escorado na popularidade do presidente é mais sensível a manchas na imagem

Passaram-se sete dias desde a revelação de que um assessor de Flávio Bolsonaro movimentou R$ 1,2 milhão em um único ano e deu um cheque de R$ 24 mil à mulher de Jair. De saída, a família julgou que devia poucas explicações, mas o episódio tem potencial para depreciar um dos principais ativos do próximo presidente.

Bolsonaro já demonstrou que pretende governar com o poder das redes sociais, escorado em sua popularidade. Embora pareça uma boa ideia, a estratégia carrega seus riscos. Se o presidente depende de constante aprovação, manchas na imagem também podem drenar sua força.

O silêncio e as explicações dadas pela metade não abafaram o caso. Informações que vieram a público ao longo da semana acentuam as suspeitas de que o gabinete de Flávio na Assembleia do Rio obrigava funcionários a devolverem parte de seus salários —mecanismo conhecido como “pedágio” ou “rachadinha”.

Fabrício Queiroz, ex-motorista de Flávio, não conseguiu justificar os depósitos que recebia em sua conta no dia do pagamento dos outros servidores. Também não disse por que sacava o dinheiro logo depois. Não há provas de que os Bolsonaros tenham se beneficiado de alguma ilegalidade, mas as interrogações não ajudam a família.

As suspeitas levantadas são especialmente danosas porque Bolsonaro se elegeu sob a bandeira da rejeição ao sistema e da tolerância zero com a corrupção. A cobrança de pedágio é um dos hábitos mais ordinários da velha política —assim como a contratação de funcionários fantasmas e o recebimento de auxílio-moradia sem necessidade.

O presidente eleito dobrou a aposta nesta quarta (12). Ao fim de uma transmissão no Facebook, disse: “Se algo estiver errado, que paguemos a conta”. Assim, Bolsonaro reforça o exercício do poder em linha direta com seus eleitores, como afirmou em sua diplomação. Se não conseguir apresentar um esclarecimento completo sobre o caso, ele pode conhecer o lado amargo desse plano.


José Murilo de Carvalho: 'AI-5 acarretou círculo vicioso de violência nunca antes visto no país'

Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Um dos mais importantes historiadores brasileiros, José Murilo de Carvalho afirma que o AI-5 acarretou um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país.

O Ato Institucional número 5, editado pelo governo militar há 50 anos, representou o início da fase mais dura da ditadura. Concedia ao presidente, entre outros arbítrios, poderes para fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos. Só foi extinto dez anos depois, no último dia de 1978, em meio ao processo de abertura política.

"As medidas do AI-5 afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia", afirma Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de livros como "A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho" e "Os Bestializados".

Ele pondera, contudo, que o regime militar passou por fases distintas de repressão e apresentou resultados positivos na economia, o que em parte explica o saudosismo de grupos que pedem nova intervenção militar. Uma história mais isenta do período ainda está para ser escrita, diz.

O que significou o AI-5 no contexto do governo militar?
Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime. O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, a mesma que, no ano seguinte, promoveu o que se chamou na época de golpe dentro do golpe, isto é, a substituição de Costa e Silva, ele próprio um dos líderes dessa linha, mas afastado por razões médicas, e de seu vice, o civil Pedro Aleixo, por uma junta militar puro sangue.

As medidas do AI-5 afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia. Entre 1968 e 1978, houve claramente uma ditadura militar. A dificuldade é dar nome aos anos que precederam e seguiram essa ditadura.

Na época, falou-se em ditabranda para a distinguir de ditadura. Mas como medir isso? O que seria uma ditabranda?
Apesar da dificuldade, creio ser importante, para melhor entendimento do período como um todo, registrar que ele teve uma dinâmica interna, como, aliás, qualquer época histórica.

Podemos indicar essa dinâmica traçando o percurso de algumas variáveis socioeconômicas ao longo dos 21 anos que durou o governo militar. A violência e o arbítrio, por exemplo, percorreram uma curva de tipo sino, isto é, cresceram de 1964 até 68-69, atingindo seu ápice, e começaram a decrescer a partir de 1978-79, quando foram suspensos os efeitos dos atos adicionais, foi aprovada a anistia e ressurgiram as greves operárias.

A curva do crescimento econômico seguiu padrão semelhante: começou baixa, atingiu um auge de 14%, no período mais violento, e começou a cair nos últimos anos.

A curva da inflação teve formato oposto, o de U, isto é, começou no alto, caiu e retomou a subida ao final.

Um exame das interrelações dessas três curvas pode ajudar a entender a dinâmica sociopolítica do período.

Na reunião do Conselho de Segurança Nacional, Pedro Aleixo, então vice-presidente, foi o único a se opor explicitamente à radicalização do regime. Tivesse ele mais apoio, teria sido possível evitar o AI-5?
Dificilmente. A decretação do AI-5 foi uma vitória da linha dura militar, que só seria desafiada mais tarde pelo general Geisel.

Opositores civis não tinham qualquer condição de alterar o curso dos acontecimentos. Mesmo porque havia muitos civis, políticos ou não, apoiando o governo. O redator do AI-5 foi o ministro da Justiça, Gama e Silva, um professor de direito, ex-reitor da USP.

O discurso de Marcio Moreira Alves contra os militares e a decisão da Câmara de negar a licença para processá-lo foram, de fato, preponderantes para o AI-5 ou apenas pretextos para uma medida que seria tomada de qualquer maneira?
Serviu de pretexto. A oposição se fortalecia e ameaçava o regime. Em junho de 1968, houve a Passeata dos 100 Mil no Rio de Janeiro.

O senhor acha que Costa e Silva teria mesmo revogado o AI-5 em 1969, como se diz, se não tivesse sofrido o derrame?
É o que se dizia na época. Mas, em 1964, Costa e Silva foi o principal representante do grupo militar mais radical e contribuiu decisivamente para que a intervenção militar se afastasse do padrão anterior de 1945, 1954 e, mesmo, de 1961, quando o poder foi devolvido aos civis depois do golpe.

Qual foi a pior marca do AI-5?
Ele aumentou a repressão e fez com que setores da oposição recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país. A repressão atingiu prioritariamente intelectuais, jornalistas, estudantes e artistas, além de lideranças sindicais.

O pior legado do AI-5 foi a divisão da sociedade brasileira em grupos antagônicos, foi o divórcio entre Forças Armadas e alguns setores da sociedade, foram os ferimentos que, ficamos agora sabendo, ainda não cicatrizaram. Talvez seja necessário que decorra mais uma geração para que uma história mais isenta do período seja escrita.

Hoje muitos negam que tenha havido uma ditadura militar no país, entre eles, o presidente eleito Jair Bolsonaro. Alguns grupos pedem intervenção militar. Por que isso ocorre?
Quanto à primeira parte, é difícil dizer que não houve ditadura diante de fatos como o fechamento do Congresso, a extinção dos partidos, a censura à imprensa, as cassações de mandatos e de direitos políticos, as demissões arbitrárias, inclusive de juízes do STF, as prisões, a tortura, as mortes de prisioneiros políticos. Se isto não é ditadura, o que seria? O máximo que se pode dizer é que o período passou por fases distintas de repressão, como foi sugerido.

Quanto à segunda, é preciso repetir que o período militar ainda não é história, ainda vive na memória de muitos, sobretudo dos que foram suas principais vítimas. Mas é preciso admitir que haja também memórias positivas em alguns setores da população. É preciso lembrar o grande crescimento econômico da época, a urbanização acelerada, a grande criação de empregos, as muitas medidas de caráter social, como o BNH, o Mobral, o INPS.

Em matéria de direitos, a ditadura dos militares copiou a de Vargas: tirou direitos civis e políticos, criou direitos sociais. E, naturalmente, houve a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol em 1970. A Folha publicou recentemente resultados intrigantes de uma pesquisa sobre a memória da ditadura.

Eles indicavam que a visão negativa do regime era maior na geração que se seguiu a ele do que naquela que o viveu. Como explicar isso?


Folha de S. Paulo: AI-5 também agradou aos militares moderados, diz historiador

Por Naief Haddad, da Folha de S. Paulo

A versão de que o Ato Institucional número 5 foi decretado para agradar à chamada linha dura (os militares mais radicais) do governo Costa e Silva é corrente entre grande parte dos historiadores do país. Para o professor de história da USP Marcos Napolitano, não é bem essa a realidade.

De acordo com ele, a tomada das decisões extremas que compõem o AI-5, como o fechamento do Congresso Nacional, foi conveniente tanto para a linha dura quanto para a ala moderada das Forças Armadas.

Não houve, portanto, divisão entre os militares a respeito do decreto de 13 de dezembro de 1968, diz o autor de "1964 - História do Regime Militar Brasileiro" (editora Contexto). "O AI-5 foi um ponto de encontro de todos os militares no encaminhamento de uma crise que, em última instância, ameaçava as Forças Armadas no poder", afirma Napolitano.

"Houve esse ponto de convergência e, a partir daí, foram editados mais 12 atos institucionais. Alguns desses eram muito duros e aprofundaram o que havia sido gestado no AI-5."

Editado em setembro de 1969, o AI-13, por exemplo, determinou que o Poder Executivo poderia "banir do território nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à Segurança Nacional".

Napolitano também se opõe a outra versão sobre esse período que tem se consolidado nas últimas décadas, a de que a luta armada de esquerda só se organizou depois do AI-5."Estamos numa época de "fake history", não é? Sou contra", brinca. "Já havia um projeto de guerrilha, o terrorismo de esquerda, antes desse ato institucional."

Napolitano lembra que, ao longo de 1968, ocorreram atentados feitos pela extrema direita clandestina. "É o que chamamos de estratégia de tensão. Provoca-se um atentado para culpar o outro [no caso, a esquerda] e criar um clima de pânico na sociedade."

Em "A Ditadura Envergonhada", o primeiro volume da sua série de livros sobre o regime militar, o jornalista Elio Gaspari contabiliza 32 atos terroristas saídos da direita, sem vítimas fatais. Mas também é fato, pondera Napolitano, que aconteceram ações armadas de esquerda nos meses de 1968 que antecederam o AI-5.


Zuenir Ventura: 'Era impossível não tomar partido diante de uma ditadura que oprimia'

Autor de "1968 - O Ano que Não Terminou" diz que jornalista não deve ter militância política, mas regime impôs uma situação limite

Laura Mattos, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Ficou famoso no Rio de Janeiro o Réveillon de 1968 promovido pelo casal de intelectuais Luiz e Heloisa Buarque de Hollanda. Com notáveis do cinema, da literatura e da intelectualidade em geral, foi regado à oposição, tanto ao regime militar, quanto às regras do que era chamado de moral e bons costumes. O ano foi desse porre cheio de esperança ao pânico completo estabelecido, em 13 de dezembro, pela assinatura do Ato Institucional número 5. Com a medida, a ditadura se fortalecia, dando poderes ilimitados ao presidente, fechando o Congresso e acabando com o habeas corpus.

Os convidados do memorável Réveillon passaram o seguinte tentando evitar a prisão. Um deles foi Zuenir Ventura, que estabeleceu o arco entre a euforia da festa dos intelectuais e a depressão do AI-5 no best-seller "1968, o Ano que Não Terminou", de 1988, com mais de 400 mil exemplares vendidos e uma edição comemorativa recém-lançada pela Objetiva. Professor universitário à época, além de chefe da sucursal do Rio da revista Visão, ele decidiu se esconder por uns dias na casa de um amigo, logo após o AI-5. Mas, no início de 1969, diante dos filhos, de quatro e cinco anos, foi levado à prisão, de onde só conseguiria sair após três meses.

Aos 87, o jornalista, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras rememora 1968 nesta entrevista à Folha faz analogias entre o AI-5 e a Lava Jato e avalia que, "quando temos um presidente que diz que o grande erro da ditadura foi torturar e não matar, todo cuidado é pouco" para não voltarmos às trevas daquele ano que, meio século depois, ainda não terminou.

Como estava a sua vida em dezembro de 1968?
Eu tinha 37 anos, já era casado com Mary havia seis anos e tínhamos dois filhos: Mauro, de 5, e Elisa, de 4. Morávamos na Urca. Antes do AI-5, o ano de 1968 no Rio tinha uma vida cultural movimentada: peças, shows, filmes. Os amigos se frequentavam muito, nesses eventos ou nos bares para bater papo tomando chope. Eu tinha amigos no Teatro Opinião (Ferreira Gullar, Teresa Aragão, Paulo Pontes, Vianinha) e no Cinema Novo (Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Geraldo Sarno) e cheguei a participar como entrevistador do filme "Que país é esse?", de Hirszman. Trabalhava como professor da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) e da Escola de Comunicação (ECO), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de chefiar a sucursal da revista Visão.

Como foi sua formação política?
Não tive formação política. Cursei letras neolatinas na Faculdade de Filosofia e só me interessava por literatura -brasileira, portuguesa, espanhola, francesa e italiana, que eram as disciplinas que estudávamos. Eu era o que se chamava de um "alienado".

O sr. considera que o jornalista não deve ter militância política. Em 1968, como essa opção se refletia no seu trabalho, na convivência com os colegas, acredito que majoritariamente de esquerda?
Continuo achando que o jornalista não deve ter militância política, a não ser em situações limites, em regime de exceção, como a que vivemos em 1968. Diante de uma ditadura que oprimia, censurava, torturava, era impossível não tomar partido. Ficar neutro naquele tempo significava trair a democracia, compactuar com as trevas. Escondi gente em minha casa, entre os quais o líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Emprestava meu carro para membros do Partido Comunista, ao qual nunca pertenci, para dar fuga a perseguidos, enfim fiz tudo o que não faria em situação de normalidade democrática.

Como o sr., que era professor de duas faculdades em 1968, compara o ambiente universitário daquela época com o atual e como avalia as recentes interferências da polícia e da Justiça em manifestações de universidades?
Pelo que vi na imprensa sobre as manifestações de agora, o ambiente era muito pior em 1968 porque faltava a democracia. A diferença pode ser observada por um episódio recente. Quando fiscais eleitorais entraram em várias universidades para impedir manifestações políticas, o STF [Supremo Tribunal Federal] reagiu e referendou por unanimidade a liminar da ministra Carmen Lúcia suspendendo aquelas decisões como inaceitáveis: "a autonomia universitária está entre os princípios constitucionais que garantem toda a forma de liberdade", ela disse.

Lembra do anúncio do AI-5? Qual foi a sua sensação?
Estávamos na casa de nossos vizinhos Leon Hirszman e Liana quando, às 22h30, o ministro da Justiça, Gama e Silva, e o locutor Alberto Cury leram em cadeia de TV os artigos do Ato Institucional nº 5. Há notícias que chocam, outras, como a do AI-5, que desorientam.

Como acompanhou na época o desenrolar dos acontecimentos referentes ao AI-5 que tão bem descreveu no livro "1968, O Ano que Não Terminou"?
Muito do que aconteceu naquela noite e na madrugada só foi possível descrever depois, por reconstituição. Os momentos seguintes ao anúncio foram de correria e confusão, todos fugindo do "arrastão". Não se tinha como distinguir os fatos dos boatos, que se atropelavam; os telefonemas não paravam. A prisão de Juscelino, uma das primeiras, parecia mentira, mas de fato aconteceu, era uma incrível verdade. A de Lacerda, que se esperava, aconteceu no dia seguinte. Eu me refugiei no apartamento do amigo Carlos Mariani, onde soube da prisão de Carlos Heitor Cony, Osvaldo Peralva, Joel Silveira. Pânico geral.

O sr. relata no livro a invasão de censores aos jornais na véspera do AI-5. Como foi a sua experiência naquele momento e a partir do acirramento da censura?
Como trabalhava em uma revista quinzenal, de economia, não senti a censura tão diretamente como os colegas dos veículos de maior circulação, como jornais, revistas e televisão. A pior sequela, porém, foi a autocensura. Introjetamos de tal maneira o mecanismo de autopoliciamento que, durante muito tempo, passamos a ser o censor de nós mesmos. Em 1977, Carlos Drummond de Andrade, numa uma entrevista para mim, fez um balanço da geração do AI-5. Um trecho: "os melhores foram destruídos -ou ficaram aterrorizados para o resto da vida ou morreram fisicamente ou desapareceram. Houve um hiato na formação social do Brasil, houve uma geração que não pôde dizer sua realidade".

No livro, o sr. compara a reunião que aprovou o AI-5 a uma peça surreal dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Há algum evento recente ao qual essa comparação também possa servir?
Alguns fazem paralelo entre o AI-5 e a Lava Jato. Mas, atenção: eles só podem ser comparados por contraste. São marcos de dois sistemas opostos: o primeiro operou a passagem da ditadura disfarçada para a ditadura escancarada. O segundo, quase meio século depois, serviu para fortalecer a democracia. O Ato Institucional concedeu ao presidente da República poder de exceção para fechar o Congresso e punir arbitrariamente, sem precisar de provas, quem se opusesse ao governo. Já a operação comandada pelo juiz Sérgio Morro, agindo dentro da lei, respeitando os direitos e utilizando as investigações e as provas, revelou como quadrilhas compostas por governantes e empresários se apossaram dos bens públicos. Nunca o país teve uma devassa tão completa. As delações premiadas de hoje seriam um bom material para a dramaturgia de Zé Celso.

Que consequências o AI-5 trouxe para a sua vida e qual foi o impacto de ter passado três meses preso em razão do ato institucional?
A maior maldade do AI-5 não foi a mim, deixando-me desempregado, mas a meus filhos que, aos 5 e 4 anos viram o pai, a mãe e o meu irmão, que morava conosco, serem levados de casa sem explicações para "prestar esclarecimentos". A mãe e o tio voltaram mais de um mês depois; o pai, três meses. Já a melhor coisa que me aconteceu nesse período tão difícil foi a convivência na cadeia com o Hélio Pellegrino, uma das figuras mais fascinantes que conheci na vida. O maior psicanalista do país, poeta e escritor, conversávamos durante o dia e às vezes varávamos a noite. Muita gente pagaria para estar no meu lugar. Ele foi o orador da Passeata dos 100 mil.

O que o sr. encontrou de mais relevante na sua documentação dos arquivos da ditadura?
Quando os arquivos do DOPS foram liberados, fui ver o meu dossiê. Fiquei espantado com a descoberta. O homem mais importante da imprensa carioca não era nem Roberto Marinho nem Nascimento Brito [proprietário e diretor do Jornal do Brasil], mas um indivíduo chamado Zuenir Ventura. Era ele que mandava e desmandava nas redações, era quem decidia que jornalistas deviam ser admitidos e demitidos. Se eu, que nunca pertenci a partido, era aquilo tudo, três meses de prisão foram muito pouco. A paranoia da repressão não tinha limites.

No livro "1968" o sr. fala da geração AI-5, que teve seu discurso desarticulado. Cinquenta anos depois, como avalia as sequelas do AI-5 para o País?
Para se ter ideia do que foi confiscado implacavelmente da chamada geração AI-5, basta citar alguns números. Nos seus dez anos de vigência, foram censurados cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, 100 revistas, mais de 500 letras de música. Só Plínio Marcos teve 18 peças vetadas.

Aquele episódio do AI-5 é algo enterrado no passado ou ainda corremos o risco de passar por algo tão extremo assim?
Acho que não [corremos esse risco]. O País é outro, temos uma democracia, as instituições são sólidas, mas de qualquer maneira, como se sabe, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Todo cuidado é pouco, principalmente quando temos um presidente que não acredita que em 1964 houve um golpe e que já afirmou que "o grande erro da ditadura foi torturar e não matar".


Folha de S. Paulo: Decretado há 50 anos, AI-5 mudou para sempre as linguagens artísticas do país

Lançamentos reveem anos de repressão durante a ditadura e ascensão do conservadorismo hoje

Por Maria Luísa Barsanelli, da Folha de S. Paulo

Ainda que rodeada de incertezas, a classe artística permanecia em grande parte tranquila nos primórdios do regime militar brasileiro.

Castello Branco, primeiro general-presidente, era tido como intelectual e amante das artes, em especial das cênicas, da qual era assíduo frequentador. Pôs à frente do Serviço Nacional do Teatro uma crítica e estudiosa de renome, Bárbara Heliodora, e o conselho da Companhia Nacional de Teatro agregou de Carlos Drummond de Andrade a Décio de Almeida Prado.

“Quem iria desconfiar que um governo chefiado por um presidente tão bem-intencionado em relação ao teatro iria se transformar num inimigo dessa atividade?”, questionava o crítico Yan Michalski em “O Teatro sob Pressão” (1985).

O que se seguiu ao mandato de Castello Branco, findo em março de 1967, foi uma escalada de repressão que levou ao mais opressivo ato institucional do regime, o AI-5, decretado há exatos 50 anos.

O ato, que institucionalizou a ditadura e deu ao então presidente, Arthur da Costa e Silva, poderes de fechar o Congresso Nacional, moldou as criações artísticas. A censura, até então pontual, passa a ser uma máquina de Estado, minando trabalhos e perseguindo artistas, alguns dos quais recorreram ao exílio.

No período antes do decreto, as artes brasileiras viviam uma ebulição e modernização de linguagem, mas o que uns viam como experimentação interessante foi visto por outros como “ameaças a Deus, à família e à propriedade —à liberdade, enfim”, escreve o jornalista A. P. Quartim de Moraes no recém-lançado “Anos de Chumbo: o Teatro Brasileiro na Cena de 1968”.

Entre as reações da classe estava o espetáculo “1ª Feira Paulista de Opinião”, produzido pelo Teatro de Arena.

Reunia dramaturgos como Lauro César Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos e Augusto Boal, além dos compositores Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Todos respondiam à questão: O que pensa o Brasil de hoje? “Basta criticar as plateias de sábado —deve-se agora buscar o povo”, dizia Boal sobre a obra. Ela teve 84 cortes da censura, mas os artistas decidiram encená-la na íntegra, em desobediência civil.

“De certo modo, o próprio movimento de resistência deu pretextos para que o movimento de repressão aumentasse”, diz Quartim de Moraes.

Capa do programa da 1ª Feira Paulista de Opinião, realizada pelo Teatro de Arena em junho de 1968, em São Paulo

Capa do programa da 1ª Feira Paulista de Opinião, realizada pelo Teatro de Arena em junho de 1968, em São Paulo - Reprodução

O decreto do AI-5, que vigorou por dez anos, só fez aumentar a censura. Visto como maldito, o dramaturgo Plínio Marcos tinha sempre os trabalhos vetados. Conta-se que, certa vez, irritado com um censor, perguntou-lhe o porquê da reprimenda.

“Porque suas peças são pornográficas e subversivas”, respondeu. “Mas por que são pornográficas e subversivas?”, contestou o autor. “São pornográficas porque têm palavrão. E são subversivas porque você sabe que não pode escrever com palavrão e escreve.”

Chico Buarque passou por algo semelhante, e nos anos 1970 assinou músicas por meio de um heterônimo. Com o nome Julinho da Adelaide conseguiu liberação para lançar “Acorda Amor”, “Jorge Maravilha” e “Milagre Brasileiro”.

A 10ª Bienal de São Paulo, em 1969, acabou boicotada por artistas devido à censura às obras de arte e à agressividade instalada pelo governo.

O espetáculo "Roda Viva", montado pelo Teatro Oficina, também é lembrado pela repressão, em 1968. Em São Paulo, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Galpão, de Ruth Escobar. Cenários e camarins foram destruídos, e parte do elenco, como a atriz Marília Pêra, foi espancada pelo grupo paramilitar. Já em Porto Alegre soldados foram ao hotel onde os artistas estavam hospedados, agrediram o elenco e o embarcaram num ônibus de volta a São Paulo.

São fatos históricos hoje vistos com distanciamento, mas que retornam ao debate num momento em que muitos questionam se vivemos um retorno à censura.

O assunto vem sendo debatido em encontros e seminários, entre eles um simpósio organizado no mês passado pela USP que costurava paralelos entre o clima de 50 anos atrás e o de hoje, com uma ascensão do conservadorismo e de movimentos extremistas.

“Melhor seria se este livro não precisasse existir”, escreve a crítica de arte Luisa Duarte na abertura de “Arte Censura Liberdade”, antologia organizada por ela e lançada agora.

O livro, diz a autora, é uma reação a ataques sofridos por artistas, em especial no ano passado, que teve casos como a interdição da mostra “Queermuseu”, em Porto Alegre, e agressões ao coreógrafo WagnerSchwartz, que foi chamado de pedófilo após uma performance em que seu corpo nu podia ser manipulado pelo público —ele foi tocado, na perna e na mão, por uma uma criança.

Os conflitos, opina Duarte, teriam a ver com o momento político e ainda com as conquistas de minorias.

Nos 19 textos do volume, discute-se a chamada guerra cultural —disputa política que ganha corpo no campo das artes— e se o meio artístico não estaria se isolando e deixando de dialogar com a população.

Por fim, “Arte Censura e Liberdade” tenta “apontar uma possibilidade de sair de uma enrascada”, segundo a autora. “Tomara que o país não necessite de um livro desses daqui a dois anos.”

Anos de Chumbo: o Teatro Brasileiro na Cena de 1968

A. P. Quartim de Moraes. Edições Sesc. R$ 54 (191 págs.) e R$ 27 (ebook)


Arte Censura Liberdade – Reflexões à Luz do Presente

Luisa Duarte (org.). Editora Cobogó. R$ 46 (264 págs.)

CENSURA EM NÚMEROS

84
cortes foram feitos pela censura no espetáculo ‘1ª Feira Paulista de Opinião’, do Teatro de Arena

33 dos 36
livros da escritora de romances eróticos Cassandra Rios foram vetados

48
canções de Taiguara, registradas entre 1970 e 1974, foram proibidas


Vinicius Torres Freire: Neblina na aposentadoria e nos juros

Indefinição sobre reforma de Bolsonaro é política e começa a inquietar donos do dinheiro

A mudança nas aposentadorias e nas pensões ainda não tem projeto definido porque Jair Bolsonaro ainda não se ocupou do assunto. Mesmo antes de chegar ao Congresso, a reforma da Previdência do próximo governo enfrenta problemas políticos.

A ala parlamentar bolsonarista diz o que quer sobre a Previdência porque simplesmente não recebeu diretrizes ou ordens do presidente eleito, que, por sua vez, diz nebulosidades preocupantes sobre a reforma porque dá ouvidos a seus articuladores políticos e "bases".

É o que se pode ouvir entre economistas do governo de transição de Bolsonaro. Políticos bolsonaristas e "bases", inclusive nas redes insociáveis, são refratários à mudança e não têm entendimento da crise que pode sobrevir caso a reforma vá para o vinagre ou seja muito aguada.

A inquietação entre negociantes de dinheiro e porta-vozes do mercado se espalha.

Por um lado, ouvem o presidente eleito e seus articuladores políticos dizerem em público que a reforma não pode ser dura, "matar idoso", que pode ser feita em até quatro anos, que não se pode bulir com servidores, que o Congresso vai desidratar qualquer plano de mudança etc.

Por outro lado, gente da futura equipe econômica trata do assunto em conversas informais com conhecidos na praça. Dentro do governo de transição, sentem a mesma indisposição reformista do entorno político imediato do presidente eleito.

Acreditam, porém, que tais conversas não indicariam uma inclinação firme de Bolsonaro. Dizem apenas que Paulo Guedes, futuro überministro da Economia, ainda não levou projeto claro para uma conversa decisiva com o futuro governo.

Os economistas dizem que têm uma reforma em mente, talvez com umas três variantes possíveis de estratégia de implementação, mas nenhum pacote de alternativas teria sido ainda apresentado ao presidente eleito.

De menos incerto é que se pretende apresentar um projeto básico bem assemelhado ao que Michel Temer enviou ao Congresso, com algumas emendas para torná-lo algo "diferente" e para que a economia prevista volte ao nível previsto na versão original da reforma.

Talvez alguma parte do projeto seja apresentada à parte, em particular alguma mudança que não dependa de mexida na Constituição.

O plano de capitalização (de Previdência baseada em contas individuais de poupança) viria de qualquer modo depois de aprovado o "bloco 1" da reforma, a mudança do sistema atual de aposentadorias e pensões, uma urgência fiscal.

Ainda não há sinais inequívocos de descrença no mercado, sinais nos preços, em taxas de juros, por exemplo.

Há taxas de prazo mais longo dando uma esticadinha, mas pode bem ser por qualquer motivo, como a escaladinha do dólar e outras tensões na finança internacional, que voltou a ficar estressada.

O clima doméstico é menos otimista, dada a desconversa sobre reformas, e o mundo lá fora não está ajudando nada, ao contrário.

Nas conversas com economistas da finança, nota-se um certo desânimo sobre as liberdades que Guedes terá para tocar um programa de reforma rápido e duro na Previdência.

No entanto, o povo que de fato mexe os bilhões para lá e para cá acha que, afora surpresas ou vazamentos essenciais, o próximo movimento decisivo ocorre em janeiro.

O fato é que se conhece quase nada dos planos de Guedes para a economia, muito pouco além do que se sabia durante a campanha. Dos planos de Bolsonaro, menos ainda.


Hélio Schwartsman: Por um governo feliz

Jair Bolsonaro e seu círculo íntimo acumulam dissabores

Parafraseando Tolstói, podemos dizer que todas as Presidências felizes parecem-se entre si; já as infelizes o são cada uma à sua maneira. Ainda é cedo para estabelecer se a administração Bolsonaro vai ser feliz ou infeliz, mas o futuro dirigente e seu círculo íntimo vão acumulando dissabores numa escala incomum para quem ainda nem assumiu o governo.

Transições tendem a ser mesmo confusas. Membros do grupo que chega não estão entrosados e ainda não têm noção do novo peso que suas declarações adquiriram.

O que confere certa especificidade à administração Bolsonaro, além de um improvisado redesenho da estrutura ministerial, são seus filhos. Dois deles foram eleitos para cadeiras no Legislativo. Embora não sejam mais do que parlamentares, por vezes falam como se fossem primeiros-ministros, ampliando desnecessariamente os desencontros, que já causaram fissuras no PSL.

Normalmente, presidentes eleitos já enfrentaram as acusações levantadas durante a campanha e ainda não tiveram tempo de se envolver nas novas, pelas quais responderão no futuro. Bolsonaro e familiares, porém, conseguiram enrolar-se numa suspeita que veio à tona durante a transição. O fato de ter-se apresentado como candidato anticorrupção exige que Bolsonaro dê tratamento rápido e duro para o caso, sob pena de desgaste precoce.

De modo geral, presidentes iniciam já na transição as negociações com partidos para obter maioria no Legislativo. Isso é especialmente importante quando há necessidade de aprovar emendas constitucionais impopulares, como a reforma da Previdência. Mas Bolsonaro, prometendo romper com a tradição de fisiologismo, se recusa a fazê-lo. Pode ser um ponto positivo, se ele tiver uma estratégia funcional para assegurar a aprovação das medidas. Caso contrário, pode ser o início de uma relação complicada com o Parlamento, o que prenuncia um governo infeliz.


Bruno Boghossian: Na prática, Bolsonaro subordina meio ambiente aos ruralistas

Na prática, Bolsonaro subordina meio ambiente aos ruralistas

Se ainda havia dúvida, Jair Bolsonaro deixou claro a quem seu ministro do Meio Ambiente deve servir —e, surpresa, não é ao meio ambiente. Num encontro com artistas, o presidente eleito gravou um vídeo e mandou recado ao agronegócio: “Gostaram do ministro do Meio Ambiente, né? Com toda a certeza”.

O novo governo aceitou manter uma pasta independente para cuidar do setor, mas a escolha do advogado Ricardo Salles sugere que, na prática, questões ambientais devem ficar subordinadas à pauta ruralista.

O futuro ministro fez questão de aparecer em uma gravação ao lado de Nabhan Garcia, presidente da entidade que simboliza os grandes proprietários de terras, a UDR (União Democrática Ruralista).

“Nós teremos um momento de total sinergia da agricultura com o meio ambiente. Respeito absoluto ao produtor rural, com todo o nosso apoio”, disse Salles, que vai supervisionar órgãos que têm o papel de fiscalizar também o agronegócio.

A reverência prestada pelo próximo chefe da gestão ambiental é grande. Na mensagem, ele chama Nabhan de ministro, embora o ruralista tenha sido indicado apenas secretário especial de Assuntos Fundiários.

O ruralista retribuiu com um elogio e emendou: “Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente significa o fim do Estado policialesco e o fim do Estado confiscatório em cima de quem produz no Brasil”.

O discurso é uma desculpa esfarrapada para afrouxar as punições previstas em lei contra quem pratica desmatamento. Entidades de proteção ambiental dizem que produtores rurais contribuem para devastações. Nabhan alega que o agronegócio colabora com a preservação.

Ao ser indicado, Salles disse tratar a defesa do meio ambiente como um valor “inafastável” e já afirmou ser favorável à permanência do Brasil no Acordo de Paris, que estabelece metas de redução de gases causadores do efeito estufa. Os sinais de Bolsonaro, porém, são de que os poderes do futuro ministro ficarão abaixo dos interesses do agronegócio.


Ruy Castro: Noite de 13 de dezembro

Um disco de Charles Mingus tornou-se a triste trilha sonora do AI-5

Às 20h30 de 13 de dezembro de 1968, Alberto Curi, locutor da Agência Nacional, leu em rede de rádio e TV o comunicado do governo anunciando o Ato Institucional nº 5. Naquele momento eu estava naModern Sound, loja de discos em Copacabana, aonde ia todas as sextas depois de sair do Correio da Manhã, em cujo 2º caderno trabalhava com Paulo Francis. Comprara um LP de Charles Mingus, e já estava saindo quando alguém veio me contar: “Acabei de saber. Os militares baixaram um ato para fechar tudo. Agora é sério”. Não vacilei. Tomei um táxi e voltei para o Correio, na Lapa.

Meia hora depois, já chegara lá. Havia uma multidão na porta do jornal. Desci do táxi, mas ninguém podia entrar. De repente, Osvaldo Peralva saiu do saguão imobilizado por dois homens. Passou a um metro de mim e foi jogado dentro de um carro. Peralva fizera parte da elite comunista na Europa, mas largara tudo em 1956, ao se convencer dos crimes de Stálin denunciados pelo sucessor Kruschev. Então escrevera um livro, “O Retrato”, em que revelava as táticas dos partidos comunistas, inclusive o brasileiro. Com isso, fora jurado pela esquerda. E, agora, por dirigir um jornal liberal e de oposição, era preso pela direita.

Paulo Francis estava num avião naquela noite, voltando de Nova York. Desceu de manhã no Galeão. Foi para seu apartamento em Ipanema e eles o pegaram pouco depois, ainda de pijama. Uma colega do jornal me ligou dizendo que meu nome estava numa lista que ela vira por lá. Mandou-me sumir por uns tempos.

Fiquei longe também do Solar da Fossa, onde morava, um ninho de anarquistas facilmente confundíveis com “subversivos”. Passei uns dias na casa dos tios de uma namorada, no Flamengo. Lá finalmente escutei o LP, “Mingus Revisited”. Achei muito triste.

Nunca me desfiz do disco, mas levei 30 anos para conseguir ouvi-lo de novo. Para mim, ele se tornara a trilha sonora do AI-5.

*Ruy Castro é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Folha de S. Paulo: 'Creio que o AI-5 passou para não voltar', diz FHC sobre o decreto de 1968

Por Laura Mattos, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Fernando Henrique Cardoso estava em sua casa, no bairro do Morumbi (zona sul de São Paulo), quando escutou o anúncio do Ato Institucional número 5, na noite de 13 de dezembro de 1968. Lembra-se perfeitamente da voz do ministro da Justiça, Gama e Silva, que havia sido seu colega no Conselho Universitário da USP, informando em cadeia nacional de rádio e televisão as medidas que iriam endurecer a ditadura militar.

Fazia apenas dois meses que Fernando Henrique voltara ao Brasil e a ministrar aulas na Universidade de São Paulo, após um exílio imposto pelo golpe de 1964. Percebeu o que estava por vir, pegou o carro e se dirigiu à Cidade Universitária (zona oeste), onde se organizavam protestos. O AI-5, que fechou o Congresso, acabou com o habeas-corpus e concedeu poderes ilimitados ao Presidente, teria logo consequência mais direta em sua vida: em abril de 1969, com 37 anos, seria aposentado compulsoriamente da universidade. Aos 87, o ex-presidente do Brasil relembra nesta entrevista à Folha esse "clima horroroso" de 50 anos atrás.

De que movimentos o sr. participava para ser considerado pelos militares um "subversivo" e ter sido obrigado a se exilar após o golpe de 1964?
Na época de 1964, eu era professor da USP, só participava do debate público. Era acusado pelas ideias, não pela ação. Exercia certa liderança, fundara no passado a associação dos docentes e havia sido eleito, então, representante dos professores assistentes.

O sr. foi oficialmente expulso ou recebeu algum tipo de ameaça e decidiu partir?
Fui obrigado a deixar o país em 1964 porque tentaram me prender e a Justiça militar abriu um processo contra mim. Em Santiago, trabalhei na Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e Caribe], da ONU [Organização das Nações Unidas], e fui professor na Universidade do Chile, de 1964 a 1967. De lá fui para a França a convite de Alain Touraine [sociólogo] para criarmos um departamento na Universidade de Paris (Nanterre), onde fiquei entre 1967 e 1968.

O sr. e dona Ruth já tinham filhos quando foram para o exílio?
Sim. Um tinha nove anos e as outras, meninas, sete e cinco.

Por que decidiram voltar em 1968? Foi consequência do aparente fortalecimento dos movimentos de oposição, marcado pelas grandes passeatas?
Voltei porque um catedrático da USP morrera deixando uma vaga. Eu estava, desde 1964, fora da USP, pois a reitoria se negou a conceder-me licença. Além disso, o clima político parecia desanuviar-se, o que com o AI-5 não ocorreu.

Da sua volta até o anúncio do AI-5, como foi a vida em São Paulo, as aulas na USP e o clima na universidade?
Eu morava no Morumbi [zona sul] em uma casa que começamos a construir quando fui para Santiago. Ganhei o concurso para a cadeira de ciência política da USP em outubro de 1968. Nessa época não sofri qualquer processo. Houve sim acusações internas à USP, por parte de outros professores. Logo depois, em abril de 1969, fui aposentado compulsoriamente pelo AI-5, aos 37 anos.

O sr. se recorda do momento do anúncio? Onde estava e qual foi a sua sensação?
Recordo-me perfeitamente da leitura do decreto do AI-5 e da voz do ministro Gama e Silva, da Justiça, o Gaminha, que havia sido meu colega no Conselho Universitário. Eu estava em minha casa e logo percebi o que aconteceria. Peguei o carro e fui para a faculdade. Em seguida começaram as aposentadorias compulsórias.

Com o AI-5, o que mudou na sua vida? As consequências foram imediatas ou o sr. só seria afetado a partir do seu afastamento compulsório da USP?
As consequências gerais foram imediatas. Até a minha compulsória, eu fora eleito por alunos e professores diretor do Departamento de Sociologia, estávamos fazendo uma reforma curricular, mas o clima passou a ser de protestos abafados e mesmo abertos. Um dia fomos cercados pela polícia na Cidade Universitária. Mas disso já havíamos provado em 1964 na rua Maria Antonia [sede na USP na Vila Buarque, região central]. Basta dizer que houve "guerra" entre provocadores e alunos da filosofia, com coquetéis molotov -um atingiu minha sala e queimou documentos. A partir do AI-5, eram notícias vagas de reações, medo e repressão. Embora voltasse a ser convidado a dar aulas na França e em Yale, resolvi ficar em São Paulo e fui um dos fundadores do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], instituição que continua existindo. Posto para fora da USP e trabalhando no Cebrap [que reuniu intelectuais afastados de suas funções pela ditadura], o clima era horroroso. Qualquer carro que parasse em frente à casa já se pensava na polícia política. Sabia de pessoas, às vezes amigos, presos e mesmo torturados ou mortos, como o [jornalista Vladimir] Herzog.

O sr. nunca mais voltou a ser professor da USP?
Só voltei a dar um curso, durante um semestre, depois da lei de anistia [1979]. Não regressei mais à carreira pois estava dirigindo o Cebrap, dando aulas eventualmente no exterior (École des Hauts Etudes [França], Cambridge [Inglaterra], Stanford e Berkeley [Estados Unidos], em períodos distintos) e meus ex-alunos ocupavam, com brilho, as funções que eu e outros deixáramos. Eu sempre gostei de não repetir experiências, buscar novos desafios.

O sr. já tinha àquele momento alguma intenção de entrar na carreira política?
Não tinha, embora a política não fosse experiência distante: meu pai, que era militar (chegou a general), era também advogado e foi deputado federal por São Paulo. Minha participação foi consequência das lutas contra a ditadura (SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], jornais "nanicos" como "Movimento" e, sobretudo, "Opinião", a Comissão de Justiça e Paz etc.). Foi Ulisses Guimarães quem me levou a ser candidato ao Senado em uma sublegenda do MDB, não para ser eleito, mas para somar votos a quem seria reeleito, Franco Montoro. Eu nem sabia que o segundo colocado, como fui, seria o suplente do titular... Montoro eleito governador, tornei-me senador. Na época estava dando aulas em Berkeley.

O AI-5 é algo enterrado ou ainda corremos o risco de passar por algo assim?
Espero e creio que sim, o AI-5 passou para não voltar. E ainda bem.


Pablo Ortellado: Bolsonaro e ministros recorrem às guerras culturais

Estratégia promove divisão para mobilizar a sociedade

No antagonismo político da maior parte do século 20 sempre houve possibilidade de compromisso. Entre o estado mínimo dos liberais e a economia estatizada das experiências socialistas, havia bastante gradação.

O jogo político da democracia liberal consistia, efetivamente, em empurrar a fronteira mais para um lado ou para o outro, aproveitando as oportunidades abertas pelos ciclos eleitorais.

Esse tipo de compromisso não existe nas guerras culturais, porque elas envolvem questões morais fortes que regulam modos de vida. Nestes temas, o compromisso não é possível. Entre os que defendem o direito da mulher controlar sua vida reprodutiva e os que se opõem ao assassinato de bebês, qual seria o meio termo?

Os temas morais não apenas incitam o eleitorado, mas também os sentimentos de revolta e indignação que despertam e transformam eleitores passivos em ativistas.

Vimos recentemente essa estratégia ser utilizada no Brasil nas últimas eleições.

Para os conservadores que apoiaram Jair Bolsonaro, feministas e grupos LGBT fazem campanha para sexualizar as crianças e promover modos de vida alternativos ao padrão heteronormativo. O que para os progressistas são políticas de civilidade e tolerância, para os conservadores são diabólicos planos para destruir a família cristã.

O próprio Bolsonaro se engajou numa cruzada contra um seminário infantil LGBT e um kit gay para escolas, que nunca existiram, e nos círculos bolsonaristas circularam materiais mentirosos infames, como o vídeo da mamadeira em formato de pênis que seria utilizada para alimentar crianças nas creches.

Após as eleições, as disputas seguiram. O futuro ministro das Relações ExterioresErnesto Araújo, escreveu que a esquerda antinatalista quer destruir a família para impedir o nascimento do menino Jesus, e emergiu vídeo da futura ministra da Família, Damares Alves, dizendo que nas creches da cidade de São Paulo se ensinava masturbação para bebês.

Na América Latina, a estratégia de ativar as guerras culturais para intervir e desequilibrar disputas em curso tem como paradigma o referendo convocado para selar o acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc em 2016.

Para virar o jogo em favor do “não”, conservadores começaram a alegar que o acordo estava recheado de ideologia de gênero e que era assim um cavalo de Troia que destruiria a família colombiana tradicional.

Mobilizados para defender a família, os colombianos quase retomaram a guerra. Por aqui, nossos mobilizados podem bem perder as aposentadorias.

*Pablo Ortellado é professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.