Folha de S. Paulo

Clóvis Rossi: Silenciar sobre ditaduras é crime de guerra

Um SOS pela Nicarágua

A Folha publicou nesta sexta-feira (21) anúncio de página inteira que é um verdadeiro manifesto político-institucional. Diz: “A Folha acredita que não existe democracia sem liberdade de imprensa”.

Eu também acredito, mas vou um passo adiante: acho que não podem existir fronteiras para a democracia e para a liberdade de imprensa.

Por isso, faço desta coluna, a última do ano, um apelo: não podemos deixar sem apoio o jornalismo da Nicarágua, o que significa, em consequência, apoiar também a luta pelos direitos humanos, violentamente atacados pela ditadura do casal Daniel Ortega e Rosário Murillo.

Quanto aos direitos humanos, é indispensável ressaltar a atuação do brasileiro Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele não tem se omitido, desde que o governo Ortega intensificou, em abril, a escalada repressiva.

A rigor, a CIDH é o único balão de oxigênio que permite respirar aos nicaraguenses.

Agora, a escalada repressiva alcançou outro raro balão de oxigênio, o sítio e revista Confidencial. É, ao lado do tradicional jornal La Prensa, veículo essencial para o exercício de liberdade de imprensa, assim como um ou outro programa jornalístico de televisão.

É bom ter em conta que a perseguição à mídia executada impiedosamente pelo governo de Nicolás Maduro, na Venezuela, ajudou a tornar o regime não só uma execrável ditadura mas também um fracasso de dimensões colossais.

É fundamental, pois, tentar ajudar Confidencial e demais veículos para preservar um espaço de acompanhamento crítico do regime enquanto há ainda tempo para evitar um fechamento incontornável e um fracasso socioeconômico semelhante ao de Caracas.

Confesso francamente que não sei bem o que fazer, nesse sentido. Por isso, copio o apelo enviado por Carlos Chamorro, o diretor de Confidencial, contendo algumas maneiras simples e indolores de ajudá-lo:

“Assinar o canal de Youtube de Confidencial: https://goo.gl/4xcR7W”;

“Seguir Confidencial no Twitter: https://goo.gl/uMjwke

“Dar ‘like’ na fanpage de Facebook de Confidencial: https://goo.gl/VdnRnW

“Dar ‘like’ na fanpage de Esta Semana:: https://goo.gl/tnAnSs” e na de Niú (https://goo.gl/SVjA3L)”. São dois outros informativos perseguidos.

Não é nada dramático, mas é mais do que os jornalistas brasileiros fizemos para tentar ajudar, por exemplo, El Nacional da Venezuela, obrigado a encerrar a edição em papel.

É uma contribuição para que Chamorro possa cumprir a promessa que acompanha o apelo acima reproduzido:

“Não vão conseguir que nos autocensuremos e deixemos de informar, porque temos o compromisso sagrado com um povo que tem sido massacrado e encarcerado, de contar como se substitui uma ditadura sanguinária de forma pacífica e como os nicaraguenses vamos conseguir reconstruir este país em paz, com democracia e eleições livres e com justiça que castigue os crimes da ditadura”.

Que os democratas digam amém. O silêncio é crime de guerra.
*
PS - Férias a partir de amanhã e até meados de janeiro, se houver janeiro em 2019. Feliz Natal e um Ano Novo realmente novo.


Bruno Boghossian: Queiroz vai vestir a faixa presidencial

Com posse de Bolsonaro, caso deixa de ser uma simples maracutaia de assessor

Fabrício Queiroz vai vestir a faixa presidencial. O ex-motorista de Flávio Bolsonaro deve passar o 1º de janeiro escondido, mas as suspeitas provocadas pela movimentação milionária em sua conta vão subir a rampa e se instalar no Planalto.

A cada dia em que as pontas do caso permanecem soltas, o episódio fica mais distante do estágio em que os bolsonaristas gostariam de parar, tratando a dinheirama como uma simples maracutaia de um assessor de deputado estadual.

Queiroz deu dupla razão aos mais intrigados. Deu bolo nos promotores e não explicou por que mexeu em R$ 1,2 milhão, por que sacou R$ 320 mil, por que recebia depósitos na data de pagamento dos servidores do gabinete e por que assinou um cheque de R$ 24 mil para Michelle Bolsonaro, a futura primeira-dama.

Talvez por excesso de confiança, o presidente eleito e sua equipe tenham pensado que as perguntas não se transformariam em crise. Poderia ser o caso se Queiroz tivesse aparecido para dar uma desculpa esfarrapada qualquer. Agora, as dúvidas passarão a virada do ano em Brasília.

Flávio disse uma dezena de vezes que não é investigado e que não tem relação com o caso. Os promotores discordaram e pediram que ele vá ao Ministério Público no dia 10 de janeiro para falar do assunto.

O filho do presidente eleito se enrolou quando disse que Queiroz tinha dado uma “explicação plausível” sobre o dinheiro. Na véspera, quando o relatório do Coaf foi divulgado, o ex-motorista afirmara que não sabia “nada sobre o assunto”. Flávio poderá contar tudo aos promotores.

Quando Jair estiver no gabinete presidencial, o caso mudará de patamar e terá dois caminhos pela frente: pode se tornar um constrangimento para o governo ou será abafado pelas engrenagens do poder.

O episódio tinha só 48 horas de vida pública quando o general Hamilton Mourão sugeriu que o governo desse explicações à sociedade sempre que necessário. “Senão fica parecendo que está escondendo algo”, completou o vice de Jair. Pois é.


Oscar Vilhena Vieira: A função moderadora

A recomposição da autoridade do STF é essencial para a saúde da democracia

Vem de longe a desconfiança das elites políticas brasileiras na democracia liberal. Nossa primeira Constituição, outorgada por Pedro 1º, inspirada na restauração Francesa de Luís 18, conferiu ao imperador um papel de tutela sobre o sistema político. Além da função de chefia do Executivo, ao imperador caberia o exercício do Poder Moderador, que deveria incessantemente velar imparcialmente pela independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes (artigo 98, Constituição de 1824), o que jamais ocorreu.

Com a proclamação da República, a função moderadora, como propunha Rui Barbosa, deveria passar a ser exercida não mais por uma pessoa, mas pelo império do Direito. Ao garantir a supremacia da Constituição, o Supremo Tribunal Federal limitaria os poderes políticos, "contra os excessos do mandonismo em todas as suas violências ou trapaças".

Como sabemos, o transplante do modelo constitucional norte-americano não triunfou. Para Raymundo Faoro, "a missão política que [o Supremo Tribunal Federal] deveria representar estava destinada a outras mãos, alimentadas de forças reais e não de papel". Foram os militares e não o Supremo que, de fato, se ocuparam de dar a última palavra na solução de nossas crises políticas ao longo da República.

Alfred Stepan, emérito estudioso de nossos militares, aponta nada menos do que nove intervenções entre 1889 e 1964. Esse "intervencionismo patológico", nas palavras de Stepan, indicam para a consolidação de um novo "padrão moderador", pelo qual as elites civis, quando incapazes de resolver seus próprios conflitos no marco da institucionalidade constitucional, buscavam apoio de setores militares para desestabilizar adversários ou manter-se no poder. Foi assim em 1889, 1910, 1922, 1930, 1945, 1954, 1955, 1961 e, finalmente, 1964, quando os militares decidiram não mais se limitar a arbitrar disputas e se lançaram ao exercício do poder, sem intermediários.

Com a debacle do regime militar, marcado por uma forte crise econômica, hiperinflação, escândalos e descontrole na administração das estatais, além da mácula dos crimes contra a humanidade, o país se reconstitucionalizou. A eterna desconfiança entre as elites políticas levou, no entanto, à adoção de uma Constituição extensa e detalhista. Ao estamento jurídico e especialmente ao Supremo Tribunal Federal foram transferidos enormes poderes para zelar pela integridade da Constituição e pela estabilidade do regime.

A transferência da função moderadora dos militares para o Supremo, de fato, começou ainda no processo de transição, quando os ministros do tribunal foram chamados a decidir —informalmente— quem deveria tomar posse como Presidente da República, em face do impedimento de Tancredo Neves ("História Oral do Supremo", FGV).

Nos últimos 30 anos o Supremo paulatinamente consolidou sua posição de guardião da Constituição, exercendo também, em diversas ocasiões, a função moderadora, como nos impeachments de Collor e Dilma.

Com o acirramento dos conflitos políticos, a partir de 2013, o Supremo foi tragado para o centro da crise. Sua fragmentação, conflitos internos e outras idiossincrasias têm contribuído para que as "vivandeiras alvoroçadas" se voltem novamente para os militares, para que reassumam a função moderadora. A recomposição da autoridade do Supremo é mais do que nunca essencial para a saúde de nossa democracia constitucional; só cabe aos próprios ministros restabelecê-la.

*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.


Bruno Boghossian: O que Bolsonaro pode aprender com seu primo húngaro

O que Bolsonaro pode aprender com seu primo húngaro

Embora a retórica ideológica tenha ocupado boa parte do tempo de Jair Bolsonaro no período de transição, suas prioridades precisarão mudar a partir de 1º de janeiro. O presidente eleito receberá a faixa com a popularidade em alta, mas seu sucesso dependerá de mudanças nos ponteiros da economia.

Acontecimentos recentes na Hungria podem servir de advertência. Em seu terceiro mandato seguido, Viktor Orbán ampliou seu poder ao corroer as instituições democráticas do país. O premiê capturou o Judiciário, manipulou o sistema eleitoral e ampliou o controle dos meios de comunicação, provocando reação de organismos internacionais.

Sua popularidade, entretanto, continuou praticamente intacta. Na última eleição, em abril, seu partido renovou no Parlamento a supermaioria de dois terços necessária para fazer mudanças na Constituição.

O primeiro revés significativo só ocorreu na semana passada, com a aprovação de uma lei que flexibiliza direitos trabalhistas. Pelo texto, patrões poderão exigir que funcionários trabalhem o equivalente a um dia a mais por semana, podendo pagar as horas extras só três anos depois.

As medidas autoritárias não trincaram a imagem do governo dentro do país, mas 15 mil pessoas decidiram protestar no centro de Budapeste quando pressentiram uma dor no bolso com a nova legislação.

Com um discurso nacionalista anti-imigração, Orbán surfou a onda conservadora, mas até marolas de insatisfação econômica costumam testar o poder de líderes populares.

É cedo para dizer se as manifestações na Hungria têm o mesmo DNA das jornadas de 2013 no Brasil e dos atos dos coletes amarelos na França. Nestes dois casos, medidas com impacto no custo de vida da população desencadearam megaprotestos.

Orbán e Bolsonaro conversaram por telefone em novembro. O brasileiro disse prever uma grande parceria com o premiê húngaro e elogiou suas posições sobre imigração. Seria bom que o presidente eleito acompanhasse o noticiário de Budapeste.


Bruno Boghossian: Judiciário protagonizou novela indecorosa com auxílio-moradia

Juízes provaram que têm pouco interesse em extinguir cultura de privilégios

A criação de novas regras para o pagamento de auxílio-moradia para juízes é o desfecho de uma novela indecorosa. Apesar de estabelecer padrões relativamente rígidos para o benefício, o Judiciário provou que está pouco interessado em extinguir sua cultura de privilégios.

Numa trama de negociações sigilosas e chantagens escancaradas, o Conselho Nacional de Justiça levou 1.555 dias para reconhecer o óbvio: só pode receber o valor extra aquele juiz que é transferido de sua comarca original, desde que não tenha imóvel próprio no novo local.

O colegiado ainda deu ares de austeridade ao aplicar uma exigência que deveria ser uma condição moral para qualquer uso de dinheiro público, que é a obrigatoriedade de apresentação de um documento que comprove a despesa do magistrado com o aluguel.

O papel de vilão cabe ao ministro Luiz Fux. Em 2014, ele assinou a liminar que liberou o pagamento do auxílio a toda a magistratura. O argumento original era a necessidade de equiparação dos benefícios recebidos em alguns estados e por outras categorias. Anos depois, comprovou-se que era papo furado.

A canetada de Fux foi usada de maneira escancarada para pressionar o Congresso e o presidente da República a autorizarem o aumento salarial de 16,38% cobrado pelo Judiciário. Ele mesmo teve uma reunião reservada com Michel Temer para negociar a troca: assim que o reajuste saiu, o ministro derrubou o benefício e o CNJ estabeleceu as novas regras para o pagamento.

O relator do caso ainda fez questão de manter uma brecha. Afirmou que o auxílio não era um “privilégio irrazoável” e se recusou a declará-lo inconstitucional. Este detalhe permite que as restrições ao benefício sejam questionadas no futuro e novas liminares sejam concedidas.

O Judiciário também enfrenta cobranças pela extinção e regulamentação de outros penduricalhos, como o auxílio-alimentação. Em quatro anos, talvez os juízes possam fingir disposição para enfrentar o tema.


Folha de S. Paulo: 'É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news', diz jornalista filipina premiada

Maria Ressa foi uma das eleitas Pessoa do Ano pela revista Time

Ana Estela de Sousa Pinto e Patrícia Campos Mello

SÃO PAULO e DOHA

Na mesma terça-feira (11) em que era anunciada pela revista Time como uma das Pessoas do Ano 2018, a filipina Maria Ressa, depositava uma fiança de 60 mil pesos (cerca de R$ 4.500) para evitar ser presa.

Desde julho, a jornalista e o Rappler, site de notícias que ela fundou e preside, têm sido acusados de fraude fiscal pelo governo, que já tentou sem sucesso cassar a licença de funcionamento da empresa.

“Querem deixar claro que vão dificultar muito nossa vida. Já entendemos, mas vamos continuar fazendo nosso trabalho”, disse Maria, 55, em entrevista à Folha.

Criado em 2012, o Rappler, como outros meios de comunicação, entrou na mira do presidente Rodrigo Duterte pela cobertura crítica da guerra às drogas —que, segundo entidades de direitos humanos, já deixou mais de 12 mil mortos desde 2016.

O site e Maria viraram alvo preferencial do governo filipino, após série de reportagens sobre como Duterte e seus aliados usaram contas falsas em mídias sociais e pagaram trolls para disparar mensagens em massa e manipular a opinião pública.

Maria chegou a receber 90 mensagens de ódio por hora em sua conta do Facebook, incluindo ameaças de morte e estupro. A Presidência filipina também cassou a credencial do site e tem impedido seus jornalistas de participar de coberturas oficiais.

Não se calar e reforçar os valores jornalísticos é, segundo Maria, a única forma de resistir ao que chama de 3 Cs: corrupção, coerção e cooptação. “É preciso aumentar a luz. Se você fizer acordos nebulosos e não chamar a atenção para as tentativas de intimidação, você é parte do problema.”

Maria atribui os problemas atuais não só ao presidente mas também às empresas de tecnologia, especialmente o Facebook, cuja rede social é usada por 97% dos filipinos.

“O grande problema é deixar que as mentiras circulem livremente nas redes sociais. É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news, rastrear as fontes. É possível e é necessário fazer isso”, disse ela em Doha, no Catar, onde participou de debate sobre “Como combater a demonização da imprensa”.

Segundo ela, as redes sociais terão que “drenar o lodo tóxico” se quiserem sobreviver. Neste ano, o Rappler estabeleceu uma parceria com o Facebook para a checagem de fatos.

“Precisamos fazer com que todos os veículos de mídia trabalhem juntos, porque todos serão atacados, mais cedo ou mais tarde”, disse ela.

A sra. ganhou vários prêmios jornalísticos neste ano. Infelizmente, eles expõem um momento muito difícil para meu país e o jornalismo. Mostram que há uma batalha concreta, com custos reais e perigo para a democracia.

Em discurso recente, atribuiu as dificuldades à ação do presidente Duterte e às redes sociais. Como essas últimas prejudicam o jornalismo? Essas empresas são hoje o maior distribuidor de notícias do mundo, e viraram todo o sistema de cabeça baixo. Além de terem capturado o faturamento dos grupos tradicionais, não assumiram a responsabilidade, na esfera pública, de proteger as informações. Seus algoritmos tratam mentiras e fatos da mesma forma, o que põe em perigo democracias no mundo todo. Achamos que é possível limpar esse lodo tóxico e usar a ferramenta para construir instituições de baixo para cima.

Há como responsabilizá-los? Já é possível ver uma ação forte nos Estados Unidos, com as audiências no Senado, que expuseram claramente como as mídias sociais foram transformadas em armas. É importante expor como as redes sociais estão sendo usadas para controlar a narrativa política, e como grupos como a Cambridge Analytica têm atuado em eleições em vários países.
As gigantes de tecnologia terão que mudar, terão que limpar as redes sociais. Não acho que tenham escolha, se quiserem sobreviver.

O presidente Rodrigo Duterte também usou redes sociais para encorajar ataques contra jornalistas. Encorajar não é a palavra correta. Foi um uso bastante sistemático. Assim como em outras partes do mundo, a guerra da informação começa nas redes sociais, se fortalece no mundo virtual e depois evolui para ataques concretos. No começo, eles atacaram qualquer um que questionasse as execuções extrajudiciais. Num segundo momento, passaram a atacar jornalistas de forma bastante sistemática.
Depois de criar esse ambiente contra os jornalistas e o jornalismo, começaram a sufocar as empresas jornalísticas.

Duterte foi eficiente em sua tentativa de desacreditar a imprensa tradicional?  Muito. Com os chamados “trolls patrióticos”, que disseminam ódio online patrocinado pelo Estado, eles conseguiram mutilar o jornalismo, fazer com que o público deixasse de acreditar nos jornalistas. Assassinato de reputação era muito comum —usaram todos os animais possíveis para me xingar, zombavam da minha aparência, da minha voz. E diziam que os jornalistas críticos eram corruptos. Se você diz um milhão de vezes que alguém é corrupto, as pessoas acreditam. Nosso país deixou de ser uma democracia e passou a ser uma ditadura por meio do ódio online. Usavam a viralidade do Facebook para espalhar mentiras sobre os jornalistas. O resultado foi claro. Em janeiro de 2018, uma pesquisa do Pew Global Attitudes com o mundo real mostrava que 86% das pessoas diziam acreditar que a mídia tradicional era justa e correta. Uma pesquisa da Edelman feita com usuários de mídias sociais mostrava que 83% não confiavam na mídia tradicional.

Que tipo de medida é eficiente para se contrapor à desinformação?  O grande problema é deixar que as mentiras circulem livremente nas redes sociais. É preciso mapear as redes que estão espalhando fake news, rastrear as fontes. É possível e é necessário fazer isso. E precisamos fazer com que todos os veículos de mídia trabalhem juntos, porque todos serão atacados, mais cedo ou mais tarde. No começo, as TVs não ligavam muito para os ataques, não acreditavam que pudessem ser ameaçadas. Quando começaram a ser atacadas, se juntaram aos outros veículos e hoje nós colaboramos no combate à desinformação. Mas não basta mostrar que algo é falso, é preciso fazer reportagens mostrando de onde vêm essas fake news, mostrar às pessoas que elas estão sendo manipuladas e como isso está sendo feito. Nas Filipinas, finalmente o Facebook começou a banir perfis, porque se deu conta de que estava perdendo usuários e anunciantes. O uso das redes sociais como arma é apenas o fertilizante para que esses ataques cresçam e passem para o mundo real, com leis arbitrárias, por exemplo.

Houve casos antes do Rappler, contra o jornal “Inquirer”. Sim. O maior jornal filipino publicou em sua capa a foto de uma mulher segurando o marido morto na guerra às drogas, e Duterte se voltou contra eles. Sob pressão, os donos do jornal foram forçados a vender o controle para um aliado do presidente.
Em seguida ele passou a ameaçar a maior cadeia de TV do país, a ABS-CBN, dizendo que não renovaria sua licença em 2020. E depois disso, o Rappler. Tentaram cassar nossa licença e deslancharam as ações tributárias.

Houve um gatilho para isso? Nós não somos apoiadores nem opositores de Rodrigo Duterte. Vamos continuar mostrando ao público que o presidente está abusando do poder para atacar seus críticos, usando a lei e instituições como a Procuradoria da Receita para intimidar os que considera seus inimigos. É uma paranoia perigosa, pois ele está mobilizando muito poder.

O objetivo é cercear o jornalismo do Rappler? Eles querem deixar claro que vão dificultar muito nossa vida. Já entendemos, mas vamos continuar fazendo nosso trabalho. Talvez essa seja uma mensagem para o Brasil. Precisamos definir qual é a linha demarcatória, a linha que define o que é democracia e o que é ditadura ou autocracia, e trabalhar para impedir que ela seja ultrapassada.

Foram surpreendidos pela escalada de pressão? Duterte sempre foi muito claro sobre o que pretendia, mesmo antes de virar candidato. O que as pessoas não viram foi que pulamos da frigideira para o fogo. Elegemos um presidente muito forte, que abusa do poder, e não temos instituições necessárias para contê-lo. Essa é uma grande diferença entre Filipinas e os Estados Unidos, onde o Congresso e outras instituições podem colocar Trump de volta na rota quando ele se excede.

Nas Filipinas as instituições de freios e contrapesos não conseguem atuar? Não há freios e contrapesos nas Filipinas. O governo tem usado 3 “Cs” para tentar controlar qualquer um que questione seus meios de ação.

Quais são os 3 “Cs”? Corromper, coagir ou cooptar. Ele toma decisões unilaterais e as impõe. Duterte tem apoio popular, é o mais poderoso presidente que tivemos em décadas, mais até que Ferdinando Marcos (ditador de 1965 a 1986), porque controla o Executivo e o Legislativo e, até o fim de seu mandato, terá apontado 13 dos 15 juízes da Suprema Corte.
Nesse ambiente, as companhias também são pressionadas a seguir as determinações do presidente.

O governo pressionou os anunciantes para boicotarem vocês? Na medida em que o governo nos ataca, os anunciantes têm medo de se associar a nós. Nos bastidores, dizem que nos apoiam 100 %, mas apoiam só de longe (risos).

Com a companhia sendo estrangulada, alguma vez chegou a pensar em recuar? Nossa resposta tem sido reforçar ainda mais nossos valores. As jornalistas que criamos o Rappler o fizemos porque queríamos ser independentes. Nós tínhamos valores fortes e sabíamos que, se quiséssemos continuar trabalhando de acordo com eles, teríamos que nos preparar para isso. Fui correspondente de guerra e nós quatro sabíamos que antes de mais nada precisávamos nos preparar, planejar os movimentos. Antecipar os piores cenários, e nos antecipar nas possíveis saídas. O segundo passo é que você precisa saber quem é, porque nesse ambiente haverá tentativas de corrupção, coerção e cooptação. Antes que eles viessem, sabíamos que manter o jornalismo independente era ruim para os negócios. Mas, como o maior grupo na direção é formado por jornalistas, fomos capazes de mostrar aos homens de negócios como funciona nosso mundo e convencê-los de que a  melhor saída era continuar fazendo jornalismo como fazíamos.
E eles concordaram em assumir riscos que geralmente homens de negócios não assumem. Por fim, aprendi que a melhor forma de lidar com isso é aumentar a luz. Se você fizer acordos nebulosos e não chamar a atenção para as tentativas de intimidação, você é parte do problema. Quando eles tentaram tirar nossa licença, nós reagimos claramente mostrando que era politicamente motivado, e isso nos manteve em funcionamento.

Como os negócios estão sendo afetados? Fomos os primeiros nas Filipinas a fazer publicidade nativa, em 2012, e a partir daí mudamos nosso modelo de negócios algumas vezes. Quando estamos sob ataque do governo, os anunciantes ficam nervosos. Vimos isso e tentamos dar a eles o que precisam, usando dados estruturados das mídias sociais para prestar serviços a eles. Estamos estudando como criar um modelo de associação (membership), que seja sustentável num momento em que toda a publicidade digital está indo para Google, Facebook e Amazon. Não acho que o modelo de assinaturas seja o melhor num país em que a maioria da população é muito pobre para arcar com isso.

A senhora vê similaridades entre Bolsonaro e Duterte? Eu entrevistei Duterte antes da eleição e ele afirmou que se transformaria em um ditador se fosse eleito e prometeu matar usuários de drogas. Ele cumpriu todas as suas promessas. Portanto, tenham cuidado com Bolsonaro e suas promessas. Dependendo da força das instituições, o mundo de vocês vai virar de cabeça para baixo, como o nosso.


Leandro Colon: Compadrio e vexame no TCU

Dois ministros mudam de ideia e recuam de impedimento para salvar a pele de aliados

O TCU (Tribunal de Contas da União) protagonizou na semana passada uma constrangedora sessão para figurar entre os maiores vexames da história da corte.

O episódio foi contado na Folha pelo repórter Fábio Fabrini. O enredo é simples: dois ministros haviam se declarado impedidos lá atrás de opinar em um processo envolvendo dois aliados bem próximos deles.

Até aí, tudo certo, afinal demonstraram bom senso. Na hora do julgamento, a surpresa: quando o placar final, sem os votos da dupla, caminhava para condenação dos velhos amigos, os ministros anunciaram, para o espanto dos colegas, que mudaram de ideia e não se sentiam mais impedidos. Rasgaram a fantasia e votaram a favor dos investigados.

Os ministros são Raimundo Carreiro, que deixa a presidência do TCU no fim deste mês, e Aroldo Cedraz.

Os dois personagens julgados são Agaciel Maia e Efraim Morais. O primeiro, hoje deputado distrital no DF, foi o todo-poderoso da diretoria-geral do Senado até 2009, quando caiu durante o escândalo administrativo que atingiu a Casa naquele ano. Era apontado, na época, como operador dos atos secretos que quase derrubaram José Sarney da presidência.

Efraim ocupou, como senador, a primeira-secretaria do Senado. Respaldava os contratos de terceirização. Segundo o TCU, ele e Agaciel deram um prejuízo de pelo menos R$ 14 milhões (valores da época) na contratação de uma dessas empresas.

O ministro Raimundo Carreiro chegou ao tribunal em 2007, indicado pelos senadores depois de 12 anos como secretário-geral do Senado. Era parceiro de Agaciel nos serviços prestados ao grupo de Sarney no Congresso, incluindo Efraim Morais.

Aroldo Cedraz também é ministro desde 2007, escolhido pela Câmara sob filiação ao antigo PFL, partido de Efraim. Seu filho, o advogado Tiago Cedraz, tem sido uma figurinha carimbada nas ações da Lava Jato.

Não surpreende o compadrio nas relações de poder em Brasília. O seu escancaramento, porém, não deixa de ser preocupante e assustador.


Clóvis Rossi: Ignorância guia política externa do governo Bolsonaro

Presidente eleito não leu os acordos que despreza, como o de Paris

Esta Folha já disse tudo o que é imprescindível sobre as ameaças do futuro governo Bolsonaro de abandonar o Acordo de Paris (sobre mudança climática) ou tentar modificá-lo.

A frase do editorial desta sexta-feira (14) é definitiva: “Ambos, Salles e Bolsonaro, se equivocam e demonstram constrangedora ignorância sobre Paris” (o Salles é Ricardo Salles, futuro ministro de Meio Ambiente).

A “constrangedora ignorância” não se limita, desgraçadamente, ao Acordo de Paris. Estende-se também ao recém-assinado Compacto Global sobre Migração Segura, Organizada e Regular.

É óbvio que todo presidente tem o direito (e o dever, de resto) de aplicar as políticas que achar convenientes, tanto as internas como a externa. Mas tem também a obrigação de definir tais políticas com base em um mínimo de racionalidade, e não a partir de “constrangedora ignorância”.

O argumento do bolsonarismo, em ambos os temas, é o de que cabe exclusivamente ao país determinar suas políticas ambientais e migratórias, sem aceitar imposições de outras nações.

Já é um conceito discutível porque, no caso do meio ambiente, por exemplo, é evidente que a mudança climática não se detém nas fronteiras deste ou daquele país.

Logo, ou há uma ação conjunta ou os problemas se acentuarão inexoravelmente.

Mas o ponto aí é outro: nem o acordo sobre o clima nem o sobre migrações são vinculantes, como ressalta a Folha no seu editorial sobre Paris:

“Nada há de impositivo em seu texto para o Brasil ou qualquer outro país. As metas de redução de emissões de carbono ali incluídas são voluntárias (‘contribuições nacionalmente determinadas’).”

Vale idêntica afirmação para o acordo sobre migrações.

A constrangedora ignorância apontada por este jornal pode estar escondendo algo mais assustador.

Escreve, em seu Facebook, Oliver Stuenkel, um dos mais lúcidos analistas de relações internacionais que o Brasil tem: “Toda a retórica sobre interferência externa não é realmente a respeito de mudança climática por si. De fato, é usada para combater o que [o bolsonarismo] percebe como inimigo: supostas forças globalistas”.

É outro conceito estúpido. Pode-se detestar a globalização, podem-se enxergar nela mil e um defeitos, mas não dá para gritar “parem o mundo que eu quero descer”. O mundo é hoje globalizado.

Se é assim, a cooperação internacional é a única maneira de atenuar os eventuais danos que essa situação provoca.

Preferir, como vem indicando o futuro governo, negociações bilaterais, em vez das multilaterais, é no mínimo improdutivo.

Veja-se o caso das migrações que mais diretamente afetam o Brasil, a dos venezuelanos. Como é que se vai discutir o assunto bilateralmente com Caracas, na qual reina um bando de tarados incompetentes e que fingem não ver o que está ocorrendo?

Impossível. Até um conservador americano, que os Bolsonaros certamente admiram, o senador Marco Rubio, acaba de dizer ao Miami Herald: “Acho que temos uma chance de uma parceria com Brasil, Colômbia, Chile, Argentina e outros na América do Sul para lidar com alguns dos desafios postos pela crise migratória na Venezuela”.

Quer demonstração mais clara de que cooperação internacional não é invenção dos comunistas, caramba?


Folha de S. Paulo: Mundo ainda não se recuperou de 2008, afirma economista

Para professor da Universidade de Columbia, a próxima bolha pode estourar na China

Danielle Brant, da Folha de S. Paulo

NOVA YORK - A próxima crise econômica global pode ser mais devastadora que a anterior, porque os países ainda não se recuperaram da recessão de 2008. A avaliação é de Adam Tooze, professor de história da Universidade Columbia e autor do livro "Crashed: How a Decade of Financial Crisis Changed the World" (Quebrados: como uma década de crises financeiras mudou o mundo, em tradução livre).

Segundo ele, houve uma recuperação desigual da crise. "Você poderia citar a experiência americana, em que a recuperação econômica da crise foi vigorosa", diz. Na Europa, muitos países ainda estão em situação frágil, e os emergentes ainda lidam com os efeitos colaterais das medidas que os bancos centrais tomaram para conter a recessão, continua.

Tooze relaciona ainda a crise com a ascensão de uma onda conservadora que teve reflexos inclusive no Brasil.

"Não há uma fórmula simples que traduza crise econômica em resultado político", diz. "O Brasil é um exemplo extraordinário disso. Ninguém diria 12 meses atrás que o Brasil estaria onde está hoje."

O senhor está no grupo dos que previram a crise? 
Eu não diria que previ a crise. Como muitas pessoas, eu achava que havia desequilíbrios na economia americana, déficit dos EUA, da China também, mas eu não antecipei a crise. Eu estava escrevendo um livro sobre Primeira Guerra Mundial e não estava pensando na tecnicidade do sistema bancário. Não foi uma crise como a que temos, cíclica, nunca vimos na história do capitalismo.

É possível comparar com a Grande Depressão de 1929?
O resultado da crise de 1929, que terminou em 1933, foi muito pior em termos de desemprego, em colapso dos preços de commodities. Mas, em parte, foi porque não foi administrada, não foi contida. Foi uma doença, como a gripe, que seguiu seu curso sem intervenção médica.

A crise de 2008, a maioria vai concordar, pareceu pior que a de 1929. Em setembro e no início de outubro de 2008, parecia que estávamos vendo o fim do mundo, nunca tantos bancos ficaram em risco ao mesmo tempo, nos dois lados do Atlântico. Todos os bancos europeus e os grandes bancos americanos estavam em risco. Porque parecia tão terrível e porque tínhamos a experiencia da Grande Depressão, medidas foram tomadas quase que imediatamente. Significa que tinha o potencial de ser maior, de ser um desastre maior que a de 1929. Mas não acabou do mesmo jeito. Essa foi a diferença.

A crise de 2008 foi um ataque cardíaco, uma doença pior que a de 1929, mas, dessa vez, tivemos intervenção, o que fez toda a diferença.

Então a intervenção impediu o pior? 
Sim no que diz respeito a Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, o coração do sistema bancário de 2008. O choque que o Brasil sofreu em 2014 foi muito grave, o choque que Espanha, Grécia, Itália sofreram em 2008 foi extraordinariamente grave. A terapia e a intervenção de que estou falando se aplicam ao centro do sistema financeiro. Na periferia, foi muito menos bem-sucedido.

Sobre o papel dos bancos centrais, você tem alguma crítica à atuação deles? 
Os bancos centrais fizeram, na crise de 2008, o que era necessário para impedir os bancos de falirem. Houve duas coisas que você podia fazer. Se você tem uma crise de liquidez e o banco não tem dinheiro, o que você tem que fazer é pegar os ativos de longo prazo e dar dinheiro líquido a eles em troca. E eles fizeram isso nos EUA e na Europa. Todos estavam corretos.

E, se você tem um problema de solvência em que o capital do banco não é suficiente, então você tem que fazer recapitalização e oferecer garantia a esses bancos, e os bancos centrais e Tesouros fizeram isso também. No começo da crise, houve uma diferença, o BCE (Banco Central Europeu) reagiu mais devagar que o Fed (o banco central dos EUA), e os bancos e o Fed ofereceram dólares em grandes quantidades para bancos europeus e asiáticos por linhas de swap. Foi um sucesso dos bancos centrais para conter o dano.

Ainda assim, no seu livro, o senhor diz que a gente não se recuperou da crise. 
Depende de para onde você olha. Você poderia citar a experiência americana, onde a recuperação econômica da crise foi vigorosa, mas não se estende a todas as pessoas na sociedade. As minorias sofreram perdas em sua riqueza que não vão ser recuperadas em décadas. Mas o mercado de trabalho está forte, o desemprego caiu dramaticamente.

Na Europa, a crise, em muitas partes, continuou. A Grécia ainda está numa situação econômica desafiadora, está crescendo agora, a partir de um nível muito baixo. O desemprego na Itália e na Espanha permanece extremamente elevado, especialmente entre jovens. Se olhar no mundo, para os emergentes, nós ainda estamos lidando com os efeitos colaterais das medidas que os bancos centrais tomaram. O Brasil é um dos clássicos. Quando o Fed expandiu a liquidez em dólar, houve uma busca por juros, dinheiro estrangeiro do mundo todo foi injetado no país, parecia um investimento lucrativo. Quando o Fed voltou a elevar os juros, o dinheiro voltou a sair dos emergentes. Essa dinâmica em desdobramento ainda está em processo o tempo todo.

O senhor enxerga uma relação entre a crise e a ascensão do populismo no mundo? 
Varia enormemente de país para país. Uma forma de pensar é em uma imagem metafórica, você pensa na crise financeira como um terremoto. O impacto que tem nos sistemas políticos ao redor do mundo depende do quão perto eles estão do epicentro do terremoto, de quão sólida sua arquitetura é e depende de como os sistemas políticos foram bem mantidos.

Se olhar no mundo, alguns sistemas políticos estavam com uma grande pressão fiscal, só esperando explodir. Ucrânia e Hungria são países assim, você tem um profundo nacionalismo ressentido, tradições fortes. No caso húngaro, nacionalismo, traços de antissemitismo, ressentimento histórico. O choque de 2008 libera isso em um país como a Noruega.

O efeito na Alemanha é muito mais complexo. O AfD, o partido populista de direita, é produto direto da crise financeira, no sentido de que é uma reação ao esforço de Mario Draghi de estabilizar a zona do euro. Não é sobre a política de refugiados de Angela Merkel, mas sim à aceitação de Merkel da política de fornecimento de dinheiro do BCE. Aí você pega a crise de refugiados para impulsionar o AfD, fica mais complicado.

Se você olha na Espanha ou na Grécia, você não tem a ascensão da direita, mas o que a crise fez foi destruir a credibilidade de partidos de centro-esquerda, como o PSOE, na Espanha, e o Pasok, na Grécia.

Nos EUA, não há dúvida de que o Partido Republicano começou a perder sua coerência no verão [hemisfério Norte] de 2008. Você tem a Presidência Bush apelando ao Congresso por votos que não conseguia receber, John McCain se lançando como candidato a presidente e se recusando a endossar políticas da administração Bush e escolhendo Sarah Palin como sua vice, que é literalmente a antecessora de Donald Trump, como a xerife lunática que representa a política de direita americana.

Em cada país, depende da arquitetura, de como os atores no sistema político escolhem explorar as oportunidades. E de tensões preexistentes.

Não há uniformidade. Não mais do que teve nos anos 1930. Se você pensar na Grande Depressão, você teve o Peronismo na Argentina, o New Deal nos EUA e Adolf Hitler na Alemanha. Todos eles são produto da Grande Depressão.

Não há uma fórmula simples que traduza crise econômica em resultado político. É sempre uma equação complexa, em que tomadas de decisão e iniciativas são adotadas. O Brasil é um exemplo extraordinário disso. Ninguém diria que o Brasil estaria onde está hoje 12 meses atrás.

Uma próxima crise poderia vir dos empréstimos estudantis? 
Os empréstimos estudantis não são tanto um risco, mas as dívidas de empresas são um risco sério. Os títulos emitidos por empresas americanas com ratings de grau de investimento são elegíveis para compras por fundos de pensão, considerados ativos de alta qualidade. Há um grande problema, com ativos de baixa qualidade sendo considerados como de grau de investimento.

E só o que precisa acontecer é que eles sofram um rebaixamento para não serem mais elegíveis para compra pelos fundos. Aí você vai ter ondas de venda, o que levaria ao problema de queda de preços.

Esse é um cenário perigoso. A pergunta sobre a possibilidade de causar uma repetição da crise de 2008 requer que se questione quem sofreria as perdas. Se forem investidores comuns ou famílias que sofrerem as perdas, poderia causar a gripe econômica, a recessão, levaria as pessoas a poupar mais e investir menos. Mas não causariam uma crise financeira, porque, para ter uma crise financeira, você precisa que as perdas estejam no balanço de pagamentos de entidades que se alavancaram, que tomaram muito dinheiro para investir. E, no curto prazo, que estivessem sujeitos a uma situação em que as pessoas retirariam seu dinheiro.

Eu não vi dados até agora que mostrem um risco muito grande dos títulos corporativos nos balanços de empresas com financiamento de curto prazo. Sem isso, você pode ter uma recessão, mas não uma crise financeira.

Considerando que muitos países não se recuperaram da última crise, uma nova crise seria mais devastadora? 
Absolutamente, e os bancos centrais já gastaram muita de sua munição. Não é óbvio qual outra munição eles teriam para usar. Eles poderiam achar mais maneiras de deixar os juros em terreno negativo, devolver a zero, mas essa medida de emergência já foi tomada dez anos atrás. E não está claro de onde viria a próxima ação.

O senhor diria que o mundo aprendeu alguma coisa com a última crise? 
Eu acho que sim, nós temos uma ideia mais clara dos riscos. Eu acho que houve mudanças que tornaram o sistema financeiro mais seguro, não tão seguro quanto gostaríamos, mas certamente mais seguro do que o que havia em 2008.

Também sabemos agora o que fazer quando as economias estão tendo um ataque cardíaco.

O processo de globalização é contínuo. Precisamos reconhecer quão recente a história dos mercados emergentes é, e ainda estamos no processo de entender a implicação da governança global e econômica. Fizemos um experimento ao vivo para saber o que acontece quando, depois de dez anos de uma taxa de juros muito baixa, você sobe os juros americanos. Todo economista do mundo está focando essa questão.

E de onde vem a próxima crise? 
Se perguntar de onde vem a próxima recessão, e eu vou diferenciar de novo entre gripe e ataque cardíaco. Se você pergunta de onde vem a próxima gripe, está muito claro. Os EUA vão desacelerar, nessa mesma etapa do próximo ano. Isso não é difícil de ver.

O próximo ataque cardíaco é muito mais difícil, porque é algo que, por definição, você não consegue saber de onde vem, pega de surpresa.

A maioria das pessoas deve concordar que é improvável que venha do Ocidente. A crise de 2008 foi uma bolha conjunta entre EUA e Europa, não vemos esse fenômeno de bolha agora. Se houver evidência de um fenômeno de bolha, o risco é na Ásia e, acima de tudo, na China. Não está óbvio se o governo chinês está cogitando isso.


Folha de S. Paulo: Bolsonaro é resposta tosca, mas não ameaça a democracia, diz Mangabeira Unger

Guru de Ciro Gomes diz que PT preferiu ser derrotado a perder a atual hegemonia na esquerda

Por Carolina Linhares, da Folha de S. Paulo

Para o filósofo Roberto Mangabeira Unger, a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) é uma resposta tosca a uma aspiração legítima do Brasil profundo de botar para quebrar.

O professor da Universidade Harvard (EUA) critica a hegemonia do PT, de Lula. "Como eles vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria."

Guru de Ciro Gomes (PDT), ele assume erros na campanha.

 Qual o significado da eleição de 2018? 
Foi um plebiscito sobre a volta do PT. A maioria decisiva dos brasileiros estava disposta a pagar quase qualquer preço para evitar o retorno do PT. O PT e o Lula deveriam ter tido a grandeza de reconhecer que a maioria dos brasileiros não aceitaria a volta do PT. Não havia qualquer chance de vitória do candidato do PT, mesmo que Lula pudesse ter sido candidato. O natural é que o PT desde o início tivesse apoiado Ciro.

E por que Ciro não venceu? 
Ciro e nós, seus aliados, cometemos um erro. Havia dois caminhos. Um era acertar-se com Lula e com o PT. Aceitar ser vice de Lula para depois virar cabeça de chapa. Havia objeções a isso, devido à diferença entre os projetos par o país e à falta de confiança nos acertos do PT, que tem uma longa história de dar rasteiras. Esse caminho tinha uma consistência tática.
O outro caminho era romper desde o início com o PT. Deixar clara a diferença de projeto e oferecer-se ao eleitorado como uma alternativa mais confiável do que Bolsonaro. O erro foi ficar no meio termo. Muitos até o final continuaram a achar que o Ciro era um homem de Lula. Isso é que foi fatal.

Ao não declarar apoio a Haddad no segundo turno, Ciro buscou esse afastamento? 
Tarde demais para superar os males gerados por essa ambiguidade. Ciro passou muito tempo explicando-se para as classes ilustradas e endinheiradas, que na maioria jamais votariam nele, em vez de buscar o povão.

Qual dos caminhos que o sr. mencionou para Ciro era melhor? 
Os dois tinham consistência. Se ele escolhesse o acerto com o PT, não havia nenhum risco de que, no poder, ele se conduziria como instrumento do lulismo. Eu advoguei essa alternativa.

O sr. não disse que tem que correr fora da raia do lulismo? 
Você está fazendo confusão. Uma coisa é o caminho tático. Nós não escolhemos as circunstâncias. Se fosse o primeiro caminho, haveria o problema da confusão da população, porque ficaria manifesto que o Ciro tem um outro projeto.

Mas ele seria eleito? 
Com grande chances, com o apoio de Lula, mas sendo não-Lula e sendo quem é, inconfundível com poste, teria grandes chances. O [caminho] preferível teria sido começar de lá de trás essa pedagogia da diferença.

O sr. disse que é preciso correr fora da raia do lulismo... 
Eu não disse isso, Fernando Haddad atribuiu essa frase a mim, porque ele confundiu duas coisas: a questão tática com a questão de fundo. Sinceramente eu acho que ele, meu amigo, até hoje não compreende a diferença substantiva dos projetos.

Como o sr. explica a ascensão de Bolsonaro?
PSDB e PT juntos, duas cabeças da mesma serpente, conduziram o Brasil por uma lógica da cooptação. Cada parte do país foi comprada, a corrupção foi apenas um dos vários corolários desse sistema. Intuitivamente o Brasil buscava passar da lógica da cooptação para a lógica do empoderamento. E por trás dessa rejeição ao PT havia o repúdio à lógica da cooptação.
O modelo que chamamos de nacional consumismo democratizou a economia do lado da demanda e do consumo, não do lado da produção. O agente social mais importante do Brasil, os emergentes, é órfão de projeto político. Não é apenas a pequena burguesia empreendedora mestiça, morena, que vem de baixo. É também uma multidão de trabalhadores pobres que vê nos emergentes a vanguarda. Essa é a cara do Brasil profundo.

A esquerda abandonou essa população? 
Chamar de esquerda o PT é muito esquisito. Porque esse nacional consumismo não tinha qualquer projeto de mudança estrutural. A parte social é o açúcar com que se pretendia dourar a pílula do modelo econômico. Esse Brasil profundo quer desesperadamente mais do que açúcar. Quer instrumento e oportunidade. Quer botar pra quebrar, criar, construir, inovar, ser gente. ​Bolsonaro é o beneficiário acidental desse desejo frustrado. Acidental não é para desmerecer o esforço que ele fez durante anos de construir um discurso e canais para esse Brasil desconhecido, que é o agente decisivo hoje.

Bolsonaro teve essa estratégia ou foi sem querer? 
Intuitivamente sim [teve estratégia]. Oferece soluções simplistas, mas que no imaginário apelavam para uma ideia de libertação e merecimento. Era a forma simplista e até distorcida e mentirosa de uma aspiração legítima.

Por que o PT não apoiou Ciro? 
Tudo indica que preferiam perder o poder à direita a perder a hegemonia na esquerda. Por soberba, sobrevalorizando a sua influência sobre a população e subvalorizando a descoberta pelo povo brasileiro da insuficiência do projeto petista. Um povo farto da lógica da cooptação nacional consumismo e buscando o empoderamento. Isso era o mais difícil de eles aceitarem porque seria uma crítica fundamental a eles mesmos.

O sr. concorda com essa estratégia de oposição sem o PT? 
Existe a tarefa pedagógica de esclarecer a divergência de fundo. PT não é esquerda. Precisamos de inovação estrutural. Andar demais com o PT é um perigo sob o ponto de vista dessa tarefa.
E eles continuam a ter aspirações hegemonistas, então é difícil andar com eles. Acham natural eles liderarem. Como vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria.
Não é razão para não conversar com eles. Por exemplo, eu hoje à noite [dia 5] vou jantar com Haddad. Não vou dizer que eles são diabólicos, mas os puritanos nos EUA têm um provérbio: “quando jantar com o diabo, use uma colher muito comprida”.

Do ponto de vista eleitoral, é possível que a esquerda chegue ao poder rejeitando Lula e o lulismo?
Precisará de eleitores que votaram em Lula, não precisará necessariamente do PT e do Lula. Gostaria que Lula tivesse grandeza de compreender tudo isso.

Bolsonaro fará um bom governo? 
Me parece promissor, e falo como opositor, a ideia de impor o capitalismo aos capitalistas. Nem de longe é condição suficiente para o modelo de desenvolvimento que precisamos, mas é condição preliminar. A radicalização da concorrência, quebra dos cartéis, a destruição dos favores dados aos graúdos pelos bancos públicos.
E de oferecer aos emergentes um projeto político que responde às aspirações deles. Considero que a resposta é tosca e que irá frustrar parte da população. Mas é melhor do que nada. O que era intolerável no nosso país é que o agente social mais importante estivesse alienado da política e não se sentisse representado.

Como e quando a população será frustrada? 
Quero acreditar que o momento Bolsonaro seja um primeiro momento em que rejeitamos a cooptação e tentamos constituir, numa forma tosca e insuficiente, a lógica do empoderamento.
O provável é que Bolsonaro consiga alguns feitos, mas que pare no meio do caminho. [Ele] Julga que o conserto das regras tributárias e da Previdência melhoraria o ambiente geral dos negócios. É uma preliminar indispensável, mas não resolve o problema.
A democratização do consumo se pode fazer só com dinheiro, mas democratizar a produção exige inovação institucional política e econômica. É uma nova vanguarda, da economia do conhecimento. Não há nenhum país grande no mundo que por sua natureza tenha mais pendor para esse experimentalismo radical do que o Brasil.Há
um empreendedorismo vibrante no Brasil, mas em grande parte, primitivo. Teríamos que começar a qualificá-lo. Temos que burilar nossa vitalidade, não difamá-la como barbárie e regressão.

Bolsonaro não é o experimentalismo radical? 
Não. Não é a ideia de que existe a forma simplista de acabar com a bagunça. A ordem na sala de aula, a força contra crime, é o presidente não comprar os partidos. Não é acabar com a bagunça, é transformá-la numa anarquia criadora. Não vamos impor ao país uma camisa de força.
A severidade moralizante, a fórmula pronta, o revólver, a ordem patriarcal. Tudo isso é uma fantasia arcaica, de que há um atalho, uma maneira simples de encontrar esse futuro que queremos. O Brasil vai descobrir que esse atalho não funciona, mesmo assim eu julgo que essa primeira onda será útil ao país e talvez, retrospectivamente, venhamos a pensar que ela foi necessária.

Bolsonaro é uma ameaça à democracia? 
Não vejo qualquer indício concreto de ameaça direta à democracia. Em Harvard, meus colegas me abraçam em solidariedade porque passa por lá que Mussolini assumiu o poder. Não é nada disso. O risco que nos ronda não é a ditadura fascista, é a perpetuação da mediocridade. O risco à democracia pode haver depois, por sucessivas frustrações dessas aspirações dos emergentes, de empoderamento.

Como vê Sergio Moro no Ministério da Justiça? 
Outro aspecto positivo de Bolsonaro é a desorganização dos acertos entre oligarquia do poder e oligarquia do dinheiro. Moro pode ser útil nisso. Muito bom para o país. Desde que não caiamos sob o governo dos juízes, que não têm eficácia ou legitimidade para governar. Eles são úteis ao país para abrir o espaço cívico e impedir que ele seja corrompido, mas não para ocupá-lo.

O que acha da política externa de Bolsonaro?
Há duas vozes dominantes na política exterior brasileira. A primeira é a da política exterior como sucursal da UNE. É retórica, nunca foi real. Por exemplo, nos assuntos da Defesa, o Brasil é um protetorado dos EUA e o PT nunca levantou um dedo para mudar isso. A outra voz é a política exterior como sucursal da Fiesp. É um bazar para vender os nossos produtos.
O que eu temo é que a política exterior do governo Bolsonaro venha a ser a continuação da mesma coisa, a justaposição dos dois erros. É o simbólico com sinal trocado, em vez de anti-imperialismo é antiglobalismo. Um tão ruim quanto o outro. Justaposto ao pequeno mercantilismo. É um bazar permanente.

E a relação com os EUA?
De um lado, dizemos “vamos ser como eles”. Eles buscam grandeza, nós vamos buscar grandeza. E qual a fórmula da grandeza? É nos subordinar a eles. Isso é algo que não passa, justificado por essa retórica confusa do antiglobalismo.
É a ambiguidade do discurso do Bolsonaro. Não está só trocando o sinal, passando de uma política ideológica para outra e não concebendo a política exterior como política de estado. Estão usando a política exterior como se fosse o reino do simbólico. Os astrólogos escolherem chanceleres. Isso só aconteceu na Babilônia há três mil anos.

 


Demétrio Magnoli: Guerra de religião

Não há diferenças essenciais entre Damares e os fundamentalistas islâmicos

"A igreja deve governar", exclamou Damares Alves, nova ministra da Mulher, da Família e Direitos Humanos aos fiéis de sua seita evangélica. Há pouco, bastaria contraditá-la invocando a laicidade estatal. Hoje, face ao regresso político em curso, é preciso examinar as relações entre igreja, partido e governo para redescobrir o valor universal do princípio do Estado laico.

A fé não precisa de uma igreja para se manifestar. As igrejas, como os partidos, são sobre poder. No Ocidente medieval, a Igreja Católica exercia um poder absoluto sobre as sociedades: o papado legitimava os reis. Um paralelo apropriado é com os totalitarismos do século 20: os partidos de Stalin e Hitler identificavam-se com o Estado.

Nas democracias, contudo, partidos e igrejas ocupam lugares radicalmente diferentes. Os primeiros almejam governar; as segundas só podem almejar a liberdade de pregar uma fé.

O partido é a expressão política de uma parte da sociedade que pretende representar, provisoriamente, a sociedade inteira. A meta é atingida por meio do voto majoritário, veículo da soberania popular, que sagra a verdade do partido como verdade geral provisória.

Mas o partido que chega ao governo continua a ser a parte, não o todo, e, por isso, corre o risco de ser apeado na eleição seguinte. A igreja, porém, qualquer que seja ela, define a sua verdade como Verdade eterna —e, por isso, não tem o direito de querer governar.

Os partidos exibem seus programas como soluções melhores para administrar as coisas (a economia, os serviços públicos) nas circunstâncias do presente. As igrejas, por outro lado, pretendem universalizar uma fé, um modo de entender a vida e a morte, um catálogo de preceitos sobre o comportamento dos indivíduos nas esferas pública e privada.

O governo do partido pode ser mudado; o "governo da igreja" é, por definição, imutável. Do ponto de vista da democracia, não existem diferenças essenciais entre Damares e os fundamentalistas islâmicos que governam a Arábia Saudita, o Irã, o Sudão e a Faixa de Gaza.

"Todo o poder aos sovietes!". A exigência dos antigos comunistas de transferência de "todo o poder" à classe proletária deve ser interpretada: de fato, eles queriam o poder absoluto para seu próprio partido.

Os partidos comunistas proclamavam representar, com exclusividade, a classe trabalhadora. Por esse motivo, quando os bolcheviques chegaram ao poder na Rússia, começaram proibindo os "partidos burgueses", inimigos da "ditadura do proletariado", para proibir na sequência os demais partidos que juravam representar os interesses dos trabalhadores.

As igrejas são, sob esse aspecto, muito parecidas com os partidos comunistas. Deriva daí que a elevação de uma igreja ao governo é o que de mais perigoso pode acontecer para a liberdade de religião.

A seita de Damares vê, no cristianismo, a fé verdadeira exclusiva. O seu "governo da igreja" começaria proscrevendo as "religiões demoníacas" (ou seja, todas as não cristãs), mas não pararia por aí.

Tanto quanto as outras, a seita de Damares enxerga a si mesma como a única perfeita tradução da fé cristã. Depois de eliminar as "religiões demoníacas", seu "governo da igreja" proscreveria as igrejas cristãs concorrentes. Todo o poder para Damares tem, como implicação lógica, a guerra de religião, primeiro contra os "infiéis" e, na sequência, contra os "falsos fiéis".

No seu organograma de governo, Bolsonaro traçou um círculo em torno de quatro ministérios, criando uma reserva de mercado para o extremismo de direita.

Perto dos ministérios das Relações Exteriores, da Educação e do Meio Ambiente, a pasta de Damares parece um pátio de folguedos infantis entregue a meia dúzia de fundamentalistas cristãos. Engano: o governo que desafia o Estado laico está brincando com fósforo entre tambores de substâncias inflamáveis.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Para caciques, Bolsonaro precisará fazer reforma ministerial no 1º ano

Pedido de cargos mostra que chip da política continua funcionando como antes em Brasília

Na terça-feira (11), um deputado parou o futuro ministro OnyxLorenzoni (Casa Civil) para fazer um pedido. Apresentou o nome do filho para uma secretaria do novo governo. Horas depois, Tereza Cristina (Agricultura) foi abordada por um colega do DEM que perguntava se havia espaço em sua pasta para um nome técnico de sua confiança.

Embora Jair Bolsonaro tenha ficado relativamente livre da pressão dos partidos na escolha dos principais cargos de sua gestão, o chip da política continua funcionando como antes. A cobrança por vagas no segundo escalão é feita às claras.

Os políticos mais calejados dão um voto de confiança ao próximo governo, mas alguns consideram praticamente inevitável uma reforma na Esplanada dos Ministérios já no primeiro ano de mandato. Para eles, a dificuldade para aprovar pautas amargas no Congresso deve obrigar o presidente eleito a dividir poder com os partidos.

Bolsonaro completou esta semana um ciclo de encontros com as bancadas que devem apoiar parte de sua agenda. O gesto de aproximação foi bem recebido e abriu os canais de articulação política para 2019, mas se traduziu em pouco apoio formal.

Ainda há sinais escassos de como o fluxo de poder funcionará. Deputados e senadores conhecem o valor de seus votos para o governo. O Planalto, por outro lado, sabe que tem tinta na caneta para fazer nomeações e liberar verbas para as bases eleitorais desses congressistas.

Se os dois lados não se encaixarem naturalmente, haverá uma queda de braço. Ou Bolsonaro forçará a troca do chip, ou precisará instalar em seu governo um software compatível com os políticos de sempre.

Em 1990, Fernando Collor montou um ministério a seu gosto. Cortou 10 pastas e escolheu titulares de sua confiança, quase sem consultar os partidos. Em abril de 1992, fragilizado, foi obrigado a fazer uma grande reforma, cedendo espaço aos velhos caciques. O acordo deu ao presidente uma sobrevida de oito meses, mas não o salvou do impeachment.