Folha de S. Paulo

Bruno Boghossian: O abismo da política e o perigo dos governos zumbis

Trump e 'brexit' servem de alerta sobre os entraves às plataformas de campanha

O Reino Unido tem uma líder morta-viva, segundo a oposição. Theresa May continua no cargo de primeira-ministra, mas sofreu uma derrota humilhante em sua articulação para tirar o país da União Europeia. “Não há dúvida de que este é um governo zumbi”, disse Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista.

O impasse a que chegaram os britânicos e a paralisia provocada nos EUA pelo conflito sobre a construção do muro na fronteira com o México são exemplos práticos de choques de expectativas políticas.

May se tornou primeira-ministra depois da surpreendente votação a favor do “brexit”. Donald Trump ganhou tração entre os americanos com seu discurso anti-imigração. Os dois tomaram impulso nas urnas e tentaram um salto, mas havia um abismo entre a plataforma eleitoral e as medidas concretas.

Parecia decidido que o Reino Unido daria uma guinada em 2016, quando 51,9% dos eleitores decidiram que o país deveria deixar o bloco europeu. May assumiu o poder para implantar o processo de saída, mas não conseguiu entregar o produto.

Após dois anos de derrotas e embates com o Parlamento, a população se frustrou. Atualmente, 59% dos britânicos dizem que preferem ficar na UE, segundo pesquisa do YouGov.

Resultados eleitorais podem dar a governantes vitoriosos uma sensação prazerosa de onipotência, mas o duro trabalho de negociação e o próprio sistema de contrapesos da política costumam quebrar o encanto.

Trump emergiu da eleição como um líder improvável, mas popular. Agora, enfrenta a maior paralisia de serviços públicos da história dos EUA devido à recusa do Congresso em dar aval a uma de suas mais emblemáticas promessas de campanha: a construção do muro de US$ 5,7 bilhões entre o país e o México.

A vitória de Jair Bolsonaro foi comparada aos triunfos do “brexit” e de Trump, já que o brasileiro também explorou a plataforma de rejeição ao establishment para se eleger. Britânicos e americanos mostram que é preciso enfrentar o mundo da política.


Clóvis Rossi: 'Brexit' é exemplo de quando o populismo machuca

Não há versão da saída da UE que aumente a prosperidade britânica

A Organização Mundial da Saúde bem que poderia promover uma campanha mundial de anúncios do tipo daqueles que aparecem nos maços de cigarro, para avisar que o populismo nacionalista faz mal à saúde. Faz mal à saúde mental, econômica, financeira, política, psíquica.

Há pelo menos meia dúzia de exemplos que podem ser mencionados, mas fico no mais espetacular do momento, que é a saída do Reino Unido da União Europeia.

O triunfo do “brexit” no plebiscito de 2016 foi atiçado por uma coleção de falsidades sobre as vantagens de deixar a comunidade de países europeus. Mexeram com os instintos nacionalistas.

Sempre achei que o exercício do direito de votar teria um efeito pedagógico. Quanto mais o cidadão vota, mais consciente ele fica e, portanto, faz escolhas mais sensatas. Aí, veio o “brexit” e, em seguida, a eleição de Trump e destruíram minha ingênua convicção.

Dois dos países que praticam o esporte democrático há mais tempo conseguiram cometer absurdos impensáveis.

No caso do Reino Unido, breve repasso aos males que esse ataque populista/nacionalista está provocando: na área política, a rejeição ao plano da primeira-ministra Theresa May para deixar a UE de maneira mais ou menos suave representou “uma monumental humilhação, um chocante repúdio de tudo o que a primeira-ministra trabalhou para alcançar e um completo colapso de sua estratégia”, como escreveu no Financial Times o colunista Robert Shrimsley.

Quando a chefe de governo sofre tal colapso, é óbvio que a política fica ferida de morte. Ainda assim, May sobreviveu a um voto de desconfiança, o que só faz aumentar o desarranjo generalizado.

Pior: não há saída sem traumas. Sair sem acordo “causaria turbulência para a economia, criaria barreiras para a cooperação em segurança [com os parceiros europeus] e prejudicaria a vida cotidiana das pessoas”. Quem o diz é a própria Theresa May (no discurso em que tentou infrutiferamente convencer o Parlamento a aprovar a sua proposta de saída).

Mesmo uma ruptura nos termos combinados entre May e a UE causaria perda de 3,9% na renda nacional no longo prazo, comparada com a permanência no bloco. Ou, como resume Philip Hammond, o responsável pelo Tesouro: não há versão da saída da UE que aumente a prosperidade britânica.

Resta a versão que é cada vez mais mencionada: um segundo plebiscito. Seria uma traição à democracia, ao rejeitar um resultado decidido pela maioria do eleitorado (maioria rasa, é verdade, mas maioria)?

O ex-primeiro-ministro John Major (aquele que substituiu a icônica Margaret Thatcher) acha que não: em artigo para o Sunday Times, Major lembra, primeiro, que apenas 37% dos britânicos votaram pela saída. Os restantes ou queriam ficar ou nem apareceram para votar.

Logo, não houve uma maioria que justificasse o salto no vazio.

Para Major, seria “moralmente condenável” a saída sem acordo: “O custo para nosso bem-estar nacional seria pesado e de longa duração. Pular de um penhasco nunca é um final feliz”.

Jonathan Freeland, no Guardian, vai mais ou menos na mesma linha ao dizer que o Parlamento britânico está “dando o espetáculo de um país perdido e à deriva”. O pior é que há outros países em que o populismo nacionalista pode levar à beira do penhasco. Preciso dizer quais?


Bruno Boghossian: Bolsonaro paga dívida com decreto das armas, mas ignora crise da segurança

Plataforma pró-armas despreza risco de milícias, traficantes e colapso em presídios

Nos breves cinco minutos que usou para apresentar o decreto que facilita a posse de armas, Jair Bolsonaro achou desnecessário falar de segurança pública.

Para o presidente, o “cidadão de bem” que tiver quatro pistolas pode “ter sua paz dentro de casa”. Nada foi dito sobre milícias que extorquem e matam, traficantes que dominam favelas e bandidos que comandam o crime de dentro dos presídios.

Bolsonaro acelerou a edição do decreto para cumprir uma promessa de campanha. Pagou uma dívida com seu eleitorado fiel e animou sua base política na largada do mandato.

Ainda que a permissão se justifique em alguns casos, como nas zonas rurais, a medida é basicamente ineficaz para a redução da violência e dos índices de criminalidade.

Coube a Sergio Moro o constrangimento de levar o país ao mundo real. Em nota divulgada mais tarde, o ministro lembrou que sua pasta elabora projetos para combater o crime e afirmou que a flexibilização da posse de armas não provocará “necessariamente” um aumento do número de homicídios. Alguns estudos apontam que, sim, isso costuma ocorrer.

Uma mudança visível na segurança leva tempo e depende do Congresso, mas Bolsonaro abre mão de elencar prioridades e de mostrar empenho em implantar políticas que vão além de curativos superficiais.

O governo ainda fez uma trapaça técnica para permitir a liberação daposse de armas em todo o país. A taxa de homicídios que serve de critério para a permissão abrange todos os estados. A autorização será mantida mesmo que esses índices caiam.

Bolsonaro não apenas ignorou propostas de valorização das polícias, investimentos em inteligência e compra de equipamentos. Ele também dobra a aposta ao sinalizar que o governo vai trabalhar pela liberação do porte de armas nas ruas.

A solução armamentista alimentada por clubes de tiro tem a densidade de uma piscina inflável. O governo molha os pezinhos, mas corre o risco de se afogar depois no mar revolto da crise da segurança.


Elio Gaspari: Bem-vindo a Brasília, doutor Moro

Em Curitiba o juiz podia ir ao supermercado e sua caneta era uma lâmina, agora puseram-no num outro mundo

No sábado o ministro Sergio Moro foi chamado ao Palácio da Alvorada para uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e três colegas para decidir o que fariam com Cesare Battisti.

Ele fora preso na Bolívia e a Polícia Federal havia mandado um avião para trazê-lo de volta. Dias antes, Moro havia oficiado à Casa Civil para que exonerasse a diretora de Proteção Territorial da Funai, Azelene Inácio. O ministro vivia suas primeiras experiências no mundo da fantasia do poder.

A cena do sábado era pura ilusão do poder. O governo boliviano já decidira mandar Battisti para a Itália e um avião já saíra de Roma para buscá-lo.

O cumprimento da determinação para que Azelene fosse demitida era de outro tipo, pois deveria tramitar na burocracia do Executivo. Em Curitiba, Moro mandava prender e preso o cidadão seria. Caso o detento quisesse recorrer, a petição seguiria de acordo com o lento ritual do Judiciário.

Em Brasília, as coisas são, mas podem não ser. Na segunda-feira, Azelene, como o Alex da Apex, informou que continuava dando expediente e acrescentou que se sentia perseguida, como se estivesse “dentro do governo do PT”. A diretora continuou trabalhando porque a ministra Damares Alves, em cujo latifúndio jogaram a Funai, disse-lhe que reverteria a determinação de Moro.

O ministro da Justiça determinou à Casa Civil que exonerasse a diretora porque o Ministério Público apontou para um conflito de interesse na sua permanência. Passou-se uma semana e nada. Lula entregou-se à Polícia Federal em menos de 48 horas.

Em Curitiba, o Ministério Público denunciava, o juiz condenava e fim de caso, mas no Paraná Moro podia ir em paz a um supermercado. Em Brasília, ele teve a má experiência de ser interpelado por um cidadãoque também fazia suas compras. (Registre-se que Moro reagiu com a fleuma que faltou ao ministro Ricardo Lewandowski ao ser ofendido num avião.)

Brasília reserva outras surpresas a Moro. A maior delas certamente virá da imprensa. Na vara federal ele tinha um razoável controle da sua exposição.

Tendo feito boa liga com o Ministério Público, os procuradores ajudavam-no a operar a opinião pública. Moro era a imagem do poder nacional, encarnando algo bem-vindo e novo. Suas decisões eram festejadas, mesmo quando absolvia.

Podia dizer a um criminalista que advogados “atrapalham” e a conversa morria por lá. Se repetir coisas assim, está frito. Escapou-lhe também o controle da agenda.

O carro da deputada Martha Rocha leva tiros de fuzil e o problema cai sobre sua mesa. Fabrício Queiroz cala e dança e ele não pode fazer suas compras em paz. Isso para não se mencionar o conflito que está em curso no Ceará. Como ministro da Justiça e da Segurança Pública, Moro ganhou uma agenda velha e empoeirada.

Com a ida ao Alvorada para tratar de um assunto que podia ser resolvido por telefone ou pelo WhatsApp, ele entrou nos elencos teatrais da capital.

A cidade lhe reserva outros teatros, mais demorados e muitas vezes penosos. Ele descobrirá isso quando tiver que segurar uma conversa em jantar de embaixada. Habituado ao secular e poderoso simbolismo da toga, estará obrigado a conviver em ocasiões solenes com sexagenários que se enfeitam com faixas acetinadas e circulam pelo evento com o paletó aberto.

Quando Moro aceitou o convite de Bolsonaro para o ministério, disse que estava “cansado de tomar bola nas costas”. Essas boladas podiam vir do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, onde os jogadores são só 44. Pois agora levará caneladas e elas virão de todos os lados.

 


Jaime Spitzcovsky: Legado de Deng Xiaoping assombra 'antiglobalistas'

Reformas iniciadas por ele em 1978 abriram as portas da China ao mundo

Ao deslanchar as reformas chinesas, em 1978, o mandarim Deng Xiaoping não modificou apenas o destino do país mais populoso do planeta. Plasmou também o curso da história contemporânea e o cenário internacional. E são exatamente aspectos do legado denguista que os chamados “antiglobalistas” buscam, em vão, combater.

Em discurso na Assembleia Geral da ONU, no ano passado, o presidente Donald Trump disparou: “Rejeitamos a ideologia do globalismo e abraçamos a teoria do patriotismo”.

Apóstolos da onda populista na qual surfou o mandatário norte-americano apontam como ameaça suposto plano de um “governo global”, arquitetado para sufocar expressões nacionalistas, rejeitam o multilateralismo e o cosmopolitismo e avaliam a decolagem da China como quintessência do “perigoso momento histórico”.

Os “antiglobalistas” remoem-se de medo do século 21. Testemunham o fim de uma fase histórica, responsável por, ao longo de séculos, moldar uma civilização eurocentrista, na qual o “Velho Continente” concentrava maior quinhão de poderio político, econômico e militar. Mas, nas últimas quatro décadas, o predomínio passou a se deslocar para países banhados pelo oceano Pacífico, em especial para a dupla EUA e China.

Ou seja, o principal fator transformador dos tempos atuais, do ponto de vista da balança de poder, é a ascensão de países asiáticos, em movimento com a China na condição de locomotiva, seguida, na expansão política, econômica e militar, por nações como Índia, Indonésia e Vietnã.

Embora Japão e os tigres asiáticos (Hong Kong, Coreia do Sul, Taiwan e Singapura) tenham protagonizado, entre os anos 1950 e 1970, impressionantes saltos industrializantes, coube à China, com sua pujança populacional e geográfica, desempenhar papel cardinal no processo de levar para a Ásia fatias crescentes de riqueza e de poderio.

Sob a fórmula batizada de “socialismo com características chinesas”, Deng injetou economia de mercado num cenário político sempre dominado pelo Partido Comunista. Mitigou a ortodoxia maoísta, responsável por empobrecimento e isolacionismo, para implementar, por exemplo, integração a estruturas internacionais, como Organização Mundial do Comércio e Fundo Monetário Internacional.

Ao renovar a bússola de Pequim, Deng provavelmente passou os olhos na longeva história chinesa. Deve ter escaneado as dinastias e verificado a relação entre prosperidade e cosmopolitismo.

Nas eras Tang (618-907 DC) e Song (960-1279), a economia chinesa engordou graças a comércio intenso com mercadores a cruzar vastas e inóspitas áreas da Ásia central. Laços com o vizinho Japão também se intensificaram.

Surgiram inventos como a pólvora. Intercâmbio cultural se expandiu. A China testemunhou então momentos de prosperidade, em contraste com a decadência vivida nos capítulos do isolacionismo, na era imperial ou na fase maoísta.

Deng, portanto, reabriu as portas da China ao mundo e contribuiu para o redesenho do cenário internacional. Com a mão de obra barata e baixos custo de produção, financiou industrialização do país, hoje empenhado em expandir setores de tecnologia e inovação.

A verdade emana dos fatos, costumava proclamar Deng (1904-1997). A ascensão de economias asiáticas, China à frente, e a desidratação de poder de países europeus, em comparação com períodos históricos recentes, correspondem a traços indeléveis do século 21. Os “antiglobalistas” podem espernear, mas não podem mudar o rumo da história.

*Jaime Spitzcovsky é jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.


Leandro Colon: Caso Battisti é um vexame completo para o Brasil

Depois de abrigá-lo, país não impediu fuga e teve de engolir a expulsão pelo vizinho

A novela Cesare Battisti, ao que parece em seus capítulos finais, caminha para um desfecho de saldo vexaminoso para a imagem do Brasil.

Condenado na Itália à prisão perpétua por quatro homicídios nos anos 70, o terrorista italiano viveu na última década por aqui graças à benevolência dos governos petistas.

Recebeu o status de refugiado do ex-presidente Lula, hoje um preso condenado pela Lava Jato por corrupção e lavagem de dinheiro. Com a proteção garantida, Battisti construiu uma vida em solo brasileiro.

Desfilava tranquilamente pelas ruas de Cananeia, no litoral paulista. Teve um filho com uma professora brasileira. Vestindo a camisa do Corinthians, declarou à Folha em 2017 que não havia razões para fugir, muito menos para a Bolívia —pouco antes, fora detido na fronteira sob acusação de evasão de divisas por carregar mais de R$ 10 mil em espécie.

“A minha arma para me defender não é fugir. Estou do lado da razão, tenho tudo a meu lado”, disse ao repórter Joelmir Tavares na ocasião.

Um ano e dois meses depois daquela entrevista, a casa caiu para Battisti. O STF autorizou sua prisão e a extradição para a Itália foi assinada pelo então presidente Michel Temer.

Perdeu quem apostou que o constrangimento de mais de dez anos para o Brasil havia chegado ao fim.

Battisti deu um olé (digno de bons craques do seu clube de coração no Brasil) na Polícia Federal nos últimos 30 dias. Como contou a repórter Camila Mattoso, ele despistou a polícia, que tentou procurá-lo, em vão, até em um barco no rio Amazonas.

Foi preso pela polícia da Bolívia nas ruas de Santa Cruz de La Sierra. O presidente Jair Bolsonaro montou uma operação para trazê-lo ao Brasil, nem que fosse por alguns minutos, e exibi-lo como troféu. O ministro Augusto Heleno, do GSI, anunciou que um avião da PF havia sido deslocado para buscar Battisti. A Itália atropelou e o levou da Bolívia.

Depois de abrigar um terrorista, o Brasil não impediu sua fuga do país e ainda teve de engolir a expulsão pelo vizinho. Um vexame completo.


Demétrio Magnoli: O que querem os ‘antiglobalistas’

“(...) admiramos os EUA, aqueles que hasteiam sua bandeira e cultuam seus heróis. (...) Por isso admiramos a nova Itália, por isso admiramos a Hungria e a Polônia, admiramos aqueles que se afirmam e não aqueles que se negam.” No seu discurso de posse no Itamaraty, o ministro Ernesto Araújo aderiu ao pacto informal dos governos que se exibem como “antiglobalistas”. À primeira vista, é só um discurso constrangedor — e vazio. Afinal, a guerra comercial EUA/China, a imigração, a crise dos refugiados e a integração europeia são dilemas com fraca incidência sobre o Brasil. Um exame mais acurado revela, porém, a existência de uma agenda comum.

Os “antiglobalistas” usam as palavras para iludir. Falam de Deus, da nação, da soberania e da família, como se essa torrente de referências imprecisas delineasse um rumo político discernível. Destemidos, desafiam o ridículo para denunciar uma conspiração contra os povos articulada por elites liberais “globalistas” junto com as forças do “marxismo cultural”, que é identificado à China de Xi Jinping. Nada disso, evidentemente, tem relevância prática. Vale a pena, contudo, prestar atenção nas suas sentenças condenatórias sobre a “ordem global”.

Araújo convoca os diplomatas a “lembrar-se da pátria”, não “da ordem liberal internacional”, uma “piscina sem água”. Convida-os a abandonar “a escola do globalismo”, que teria feito do Brasil “um país inferior”. Arregimenta-os para uma missão de afirmação nacional, na senda iluminada pelos governos nacional-populistas dignos da sua admiração. As indagações cruciais, que ele nunca faz, são “que ordem global é essa?”, “qual é a sua origem?”, “para que ela existe?”.

A ordem do pós-guerra surgiu de duas fontes paralelas. De um lado, a ruína da ordem estatal anterior, devastada pela fogueira do nazifascismo. De outro, o avanço do sistema soviético sobre o leste da Europa. Do Plano Marshall em diante, ergueu-se uma nova ordem alicerçada na aliança transatlântica entre EUA e Europa Ocidental, que se estruturou em torno de instituições multilaterais de segurança (ONU) e de coordenação econômica (FMI, Banco Mundial). O “globalismo”, no termo pejorativo cunhado pelos neonacionalistas, preveniu a restauração do fascismo e derrotou o totalitarismo comunista.

A fogueira do nazifascismo consumiu a ordem europeia das pátrias orgulhosas de suas soberanias absolutas, de suas raízes inventadas pela imaginação romântica, de seus cultuados heróis nacionais. O discurso de Araújo é uma ode nostálgica (e mal escrita) a um mundo que desapareceu há 80 anos. Mas, sobretudo, é uma conclamação à revolta contra o sistema político resguardado pela ordem construída no pós-guerra.

A paisagem contra a qual Araújo se insurge nasceu de um duplo “não”: a Hitler e a Stalin. A chamada “ordem liberal” é uma tela formada por camadas de pintura superpostas, produzidas tanto pelo liberalismo progressista como pela social-democracia. Nela, estão inscritas as regras da economia de mercado, mas também os valores das liberdades públicas e dos direitos sociais. De Trump a Bolsonaro, passando pelo húngaro Orbán e pelo italiano Salvini, o atual movimento neonacionalista é uma reação sombria ao patrimônio de liberdades e direitos legado pelo pós-guerra.

Trump sonha financiar seu muro na fronteira do México circundando o Congresso por meio de uma declaração de “emergência nacional”. Os governos polonês e húngaro tentam subordinar os tribunais constitucionais à vontade do Executivo. Os quatro governantes admirados por Araújo admiram o russo Putin e o turco Erdogan, que suprimiram as liberdades e calaram as oposições. Os “antiglobalistas” não se conformam com a democracia.

O discurso de posse de Araújo expõe oficialmente, pela primeira vez, um programa que permanecia mais ou menos oculto. Esqueça as teorias conspiratórias sobre a “elite globalista”. O chefe do Itamaraty não está traçando um rumo de política externa. Está dizendo para Bolsonaro avançar contra os direitos constitucionais dos brasileiros.


Tasso Jereissati: Janela de oportunidade

Parlamento tem de entender resultado das urnas

O eleitor brasileiro deu um claro recado de que não suporta mais viver sob o jugo de um Estado dirigista, provedor de privilégios para uns e de privações para outros. Clama por uma política de simplificação tributária, de controle dos gastos públicos e combate permanente à hipertrofia do Estado que levou à bola de neve da estagnação econômica.

No seu dia a dia, o cidadão pode até não saber formular com clareza sua demanda, mas, ao votar na proposta mais distante do establishment político, deixou patente que não suporta mais conviver com a falta de atendimento à saúde, à educação, com o transporte público ineficiente, sem segurança e, principalmente, com os escândalos de corrupção que tomaram conta da cena política.

Para fazer frente a tantos e urgentes desafios, o mundo político não pode fazer de conta que essa mensagem foi dirigida apenas ao Executivo. Trata-se de um recado também ao Legislativo e ao Judiciário.

O mesmo eleitor que votou para presidente votou também, com o mesmo sentimento, para os seus representantes no Congresso, de quem se esperam demonstrações de distanciamento do jogo de toma lá dá cá, que se tornou quase um padrão nas relações com o Executivo.

As grandes reformas estruturantes, da Previdência, fiscal, e trabalhista, assim como tantas outras de não menor importância, são pautas que exigem atitude republicana de deputados e senadores.

Combater o patrimonialismo e o corporativismo, enfrentar a ferida absurda da desigualdade social, ao mesmo tempo criando um ambiente democrático favorável à livre iniciativa e aos negócios, com segurança jurídica, são exigências morais que não podem estar condicionados a jogos de interesses paroquiais. Sem as reformas, ninguém conseguirá governar, seja o presidente, sejam os governadores ou os prefeitos.

Para conseguir obter consenso na reforma da Previdência, a mãe de todas as reformas, o governo terá que lidar com a maior fragmentação partidária da história do Parlamento. Somente no Senado, foram 15 os partidos que obtiveram assentos. Mesmo considerando fusões inevitáveis, o Parlamento brasileiro apresenta-se com uma das maiores fragmentações partidárias do planeta, perdendo apenas para Papua-Nova Guiné.

E não se espere que tamanha fragmentação seja o reflexo do contraste do nosso quebra-cabeça coletivo. Agremiações parecem não ter um autêntico lastro social que resulte no acesso dessa miríade de partidos às cadeiras do Parlamento. A governabilidade já é comprometida na origem pela ausência de uma maioria estável, exigindo tratativas e negociações com uma base tão heterogênea que se traduz em alto custo político do processo decisório.

Em democracias consolidadas e maduras, o partido mais votado alcança em torno de 40% do total dos votos. No Senado, o mais votado, o MDB, alcançou só 14,8%. Vale lembrar que para aprovar uma PEC (proposta de emenda constitucional) são necessários 60% dos votos. Isso indica as dificuldades enormes de articulação política que terá o novo governo. Sem contar o fato de que, das 54 vagas em disputa neste ano, 46 serão ocupadas por novos nomes.

Mas devemos ter presente que o momento que vivemos não é um soluço no tempo. É fruto de camadas de ressentimentos populares contra o que se tornou a imagem da política e dos políticos. A população, pelo voto, não apenas elegeu seus novos representantes, mas definiu uma carta de navegação para a ética política, à qual estamos todos sujeitos, independente do espectro político que ocupemos. Sendo o Legislativo o poder originário, o único em que todos os seus membros se submetem à vontade coletiva, devemos ser também os primeiros a auscultar o ânimo que brota do voto democrático e soberano da cidadania.

Esse quadro torna ainda mais importante a eleição de um presidente do Senado capaz de se constituir de fato como o representante máximo do Parlamento frente à sociedade. Cabe a ele a interlocução com os meios de comunicação, autoridades, sindicatos, empresas e representantes diplomáticos. Estamos numa rara janela de oportunidade para desenhar um novo pacto constitucional entre os Poderes e, para tal, é necessário que o Parlamento, independente e altivo, compreenda o resultado das urnas.

*Tasso Jereissati, senador (PSDB-CE) desde 2015 e de 2003 a 2011; ex-governador do Ceará (1987-1991 e 1995-2002)


Folha de S. Paulo: Maioria quer redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, segundo Datafolha

84% apoiam medida; dentre os favoráveis, 67% defendem que seja válida para qualquer tipo de crime

Por Marina Estarque, da Folha de S. Paulo

A maioria dos brasileiros, 84%, é favorável à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, segundo pesquisa do Datafolha. Apenas 14% são contrários à alteração —2% são indiferentes ou não opinaram.

O índice se manteve estável desde o último levantamento, em novembro de 2017. O apoio à diminuição da maioridade chegou a ser de 87% em abril de 2015.

Dos que são favoráveis à redução, 33% defendem que a medida deve valer somente para determinados crimes, enquanto 67% acham que ela deve ser aplicada a todos os tipos.

A idade mínima apontada pelos entrevistados foi de 15 anos, em média, para que uma pessoa possa ser presa por um crime. Para 45%, a faixa etária mínima deveria ser de 16 a 17 anos e, para 28%, de 13 a 15 anos. Uma minoria, de 9%, acha que a idade mínima ideal é de 12 anos. Na outra ponta, 15% defendem que uma pessoa, para ser presa, tenha pelo menos entre 18 e 21.

Foram entrevistadas 2.077 pessoas em 130 municípios em todas as regiões do país, entre 18 e 19 de dezembro de 2018. A margem de erro é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos.

As mulheres, comparadas aos homens, tendem a ser mais contrárias à redução da idade penal: 17% delas não apoiam a medida. Entre os homens, esse índice é de 11%.

O mesmo ocorre com pessoas mais instruídas e mais ricas. Dos entrevistados com ensino superior, 22% são contrários à alteração, percentual que cai para 10% entre aqueles com ensino médio, por exemplo.

Entre brasileiros com renda familiar acima de dez salários mínimos, a parcela contrária à redução da idade penal é de 25%, enquanto apenas 12% das pessoas com renda de dois a cinco salários mínimos rejeitam a medida.

O debate em torno da redução da maioridade penal tende a ganhar força neste ano, com Jair Bolsonaro (PSL) na Presidência. Durante a campanha, ele defendeu a alteração da idade em seus discursos, e a proposta constava, de forma enfática, do seu plano de governo: “Reduzir a maioridade penal para 16 anos!”

Em entrevista à Band, após eleito, Bolsonaro chegou a dizer que considerava 14 anos a idade ideal. “Se não for possível 16 [anos], passa para 17, daí o futuro presidente, se tiver resultado, tenta o 16. Eu gostaria que fosse 14, mas se botar 14 a chance é quase zero de ser aprovado [no Congresso]”, afirmou.

O ex-juiz Sergio Moro, que comanda o Ministério da Justiça, disse ser “bastante razoável” a redução da maioridade para 16 em casos de crimes graves e citou projetos em tramitação no Congresso com esse teor.

“Pessoa menor de 18 anos deve ser protegida, o adolescente. Muitas vezes ele não tem uma compreensão completa das consequências dos seus atos, mas um adolescente acima dos 16 já tem condições de percepção de que, por exemplo, não pode matar. Então ter um tratamento diferenciado para esse tipo de crime me parece algo assim bastante razoável”, afirmou em entrevista coletiva em novembro passado.

No Senado, quatro propostas de emenda à Constituição (PEC) para a redução da maioridade penal tramitavam em conjunto desde 2015. Com o fim da legislatura, em 2018, três delas foram arquivadas definitivamente, mas uma proposta, que já havia passado pela Câmara, permanece na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado.

O texto inicial prevê que adolescentes de 16 a 18 anos deixem de ser inimputáveis se cometerem homicídio doloso (quando há intenção de matar), lesão corporal seguida de morte e crimes hediondos (estupro, por exemplo), e que cumpram pena separados dos maiores de 18 anos.

Para ser promulgada, a proposta precisa primeiro ser aprovada na comissão e, em seguida, ser apreciada em dois turnos pela Casa e ter a concordância de ao menos três quintos dos senadores, em cada uma das duas votações. Se houver alguma emenda, a proposta precisaria voltar para a Câmara. A nova configuração do Congresso em 2019, com forte bancada do PSL, deve facilitar a aprovação de projetos que interessam a Bolsonaro.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo —726,7 mil presos, de acordo com dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), divulgados em 2017.

Em 2016, 25.929 adolescentes e jovens cumpriam medidas de internação, internação provisória e semiliberdade, segundo o Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, lançado em 2018. Em 2009, esse número era de 16.940 adolescentes, ou seja, houve um aumento de 53% no período.

Atualmente, infratores entre 12 e 18 anos vão para os sistemas de cumprimento de medida socioeducativa, geridos pelos governos estaduais.

Os adolescentes podem ficar até três anos internados —eles não cumprem uma sentença específica, mas passam por avaliação da Justiça periodicamente, que determina quando eles podem voltar para casa.

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Benedito Rodrigues de Moraes Neto: Brasil nunca teve social-democracia que Paulo Guedes combate

Economista retraça políticas desde governo FHC para mostrar que país passou longe da centro-esquerda

Em mais de uma ocasião, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que, no período recente, o Brasil foi aprisionado pela social-democracia e que sua proposta objetivava libertar o país dessa prisão. Tentaremos verificar em que medida a avaliação de um excesso de social-democracia corresponderia à realidade histórica de nosso país.

Evidentemente, o ministro se referia ao período que vem desde o governo FHC, pois não haveria qualquer sentido em incluir as presidências de José Sarney e Fernando Collor, por motivos bastante claros: o primeiro esteve inteiramente às voltas com sucessivos fracassos na luta contra a inflação; o segundo levou essa luta ao paroxismo do voluntarismo inconsequente, além de pôr em prática, ainda que de forma incipiente, algumas das propostas mais caras à economia liberal.

Também o período do presidente de um partido que tem em seu nome a social-democracia, o PSDB, não se ajusta bem às críticas de Guedes. Isto porque a luta contra o monstro da inflação continuou dominando a cena, com o bem-sucedido Plano Real, que começou no governo Itamar Franco e se consolidou no governo FHC. Sem dúvida brilhante em sua concepção e implantação, o plano sofreu forte crítica dos partidos mais à esquerda.

Depois desse momento, houve a continuidade da preocupação com a gestão macroeconômica, com a criação do chamado tripé, constituído por meta de inflação, equilíbrio fiscal e flexibilidade cambial. Se juntarmos tudo isso ao grande esforço pelas privatizações, com destaque para a área das comunicações, fica a pergunta: onde está aí a “prisão social-democrata”?

Pode ser que o envolvimento com a questão macroeconômica tenha tolhido esse lado do PSDB, que talvez pudesse desabrochar em outro contexto. De qualquer forma, fica claro que a crítica de Guedes se refere mesmo aos quase 14 anos do PT na Presidência. Nossa questão se coloca, então, de modo mais específico: em que medida a crítica ao excesso de social-democracia se ajustaria às gestões petistas?

Comecemos com um aspecto absolutamente crucial para caracterizar uma gestão social-democrata, em contraposição a uma de matiz liberal: a política tributária. Talvez a mais característica propositura social-democrata seja a implementação de uma tributação bastante progressiva, ou seja, que cobre impostos proporcionalmente maiores dos que auferem renda maior.

Sabe-se que as alíquotas de imposto sobre a renda são extremamente elevadas para níveis elevados de rendimento nos países de presença mais forte da social-democracia, como os da península escandinava. Mesmo no caso dos Estados Unidos, país que apresenta distância bem grande em relação à social-democracia, essa questão da progressividade da tributação diferencia fortemente as gestões dos partidos Democrata e Republicano, algo reforçado nos anos recentes.

Uma gestão democrata se aproxima, nesse caso, respeitando os limites americanos, de uma proposta social-democrata, com elevação da progressividade dos impostos. Uma gestão republicana, inteiramente impregnada da concepção liberal, rapidamente trata de aumentar a regressividade tributária, sob o argumento de que a ideia social-democrata inibe o ímpeto das pessoas para o esforço produtivo.

Pois bem, isso tudo é bem conhecido. O interessante é observar o rebatimento por aqui dessa questão tributária. Ao ler a observação de Guedes, pode-se imaginar que a implantação de uma estrutura tributária extremamente progressiva pelos “social-democratas de centro-esquerda” no poder por 14 anos precisaria ser revertida com força pelos ultraliberais de direita.

Mas esse não é um tema por aqui, pois o PT não mexeu uma vírgula em nossa estrutura tributária regressiva, muito dependente dos socialmente injustos impostos indiretos e, no caso dos impostos diretos, muito branda com os que auferem rendimentos de propriedade e muito dura com os que obtêm rendimentos do trabalho.

Cada vez mais dura, aliás, na medida em que se deixou de corrigir as tabelas do Imposto de Renda de acordo com o ritmo de inflação. Os assalariados de todos os níveis de renda tiveram que pagar cada vez mais nesse período.

Considero que não seria fácil para um estrangeiro entender uma coisa dessas: como é possível que um dos países de maior desigualdade social do planeta, que possui uma tributação de rendimentos extremamente regressiva, não tenha apresentado uma vírgula de alteração em sua política tributária durante 14 anos de um partido “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) no poder?

Mas nós, brasileiros, teríamos que nos associar à questão: como é possível? De qualquer forma, o que nos interessa aqui é marcar que, no item fundamental da política tributária, a social-democracia nem passou perto daqui.

Continuemos a perscrutar nossa “prisão à social-democracia”, agora caminhando em direção à política social. Nesse caso, ganha grande destaque o Bolsa Família, programa tornado bastante extenso pelo PT.

Não é nosso objetivo aqui discutir o programa, mas verificar seu ajuste à crítica de Guedes.

Sabe-se que esse tipo de política social, de focalização, foi gerado no interior do Banco Mundial por economistas de extração liberal. Contrapunha-se, enquanto proposta de ação pública, à proposta social-democrata de universalização da intervenção do Estado através da política educacional, de saúde etc.

Foi justamente na gestão do partido que tem a social-democracia no nome que a política de focalização teve seu início, ainda tímido, com a criação, por FHC, das Bolsas Escola e Alimentação e do auxílio-gás.

Inteiramente imbuído da crítica social-democrata, de centro-esquerda, a essa política de focalização, Lula chamou-as de “Bolsa Esmola”. Posteriormente, já na Presidência, depois do fracasso do seu primeiro programa, o Fome Zero, Lula fez a unificação das bolsas num programa único, batizou-o de Bolsa Família, e o incrementou de forma extremamente significativa.

Para nosso propósito aqui, cabe uma única pergunta: onde temos aqui a “prisão social-democrata”? Guedes terá que propor ao presidente Jair Bolsonaro que elimine imediatamente o Bolsa Família, por ser uma das faces dessa prisão? Pelo contrário, o presidente já propôs implementar o 13º salário para os que recebem esse tipo de rendimento.

Continuemos com a política social. Se não encontramos social-democracia no Bolsa Família, talvez a encontremos na política habitacional, com o Minha Casa Minha Vida. De novo, temos a crítica de Lula em sua fase pré-presidencial, quando afirmou, com acuidade, que o pobre, quando comprava casa própria, não podia beber uns goles a mais, pois havia o forte risco de entrar na casa do vizinho.

Pois bem, o Minha Casa Minha Vida levou essa triste característica arquitetônica de nossos programas de moradia popular ao paroxismo, adicionando uma outra triste característica, urbanística, sobretudo nas grandes cidades, ao situar os conjuntos habitacionais a grande distância dos locais de emprego de seus habitantes.

Se a proposta social-democrata implica generalizar qualidade de vida, não vejo como o Minha Casa Minha Vida possa se ajustar a isso. Aliás, nesse caso, é particularmente desanimador verificar como tantos anos de um governo “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) foram inteiramente incapazes de utilizar a reconhecida competência e criatividade de nossa arquitetura.

Seguindo adiante, um dos traços mais fortes da social-democracia é resguardar para o Estado, protegendo-as da interferência mercantil, as esferas da educação e da saúde. É inclusive a generalização da qualidade da educação pública que tem dado grande destaque a alguns dos países mais fortemente social-democratas, com ênfase recente para a Finlândia.

Basta um olhar muito rápido ao que acontece no Brasil nessas duas áreas para constatar que estamos muito longe dessa matriz. Realmente, em saúde e educação, não há que se criticar excesso de social-democracia após 14 anos de PT —muito pelo contrário.

Finalizemos com uma estatística significativa, que recolhemos no jornal O Estado de São Paulo de 9 de dezembro de 2018. Segundo pesquisa realizada pela consultoria Mercer em 601 empresas de 130 países, a diferença de rendimento entre executivos e operários é, em média, de 34 vezes no Brasil. Na Alemanha, país com relevante presença social-democrata, essa diferença é de cinco vezes.

Depois desse dado, somos forçados a concluir que o problema do Brasil não é, como afirma Paulo Guedes, de excesso de social-democracia, mas sim de excesso de falta de social-democracia. Conforme afirmou a escritora argentina Beatriz Sarlo, o que a América Latina necessita é de uma social-democracia séria.

*Benedito Rodrigues de Moraes Neto é professor aposentado do Departamento de Economia da Unesp.


Folha de S. Paulo: Maioria dos brasileiros é contrária à redução de terras indígenas

Seis em cada 10 pessoas se opõem a corte em demarcações, segundo o Datafolha; governo Bolsonaro revisará processos

Por Maeli Prado, da Folha de S. Paulo

A redução de áreas destinadas às terras indígenas é desaprovada por 6 em cada 10 brasileiros. O tema voltou à discussão desde 1º de janeiro, quando a tarefa de demarcar essas áreas foi transferida pelo presidente Jair Bolsonaro da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura.

O dado é de uma pesquisa do Datafolha feita com 2.077 entrevistados em 130 municípios entre 18 e 19 de dezembro de 2018. A margem de erro é de dois pontos para cima ou para baixo, considerando um nível de confiança de 95%.

 

A maior oposição à possibilidade de diminuir o tamanho dessas terras é das mulheres, mostra o detalhamento da pesquisa do instituto: entre elas, a discordância em relação à possibilidade chega a 62%, ante 57% entre os homens.

Quanto mais velho e menos escolarizado for o brasileiro, maior a tendência de concordar com a redução dos limites das reservas. Na faixa entre 16 e 24 anos, por exemplo, essa aceitação é de 32%, percentual que sobe para 46% no grupo acima de 60 anos. Já entre os que têm ensino fundamental, a concordância é de 48%, reduzindo-se a 30% entre quem possui ensino superior.

"Os números demonstram que grande parte dos eleitores do presidente discorda da sua intenção de reduzir as terras indígenas", diz Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA (Instituto Socioambiental).

"A Constituição reconhece o direito dos povos indígenas às terras. E o governo não pode deixar de cumprir essa determinação", reforça Cléber Buzatto, secretário-executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).

A polêmica em torno do tema é crescente porque, na prática, as identificações, delimitações e demarcações de terras passaram às mãos de representantes dos ruralistas no novo governo, movimento que vem sendo alvo de críticas e classificado como conflito de interesses.

A Secretaria de Assuntos Fundiários, que é ligada à Agricultura e cuida do tema, é chefiada por Nabhan Garcia, que foi presidente da UDR (União Democrática Ruralista).

O pecuarista afirma que a pasta irá reavaliar, "com isenção", as demarcações realizadas nos últimos dez anos ou mais, e que o governo pode anular decisões se considerar que houve falhas no processo.

Essas revisões, segundo ele, são tanto de processos de áreas contestadas na Justiça quanto na esfera administrativa. "Temos o dever de revisar algumas demarcações porque existem indícios de irregularidades", afirma. "O que puder ser revisto e passado a limpo, será passado a limpo."

​Nabhan argumenta que o governo não tem o objetivo de reverter ou reduzir as áreas. "Queremos seguir a lei. Se está seguindo os parâmetros legais, se o laudo antropológico está correto, se não teve interferência de ONG, tudo bem. Mas, uma vez identificadas falhas, vamos corrigir. Em inúmeras situações houve pressão de órgãos, de ONGs para que a identificação [como terra indígena] ocorresse."

O Brasil possui hoje 721 terras, em diferentes estágios de demarcação, que de acordo com o ISA a União reconhece como sendo de ocupação tradicional por povos indígenas.

Essas áreas representam 13,8% do território brasileiro, e mais de 400 delas (ou cerca de 98% de todas as terras indígenas) estão na chamada Amazônia Legal, formada pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.

Para Buzatto, o governo se sujeita a ações por improbidade administrativa caso reveja decisões relativas à demarcação de reservas.

"Se adotarem medidas na contramão, poderão sofrer ações de improbidade administrativa, seja o presidente da República, seja o ministro, seja o secretário."


Folha de S. Paulo: Imagem externa do Brasil mudou para pior no novo governo, diz Benjamin Moser

Para autor americano, chefe do Itamaraty tem discurso de 'ufanista magoado' e usa termos de teor antissemita

Em carta aberta ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, autor norte-americano comenta repercussão internacional das ideias enunciadas pelo novo chanceler em artigo recente.

Prezado ministro,
Há pouco mais de dois anos, o ministério que o senhor hoje encabeça me outorgou o Prêmio Itamaraty de Diplomacia Cultural. Foi um reconhecimento do meu trabalho e trouxe consigo uma obrigação de continuar trabalhando em prol do Brasil —de ser algo como um amigo oficial do Brasil. E é nesta capacidade que lhe escrevo.

Recentemente, o senhor publicou uma matéria no meu idioma, o inglês, e no meu país, os Estados Unidos (“Bolsonaro was not elected to take Brazil as he found it”, ou “Bolsonaro não foi eleito para deixar o Brasil como o encontrou”, na Bloomberg, em 7/1). Se respondo em português, é por dois motivos.

Primeiro, porque sua matéria ilustra muito bem que saber a gramática ou o vocabulário de outra língua não implica compreender suas sutilezas: como soa. Se tivesse maior noção do meu idioma, seria de esperar que não houvesse publicado uma coisa que —digo francamente— expõe o Brasil ao ridículo.

E essa é a segunda razão pela qual lhe respondo em português. Apesar de não ser de nacionalidade brasileira, o Brasil não me é de maneira nenhuma alheio. Desagrada-me profundamente vê-lo alvo de risadas internacionais. Gostaria, pois, que esta conversa ficasse entre nós —em português.

Em inglês, a sua vinculação da política externa com Ludwig Wittgenstein soa bizarra. Suspeito que não seja sua intenção —que é, se estou lendo bem, de deslumbrar o leitor com frases como “desconstrução pós-moderna avant la lettre do sujeito humano e negação da realidade do pensamento”.

Sabe aquele estudante de pós-graduação que encurrala a menina na festa falando de Derrida ou Baudrillard?

Pois é.

Aliás, em inglês, proclamar “não gosto de Wittgenstein” soa pretensioso, arrogante. Sabe aquele homem que, diante de um Picasso, diz que sua filha de quatro anos poderia ter feito melhor?

Pois é.
Mas, além do tom, qual é mesmo seu problema com Wittgenstein? Vejo que não é sequer uma frase inteira, mas uma parte de uma frase: “O mundo tal como o encontramos.”

O senhor lê isso como um pedido —uma ordem, até— de aceitar tudo no mundo tal como é, de não tentar mudar nada, de se comportar como se não tivesse vontade própria. Se acompanho a sua lógica, é assim que o Brasil tem se comportado durante todos os governos, de esquerda como de direita, que precederam o atual.

Para quem conhece a obra de Wittgenstein —assim como para quem tem noções da história diplomática brasileira—, isso pode soar inexato. Mas o senhor pretende romper um padrão que tem impedido o surgimento da verdadeira grandeza do Brasil. O país, segundo o senhor, antes disse: “Eu não acho nada. Eu não tenho ideias. Assim como o sujeito desconstruído de Wittgenstein, eu não tenho um ‘eu’.”

Eu não caracterizaria o trabalho de gerações de diplomatas brasileiros assim. Imagino que, em português, possa soar desdenhoso. Mas estamos falando de como soa em inglês, e, se muito ficou incerto na sua matéria, uma coisa ficou clara: sua vontade de mudar a imagem do Brasil no mundo.

De fato, em poucos meses, essa imagem já mudou bastante. Temo que não seja na direção que o senhor pretende. Pois, em todos os meus anos de brasiliófilo, nunca vi tantas matérias ruins sobre o Brasil surgirem na imprensa europeia e americana. Isso deve ser motivo de preocupação para um chanceler. Porque o Brasil, apesar de seus problemas, sempre desfrutou de um nome positivo no mundo.

O racismo, a homofobia e a saudade da ditadura da nova administração têm sido fartamente comentados na imprensa mundial. Em inglês, o tom dessa cobertura tem sido extremamente negativo. Um chanceler deve poder responder num inglês sereno e compreensível e explicar as razões que levam o novo governo a adotar tal e tal medida.

Quando se dirige a um público internacional, uma coisa a evitar a todo preço é o emprego de termos —“globalistas,” “marxistas,” “anticosmopolitas,” “valores cristãos”— que, em inglês, têm fortes conotações antissemitas.

São extraídos do léxico de conspiração global judaica, e, dada a história deste léxico, pessoas civilizadas, tanto de direita como de esquerda, aprenderam a evitá-lo.

Quando se fala inglês, é preferível, em geral, evitar falar de conspirações. Dá a impressão de ter passado a noite em claro na internet decifrando os segredos das pirâmides. Talvez seja por isso que suas descrições sobre o aquecimento global como trama marxista tenham sido tão amplamente ridicularizadas na imprensa mundial.

Quem, em língua inglesa, quer ser levado a sério evita tais caracterizações. E não é mesmo este o maior desejo do senhor, o de ser levado a sério? É a única coisa que fica clara debaixo da linguagem um tanto acalorada.

A novidade que o senhor anuncia não é outra coisa senão a mais antiga emoção do conservador brasileiro: o ufanismo magoado.

Este é o sentimento de quem quer uma nação que esteja à altura da imagem —muitas vezes exagerada— que tem de si próprio.

Se o senhor imagina que o Brasil não é suficientemente respeitado, seria bom nos brindar com pelo menos um exemplo; na minha experiência, vasta, do Brasil no âmbito internacional, confesso que nunca percebi a falta de respeito.

Mas, mesmo que ela existisse, seria bom lembrar que, em qualquer país, o respeito não se exige. Com paciência e trabalho, se ganha.

Ninguém sabe melhor do que eu os lados positivos que tem o Brasil. Mas, sabemos, brasileiros e estrangeiros, que o Brasil também tem uma cara feia. E é essa cara que seu tom me traz à mente. É o tom daquele patrão que grita “faça que tô mandando!” para a empregada. Asseguro-lhe que não fica mais elegante em tradução inglesa.

Infelizmente, não é apenas uma questão de tom. Desde o primeiro dia, este governo deu a impressão de querer abusar das pessoas mais vulneráveis da sociedade. Todos os jornais do mundo têm noticiado os ataques aos índios e à população LGBT, além da redução do salário mínimo para os trabalhadores mais pobres.

É possível que haja explicações razoáveis para tais medidas, mas confesso que até agora não as vi. De novo, seria mais eficaz explicá-las com calma do que andar pelo mundo proclamando que os brasileiros não são mais “robôs pós-modernos” e que não suportarão mais “a opressão wittgensteiniana da morte-do-sujeito.”

Porque, ironicamente, é seu medo de ver as pessoas zombarem do Brasil que fará... as pessoas zombarem do Brasil. Deve ter visto a ministra Damares gritando que “menino veste azul e menina veste rosa!” e notado como isso repercutiu pelo mundo. As suas declarações também não ajudam a que as pessoas levem o Brasil a sério.

Se há um ponto em que estamos em total acordo é que também não gosto de ver o Brasil ridicularizado. Por isso, lhe encorajo a lembrar em nome de quem está falando. E de escolher com mais tato, em português como em inglês, as suas palavras.

O senhor se descreve, no seu Instagram, como “ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro”. Não é.

É ministro das Relações Exteriores do Brasil.

Seria bom que se comportasse com a dignidade que tal posição exige.

E se, no futuro, tiver uma dúvida de inglês, pode sempre entrar em contato comigo.

Cordialmente,
Benjamin Moser
Prêmio Itamaraty de Diplomacia Cultural, 2016

*Benjamin Moser, escritor norte-americano, é autor da biografia ‘Clarice’ (Companhia das Letras) e de ‘Susan Sontag: Sua Vida e Obra’, que sai no final do ano também pela Companhia das Letras.