Folha de S. Paulo
Julianna Sofia: Fora das catacumbas
Hesitação de Bolsonaro em defenestrar Bebianno fragiliza Planalto do embate pela nova Previdência
A cada vez que um deputado se aboletar na tribuna da Câmara para esmagar uma laranja podre, a exemplo do “pornopeesselista” Alexandre Frota (SP), ficará mais custoso para Jair Bolsonaro persuadir sua base de sustentação, ainda em estado gelatinoide, a votar pela reforma da Previdência.
A hesitação de Bolsonaro em defenestrar Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral) do Palácio do Planalto fragilizou o governo e expôs falta de firmeza para lidar com o escândalo dos candidatos laranjas de seu partido. Situação ridícula e insustentável depois de o ministro ter sido chamado de mentiroso não só por Carluxo, o filho 02 do capitão reformado, como pelo próprio presidente da República. Qualquer caminho de volta à normalidade nos corredores palacianos passaria pela demissão voluntária, ou não, do subalterno.
Não se fez isso às claras nesta sexta (15), e o cheiro de fritura empesteou a Praça dos Três Poderes. A atmosfera infectada contamina o ambiente para tramitação da reforma das aposentadorias, que chegará na próxima semana ao Congresso.
Apesar do discurso buscando pacificação e uma tentativa de mostrar que Bebianno poderia ficar no governo, pairaram ao longo do dia conversas sorrateiras sobre como garantir uma saída honrosa ao ministro ou como isolá-lo e drenar paulatinamente seu poder.
O ex-presidente do PSL chegou a insinuar manter confidências da campanha presidencial do partido; depois retrocedeu (em nota diz que o presidente “não tem qualquer relação com outras candidaturas”); por fim vazou conversas privadas mantidas com o capitão reformado.
Bebianno no cargo não seria o primeiro zumbi a viver fora das catacumbas na Esplanada dos Ministérios.
O mais recente enfrentou do terceiro andar do Planalto a maldição da JBS e viu seus planos de aprovar uma nova Previdência serem sepultados em cova rasa. Assim como Michel Temer não tinha os votos para mudar as regras das aposentadorias, Bolsonaro também ainda não os tem.
Hélio Schwartsman: Os três filhotes
Rebentos já deram indícios de que vão criar problemas para o pai e o país
Se tivesse senso de institucionalidade ou mesmo um pouco mais de juízo, Jair Bolsonaro deserdaria seus três filhos envolvidos com a política. O governo ainda não completou dois meses, mas seus rebentos, cada um à sua maneira, já deram indícios de que vão criar problemas para o pai e o país.
O primogênito, o senador Flávio Bolsonaro, embora seja o mais moderado dos três, converteu-se ele próprio no centro da primeira crise enfrentada pela nova administração. Seu envolvimento com Queiroz e as milícias tende a tornar-se uma assombração permanente a pairar sobre a Presidência.
Carlos, o vereador, a quem o próprio pai apelidou de “pit bull”, tem o hábito de jogar gasolina nas questões em que se mete, como acabamos de ver na fritura de Gustavo Bebianno. Além disso, Carlos anda armado ao lado do presidente e, aparentemente, tem acesso a suas senhas nas redes sociais. É incrível que um governo tão densamente povoado por militares admita tal nível de riscos de segurança.
Há, por fim, o deputado federal Eduardo, aquele que gosta de despachar cabos e soldados para fechar o Supremo. A crer nas notícias de bastidores, é o responsável pela indicação de alguns dos personagens teletransportados diretamente da “twilight zone” para a Esplanada dos Ministérios. Na realidade paralela em que esses espécimes habitam, o mundo é dominado por comunistas com o propósito de criar um governo global e destruir a família.
Apesar das dores de cabeça que os três filhotes já causaram e ainda causarão, é improvável que Bolsonaro venha a afastá-los. O problema de fundo é o descompasso entre a nossa programação biológica original (que nos faz proteger filhos e parentes) e o ambiente moderno em que vivemos (que exige do presidente uma impessoalidade institucional). Basicamente, estamos diante de uma armadilha evolutiva, o que significa que a natureza tende a prevalecer sobre o bom senso.
Mário Sérgio Conti: Descida na decadência
Tagarela e entorpecido, o Brasil se dedica à produção contínua de ruínas
Foi João Carlos Saad quem melhor expressou o sentimento pesado, misto de iniquidade e torpor, provocado pelas catástrofes deste início do ano. Na segunda-feira, o presidente do Grupo Bandeirantes disse: "Quando terminarmos de investigar este caso, vamos encontrar um fio condutor entre essas tragédias".
Saad se referia à ruptura da barragem da Vale, ao incêndio no alojamento do Flamengo e à morte, horas antes, na queda de um helicóptero, do jornalista Ricardo Boechat.
Melancólica, a assertiva dispensou os consolos do acaso, que produz crendices do tipo "o Brasil precisa se benzer!". Para Saad, as mortes em Minas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, os estados mais ricos da federação, foram produto "de coisas inadequadas que vêm acontecendo".
A inadequação não começou ontem nem veio do além. O Brasil real está em descompasso com autoimagens idílicas, difundidas durante décadas. Temos empresas de ponta, dizia-se, tão admiráveis quanto as melhores do mundo: a livre iniciativa forjará o progresso e o futuro.
Ei-las, as ilhas de excelência. A Petrobras desviou porrilhões de dólares. Viva o pré-sal. A Odebrecht comprou políticos urbi et orbi. Viva a engenharia nacional. A JBS privatizou a política. Viva o agronegócio. A Vale intoxicou o rio Doce. Viva a preservação do meio ambiente.
Há mais. Firmas lideradas por seres iluminados, como a Abril, a Cultura e a Saraiva, empulharam funcionários e fornecedores. Seus donos deram golpes na praça, mas não se diz mais "falência fraudulenta" —o chique é "recuperação judicial". Resolve-se tudo com tagarelice e tribunais.
Mais, ainda. O futebol, circo eletrônico que compensa o pouco pão, e mofo, é arena de cartolas como os do Flamengo, cujo domador-mor se faz chamar de CEO, Chief Executive Officer. Escolas de samba e igrejas, hoje empreendimentos de arte & religião, são ingênuos, pios?
Resta o consolo dúbio que corrupa, desleixo e má-fé não são apanágio verde-amarelo. Samurai da Renault-Mitsubishi-Nissan, Carlos Ghosn está preso há três meses. Google e Facebook, Big Brothers do mercado online, são alvo de protestos e processos. A Fifa é a CBF globalizada.
Com a queda da taxa de lucro, e as sequelas sociais de uma crise que vai e volta há uma década, tornou-se regra a concorrência desonesta e selvagem. Desde há 30 anos, quando caiu o Muro, a economia não tem alternativa à vista ou em potencial. Contudo a história não chegou ao fim.
Aumentaram as calamidades ambientais, os surtos climáticos extremos, a imundície urbana e industrial, a esterilização da natureza e o aquecimento planetário. Mas cresceu a consciência de que a Terra se esgota de modo convulsivo —a humanidade pode provocar o apocalipse.
Incêndios e inundações, porém, não originaram uma utopia. Como disse o crítico Fredric Jameson: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Sem expetativas, não há esperança. Como a experiência histórica coletiva conta pouco, somos condenados ao presente.
Um presente de "coisas inadequadas", de decadência, de produção não do futuro, mas de ruínas. Não que o passado fosse bom —longe disso— ou que o presente lhe seja superior. No sentido etimológico, a decadência se explica pela raiz da palavra latina que lhe deu origem: "cadere", cair.
No sentido jurídico, decadência significa perda de direitos. Se o sujeito é levado pela inércia, pela repetição automática do estado em que se encontra, seja ele parado ou em movimento, seus direitos prescrevem. A inércia comanda nossa queda livre no presente vazio.
Acelerando sem parar num túnel vertical infindável, os brasileiros são despidos de seus direitos —no vento vão retalhos velhos. Seus líderes lhes garantem que, se continuarem a cair, se trabalharem por anos e anos sem descanso, se estatelarão de felicidade no fundo do poço.
No sentido estético, estudado por Nietzsche e Lukács, decadência quer dizer desintegração do sentido e atomização da sociedade. Ou seja, a incompreensão provocada pela perda do sentido comunitário —em favor de um individualismo impiedoso, de uma solidão sem misericórdia.
No sentido teológico, a decadência é atributo de um dos sete pecados capitais do catolicismo, a acídia. Arma do Anticristo, a acídia corrói a vontade, gera indolência, indiferença, impotência e, uma vez mais, inércia.
O Anticristo só pode ser vencido pelo Messias. Ele é o único capaz de pôr fim a séculos de letargia, à estagnação. Mas não há mais redentores.
*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
Igor Gielow: Capital de Bebianno e governo caótico indicam problema para Bolsonaro
Homem-forte da campanha, ministro é um depositário de várias informações importantes
Na teoria dos jogos, a soma negativa é aquela situação em que todos os envolvidos acabam perdendo. É o caso do provável desfecho do episódio envolvendo o ministro Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral), que deverá ser exonerado na segunda (18).
O que fica incerto é o capital danoso que Bebianno tem à disposição contra o governo. E uma certeza: esse é um governo caótico ao lidar com crises, o que sinaliza dificuldades à frente.
Gustavo Bebianno, que foi braço direito de Bolsonaro na campanha eleitoral - o ministro é um depositário de várias informações importantes —o termo "cadáveres enterrados" não cai bem, embora o chefe tenha determinado o fim do politicamente correto em seu discurso de posse.
A queda esperada de Bebianno é resultado de uma operação de Bolsonaro e seus filhos, no caso o loquaz Carlos, o "pitbull" do pai. A postagem republicada pelo presidente, que cristalizou uma crise que poderia ter ficado restrita ao escândalo das candidaturas laranjas doPSL reveladas pela Folha, é simbólica dos novos tempos em Brasília.
Para apoiadores de Bolsonaro na bancada do PSL na Câmara, esse padrão disruptivo deverá ser o novo normal das relações de poder. Isso pode ser até verdade, mas os riscos estão todos colocados.
A ala militar do governo e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), expressaram um alarme grande em relação à condução da crise.
O fato de que o usualmente falador Carlos moderou o tom de suas postagens no Twitter desde que foi instrumental para o pai humilhar publicamente Bebianno, na quarta (13), foi lembrado pelos fardados e pelo deputado como um sinal de que talvez os filhos do presidente agora deverão se comportar.
Mas o grande temor de Maia e dos militares, a existência de algum tipo de trava à tramitação da reforma da Previdência no Congresso, é ainda algo insondável. Pode ou não ocorrer.
Para os militares, em especial, o episódio representa uma confirmação de cenário. Eles foram chamados a mediar a crise, já munidos do viés contrário ao poder dos filhos do presidente.
Não deu certo, mas eles saem com um capital político ainda maior caso o desfecho da crise seja o esperado.
Fraco politicamente o governo já é, pela condução bizarra do episódio Bebianno. Militares não queriam mantê-lo por algum amor específico, assim como Maia, mas por uma percepção da "velha política" de que esse tipo de turbulência mais atrapalha do que ajuda.
O tempo dirá quem está certo, mas se Bebianno for de fato mandado à rua na segunda, o será com algum tipo de acordo ainda desconhecido. Ele sabe muito, e indicou em suas mensagens pouco discretas na imprensa, que pode comprometer o presidente.
Agora é lidar com os fatos. Havia uma certeza nos meios governistas: sem a reforma, o já frágil politicamente governo Bolsonaro naufraga ainda no porto. Parece um certo exagero típico desses momentos, mas gente do outro lado do balcão (oposição, neutros) alimenta temor semelhante.
A sexta (15) começou em clima de acordão. Mas o vazamento dos áudios no qual o presidente ordena o cancelamento da agenda de Bebianno com os "inimigos" da Rede Globo, ordem que foi adiantada pela Folha, caiu muito mal entre a ala bolsonarista que quer Bebianno longe.
Ao fim, salvo novas mudanças de rumo, parece ter prevalecido o fígado. De resto, o tal novo normal terá tido apenas seu primeiro teste, ainda fora da realidade do plenário.
Davi Depiné, Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco: A alma do negócio
Com 'plea bargain', teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas
Entre os 14 capítulos do projeto de reforma da legislação penal e processual apresentados pelo Ministério da Justiça, um deles incorpora uma sensível alteração na forma como se desenvolve o processo criminal no Brasil, adotando um modelo oriundo do direito norte-americano, lá denominado de “plea bargain” – espécie de “acordo de confissão”.
A origem desse instituto, que modula a ação do órgão de acusação, condiz com o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos, em que prevalece, embora não com a mesma frequência de outrora, o julgamento pelo tribunal do júri —e não por um juiz de direito— de boa parte das infrações penais.
Se o júri tem como nuance positiva seu caráter democrático, tem como pontos negativos sua complexidade e demora. Um julgamento pelo júri pode levar dias e até meses (o famoso caso O.J. Simpson durou 372 dias, apenas o julgamento). Diante desse cenário, pergunta-se: como a Justiça americana ainda assim funciona? A resposta está justamente no “plea bargain”. Os acordos correspondem a mais de 90% dos procedimentos criminais, impedindo que todos esses casos prossigam nos tribunais, gerando celeridade e assegurando o início do cumprimento de penas de forma mais ágil.
Perfeito, então. E por que não adotar essa sistemática em “terra brasilis”? E a resposta é: porque teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas.
Atualmente, cerca de 65% das acusações criminais que aportam nos fóruns envolvem três tipos de delito: furto, roubo e tráfico de drogas. Em sua imensa maioria, as denúncias são lastreadas em prisões em flagrante. Um número diminuto de ações penais decorre de investigações policiais, reflexo da aprofundada e duradoura falta de investimento na polícia judiciária. Em casos de entorpecentes, especialmente, as testemunhas de um processo criminal costumam ser apenas os agentes policiais que efetuaram a prisão do suspeito.
E aqui começa a diferença. O depoimento exclusivo de policiais não é aceito como prova pela Justiça dos Estados Unidos. Não porque lá se duvide da credibilidade dos agentes de segurança pública, mas porque a comprovação de culpa deve ser feita através de provas não limitadas ao próprio aparato policial, evitando-se o risco de que o poder público apenas legitime a si próprio. O processo penal, enquanto instrumento de garantia e proteção contra eventual abuso estatal, deve assegurar a possibilidade de um contraditório. E como contradizer o Estado perante o próprio Estado? Daí porque, antes de um “plea bargain”, a acusação deve exibir as provas que possui, que serão usadas no processo penal caso o acordo não seja aceito. No Brasil, ao contrário, a confissão voltará a ser, como chamavam em tempos inquisitoriais, a rainha das provas —e obtê-la passará a ser a principal finalidade do processo.
Um dos agravantes para isso é o fato de que não há negociação real se há desigualdade entre as partes envolvidas ou se proliferam incentivos para que a acusação seja feita com excessos. Ainda hoje, não há Defensorias Públicas instaladas e equipadas suficientemente no país para garantir sempre a defesa técnica de pessoas carentes –aquelas que compõem a imensa maioria da população prisional.
Além disso, o procedimento americano assegura a imparcialidade judicial. O juiz que decide sobre eventual acordo não pode ser o mesmo que julga o caso, pois se entende que estaria influenciado por um convencimento prévio acerca do processo.
Por fim, resta perguntar: por que alguém confessaria algo que não praticou? Conhecendo os caminhos da prática penal brasileira e observando a realidade superlotada de nossos cárceres, não é difícil concluir que a presunção de inocência é coisa para poucos.
*Davi Depiné , Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco
Davi Depiné
Mestre em direito processual penal pela USP e defensor público-geral do Estado de São Paulo desde 2016
Marcus Edson de Lima
Presidente do Colégio Nacional de Defensores Gerais e defensor público-geral de Rondônia
Rodrigo Pacheco
Defensor público-geral do Rio de Janeiro
Bruno Boghossian: Resistência de Bolsonaro à reforma da Previdência pode contaminar Congresso
Ressalvas do presidente até a última hora mostram que negociação política será custosa
Jair Bolsonaro se comportou como um líder hesitante até definir sua proposta de reforma da Previdência. Na véspera de bater o martelo, admitiu com certo pesar que “nem gostaria” de fazer a mudança. “Mas sou obrigado a fazê-la. Do contrário, o país quebrará”, completou.
A resistência demonstrada pelo presidente em relação a um ajuste rigoroso deve ter reflexos no Congresso. Durante a elaboração do texto, o próprio Bolsonaro expôs publicamente sua relutância em relação a diversos pontos da reforma. A atitude pode contaminar a visão dos parlamentares sobre o tema.
Um dia antes de definir a idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres, o presidente disse numa entrevista que esses números poderiam ficar em 62 e 57. Ao expor a hipótese, Bolsonaro deu guarida a deputados e senadores que gostariam de pleitear a redução.
Nas discussões sobre a reforma, Bolsonaro se esforçava para demonstrar sensibilidade social. Afirmou que o ajuste não pode “matar idosos” e usou dados distorcidos de expectativa de vida para justificar uma idade de aposentadoria menor. Agora, esses argumentos serão aproveitados com gosto pela oposição.
Com três décadas de vida no Congresso, o presidente foi o primeiro teste de articulação política da reforma. A equipe econômica conquistou uma vitória ao fechar um acordo em torno do texto, mas o debate também revelou os custos da negociação. Se o próprio presidente fazia ressalvas até a última hora, não se deve esperar caminho livre nem entre os aliados mais fiéis do governo.
Quando estava prestes a escorregar do precipício, Gustavo Bebianno se agarrou ao presidente. Nas últimas 24 horas, o ministro atacou Carlos Bolsonaro (a quem chamou indiretamente de moleque) e transferiu as suspeitas sobre o laranjal do PSL para outros dirigentes do partido. Em algum momento, Jair precisará exercer autoridade e decidir se algum deles será atirado do penhasco.
Marina Silva: A bem da verdade
Rotulações caluniosas alimentam a intolerância
Muito me espantou o artigo (“Déjà-vu”) publicado nesta Folha, do professor Sandro de Souza, mencionando uma suposta defesa minha do criacionismo em substituição à teoria da evolução, repetindo uma inverdade que ele mesmo plantou em outro artigo há mais de uma década (fake news não são um fenômeno tão recente).
Em tempos em que o culto ao obscurantismo ascende ao poder, torna-se imperativo um debate sem rotulações e ancorado em investigações isentas, ou seja, um debate verdadeiramente científico. Rotulações caluniosas são a base da indústria da intolerância, que hoje polui o ambiente da democracia e só serve àqueles que buscam “construir por oposição” —no dizer popular, só se levantam derrubando o outro.
Atualmente, em todo o mundo, mais de 3 bilhões de pessoas têm a fé e a crença na transcendência como um componente essencial de suas vidas. São expressões diversas das formas de ser e estar no mundo que têm atravessado a história da espécie humana e que, certamente, merecem respeito.
A fé, a arte e a filosofia antecipam ideias que a ciência explora com seu rigor metodológico e, ainda que sejam de natureza completamente distintas, como disse Jean Ansaldi (2003), “podem se estimular mutuamente, se interpelar, se convidar a ir mais adiante e mais fundo nas suas respectivas direções”.
A fé não se submete à ciência, nem esta àquela. Há uma colaboração entre as diferentes áreas do pensamento humano na construção dos saberes. A história mostra como esses processos criativos e sinérgicos resultam em maior riqueza da atividade intelectual. Não vejo isso apenas nos livros, mas na minha vida: sou uma pessoa de fé e de ciência.
Sempre pautei minha atuação pública, como parlamentar, ministra ou ativista, valorizando o saber científico e em permanente contato com as instituições acadêmicas e a comunidade científica, sem deixar de valorizar o diálogo respeitoso entre os saberes. Não há em minha trajetória qualquer marca de instrumentalização das atribuições públicas para fins religiosos. Infelizmente, não é a primeira vez que alguém tece inverdades sobre minhas falas públicas —quando deveria ser fiel ao fato, como a ciência ensina.
Mais uma vez, vou repetir: o que defendi, de verdade, foi que nas escolas declaradamente confessionais, que transmitem os conteúdos do criacionismo, se ensinasse também o evolucionismo. Essa é a minha visão: a educação, em escola laica ou religiosa, deve se dar em ambiente de liberdade, promovendo o desenvolvimento de todos os potenciais da inteligência de um ser humano e respeitando suas características pessoais, sociais e culturais.
Não por acaso, foi o apóstolo Paulo, profundo estudioso das diferentes formas de conhecimentos disponíveis em seu tempo, que nos estimulou a “olhar de tudo e reter o bem”. E o bem, tanto na ciência como na fé, é a verdade não apenas como resultado mas como meio de busca e procura. Quem quiser discordar do que eu digo tem o meu total respeito, mas, por favor, faça-o sem distorcer a realidade.
* Marina Silva é ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008, gestão Lula), ex-senadora (1995-2011) e candidata à Presidência da República pela Rede em 2018, pelo PSB em 2014 e pelo PV em 2010
Bruno Boghossian: Bolsonaro aterrissa no laranjal do PSL e leva crise para o Planalto
Chamado de mentiroso pelo presidente, Bebianno pode cair atirando
Liberado do hospital após 17 dias, Jair Bolsonaro embarcou no avião presidencial em São Paulo e pousou no meio do laranjal do PSL. As falcatruas dos aliados e as barbeiragens da família levaram para dentro do Palácio do Planalto as suspeitas sobre o esquema de candidaturas de fachada revelado pela Folha.
O novo governo mostrou mais uma vez sua inabilidade em construir barreiras para a contenção de crises.
Acuado, Bolsonaro decidiu jogar na fogueira o ministro Gustavo Bebianno, que comandou o PSL durante a campanha eleitoral.
O auxiliar sofreu um ataque público inusual. Para negar rumores de que seria demitido, Bebianno declarou que havia conversado com Bolsonaro sobre os repasses financeiros feitos a candidatas suspeitas. O presidente e um de seus filhos fizeram questão de detonar a versão.
Em uma publicação nas redes sociais, Carlos acusou Bebianno de mentir sobre esses diálogos. Reproduziu ainda uma gravação em que Bolsonaro dizia ao ministro que não trataria do assunto. No fim do dia, o presidente repetiu essa informação.
Chamado de mentiroso pelo chefe, Bebianno perde condições de ficar no cargo, mas diz que não deixará o governo. É vergonhoso, aliás, que Bolsonaro escolha queimar um auxiliar em vez de apenas demiti-lo.
Uma eventual saída de Bebianno seria insuficiente para estancar a crise. Sua dimensão pode até crescer. O ministro sabe que tem responsabilidade pelos cheques que assinou pelo partido, mas também conhece o caminho do dinheiro. Exposto em praça pública, ele pode cair atirando.
Os primeiros alvos seriam o ministro Marcelo Álvaro Antônio(Turismo) e o atual presidente do PSL, Luciano Bivar, que direcionaram os recursos para as candidaturas laranjas. Se a lei da gravidade funcionar, a queda da dupla será inevitável.
As sequelas do conflito podem ainda causar novas dores de cabeça em Bolsonaro. Homem de confiança do presidente na disputa eleitoral, Bebianno conhece como poucos aliados os segredos de sua campanha.
Folha de S. Paulo: Apoiado por Bolsonaro, filho ataca ministro e agrava crise
Filho de Bolsonaro ataca ministro, e caso dos laranjas do PSL abre crise no governo. Carlos Bolsonaro chamou Gustavo Bebianno de mentiroso; Folha revelou caso dos candidatos
SÃO PAULO E BRASÍLIA - A revelação do esquema de candidaturas laranjas do PSL pela Folha provocou uma crise no governo de Jair Bolsonaro, alavancada pelo ataque do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gustavo Bebianno.
Nomes importantes da bancada do PSL na Câmara se manifestaram sobre o caso, aumentando a tensão no partido, que está sob pressão com a série de reportagens do jornal sobre o uso de candidaturas laranjas para desviar verba do fundo partidário nas eleições.
No centro da crise estão o presidente atual do PSL, o deputado federal Luciano Bivar (PE), e Bebianno, que presidiu o partido no ano passado, inclusive durante o período eleitoral.
Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) afirmou nesta quarta-feira (13) em rede social que o ministro mentiu ao dizer que conversou três vezes com seu pai, o presidente Jair Bolsonaro (PSL), no dia anterior.
“Ontem estive 24h do dia ao lado do meu pai e afirmo: 'É uma mentira absoluta de Gustavo Bebbiano [sic] que ontem teria falado 3 vezes com Jair Bolsonaro para tratar do assunto citado pelo Globo e retransmitido pelo Antagonista'.”
O presidente quer uma solução rápida para o caso, discutiu com o ministro e o fez cancelar agendas, o que aumentou a pressão entre aliados para que Bebianno peça para sair do governo.
O deputado Alexandre Frota (PSL-SP) afirmou que o seu partido “não passará a mão na cabeça de bandido”. “Ontem [terça (12)], a maioria dos partidos de esquerda que subiram aqui [na tribuna da Câmara] falou que o PSL é um partido de laranjas. O PSL não é um partido de laranjas”, afirmou Frota.
“Qualquer secretário, deputado, ministro envolvido em qualquer coisa, essa laranja podre vai cair”, disse.
A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) criticou Carlos Bolsonaro pelo ataque feito a Bebianno. "Não pode se misturar as coisas. Filho de presidente é filho de presidente. Temos que tomar cuidado para não fazer puxadinho da Presidência da República dentro de casa para expor um membro do alto escalão do governo dessa forma", disse Joice.
Reportagem da Folha deste domingo (10) revelou que o grupo do atual presidente do PSL, Luciano Bivar (PE), recém-eleito segundo vice-presidente da Câmara dos Deputados, criou uma candidata laranja em Pernambuco que recebeu do partido R$ 400 mil de dinheiro público na eleição de 2018. O dinheiro foi liberado por Bebianno.
Maria de Lourdes Paixão, 68, que oficialmente concorreu a deputada federal e teve apenas 274 votos, foi a terceira maior beneficiada com verba do PSL em todo o país, mais do que o próprio presidente Bolsonaro e a deputada Joice Hasselmann (SP), essa com 1,079 milhão de votos.
O dinheiro do fundo partidário do PSL foi enviado pela direção nacional da sigla para a conta da candidata em 3 de outubro, quatro dias antes da eleição. Na época, o hoje ministro da Secretaria-Geral da Presidência era presidente interino da legenda e coordenador da campanha de Jair Bolsonaro (PSL), com foco em discurso de ética e combate à corrupção.
Apesar de ser uma das campeãs de verba pública do PSL, Lourdes teve uma votação que representa um indicativo de candidatura de fachada, em que há simulação de atos de campanha, mas não empenho efetivo na busca de votos.
A candidatura laranja virou alvo da Polícia Federal, da Procuradoria e da Polícia Civil do estado.
Nesta quarta (13), a Folha revelou ainda que Bebianno liberou R$ 250 mil de verba pública para a campanha de uma ex-assessora, que repassou parte do dinheiro para uma gráfica registrada em endereço de fachada —sem maquinário para impressões em massa.
O ministro nega irregularidades e diz que cuidou apenas da eleição presidencial.
O PSOL protocolou nesta quarta representação contra o PSL na Procuradoria-Geral da República sobre as suspeitas de uso de laranjas em campanhas eleitorais de membros do partido.
A sigla oposicionista também entrou com um requerimento na Câmara para convocar Gustavo Bebianno para esclarecimentos. O pedido enviado pede ainda que o partido governista seja investigado por supostas apropriação indébita eleitoral, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Na semana passada a Folha havia publicado que o atual ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, patrocinou um esquema de candidaturas de fachada em Minas que também receberam recursos volumosos do fundo eleitoral do PSL nacional e que não tiveram nem 2.000 votos, juntas. Parte do gasto que elas declararam foi para empresas com ligação com o gabinete de Álvaro Antônio na Câmara.
Após essa revelação sobre o ministro do Turismo, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, afirmou que esse caso deveria ser investigado. A Procuradoria-Regional Eleitoral de Minas Gerais decidiu apurar o caso.
Hospitalizado até o final da manhã desta quarta-feira, o presidente Bolsonaro ainda não se pronunciou sobre o tema. Ele tem feito declarações por meio de redes sociais, mas não comentou o assunto até o momento.
O ex-juiz Sergio Moro, ministro da Justiça, afirmou, também sobre o colega de ministério, que o caso será apurado "se surgir a necessidade".
Ainda na terça-feira, o ministro negou que esteja protagonizando uma crise no governo Bolsonaro e disse que trocou mensagens sobre o caso com o presidente.
Elio Gaspari: Os juízes no deserto de juristas
Pesquisa sobre magistrados contou tudo e sua digestão ajudará o debate
Os juízes brasileiros vivem num deserto de jurisconsultos. Isso foi o que revelou a pesquisa da Associação de Magistrados Brasileiros depois de ouvir 4.000 doutores ativos ou aposentados. Diante de um pedido para que citassem três juristas que viam como referências importantes para o direito brasileiro, mencionaram cerca de 3.000 nomes. Os professores Luiz Werneck Vianna, Maria Alice de Carvalho e Marcelo Burgos filtraram os mais citados e disso resultou uma lista de 47 juristas. Apesar de seus 196 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal só produziu nove nomes.
Da atual composição da corte entraram quatro: Luís Roberto Barroso, Celso de Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Barroso, com 320 citações entre os juízes de primeiro e segundo graus, só perdeu para o monumental Pontes de Miranda (1892-1979), autor de mais de 300 obras. Entre os ministros de tribunais superiores, teve uma solitária menção, enquanto Pontes de Miranda ganhou cinco. (Conhecendo o tamanho dos egos do meio, os professores listaram as preferências dos juízes por ordem alfabética.)
A cultura jurídica dos magistrados que responderam à pesquisa revela grande respeito por autores que lidam com o lado processual da máquina e, em alguns casos, por advogados que produziram competentes manuais. Exagerando, pode-se dizer que são como pilotos que leem tudo sobre o funcionamento das aeronaves, mas não consideram relevante a autobiografia de Charles Lindbergh, a primeira pessoa a atravessar o Atlântico, num voo solo de 33 horas a bordo de um monomotor. Podem ter razão.
Juristas como Vitor Nunes Leal e Hermes Lima, ex-ministros do STF cassados em 1968, ficaram de fora. Na outra ponta, José Carlos Moreira Alves, procurador-geral do general Emílio Médici, nomeado para a corte em 1975, também não entrou. Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura de 1969 a 1974, teve uma citação, mas Francisco Campos, o grande jurista do Estado Novo, autor do preâmbulo do primeiro Ato Institucional, não se classificou.
É surpreendente que entre os autores das 15 obras acadêmicas e filosóficas mais citadas pelos magistrados estejam apenas dois americanos. Isso numa época em que o direito brasileiro sofre as dores do parto da delação premiada e se discute a introdução de um mecanismo da "plea bargain" sem que haja sequer tradução consolidada para o instituto. (O ministro Sergio Moro diz que é "solução negociada", mas há quem fale em "transação penal") Mais de 80% dos magistrados brasileiros gostam da ideia. É verdade que o direito americano é diferente do brasileiro, mas, se o negócio é importar jeans, rock e leis, a discussão melhorará quando alguém citar Oliver Wendell Holmes (1841-1935), um campeão das liberdades públicas que ainda por cima combateu pelo Norte durante a Guerra da Secessão.
O relatório da pesquisa chama-se "Quem Somos -- A Magistratura que Queremos" e está na rede. Foram 198 questões que produziram cerca de 800 tabelas. É um tesouro em si porque mergulhou na vida dos magistrados e, acima de tudo, porque a equipe de professores fez esse mesmo trabalho há 20 anos. Desta vez, sua realização foi coordenada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. Poucos países do mundo puderam fazer a mesma coisa. Sua completa digestão deverá levar algum tempo.
Quem quiser começar a examiná-la partindo de temas atuais, pode ter um auxílio começando pela questão 176, a da "situação de moradia": 70% dos juízes de primeiro grau e 93% daqueles do segundo grau vivem em casa própria.
Bruno Boghossian: Aliados de Bolsonaro tentam dar um golpe do pijama no Supremo
Proposta de antecipar aposentadoria de ministros é truque para emparedar o tribunal
Há 50 anos, os generais da ditadura decidiram mandar para casa três ministros do STF considerados obstáculos ao regime. Victor Nunes Leal tinha 54 anos quando ouviu no rádio a notícia de sua aposentadoria forçada. Ele se virou para um colega que jantava em sua casa e disse: “O senhor já não está falando com um ministro do Supremo”.
Aliados de Jair Bolsonaro querem dar um novo golpe do pijama no tribunal. A ideia é mudar a Constituição para antecipar a idade de aposentadoria dos ministros de 75 para 70 anos e abrir caminho para que o presidente possa indicar, de uma só vez, quatro integrantes para a corte.
A manobra é mais do que oportunista. Em 2015, o Congresso aprovou a PEC da Bengala, que aumentou a idade de aposentadoria no Judiciário para 75 anos —uma malandragem para impedir Dilma Rousseff de fazer novas indicações para o STF. Bolsonaro votou a favor da proposta.
Agora, o casuísmo pode ser duplicado. Numa artimanha para acomodar a lei a seus interesses políticos, os parceiros do governo querem revogar a PEC para tirar da corte Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Mudariam o equilíbrio do tribunal sem precisar chamar um cabo e um soldado.
Bolsonaristas colhem assinaturas de apoio ao projeto. A deputada Bia Kicis (PSL) subiu à tribuna nesta terça (12) para dizer que a proposta atende ao “clamor das redes sociais”. Ela quer presidir a Comissão de Constituição e Justiça, mas começa mal ao tentar torcer a legislação para favorecer seu grupo político.
Em entrevista ao SBT em janeiro, Bolsonaro festejou a PEC de 2015 e disse que não faria “gestões para revogar” a medida. Ele deveria passar essa orientação a seus seguidores.
O novo Congresso decidiu enfrentar o Judiciário, mas flerta com uma crise que pode pulverizar a relação entre as instituições. A popularidade do STF está no buraco, mas um expurgo seria injustificável. Mudar a regra do jogo quando for conveniente é só um truque barato para atropelar desafetos e concentrar poder.
Nelson de Sá: Batalha por 5G se torna 'Guerra Fria da tecnologia'
Em editorial, o jornal chinês atacou as pressões americanas sobre os europeus aliados, contra o uso de equipamento da Huawei, comparando a submissão da Otan ao Pacto de Varsóvia.
FERVOR
James Bamford, tido como principal jornalista para questões de inteligência dos EUA, publicou na New Republic a longa reportagem "A espiã que não era" (acima), sobre a russa Maria Butina, que foi presa em agosto entre títulos que a acusaram até de "usar sexo". Foi efeito do "fervor anti-russo", conclui o repórter.
BOLSONARO VS. BRICS
Em análise no indiano The Economic Times, Fábio Zanini, da Folha, escreve que no país de Jair Bolsonaro, que neste ano preside o grupo Brics, a aliança com os grandes emergentes se tornou “quase invisível”. Até na Venezuela o Brasil agora se situa em posição divergente daquela de China, Rússia e também Índia e África do Sul —e ao lado dos EUA.De maneira geral, “a nova diplomacia brasileira consiste em poucos amigos e objetivos limitados, sem ambições globais”.
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Da CNN, sobre as fotos que correram mundo da festa da, entre aspas no original, “escravidão” em Salvador:"O mundo da moda está passando por uma prestação de contas em termos de insensibilidade cultural e suposto racismo.”
*Nelson de Sá é jornalista, foi editor da Ilustrada.