Folha de S. Paulo

Hélio Schwartsman: Dignidade e justiça

Certos termos dão ótimas bandeiras, mas, por serem conceitos abertos, são menos úteis para nortear a tomada de decisões em situações concretas

“Dignidade da pessoa humana” e “justiça social”. Esses termos dão ótimas bandeiras políticas, mas se tornam menos úteis se tentarmos utilizá-los para tomar decisões informadas sobre situações concretas. O problema é que eles são conceitos abertos demais. Como significam qualquer coisa, acabam não significando muita coisa.

Tomemos a “dignidade humana”. Dependendo do freguês, o termo pode ser usado tanto para justificar o desligamento como o não desligamento das máquinas que mantêm vivo um paciente terminal. No caso da “dignidade”, até que a solução não é difícil. Num grande número de casos —mas não todos—, a expressão pode ser substituída, com enorme descomplicação conceitual, por “autonomia individual”.

O paciente que não queria ter sua existência prolongada artificialmente —e manifestou esse desejo enquanto podia— encontrará a sua “dignidade”, da mesma forma que aquele para o qual a vida é sagrada e não pode ser suprimida pela volição humana. Só o que não vale é um tentar impor a sua “dignidade”, que é pessoal e intransferível, ao outro.

“Justiça social”, que ganha destaque agora com a reforma da Previdência, não comporta solução tão simples. Com base em quais critérios podemos dizer que é justo que as mulheres (que vivem mais) se aposentem antes dos homens? Ou que o policial só tenha de contribuir por 30 anos, enquanto o domador de leões tenha de pagar o carnê por 35? Por que o professor deve receber um bônus de cinco anos, mas o lixeiro não faz jus a essa mesma vantagem?

Aqui, a única substituição descomplicadora que vislumbro é considerar que mecanismos concentradores de renda devem ser classificados sempre como injustos. Seria demais pedir que a Previdência resolva todas as iniquidades do país, mas é razoável esperar que ela não crie novas. Nesse contexto, a proposta de reforma do governo, se não for desfigurada no Parlamento, pode ser qualificada como socialmente justa.


Folha de S. Paulo: Ernesto Araújo ataca FHC e diz que Brasil guiou EUA na crise da Venezuela

Em blog, chanceler diz que ex-presidente desprezava povo brasileiro e critica tradição diplomática

SÃO PAULO - Em artigo publicado em seu blog, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ataca Fernando Henrique Cardoso por suas declarações sobre a crise na Venezuela, dizendo que o ex-presidente defende “tradições inúteis de retórica vazia” e que ele “abertamente desprezava” o povo brasileiro e os eleitores de direita.

No texto, intitulado Contra o consenso da inação, Araújo também afirma que foi o Brasil que guiou os EUA nas decisões tomadas recentemente em relação ao país vizinho, e não o contrário.

Na última quinta-feira (28), FHC havia postado em seu Twitter que “novas eleições livres são o caminho para o futuro democrático na Venezuela” e que “intervenções militares não conduzem à democracia”.

Araújo criticou FHC, dizendo que ele usa “o mais surrado dos artifícios retóricos” ao criar “uma falsa dicotomia” entre consenso e intervenção armada no país vizinho. “Ao contrário de FHC, eu acredito na diplomacia, porque acredito na força da palavra e do espírito humano para mudar a realidade, porque não sou cínico nem materialista, porque acredito no povo brasileiro, esse povo dos “grotões” que FHC abertamente desprezava (assim como desprezava e despreza os eleitores de direita que o fizeram presidente duas vezes)”, escreveu.

No texto, o chanceler Araújo critica a tradição da política externa brasileira nos últimos 25 anos, baseada no “consenso” —que ele qualifica de “infame”— e dizendo que ela permitiu a consolidação de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro no poder na Venezuela, a entrada do país no Mercosul e o “predomínio crescente do bolivarianismo na América do Sul concebida como um bloco socialista”.

“Insistir agora em que esse consenso continue a prevalecer na esfera da política externa, por temor e preguiça, sob o pretexto de ‘manter as tradições’, seria trair o povo brasileiro”, escreveu.

Segundo o chanceler, “uma grande liderança democrática venezuelana” disse a ele que foram as iniciativas do Brasil que “mobilizaram os próprios Estados Unidos a romperem a inércia em que se encontravam até o início de janeiro e a virem colocar seu peso político em favor da transição democrática”. “Não foi o Brasil que seguiu os EUA, mas antes o contrário.”

Araújo também teceu críticas ao ex-ministro Rubens Ricupero, ao afirmar que recebeu o agradecimento dos venezuelanos quando visitou as fronteiras do país com a Colômbia e o Brasil e abraçou o autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, “enquanto Rubens Ricupero e Fernando Henrique Cardoso escreviam seus artigos espezinhando aquilo que não conhecem, defendendo suas tradições inúteis de retórica vazia e desídia cúmplice”.


Luiz Weber: O general dublador

Mourão tem servido de 'closed caption' quando Bolsonaro fala e a declaração cai mal, mas há o risco da armadilha da tradução

Mourão é o “closed caption” de Bolsonaro. Se o presidente fala e a declaração cai mal no mercado financeiro ou na política, o vice é acionado pela estrutura militar do Planalto para legendar o pensamento presidencial.

Na sexta-feira (1º), assessores palacianos se viram obrigados a teclar o botão CC para traduzir uma fala do presidente considerada desastrosa sobre a reforma da Previdência.

No dia anterior, durante entrevista realizada em ambiente de estufa, Bolsonaro admitiu que a idade mínima de aposentadoria das mulheres poderá ser revista.

Até então, o foco do Congresso estava nos “bodes na sala” —o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que é pago a idosos pobres e a pessoas com deficiência, e a aposentadoria rural. Bolsonaro abriu, de graça, nova frente de batalha.

“O presidente foi mal interpretado”, socorreu o general Mourão. Acontece que mesmo os melhores aparelhos digitais apresentam certo “delay” entre a fala e a transcrição. No lapso entre a declaração e a correção, a bolsa especulou e a miúda base parlamentar desarrumou-se ainda mais.

Parte do poder presidencial vem de sua caneta. Mas componente tão importante quanto mandar e desmandar é a capacidade de persuasão, de transmitir uma visão de mundo que os destinatários (deputados e senadores) se sintam à vontade em compartilhar.

A questão previdenciária precisa de um presidente persuasivo. Bolsonaro terá que se fazer compreender pela sua própria voz. Não será com mais hashtags que o governo conseguirá a aprovação da reforma.

Como intérprete presidencial, Mourão pode até continuar dublando o bolsonarês para o português falado no mercado e na política. Mas há o risco de cair na armadilha da tradução. Todo tradutor é um pouco traidor ao inocular no texto sua própria visão de mundo. Por mais sensatas que sejam até agora as declarações do vice, uma dupla voz vinda do Planalto só cria mais ruído.


Julianna Sofia: Cara de palhaço

Deputados se esbaldam em Carnaval prolongado às custas da Viúva

Embora a mais autêntica pândega brasileira, o Carnaval nem feriado nacional é. À exceção de estados e municípios onde lei local assim o designa, o período equivale a dias regulares de trabalho, em que órgãos públicos e empresas privadas podem exigir atividade normal de seus funcionários, e faltas podem ser descontadas dos salários. Dispensa é questão de liberalidade.

Isso vale para um cidadão ordinário —aquele com cara de palhaço.

Na quarta-feira (27), a Folha flagrou o início da patuscada na Câmara dos Deputados. Eram seis da manhã, quando o painel de presença da Casa foi aberto para que os congressistas pudessem marcar seus nomes para a sessão que só começaria três horas mais tarde.

Antes das 8h, 11 deputados já tinham se registrado. O interesse nas votações que se seguiriam (acordos internacionais) era próximo de zero. O motivo real para a madrugada no plenário era garantir presença, embarcar para o estado de origem e deleitar-se num feriado prolongado.

O salário de um deputado é de R$ 33.763, fora outras benesses, e o comparecimento a sessões de votação é condição para não haver desconto. Há muito trabalho pendente nos escaninhos da Câmara, que tem adiante toda a tramitação de uma reforma da Previdência urgente.

Os congressistas fazem parte da infinitesimal parcela da população no topo da pirâmide de renda no Brasil. Nesta quinta (28), o Ministério da Economia alertou sobre a necessidade de aprovação da reforma para evitar que o PIB per capita do país entre em trajetória de queda.

“Para que o PIB per capita volte a crescer de maneira sustentável, é necessário que as reformas estruturais ocorram”, diz o documento. No ano passado, a economia do país avançou decepcionante 1,1%, e a renda por brasileiro ainda ficou 8% abaixo do patamar de 2013.

Na galhofa parlamentar brasileira, houve a tal renovação, mas tudo continua como dantes. E você, cidadão ordinário, já está com o feitio apropriado até a Quarta-Feira de Cinzas.


Hélio Schwartsman: Moro se apequena

Desnomeação de Ilona Szabó mostra que ministro não tem plenos poderes para lutar contra a corrupção

O episódio da desnomeação de Ilona Szabó para uma vaga de suplente no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) apequena a biografia do ministro Sergio Moro e engrandece a estultícia do núcleo duro do governo. Comecemos pela última parte.

Não se questionam as credenciais de Szabó para participar do Conselho. Ela atua há 15 anos como especialista em segurança pública, tem título acadêmico na área por instituição estrangeira de renome (Universidade de Uppsala) e goza de prestígio entre os pares. É verdade que ela se opõe à política do governo de flexibilizar a posse e o porte de armas, mas essa é uma posição quase consensual entre os acadêmicos.

Quando as redes sociais do bolsonarismo, capitaneadas pela incansável prole presidencial, “vetam” o nome de Szabó, revelam uma ignorância abissal em relação ao que sejam conselhos. Se o objetivo é consolidar certezas que governantes já têm, nem seria preciso dar-se ao trabalho de criar esses órgãos.

Eles só existem porque o dirigente sensato sabe que pode estar errado e procura precaver-se contra seus próprios vieses ouvindo opiniões qualificadas dissonantes da sua. Idealmente, para tentar contornar o viés de confirmação, conselhos deveriam reunir mais vozes identificadas com a oposição do que com a situação.

Quanto a Moro, ao ceder à pressão das hostes duras do bolsonarismo, revela que está longe de ser o ministro que teria plenos poderes para acabar com a corrupção. Até entendo que ele não tenha ido como um pitbull para cima de Flávio Bolsonaro logo na primeira semana de governo. Também acho razoável que tenha fatiado seu pacote de medidas legislativas. Política, afinal, se faz com negociações.

Mas, quando ele não consegue nem nomear o suplente de um conselho relativamente obscuro, é sinal de que a independência, se um dia existiu, já foi embora. Talvez seja hora de sair também, para preservar a biografia.


Nelson de Sá: Crescimento 'fraco, frustrante, débil, desbotado, desapontador'

Brasil desacelerou bruscamente no quarto trimestre, diz Bloomberg, e deve reforçar viés negativo para 2019

No título do francês Le Figaro, “Brasil: crescimento baixo”. Abrindo o texto, “crescimento fraco”, com “número desapontador”. A agência chinesa Xinhua apontou que “ainda está abaixo do nível de 2014”.

Os argentinos Clarín e La Nación, lembrando ser “o maior sócio comercial da Argentina”, publicaram que no Brasil “a expansão continua débil” e “em ritmo lento”. Mais, “as esperanças se viram frustradas”.

Wall Street Journal falou em “crescimento desbotado”, no título. Abrindo a reportagem, “desapontou”. O jornal ouve de um analista financeiro que “está difícil encontrar empresas para investir aqui”.

Bloomberg preferiu sublinhar que a “Economia do Brasil desacelerou bruscamente no quarto trimestre”. E que a Capital Economics soltou em nota que “o PIB desaponta aqueles que esperavam que o crescimento iria acelerar após a vitória de Jair Bolsonaro”.

A analista da própria Bloomberg Economics acrescentou que o resultado “deve reforçar o viés negativo do mercado para crescimento em 2019”. O número “fraco” já teria levado o banco Goldman Sachs a cortar a previsão de crescimento do país neste ano para 2%.

Tanto WSJ como Bloomberg responsabilizam, em parte, o “mercado de trabalho mais fraco do que se esperava” pela economia “mais fraca”.

INVESTIDOR NÃO VEM

Reuters entrevistou em Londres o economista-chefe do Institute of International Finance, a associação global dos bancos, sobre o fluxo de investimentos aos emergentes. Ele cita China, Indonésia e México como “destinos mais populares” e:

“Talvez a maior surpresa para mim seja que os fluxos para o Brasil continuem bastante fracos, mesmo após anos difíceis e com uma agenda interessante de reformas.”

RECEITA RUIM

A nova Economist publica o editorial “Receita ruim”, tendo como segundo enunciado “3G Capital descobre os limites do corte de custos”.

Escreve que “o que aparentava ser uma estratégia bem-sucedida de repente parece ser um fiasco”. E que, “com suas raízes no Brasil, a 3G trouxe torções próprias ao barbarismo” das últimas décadas. “Funcionou por algum tempo”, avalia, mas agora “é preciso encontrar o mix certo entre cortar despesas e investir por crescimento”.

#EUANOBRASIL

Como tuíta há dias com a hashtag acima, Kimberly Breier, secretária-assistente de Estado dos EUA, fez reuniões de trabalho com o chanceler Ernesto Araújo, com o ministro Sergio Moro, com quem tratou de "ameaças à segurança regional", e com o autoproclamado presidente da Venezuela, Juan Guaidó (acima).

Também com Fiesp e Escola Superior de Guerra.

*Nelson de Sá é jornalista, foi editor da Ilustrada.

Vinicius Torres Freire: Brasil, líder mundial em recessão

Crise sem fim coloca o país no topo do ranking dos que mais empobreceram desde 2013

O Brasil se tornou um país de ponta em termos de recessão. A economia brasileira foi uma das que mais andaram para trás nesta década. De certo modo, foi a que mais regrediu no mundo inteiro.

Entre 2013 e 2017, em apenas 18 países o PIB per capita regrediu mais do que no Brasil. PIB per capita: o tamanho da economia (da produção ou da renda nacionais) dividido pela população. É uma medida relativa de pobreza/riqueza (de nível de renda, na verdade).

Por que não incluir o ano de 2018? Porque ainda não há dados disponíveis para a maioria dos países.

Por que medir a crise em cinco anos? É um tempo comprido o suficiente para atenuarmos os efeitos de acidentes de percurso, um ou outro ano de recessão excepcional. Por falar nisso, o crescimento brasileiro no quinquênio 2014-2018 apenas não foi pior do que naquele encerrado em 1992, desde que se tem notícia (desde 1901). O PIB per capita de 2018 ainda era 8,1% menor que o de 2013.

Como se dizia, entre 193 países, apenas 18 regrediram mais que o Brasil em termos de PIB per capita.

Oito deles têm economias muito dependentes dos preços do petróleo, que afundaram a partir de 2014 (Guiné Equatorial, Timor Leste, Kuait, Brunei, Omã, Angola, Suriname e Trinidad e Tobago).

Três países do grupo hiper-recessivo estavam ou estão em guerra civil (Iêmen, República Centro-Africana e Líbia, que também apanhou com o petróleo).

Outros três padecem de conflitos crônicos, como Burundi, Palestina (Cisjordânia e Faixa de Gaza) e Chade.

Líbano e Jordânia sofrem os efeitos de vasto tumulto regional: guerra na Síria, crise em parceiros comerciais etc. (além de zorra macroeconômica, no caso jordaniano).

Os demais são Samoa Americana e Dominica, dois países-ilha que, juntos, têm uma população de umas 130 mil pessoas e cabem em metade da cidade de São Paulo.

Essas comparações são ridículas? É verdade. Não tem muito cabimento comparar o Brasil com esses países. O Brasil tem muito mais tamanho, recursos materiais, naturais e humanos.

O Brasil é, pois, uma aberração nesse grupo de países de crises aberrantes. Chegamos ao topo do ranking mundial de regressão econômica sem precisarmos passar por colapso estatal, guerra ou ruína de preços de exportação.

Sim, a economia sofreu um pouco com a perda do valor de exportações (piora nos termos de troca, para ser mais preciso). Mas o Brasil regrediu muito mais do que países comparáveis e com problema de magnitude similar. Basta analisar a vizinhança, com exceção da demencial Venezuela. Por falar nisso, Síria e Venezuela não estão nesse ranking porque não apresentaram estatísticas razoáveis, se alguma.

É bom ressaltar que se trata aqui de crescimento econômico, não de nível de vida. Obviamente, mesmo viver no Brasil desta crise excepcional é desgracinha mínima perto daquela que as pessoas enfrentam na miséria de Burundi ou da República Centro-Africana, por exemplo.

Do mesmo modo, as depressões de 1988-92 e 2014-18 têm dimensões similares no que diz respeito ao retrocesso do PIB per capita, mas efeitos sociais diferentes. Na desgraça do quinquênio encerrado em 1992, o país era mais pobre, havia hiperinflação e muito menos serviços e assistência sociais.

Resumo desta opereta: ainda assim, vivemos crise excepcional, raríssima na nossa história e na comparação com o restante do mundo. O acúmulo das nossas perversões explodiu nesta década de modo especialmente sinistro.


Vinicius Torres Freire: Economia começa mal o ano

Emprego, confiança de empresas e receita do governo têm sintomas de resfriado

Mais um ano se passou e o desemprego continua na mesma. A taxa de desemprego é praticamente igual à do início de 2018, quando também o ritmo de criação de empregos passou a cair.

A confiança das empresas de comércio e serviços baixou em fevereiro. Na indústria, cresceu, mas ainda está abaixo do que se via antes do caminhonaço de meados do ano passado. Não há dados mais precisos ou gerais de produção e vendas neste começo de 2019, mas os indicadores indiretos são fracos.

A discreta melhora no crédito bancário deu um tempo e repousou na discrição. A receita de impostos do governo federal também desacelera desde setembro. A receita total também, prejudicada pela baixa na arrecadação dos recursos obtidos com concessões.

Há sinais de resfriado na atividade econômica, como se observa nestas colunas desde o início de janeiro. As estimativas de crescimento para 2019 vêm sendo reduzidas por economistas de grandes bancos e consultorias. A gente ouve cada vez mais conversas sobre a necessidade de cortar a taxa básica de juros, o que era assunto de uma minoria até a virada do ano.

O ritmo cadente de criação de empregos é bem preocupante. Em janeiro do ano passado, o número de pessoas empregadas crescia ao ritmo anual de 2,1%. Cai desde então. Agora, a população ocupada aumenta a 0,9% ao ano, como se soube nesta quarta-feira pela pesquisa do IBGE, a Pnad Contínua.

Note-se de passagem que há uma discrepância entre os indicadores de emprego formal do Ministério da Economia (Caged, algo melhores) e os do IBGE. São dados de natureza totalmente diferente: o Caged é um registro administrativo de criação de empregos formais; a Pnad é uma pesquisa por amostragem.

Discrepâncias são normais e as taxas de crescimento acabam se aproximando, mesmo com alguma defasagem. A defasagem de agora está difícil de entender.

Isto posto, é mesmo de fraca a ruim a situação do mercado de trabalho. Um indicador indireto das precariedades, empregos ainda escassos e ruins, é a arrecadação da Previdência. Depois de baixar de modo pavoroso entre julho de 2015 e outubro de 2017, a receita previdenciária voltou a crescer até de modo razoável no início de 2018 (perto de 3% ao ano). A arrecadação ficou desde então engasgada. Agora aumenta ao passo de apenas 0,9% ao ano, segundo dados do Tesouro Nacional divulgados nesta quarta-feira.

A subutilização da força de trabalho aumentou um tico em relação a 2018. O crescimento do salário médio perdeu impulso em relação aos progressos de 2017 (avança a 0,8% ao ano). Assim, o ritmo de crescimento da soma dos rendimentos do trabalho ("massa de rendimentos") embicou para baixo, crescendo em torno de apenas 1,8% ao ano, em média, desde setembro do ano passado.

Como a recuperação econômica por ora depende quase exclusivamente de rendimentos do trabalho e confiança para consumir, estamos com um problema sério.

Nestes tempos de maluquices e ignorâncias ainda mais extremadas é bom deixar claro que o governo de Jair Bolsonaro nada tem a ver com esses resultados ruins. No entanto, o tempo passa, é ainda mais escasso nesta crise secular e tem sido desperdiçado com irrelevâncias, atitudes disparatadas e promoção de conflitos tolos, odientos e divisivos.

Degradar o ambiente social e político vai prejudicar ainda mais as expectativas de que se possa chegar a um acordo para que se possa reformar este país arruinado.


Bruno Boghossian: Bolsonaro faz mutirão de cargos, mas centrão ameaça emparedar governo

Partidos querem criar dificuldades no Congresso para aumentar preço de apoio ao Planalto

Sob pressão de parlamentares, o Planalto topou abrir um mutirão do emprego. O governo suavizou o discurso de campanha e preparou uma lista de cargos que serão abertos para indicações políticas em troca de apoio no Congresso. As vagas só serão negociadas depois do Carnaval, mas deputados e senadores já ameaçam aumentar a fatura.

Jair Bolsonaro se enrolou na própria retórica. Durante a eleição, o presidente demonizou os partidos e a distribuição de espaços na máquina pública. Ele só percebeu que precisaria desse artifício ao subir a rampa do palácio. Agora, potenciais aliados encaram o governo com desconfiança e querem cobrar mais caro para aprovar seus projetos.

Líderes partidários que estiveram com Bolsonaro na terça-feira (26) se dividiram. Alguns se contentaram com os sinais de que o presidente aceitou participar do jogo da política tradicional, mas outros deixaram o encontro dispostos a criar dificuldades e constrangimentos para o Planalto nas próximas semanas.

Parte das siglas do centrão planeja emparedar o governo. A ideia é convocar ministros e presidentes de bancos públicos para explicar nomeações e medidas tomadas nos primeiros meses de mandato. Os parlamentares consideram que a retórica antipolítica de Bolsonaro os colocou sob suspeição e querem devolver na mesma moeda.

A hesitação do Planalto diante das engrenagens da política desgastou o novo governo, abrindo caminho para aproveitadores e chantagistas.

A rigor, é normal que siglas com assento no Congresso participem do governo, já que representam uma parte da população. Não é normal que políticos aproveitem essa lógica para assaltar o Estado. Bolsonaro reagiu com fúria ao segundo grupo, mas pode ter ficado de mãos atadas.

Sem saída, o presidente fará uma concessão aos partidos e entregará os cargos, ainda que a contradição com sua plataforma de campanha consuma parte de seu capital político. Mais do que nunca, ele precisará dos partidos para governar.


Clóvis Rossi: Vietnã ganhou a guerra e a paz

Após derrotarem os EUA, comunistas criaram ditadura capitalista

Quem ganha com os encontros de Donald Trump com o ditador norte-coreano Kim Jong-un? Ganha o Vietnã, o palco das reuniões.

Fácil de explicar: por mais cor de rosa que venham a ser os anúncios oficiais sobre a cúpula dos dois mandatários, é altamente improvável que haja algo realmente decisivo quando as duas mais altas autoridades de um dos lados não se entendem sobre o estado do programa nuclear norte-coreano —que é, afinal, o tema do encontro.

​Trump anunciou em seu meio de comunicação favorito, o Twitter, que a Coreia do Norte “não é mais uma
ameaça nuclear”.

Aí, seu secretário de Estado, Mike Pompeo, vai à CNN e contradiz o chefe, ao afirmar que a Coreia do Norte é, sim, uma ameaça nuclear.

Como os dois são os interlocutores de Kim em Hanói, como acreditar no que qualquer um deles diga?

Já sobre o Vietnã, não cabem dúvidas: esse remoto país do Sudeste Asiático ascendeu ao foco da mídia ao agasalhar os dois ex-inimigos, hoje apaixonados um pelo outro, pelo menos da boca para fora.

Ascendeu por um motivo nada trivial: foi o único país a ganhar uma guerra contra os Estados Unidos e, em seguida, ganhar também a paz, o que não é nada fácil.

Por isso mesmo, Huong Le Thu, analista-sênior do Instituto Australiano de Política Estratégica, escreve para a Nikkei Asian Review: “Há sinais de uma emergente estratégia americana de encorajar a Coreia do Norte a embarcar em reformas políticas e econômicas como aquelas abraçadas por Hanói nas últimas três décadas.

O programa de reformas —batizado em vietnamita de “Doi Moi” (renovação)— foi lançado em 1986 e transformou o país em atraente destino para investimentos externos, ao mesmo tempo em que manteve o absoluto controle do Partido Comunista sobre as instituições.

Se se quiser simplificar as coisas, dá para dizer que o Vietnã comunista, que derrotou os EUA capitalistas, transformou-se de uma ditadura comunista em uma ditadura capitalista.

A comparação com a Coreia do Norte, que continua comunista institucional e economicamente, é devastadora para Kim Jong-un: em 1988, pouco depois de lançado o “Doi Moi”, a renda per capita vietnamita era de cerca de US$ 1.500 (R$ 5.600) em paridade do poder de compra (a medida que leva em conta os preços em cada país). Era a metade do nível norte-coreano.

Dez anos depois, a renda norte-coreana, pelo mesmo critério, caiu pela metade, enquanto a do Vietnã quadruplicou e bateu, portanto, em US$ 6 mil (cerca de R$ 22,4 mil).

O crescimento do Vietnã nas duas décadas mais recentes foi, na média, de 6,3%, o que o transformou em uma das economias asiáticas de expansão mais rápida, relata a analista Le Thu.

“Espera-se que Mr. Kim olhe e aprenda”, torce a revista The Economist, ao tratar do encontro em Hanói.

A publicação, porta-voz do liberalismo, festeja que o Partido Comunista do Vietnã tenha se transformado de inimigo da América em “buddy”, termo informal que significa mais que amigo, um cupincha.

Mas, cuidado, esse modelo é tóxico para a liberdade de imprensa —componente essencial da democracia: Repórteres Sem Fronteiras coloca o Vietnã em 175º lugar entre 180 países em matéria de liberdade para a mídia. Ainda assim, é melhor que a Coreia do Norte, a 180ª.

*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.


Matias Spektor: Crise do chavismo afeta trajetória da criminalidade no Brasil

Desdobramentos na Venezuela não se esgotam na questão da democracia

A conversa pública está focada num aspecto específico do dilema que o Brasil enfrenta na Venezuela: até que ponto é justo e legítimo pressionar por uma mudança de regime em Caracas?

A pergunta divide governo e sociedade e, por isso, domina o debate. Acontece que esse modo de enxergar o problema é excessivamente limitado e coloca o foco no lugar errado.

Para o Brasil, o que está em jogo vai muito além da estabilidade democrática. Antes, nosso problema é mais grave: a decadência institucional venezuelana afeta a qualidade das instituições brasileiras.

Como assim?

Na Venezuela, a ditadura chavista é apenas um dos atores com peso geopolítico próprio. Coexistem com ela numerosas milícias e grupos paramilitares que não respondem ao comando de Caracas nem fazem parte da estrutura formal do Estado. Tais grupos podem até obter a anuência do governo, mas não se confundem com ele.

Existem na Venezuela estruturas político-militares paralelas às forças oficiais com capacidade de geração de riqueza e de captura do Estado. A batalha desses grupos é pela colonização da vida pública do país e pela sua transformação em narco-estado.

É esse o maior problema estratégico do Brasil.

A gente já tem experiência. Há três décadas, aconteceu algo parecido na região de fronteira com Bolívia e Paraguai. Redes transnacionais de autoridade paraestatal e de economia ilegal obtiveram recursos para espalhar insegurança por milhares de quilômetros entre a fronteira e o oceano Atlântico. Essas organizações mafiosas capturaram agentes públicos em cidades brasileiras, paraguaias e bolivianas, originando uma máfia transnacional difícil erradicar.

Agora, o grande risco é uma repetição dessa dinâmica com a Venezuela. Por isso, ao calcular quais passos tomar diante da crise do chavismo, a prioridade deveria ser a de impedir a consolidação de um drama similar na fronteira Norte.

Ou seja, o interesse brasileiro pelos desdobramentos na Venezuela não se esgota na questão da democracia. E é crucial entender que a eventual restauração das garantias democráticas não levará, necessariamente, a uma reversão do problema. Bolívia e Paraguai são democracias.

Essa mudança de perspectiva demanda reconhecer que a crise política venezuelana transborda não apenas sobre a Colômbia, mas também sobre o Brasil. O futuro da criminalidade brasileira tem conexão estrutural com a evolução da criminalidade no Caribe.

Ao conceber instrumentos de política externa para lidar com o vizinho, a prioridade brasileira deveria ser a de ajustar o foco, dando centralidade aos impactos internos da instabilidade em nosso entorno geopolítico.

*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


Bruno Boghossian: Brincadeira ideológica atrapalha a cautela dos militares com a Venezuela

Generais delimitam envolvimento brasileiro, mas chanceler faz jogo político perigoso

Quando a crise na Venezuela começava a transbordar, o general Hamilton Mourão se apressou para empurrar as inquietações para outras fronteiras. “Do lado mais complicado, que é o lado colombiano, acho que vai ficar nessa situação de impasse”, afirmou o vice à BBC.

Enquanto isso, do lado mais complicado, o chanceler Ernesto Araújo resolveu posar sorridente com o autoproclamado presidente interino, Juan Guaidó. O ministro decidiu confraternizar com o opositor de Nicolás Maduro justamente na hora em que os venezuelanos chegavam a uma encruzilhada.

O núcleo militar do governo tem reagido com cautela à escalada de tensões na região, mas a ala ideológica do bolsonarismo insiste numjogo político perigoso.

Generais do Planalto trabalharam nos últimos dias para delimitar claramente o envolvimento brasileiro na crise venezuelana. Embora não tenha se recusado a enviar ajuda humanitária ao país, o grupo conseguiu reduzir a marcha dessa ação.

Além de circunscrever a participação de tropas brasileiras, os militares também barraram a presença de soldados americanos em território nacional —ideia que havia sido alimentada pelo Itamaraty em conversas com autoridades dos EUA.

Araújo mergulhou numa guerra de provocações que, agora, interessa somente a Maduro, aos colombianos e a Donald Trump. Enquanto os militares tentavam baixar a temperatura para evitar uma matança, o chanceler brincava de fazer diplomacia.

*
Um assessor de Flávio Bolsonaro contou que repassava dois terços de seu salário a Fabrício Queiroz. Ele transferia R$ 4.000 ao ex-motorista do senador e recebia de volta R$ 4.700. O rendimento de 17,5% causaria inveja no mercado financeiro.

Flávio deveria incluir o nome de Queiroz no banco de talentos criado pelo governo para disfarçar nomeações políticas. Com essa habilidade para fazer dinheiro, ele seria contratado na hora por Paulo Guedes.