Folha de S. Paulo
Hélio Schwartsman: O capitão e o general
Vice, general Hamilton Mourão se tornou a voz da racionalidade na nova gestão
“Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca na caveira pra ser vice. Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment.” Essas foram as palavras que Eduardo Bolsonaro, o filho trinigênito, usou em agosto para comentar a escolha do general Hamilton Mourão para compor a chapa presidencial com Jair Bolsonaro.
À época, o raciocínio fazia sentido. Mourão, afinal, poucos meses antes, fora exonerado do cargo que ocupava no Exército após dar declarações que soaram golpistas e não conseguia controlar a própria língua, envolvendo-se em sucessivas controvérsias. Desde que o governo teve início, porém, o quadro mudou.
Enquanto o general fez as pazes com seu superego e tornou-se a voz da racionalidade na nova gestão, o capitão parece ter perdido qualquer elo que já tenha tido com o bom senso e cria para si mesmo encrencas gratuitas dia sim, dia não.
Para ficarmos na Quaresma, depois do caso do “golden shower”, que ocorreu há apenas seis dias, Bolsonaro já disse que devemos ademocracia à boa-vontade dos militares e reproduziu uma mentira em suas redes sociais para atacar covardemente mais uma jornalista, desta vez Constança Rezende, do Estadão. Põe-se agora a arbitrar o conflito entre as alas olavista e militar no MEC. Duvido que termine bem.
Se Mourão foi escolhido para servir como seguro contra um impeachment, o general hoje parece mais um atrativo do que um espantalho. É cedo, porém, para considerar um afastamento. O destino do governo Bolsonaro está atrelado à economia e ele sabe disso.
Um sinal animador é que, embora o presidente continue fantasiando com a tal da nova política, surgem sinais de que o governo já entabulou negociações com parlamentares para a reforma da Previdência. Não é que ela cure tudo, mas, sem essas mudanças, haveria uma deterioração tão forte da economia que o cenário Mourão se tornaria verossímil.
Leandro Colon: Não há mais tempo para erros no governo Bolsonaro
Planalto jogou cinco semanas no lixo e precisa colocar bola no chão para reforma
Com a posse do novo Congresso, em 1º de fevereiro, criou-se a expectativa de que o jogo para o governo de Jair Bolsonaro começaria para valer depois de um janeiro bem morno, de escassas medidas.
Fevereiro deveria ter sido o mês para o Planalto estabilizar uma base parlamentar aliada decente, ajustar os pontos frágeis de sua articulação política, após a entrega da reforma da Previdência, e entrar em março tinindo para o que der e vier.
Não foi o que vimos. O governo meteu os pés pelas mãos e jogou cinco semanas no lixo. Encalacrou-se na crise dos laranjas do PSL, que levou à queda de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência e transformou o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, em um morto-vivo na Esplanada, apenas à espera de uma demissão inevitável.
No Congresso, sobraram críticas à capenga articulação política governista, visivelmente confusa e sem uma estratégia desenhada para garantir um apoio mínimo para o pontapé da reforma previdenciária.
Bolsonaro botou gasolina no fogaréu das redes sociais ao compartilhar em sua conta pessoal um vídeo obsceno no último dia de carnaval.
Ao demitir da direção de um instituto importante um diplomata experiente e respeitado pelos colegas, o Itamaraty expôs mais uma vez os traços de autoritarismo e perseguição ideológica que parecem dominar a gestão do ministro Ernesto Araújo.
A barafunda no Ministério da Educação é assustadora. Depois do constrangedor episódio da carta sobre a filmagem dos alunos cantando o hino nacional nas escolas, os pupilos do guru bolsonarista Olavo de Carvalho foram alijados pelo ministro Ricardo Vélez Rodríguez na sexta (8).
Basta vontade para o governo consertar logo os estragos das últimas semanas —alguns decorrentes de falhas evitáveis—, colocar a bola no chão e tentar controlar o jogo político. A partir de agora, o Congresso assume de vez o protagonismo da reforma da Previdência, crucial para o sucesso de Bolsonaro. Não há mais tempo para erros primários.
Gaudêncio Torquato: A liturgia no brejo
Um presidente deve separar o público do privado
Tem motivos o presidente da República para se indignar com uma cena escatológica, dessas que assustam o interlocutor que a ela teve acesso? Sim, a indignação é uma reação natural a quaisquer atitudes ou cenas que fogem ao senso comum e que, pelo inusitado dos fatos nelas descritos, entram no dicionário das aberrações. Tem motivos o mandatário número um do país para passar adiante a cena que tanto o indignou, massificando a imagem junto a mais de 3,4 milhões de seus seguidores em uma rede social? Não.
Jair Bolsonaro espalhou junto ao contingente que o segue em uma das redes sociais o vídeo em que um homem dança sobre um ponto de ônibus após introduzir um dedo no próprio ânus, seguido de outra cena em que um deles abre a calça e urina na cabeça do outro. Sob o argumento de “expor a verdade” à população, acentua: “É isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro”.
A atitude do capitão reformado gera inconvenientes. Permite a milhares de seguidores, entre os quais jovens, acesso a um vídeo que não teria sido visto por eles. Que impacto a imagem causaria a esse público?
Usar o Twitter como meio oficial de transmissão de informações, diretrizes e interpretação pessoal sobre o cotidiano constitui uma decisão incompatível com a posição de um dirigente de nação.
O poder, como se sabe, é exercido por um conjunto apreciável de mandatários e participantes das estruturas do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Todos integram a esfera governativa, mas o comandante do Poder Executivo é quem detém o cargo de maior proeminência. Guia-se por um liturgia, um exercício que o obriga a cumprir ritos, cerimônias e atos variados, não podendo a eles escapar sob pena de gerar desvios na rota que lhe é imposta.
O presidente da República tem que obedecer a essa liturgia, evitando comportamentos comuns dos cidadãos. Mesmo situações identificadas com o caráter do mandatário —por exemplo, sair às ruas, fazer feira, ir a jogos de futebol —hão de ser intensamente controladas para evitar transtornos que possam desfigurar a liturgia do poder.
A ele impõe-se separar a seara privada do território público. Não pode fazer com que sua visão peculiar do cotidiano seja transformada em política pública. Esse é o entrelaçamento que o presidente Jair não tem sabido distinguir. Se queria fazer uma denúncia, ao veicular o vídeo da “golden shower”, poderia ter pedido providências aos órgãos de policiamento, inclusive com a identificação dos autores da “façanha”.
Ao não traçar uma fronteira entre os campos público e privado, o presidente ingressa num cipoal de críticas. Tomar a parte pelo todo dribla a análise. Pois o Carnaval deste ano foi o mais cheio de gente nas ruas dos últimos tempos, a par de resultados que se mostram: 20 milhões de empregos temporários e R$ 7 bilhões nas contas do comércio e dos serviços.
Com seu gesto Bolsonaro acirra ânimos ainda nervosos do pleito passado, contribuindo para o tiroteio entre exércitos favoráveis e contrários. O Brasil pós-Carnaval, é pena, sobe ao palanque.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Bruno Boghossian: O pastelão da oposição
Participação de políticos em piada de ator global revela oposição ingênua e sem rumo
Como se não bastasse um governo alucinado, a oposição também migrou para o mundo do delírio. Ex-presidentes, líderes parlamentares e dirigentes de partidos de esquerda tentaram fazer uma brincadeira e declararam apoio ao ator José de Abreu como presidente autoproclamado do Brasil.
A piada começou como uma crítica ao venezuelano Juan Guaidó, que fez o mesmo em seu país para tentar derrubar Nicolás Maduro. O ator global gostou do personagem e transformou a esquete em um palanque contra Jair Bolsonaro. Os políticos que entraram na onda talvez não tenham percebido, mas são estrelas de uma comédia pastelão barata.
Abreu começou a convocar figuras da esquerda nas redes sociais para seu governo fictício —e elas responderam. Chamada para o Ministério de Energia Convencional e Alternativa, Dilma Rousseff pediu que ele conduzisse o Brasil “com perseverança e olhando para nossa gente”.
Na partilha de cargos, Lula recebeu o Ministério dos Justos. Da prisão, mandou um bilhete ao ator declarando ser seu cabo eleitoral.
Além dos petistas, Jandira Feghali (PC do B) chegou a publicar uma foto de um evento convocado por Abreu em seu desembarque no aeroporto do Rio, na sexta (8). “O presidente chegou!”, exclamou.
O que deveria ser um protesto bem-humorado revelou uma oposição ingênua e sem rumo.
Convidado pelo global para ser o ministro fictício das Relações Institucionais, o deputado Marcelo Freixo (PSOL) respondeu:
“Kkkkkk”. Criticado por um seguidor, argumentou que o humor “também desestabiliza a tirania”. E completou: “A ação da esquerda no Congresso não tem sido pequena, seja justo”.
Até agora, quem mais incomodou o governo na Câmara e no Senado foi o centrão, que conseguiu emparedar Bolsonaro.
Enquanto isso, a oposição parece não ter ideia de como fazer oposição. Rachada entre siglas que disputam protagonismo, a esquerda mostrou que só consegue se unir no campo da ficção.
Elio Gaspari: A turma da Lava Jato criou uma fundação
Os doutores da força-tarefa superestimaram sua força e extrapolaram suas tarefas
Em setembro passado, a Petrobras e o governo americano assinaram um acordo pelo qual a empresa encerrou seus litígios com os órgãos reguladores daquele país. Era um espeto de US$ 2,95 bilhões. Nessa negociação acertou-se que o equivalente a R$ 2,5 bilhões seriam pagos às “autoridades brasileiras”.
Em dois momentos o acordo se refere às “Brazilian authorities” como destinatárias do dinheiro.
Em janeiro deste ano, o doutor Deltan Dallagnol e outros 11 procuradores da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba assinaram um acordo com a Petrobras pelo qual o dinheiro que deveria ir para as “autoridades brasileiras” foi para uma conta aberta numa agência da Caixa Econômica de Curitiba em nome do Ministério Público Federal.
Seria razoável supor que os R$ 2,5 bilhões fossem para a conta do Tesouro Nacional, nome de fantasia da Bolsa da Viúva, mas, afinal de contas, eles, como os diretores de hospitais, também são autoridades.
Os doutores da força-tarefa superestimaram sua força e extrapolaram suas tarefas. Superestimaram seus poderes colocando sob sua jurisdição um dinheiro que deveria ir para o Tesouro. Exorbitaram suas tarefas quando estabeleceram que metade dos R$ 2,5 bilhões seja transformado num fundo para financiar uma fundação de direito privado.
Ela ainda não existe, mas, segundo os procuradores, seus recursos “serão destinados ao investimento social em projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades idôneas que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção, inclusive para a proteção e promoção de direitos fundamentais afetados pela corrupção, como os direitos à saúde, à educação e ao meio ambiente, dentre outros”. Tudo, enfim.
O ervanário, correspondente ao orçamento da Universidade de Campinas, foi burocraticamente apropriado para sustentar uma fundação de natureza privada. Se essa tivesse sido a combinação da Petrobras com o governo americano, seria o jogo jogado. Em nenhum momento os procuradores de Curitiba ou mesmo a Procuradoria-Geral da República são mencionados no acordo americano.
No item 7 do acordo firmado pelo Ministério Público com a Petrobras, os doutores dizem que “as autoridades norte-americanas consentiram” em que os recursos “sejam satisfeitos com base no que for pago (...) conforme acordado com o Ministério Público Federal”.
Seja qual for o significado desse “satisfeitos”, esse consentimento não consta do acordo. Vá lá que tenham combinado noutra sala. Pode sobrar para o lado americano da combinação.
No item seguinte está escrito que “conforme previsto no acordo com a Security Exchange Commission (a CVM americana) e o Departamento de Justiça, na ausência de acordo com o Ministério Público Federal, 100% do valor acordado com as autoridades americanas será revertido integralmente para o Tesouro norte-americano”.
Isso não consta do texto mencionado. Lá está escrito que o dinheiro voltará para o Tesouro americano se a Petrobras não o entregar às autoridades brasileiras. Nada a ver com “acordo com o Ministério Público Federal”.
A turma da Lava Jato acha que pode tudo. Pode até nomear um procurador aposentado para presidir essa fundação milionária. Talvez possa, mas fica feio.
Serviço: Todos os documentos mencionados neste texto podem ser consultados no site Migalhas.
FACHIN TRAVOU A FESTA
Talvez a turma da Lava Jato possa tudo, mas num caso semelhante ao da apropriação burocrática dos R$ 2,5 bilhões do acordo da Petrobras, o ministro Edson Fachin travou a festa.
O Ministério Público Federal queria destinar o butim amealhado pelo casal de marqueteiros João Santana e Mônica Moura ao Fundo Penitenciário Nacional. Eles deviam R$ 6 milhões em multas e repatriaram US$ 21,8 milhões de contas que mantinham no exterior, alimentadas por empreiteiras.
FACHIN FOI CLARO
“O valor deve ser destinado ao ente público lesado, ou seja, a vítima, aqui compreendida não necessariamente como aquela que sofreu diretamente o dano patrimonial, mas aquela cujo bem jurídico tutelado foi lesado. No caso, a Administração Pública.”
Fachin mandou que o dinheiro da multa também fosse para a Viúva, “cabendo a ela e não ao Poder Judiciário, inclusive por regras rigorosas de classificação orçamentária, definir, no âmbito de sua competência, como utilizará essa receita”.
HARDT NÃO LEU
A defesa de Lula está sendo boazinha com a juíza Gabriela Hardt, que o condenou a 12 anos no processo do sítio de Atibaia. Reclamam porque ela copiou e colou trechos de outra sentença de Sergio Moro.
É pior. A doutora simplesmente não leu o que assinou. Se tivesse lido, não diria que Léo Pinheiro e José Aldemário Pinheiro são duas pessoas diferentes. Léo é o apelido de Aldemário. Esse seria o erro menor.
Na última página de sua sentença, quando colou o trecho da sentença de Moro, ela menciona um “apartamento” quando julgava o caso de um sítio. “Apartamento” era o tríplex do Guarujá.
A juíza não leu o que colou.
VIVANDEIRAS
Seja qual for a leitura que se faça da frase de Bolsonaro —“democracia e liberdade só existem quando a sua respectiva Força Armada assim o quer”—, fica uma pergunta: e quando elas não a querem, o que entra no lugar?
A resposta simples é que se vai para uma ditadura, mas isso não é tudo. Vai-se também para um período de anarquia militar.
Na ditadura das louvações de Bolsonaro, a anarquia instalou-se na madrugada de 2 de abril, quando o general Costa e Silva nomeou-se ministro da Guerra. Sucederam-se sedições. Em 1965, o marechal Castello Branco foi obrigado a editar o Ato Institucional nº 2, que acabou com a eleição para presidente e governadores. Em 1968, Costa e Silva foi (com gosto) levado a baixar o AI-5. Em 1969, impedindo a posse do vice-presidente Pedro Aleixo para instalar a Junta Militar dos “Três Patetas”.
Em outubro de 1977, no último suspiro da anarquia, o ministro Sylvio Frota achou que emparedaria o presidente Ernesto Geisel. Foi demitido.
O então capitão Augusto Heleno, atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, deve se lembrar desses dias, pois era um jovem ajudante de ordens de Frota.
O capitão Bolsonaro deixou o Exército em 1988, com a carreira comprometida por atos de indisciplina. Como paisano, deve evitar uma carapuça lançada em 1964 pelo marechal Castello Branco quando apontou para as “vivandeiras alvoroçadas, (que) vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar”.
PAULO FALARÁ?
A banda chique do PSDB paulista está conformada e acha que em breve seu operador Paulo Vieira de Souza começará a colaborar com a Viúva.
Paulo Preto está na cadeia e já foi condenado a penas que somam mais de um século.
*Elio Gaspari, Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Paula Cesarino Costa: 'A Folha precisa continuar inquieta', diz diretora de Redação do jornal
Maria Cristina Frias defende jornalismo crítico e tem como meta maior igualdade de gênero e diversificação de conteúdo
Há seis meses na Direção de Redação da Folha, a jornalista Maria Cristina Frias defende que o jornal continue inquieto e em renovação constante, mas sem abrir mão dos valores que o consagraram: jornalismo crítico a todos os poderes instituídos, independente, plural e apartidário.
Mostrou-se serena diante das turbulências políticas atuais. Disse que, em época de polarização, é tentador para alguns tomar partido, mas vê como seu papel a busca do equilíbrio jornalístico.
Após anos de experiência na TV, passou a trabalhar exclusivamente na Folha há cerca de 20 anos.
Assumiu a direção do jornal em momento doloroso, sucedendo o irmão Otavio Frias Filho, morto em 21 de agosto de 2018. Coube a ele próprio indicá-la para o cargo, com orientações específicas para os próximos anos, como ela conta nesta entrevista.
Maria Cristina Frias é a primeira mulher a assumir a Direção de Redação de um grande jornal do país e impôs-se como meta uma maior equidade entre homens e mulheres e uma diversificação dos profissionais e do conteúdo do jornal, com uma mudança de cultura em procedimentos, pautas e pessoas que são entrevistadas.
Define-se como uma leitora voraz, que tem “cabeça de repórter”. Desde que assumiu pedi uma entrevista, concedida agora, para que o leitor pudesse conhecer seus desafios e planos para a Folha.
A sra. assumiu o cargo de diretora de Redação faz seis meses. Já é possível fazer uma avaliação desse período?
Foi um período muito difícil e intenso. A presença e o talento de Otavio Frias Filho, um irmão maravilhoso e amigo, nos fazem muita falta. Ao jornal e a mim, que tive o privilégio de trabalhar ao lado dele diariamente. Foi do próprio Otavio a decisão de que eu assumisse o seu cargo, ratificada em assembleia dos sócios. Atencioso, ele me passou algumas orientações para os próximos anos.
Logo vieram os ataques do então candidato Jair Bolsonaro à imprensa, especialmente contra a Folha.
Publicamos, entre outras reportagens, um texto de Patrícia Campos Mello que revelou a compra ilegal que empresários estavam fazendo de disparos de WhatsApp contra o PT. Teve repercussão inclusive internacional.
Eleito, Bolsonaro disse que, “por si só, a Folha se acabou”. Vimos, então, surgir uma campanha espontânea por assinaturas da Folha, pela democracia, em defesa do jornal.
Não importam as turbulências, minha principal meta é manter o legado do Otavio e continuar a fazer o jornalismo que ele nos ensinou: crítico a todos os poderes instituídos, independente, plural e apartidário.
Em época de muita polarização, ânimos acirrados e de pouco apreço à democracia em parcela da população, é tentador para alguns tomar partido, mas é minha responsabilidade cuidar da observação desses princípios e do equilíbrio entre pontos de vista diferentes nas páginas do jornal.
Não somos um jornal de oposição, mas seremos críticos como fomos com todos os governos desde a redemocratização. A Folha continua a ser a Folha de sempre. E, para ser a Folha, ela precisa continuar inquieta e se renovando a todo momento. O jornal de amanhã precisa ser sempre melhor do que o de hoje.
A sra. é a primeira mulher a ocupar o posto máximo na Folha em 98 anos de existência do jornal. Qual a relevância do aspecto de gênero em sua ascensão?
Até quando ainda vamos valorizar ser a primeira mulher a fazer isso ou aquilo, me pergunto. Infelizmente, porém, há muitas posições às quais as mulheres ainda não ascenderam, como era o caso do cargo de direção de Redação na Folha —um jejum que o jornal quebrou, à frente de seus dois principais concorrentes.
Ser mulher ajuda nessa busca de equilíbrio de opiniões e fontes diversas nas nossas páginas, na elaboração de pautas que interessem a um público mais amplo. Assim como os principais jornais do mundo, a Folha se preocupa em entender como ampliar o leitorado feminino.
Quanto mais diversificada for a nossa Redação, quanto mais vasta for a gama de experiências do nosso reportariado, melhor será a nossa cobertura e maior o público que atingiremos. Nossa Redação tem cerca de 40% de mulheres, em linha com a presença feminina em jornais americanos e ingleses, mas queremos um equilíbrio maior, inclusive entre colunistas.
Fizemos na quinta-feira (7) uma reunião aberta na Redação para discutir o tema e iniciativas nesse sentido. Pretendo que esse fórum se torne periódico porque é desejável uma mudança de cultura em procedimentos, as pautas que destacamos, as pessoas que ouvimos e assim por diante.
O mesmo vale para a presença na Redação de negros, descendentes de asiáticos, pessoas que cursaram o ensino médio em escolas públicas… O nosso próximo programa de trainees, que teve 3.000 inscritos, vai oferecer bolsas com ajuda de custo.
O atual presidente da República e grande parte do seu entorno pessoal e político têm uma atitude hostil e por vezes virulenta contra a imprensa e, em especial, contra a Folha. Qual a influência dessas circunstâncias na prática do jornalismo da Folha?
De certa forma, todo governo é um pouco hostil à Folha pela atitude crítica e independente. Em diferentes graus, colocam-se na defensiva e, quando podem, usam o poder para atacar. Tivemos a invasão do jornal na gestão Collor, e creio que estejamos habituados a uma certa animosidade.
O governo Bolsonaro tem demonstrado uma especial dificuldade em entender o papel do jornal, que é o de iluminar os debates dos problemas coletivos, com informações bem apuradas e embasadas, monitorar o que fazem os políticos, além de se comprometer em defender a democracia e fatores que levem ao desenvolvimento do país.
Ao tratar a imprensa com menosprezo e agressividade, tenta minar esse esforço e estimula em seus seguidores o desrespeito e a violência contra jornalistas, o que é abominável e perigoso —além de inútil, porque continuaremos a fazer o nosso trabalho com perseverança e inquietude.
As Redações no mundo todo têm passado por processo contínuo de redução de pessoal e de corte de investimentos. Ao mesmo tempo, a competição acirrou-se com as novas mídias. Como analisa esse processo e quais os desafios que se impõem a médio e longo prazo?
Difícil pensar em prazos mais distantes para quem, como nós, tem um trabalho que se esgota a cada edição e a cada dia recomeça do zero.
Os tempos são duros, a economia não se recuperou, mas há exemplos bem-sucedidos. O peso das assinaturas no modelo de negócio é cada vez maior. E nós também nos valemos de novas mídias, oferecemos uma cobertura multimídia. Temos tido ótimo resultado em podcasts, por exemplo.
Do ponto de vista pessoal, como se define como leitora?
Sou uma leitora voraz de notícias. Adoro ler o impresso; quando viajo, sou uma compradora compulsiva de exemplares, e leio no celular e no site com a maior frequência possível ao longo do dia e à noite. E não é só por dever de ofício, é por prazer mesmo, apesar do aborrecimento com eventuais erros.
Tenho cabeça de repórter, vibro com nossos furos, admiro a concorrência quando faz as pautas que não nos ocorreram e penso no que podemos fazer melhor, uma lição do sr. Frias (Octavio Frias de Oliveira, fundador da Folha moderna), outra fonte de inspiração.
A sra. acumula a função de diretora com a de titular da coluna diária Mercado Aberto. Como se divide entre uma e outra?
Gosto muito de fazer a coluna, mas considerei a princípio que as duas tarefas seriam inconciliáveis. Com o tempo, além da reação positiva de colegas e fontes de que seria importante continuar a escrever, eu me senti estimulada a prosseguir.
Assim como diretores de hospitais que seguem na prática como médicos, percebi que a presença na Redação ajuda no trabalho da direção: é o que me permite manter o contato com os colegas, observar de perto suas necessidades, os fluxos, como as coisas estão funcionando, ou não, permanecer atualizada na prática do nosso ofício.
Acabei tendo de me dedicar bem menos à coluna nos meses iniciais no cargo de diretora, o que foi possível graças à equipe talentosa e dedicada de Mercado Aberto, mas vou equilibrar melhor os dois papéis.
*Paula Cesarino Costa é jornalista, foi secretária de Redação e diretora da Sucursal do Rio. É ombudsman da Folha desde abril de 2016.
Hélio Schwartsman: As voltas que o mundo dá
Com reforma sindical, Bolsonaro defende posição libertária, e CUT quer algum tipo de tutela estatal
Pareceu-me correta a medida provisória baixada pelo governo Bolsonaro que exige autorização expressa do trabalhador para que ele tenha descontada de seu contracheque a contribuição sindical ou negocial, como vem agora sendo chamada.
Tanto o espírito como a letra da lei da reforma trabalhista (lei nº 13.467/17) dão ao trabalhador a liberdade de decidir individualmente se vai ou não financiar o órgão de classe. Se sindicatos, com a conivência do viés conservador da Justiça, estavam encontrando meios de contornar esse princípio, é razoável que o legislador (MPs precisam ser referendadas pelo Congresso) tome medidas para restaurá-lo.
Isso dito, é importante lembrar que a reforma sindical, iniciada com a lei nº 13.467, ficou pela metade. Acabar com as contribuições compulsórias às entidades de classe foi um passo importante, mas é preciso avançar mais. O mais urgente é pôr um fim ao princípio da unicidade sindical.
Mais do que impedir a saudável competição entre entidades de classe para ver quem faz mais pelo trabalhador, a unicidade acaba favorecendo o surgimento de uma casta de dirigentes sindicais cujo principal objetivo é perpetuar-se em seus cargos. O resultado são sindicatos de fachada, que só sobreviviam por causa das contribuições obrigatórias.
O mundo não vive um bom momento para sindicatos, mas, se temos esperança de que eles voltem a desempenhar o papel de equilibrar um pouco mais o conflito distributivo entre capital e trabalho, é fundamental que haja plena liberdade de organização e filiação.
O engraçado aqui é ver a troca de posições. O corporativista autoritário Bolsonaro, com quem a estrutura sindical brasileira copiada da cartilha de Mussolini combina tão bem, defendendo a posição libertária, enquanto a CUT, depois de passar décadas advogando pela plena liberdade de associação, agora quer manter algum tipo de tutela estatal.
Julianna Sofia: O laranjal floresce
Por que Bolsonaro não defende o ministro do Turismo? Não o demite? Não classifica acusações de fake news?
Não há hoje na Esplanada dos Ministérios quem defenda a permanência do ministro Marcelo Álvaro Antônio (Turismo) no governo. Nem o próprio presidente Jair Bolsonaro se arrisca a escudar o subordinado e joga-o na arena com os leões. "Deixa as investigações continuarem", declarou nesta sexta (8).
Atitude timorata diante do viçoso laranjal que floresce dia após dia.
São pelo menos três as candidatas que denunciaram publicamente a existência de concorrências fajutas no PSL de Minas Gerais, sob domínio de Álvaro Antônio nas eleições do ano passado. Uma delas acusa diretamente o ministro. Outra relata que o esquema solicitou-lhe cheques em branco para a triangulação imprópria de recursos públicos.
Há ainda quatro inexpressivas e suspeitas peesselistas que postularam cargos eletivos no estado em 2018. Elas levaram R$ 279 mil em dinheiro do fundo eleitoral, obtiveram apenas 2.000 votos e parte da verba entrou no caixa de empresas de pessoas ligadas ao gabinete de Álvaro Antônio na Câmara.
A Polícia Federal abriu inquérito no final de fevereiro para investigar o laranjal, e o Ministério Público colhe documentos e depoimentos de várias pessoas —desconfia de caixa dois na campanha mineira.
Há duas semanas, o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) chegou a dizer que, se houvesse algo de responsabilidade direta do ministro, o presidente analisaria e tomaria uma decisão.
Assessores palacianos consideram insustentável a manutenção de Álvaro Antônio no posto e reprovam a insistência do mineiro em não largar o osso. "Não é imexível", afirmou reservadamente um deles à Folha.
Se não o é, por que o presidente não o afasta até a conclusão das investigações? Tampouco o protege? Por que o mandatário não recorreu à sua dileta estratégia de ataque à imprensa e classificou as acusações contra o ministro de fake news?
Como na modorra da demissão de Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral), Bolsonaro continua a comporta-se com inexplicável apatia.
Demétrio Magnoli: Um carnaval em Aalst
O levante contra o 'globalismo' reativa o paradigma antissemita
O grupo "não tinha intenções ofensivas", assegurou o prefeito de Aalst, Cristoph D'Haese, do partido nacionalista N-VA, que busca a independência da região belga de Flandres. "Carnaval é apenas um festival de caricaturas", disse um integrante do grupo. O carro alegórico que detonou a polêmica exibia bonecos representando judeus hassídicos, narizes aduncos, as mãos estendidas pedindo doações, um rato sobre suas malas de dinheiro. Num artigo para a The Atlantic, Eliot A. Cohen traçou paralelos com alegorias similares que apareceram no carnaval de Marburg (Alemanha), em 1936. Hitler não nos espreita na esquina, mas o antissemitismo retorna como discurso socialmente admitido.
De carro, menos de uma hora separa Aalst do Parlamento Europeu. A nova onda de aversão aos judeus faz seu caminho pelo Velho Mundo, escorrendo por veredas de direita e de esquerda. Os bonecos carnavalescos são sintoma do "espírito do tempo". Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán pinta o financista George Soros como o lendário "judeu sem pátria" que dirige um complô destinado a afogar a "Europa cristã" num mar de imigrantes muçulmanos. No Reino Unido, o líder trabalhista Jeremy Corbyn atribui um atentado jihadista no Egito à "mão de Israel", autorizando tacitamente os discursos antissemitas que engolfaram seu partido numa crise moral. Os foliões pertencem às elites políticas e seus gestos cumprem funções estratégicas.
O antissemitismo clássico deita raízes na direita, especificamente no catolicismo tradicional e no nacionalismo autoritário. Nos EUA, como no Brasil, a direita nacionalista represou seus impulsos antijudaicos para atender à base evangélica, que enxerga em Israel o sinal das profecias do Livro do Apocalipse. Na Europa, de modo geral, a gramática do discurso ultranacionalista substitui os judeus pelos muçulmanos no papel de quinta-coluna infiltrada nas sociedades nacionais. Aí, a islamofobia explícita funciona como veículo de um antissemitismo implícito. Mas o ovo está lá, como evidenciam Orbán e inúmeras correntes extremistas que adquirem crescente peso eleitoral.
"O antissemitismo é o socialismo dos idiotas", na frase corrente entre os social-democratas alemães no anoitecer do século 19. O alerta, porém, apagou-se no passado desde que o terceiro-mundismo contaminou o pensamento de esquerda. As eclosões antijudaicas na ala esquerdista do Partido Trabalhista britânico, assim como entre tantas correntes da esquerda latino-americana, cobrem-se com o conveniente disfarce do antissionismo. Mas, sob o manto da crítica legítima ao governo israelense, o novo "socialismo dos idiotas" traça paralelos repugnantes entre Israel e a Alemanha nazista para negar o direito à existência do Estado judeu.
O molde do antissemitismo moderno, fabricado pela polícia política russa, é uma célebre falsificação publicada em 1903: Os protocolos dos Sábios do Sião. Na história da conspiração judaica internacional, financistas, magnatas, jornalistas e comunistas judeus coordenam suas ações para controlar os bancos, a mídia e os governos, com o objetivo final de dominar o mundo. Magnatas e comunistas, ambos sem pátria, operando juntos, formam uma tecla quente para o nacionalismo de direita. Já a associação entre bancos, mídia e governo toca num nervo sensível da esquerda anti-imperialista. Numa ponta e na outra, o levante contra o "globalismo" reativa o paradigma antissemita que inspira a alegoria de Aalst.
O pátio de encontro antissemita da direita e da esquerda saltou da teoria à prática pelas mãos do movimento dos coletes amarelos. Na França, pela primeira vez, correntes extremistas antagônicas colaboram ativamente numa revolta contra o "sistema". O fruto da aliança são suásticas e frases de ódio aos judeus que emporcalham cemitérios e sinagogas. Cinzas na quarta-feira.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 07:50:00
Bruno Boghossian: Bolsonaro tocou a corneta
Presidente quis beber na fonte de poder dos militares, mas se afoga ao rebaixar democracia
Jair Bolsonaro enfileirou fuzileiros navais no centro do Rio, agradeceu a Deus por estar vivo e disse que assumiu a Presidência para cumprir uma missão. Apelou ao patriotismo e à ideologia conservadora, e terminou o discurso afirmando que “democracia e liberdade só existem quando as suas respectivas Forças Armadas assim o querem”.
O presidente quis beber na fonte de poder representada por seus laços com os militares, mas se afogou. A deferência exagerada aos homens de farda indicou uma submissão da democracia aos desejos da instituição.
Os generais do governo foram obrigados a sair a público para tentar amenizar o absurdo.
Bolsonaro tocou uma corneta para reorganizar sua tropa. O presidente fez um esforço para convencer as Forças Armadas de que —apesar dos tropeços políticos, laranjas e escatologias sem sentido— seus propósitos ainda são parecidos.
No evento desta quinta (7), Bolsonaro disse que a tal missão imposta a ele seria cumprida com aqueles que amam a pátria e respeitam a família, e alinhou os militares à tarefa.
A batalha de costumes contra a esquerda foi um fator de aglutinação entre Bolsonaro e as Forças Armadas em determinado momento da campanha eleitoral. Alguns generais que torciam o nariz para o então candidato enxergaram nele a única alternativa para derrotar o PT e defender valores conservadores.
As ressalvas em relação ao presidente ressurgem quando ele dá caneladas na política externa, demite um ministro a mando do filho e entra em polêmicas sobre golden shower. Ao rebaixar a democracia para elevar os militares, ele tenta recuperar apoio nos quartéis, mas a frase também não caiu bem por lá.
No início do governo, Bolsonaro fez um discurso exótico na posse do ministro da Defesa. O presidente disse ao então comandante do Exército que ele era “um dos responsáveis” por sua vitória eleitoral. “General Villas Bôas, o que já conversamos morrerá entre nós”, afirmou. Era difícil saber quem era o chefe de quem.
Hélio Schwartsman: A escatologia da moral
Várias zaragatas serviriam para basear o impeachment, mas, se entregar crescimento, Bolsonaro provavelmente concluirá o mandato
A cada dia que passa, Jair Bolsonaro vai mostrando mais despudoradamente que não foi forjado para o cargo. Ele não tem noção de institucionalidade, de prioridades e falta-lhe até a inteligência necessária para exercer a Presidência da República sem sobressaltos desnecessários. Parecem-me precipitados, porém, os apelos por seu impeachment.
Nas últimas duas semanas, Bolsonaro criou, “ex nihilo”, duas situações em que não tinha absolutamente nada a ganhar e muito a perder. Falo da ideia, lançada gratuitamente pelo próprio presidente, de reduzir de 62 anos para 60 a idade mínima das mulheres na reforma da Previdência e do episódio envolvendo o já mundialmente famoso vídeo escatológico.
Este último exemplo é particularmente interessante porque viola a própria lógica conservadora que Bolsonaro diz defender. Se a turma da moral e dos bons costumes crê que o fato de um sujeito urinar sobre o outro ameaça a família brasileira porque dá ideias erradas a jovens inocentes, então a última coisa que um conservador deseja é divulgar de forma ampla esse tipo de interação. Mas foi exatamente isso que Bolsonaro fez ao pôr o vídeo em seu twitter.
Seja como for, os que já se puseram a citar os dispositivos da lei nº 1.079 que Bolsonaro pode ter violado não entenderam bem a natureza híbrida do impeachment, que requer pretextos jurídicos, mas só ocorre em contextos de grave deterioração político-econômica. E ainda não chegamos lá, embora o presidente às vezes dê a impressão de que trabalha para isso.
Como já disse aqui, o futuro do governo Bolsonaro depende da economia. Se ela afundar, várias das zaragatas acumuladas em pouco mais de dois meses de administração serviriam para basear o impeachment. É só escolher. Minha favorita é o cheque de Queiroz para a primeira-dama. Mas, se o presidente entregar um crescimento médio da ordem de 2%, ele provavelmente conclui o mandato.
Postado por Gilvan Cavalcanti de
Elio Gaspari: Crivella quer o Porto Jogatina
Cariocas são obrigados a suportar fantasias e empulhações do prefeito do Rio
Num mesmo dia, o prefeito Marcelo Crivella disse que "o Rio de Janeiro é o epicentro da corrupção" e anunciou um futuro radiante para o projeto do Porto Maravilha. Prometeu R$ 10 bilhões em investimentos com a construção de duas torres de hotéis, um centro de convenções e... um cassino.
O prefeito do "epicentro da corrupção" defende a legalização da jogatina para salvar um projeto megalomaníaco atolado na zona portuária da cidade. Isso num estado que tem dois governadores presos, e foram apanhados em roubalheiras dezenas de deputados, secretários do governo e conselheiros do Tribunal de Contas. Dois cardeais da sacrossanta Arquidiocese de d. Eugênio Salles viram suas atividades tisnadas por malfeitos de pessoas que lhes eram próximas. Tudo isso sem que o jogo seja legalizado.
Um policial militar que trabalhou com a família Bolsonaro e orgulhou-se de "fazer dinheiro" ainda não ofereceu uma versão consistente para explicar suas movimentações financeiras. Um capitão da tropa de elite da PM teve a mãe e a mulher empregadas no gabinete do filho do presidente. Alcunhado "Caveira", o oficial foi expulso da corporação e está foragido. Ele era donatário de uma milícia da cidade.
O Rio de Janeiro elegeu um juiz para o governo do estado. Outro policial, que se apresentava como seu consultor para assuntos de segurança, está na cadeia, acusado de extorsão. Na última eleição esse policial foi candidato a deputado federal pelo partido do governador. O filho do presidente homenageou-o numa sessão da Assembleia Legislativa.
Sem cassinos, o Rio já está assim. Nenhuma pessoa de boa-fé pode acreditar que alguma coisa melhorará com estímulos à jogatina e a abertura de lavanderias de dinheiro. Ao crime organizado Crivella que juntar o jogo legalizado.
O prefeito não joga, não fuma, não bebe e sabe que está apenas criando uma nova miragem para uma cidade ludibriada por fantasias como as da Copa do Mundo e da Olimpíada. De miragem em miragem o Rio vive uma eterna Quarta-Feira de Cinzas. Crivella sabe que a reabertura dos cassinos depende da aprovação de uma lei pelo Congresso. Conhecendo a tessitura do crime organizado na cidade, dificilmente Jair Bolsonaro perfilhará a legalização do jogo.
No mundo real, a única pessoa tenuemente interessada nas torres e no cassino prometidos por Crivella é o bilionário americano Sheldon Adelson, que tem complexos de turismo e jogo em Las Vegas, Macau e Singapura. Ele começou a trabalhar aos 12 anos (tem 85) e já juntou US$ 33,3 bilhões (R$ 125,7 bilhões).
É um campeão da causa de Israel e a ele se atribui a abertura dos cofres de muitos republicanos para Donald Trump. É também um protetor do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Dele viriam os R$ 10 bilhões imaginados por Crivella.
O Porto Maravilha de Eduardo Paes atolou porque era um projeto demófobo. O Rio da zona portuária nunca poderia ter sido o que é o Puerto Madero argentino, como a Barra da Tijuca nunca será uma Miami. Aquela área está num bairro popular e centenário. Quem quiser conferir, que ande pelas ruas da Gamboa e de São Cristóvão. A megalomania imobiliária encalhou porque foram poucos os interessados em levar suas empresas para lá. Ali, o povo do Rio sempre viveu em casas modestas. Miami é em outro lugar.
Na região do Porto Maravilha construíram-se dois novos museus. A poucos quilômetros dali, pegou fogo o Museu Nacional. (Quarenta anos antes, incendiou-se o museu de Arte Moderna. Ganha um fim de semana em Caracas quem souber de outra cidade com semelhante desempenho.)