Folha de S. Paulo

Leandro Colon: Datafolha mostra que governo Bolsonaro não tem tempo a perder a partir de agora

Pesquisa é preocupante para governo, mas é possível corrigir a rota e governar para valer

Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro tem feito tímidos acenos de autocrítica, reconhecendo, a seu modo, inclusive com alguns exemplos esdrúxulos, possíveis erros de conduta e de gestão.

Diante da inércia na formação de sua base aliada no Congresso, ele contemporizou o discurso que tem adotado contra o que chama de "velha política". Em busca de apoio, desculpou-se com dirigentes partidários do que classifica de "caneladas" —palavra rotineiramente usada pelo presidente para justificar absurdos (muito mais que caneladas) que costuma dizer não só sobre políticos.

Em um café com jornalistas na sexta-feira (5), Bolsonaro foi questionado sobre declarações passadas, entre elas uma em defesa do fechamento do Congresso. O presidente então saiu-se com essa: não haveria como se arrepender do que dissera, mesmo hoje discordando, afinal, ele fez xixi na cama até os cincos anos e não tinha como voltar atrás. "Saiu, pô", disse aos presentes no encontro.

Xixi na cama aos cinco anos tende a ser um ato involuntário. Afirmar publicamente ser a favor de trancar as portas do Parlamento, não.

Bolsonaro deveria aproveitar essa aparente fase reflexiva e ler com calma a pesquisa do Datafolha sobre os cem dias de governo. Não será perda de tempo, de forma alguma.

Os dados são preocupantes, porém estão longe de uma catástrofe para o chefe da República. Ele é o presidente mais mal avaliado entre os eleitores desde 1985, mas 59% apostam que sua gestão será ótima ou boa.

Ao que parece, Bolsonaro ficou mais chateado com os dados sobre a sua imagem (em que está com patamar inferior a Lula e Dilma Rousseff sobre ser muito ou pouco inteligente) do que com 61% dos entrevistados terem dito que ele fez até agora menos do que o esperado no cargo.

Cem dias, por mais desastrosos que tenham sido, são muito pouco em um período de quatro anos. É possível corrigir a rota política, trocar ministros ineficientes, controlar o impulso na rede social e governar para valer. Só não há tempo a perder.


Julianna Sofia: Vagas à vista

Dois ministros na corda bamba podem abrir espaço para partidos na Esplanada

Deve ter soado como um hit de música caipira aos ouvidos de Jair Bolsonaro a notícia revelada por esta Folha sobre os elementos nas mãos da Polícia Federal apontando para a participação do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, no esquema de candidaturas laranjas no PSL de Minas nas últimas eleições.

Em 30 dias de apuração, os investigadores farejaram indícios de que o mineiro tenha cometido crime de falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Uma quarta candidata laranja foi encontrada pela polícia e já estão na mira uma quinta e uma sexta. Novos áudios e recibos de pedágio corroboram depoimentos em que o ministro é acusado de malfeitos.

O presidente tem demonstrado desconforto com as peraltices de Álvaro Antônio e admite o desgaste para o governo. Já avisou que havendo “uma conclusão com provas robustas, toma a decisão”. Em outras palavras, muito em breve surgirá vaga no gabinete ministerial.

A vacância no Turismo calha com os interesses de partidos ávidos por orbitar em torno do Palácio do Planalto. Após três meses de negação, o bolsonarismo rendeu-se às evidências de que precisa negociar com os ícones da política tradicional caso queira aprovar a nova Previdência.

Em encontros com presidentes de legendas nesta semana, Bolsonaro pediu desculpas por caneladas e abriu um canal ao sinalizar com a criação de um conselho para azeitar a articulação política. Diante da atmosfera de desconfiança mútua, ele não acenou com cargos, por ora. Tampouco as siglas pediram.

Mas é disso que se trata.

Centrão e congêneres dispensam os postos que sobraram na xepa resultante da nova política. O único sinal pouco mais enfático de adesismo à base parlamentar de Bolsonaro vem do DEM porque já conta com três ministérios —e quer mais.

Nesta sexta-feira (5), o presidente indicou que o ministro Ricardo Vélez(Educação) poderá desocupar a cadeira na próxima semana. Timing apropriado para abertura de vaga na Esplanada dos Ministérios.


Demétrio Magnoli: Pare (mesmo) de acreditar no governo

A sala de aula não é pátio de diversões de ideólogos ou doutrinadores

Bruno Garschagen, o assessor do (até agora) ministro Ricardo Vélezexonerado pela Casa Civil, tem ao menos uma qualidade: a capacidade de produzir uma autocrítica devastadora, ainda que involuntária. "Quando os antissocialistas mimetizam a mentalidade e a ação política do inimigo, tornam-se o espelho da perfídia", escreveu o "olavete" num artigo de jornal velho de quase dois anos. Seria preciso acrescentar que, quando tentam utilizar o poder de Estado para escrever uma "história oficial", os autointitulados liberais revelam a sua face autoritária e antiliberal.

Descubro que o mesmo Garschagen é autor do livro "Pare de Acreditar no Governo". Não o li, mas concordo com o comando do título, que tem validade geral e serve como advertência de singular relevância no caso do governo Bolsonaro. Esses "antissocialistas" não só mimetizam a "ação política" do "inimigo" como a conduzem para além de limites que o PT jamais ultrapassou. O MEC é a prova disso.

Vélez saltou da mera bufonaria —a solicitação de vídeos propagandísticos de escolares entoando o hino nacional— ao exercício abusivo da autoridade. O ministro, que oscila entre o apego canino ao cargo e a fidelidade ao Bruxo da Virgínia, anunciou uma revisão "progressiva" dos livros escolares talhada a apagar a ditadura militar do registro histórico. A missão do MEC, explicou, é "preparar o livro didático de tal forma que as crianças possam ter a ideia verídica, real, do que foi a sua história".

O governo exige que acreditem nele. Para isso, usará o poder de distribuir livros escolares, a palavra legitimada do professor e a prerrogativa de produzir o exame nacional de acesso às universidades federais.

Os poderes estatais adoram moldar as crianças de modo que elas repitam as palavras e os gestos dos governantes. A "história oficial" tem longa história escolar, que se estende das narrativas nacionalistas do século 19 até o contemporâneo revisionismo separatista catalão, passando pelos sinistros artigos de fé dos totalitarismos stalinista e nazista. O Brasil não ficou imune à politização da escola.

Sob o lulopetismo, o MEC engajou-se a fundo numa revisão "progressiva" dos manuais escolares com a finalidade de adaptá-los aos dogmas da doutrina racialista. A nação deveria ser descrita, nas aulas de História e Geografia, como uma confederação de etnias ou "raças". Nossas extensas miscigenações precisariam ser reinterpretadas como uma lenda criada para ocultar um racismo mais letal que os dos EUA da discriminação oficial ou da África do Sul do apartheid. O movimento abolicionista, uma ampla luta social que abrangeu brancos e negros, teria que escorrer pelo ralo destinado aos mitos. Vélez mimetiza o PT, mas sem a tintura "bondosa" do revisionismo racialista.

A operação lulopetista fluiu suavemente, prescindindo de rudes declarações ministeriais, maquiada como releitura acadêmica do passado. Obteve algum sucesso, graças à cumplicidade de comissões de docentes universitários militantes e à bovina obediência de editoras sempre prostradas diante da pilha de dinheiro das compras públicas. Vélez, porém, fracassará. A "verdade" estatal que ele tenta veicular choca-se com a resistência da opinião pública, dos historiadores e dos professores. Só um regime de força conseguiria impor a negação do caráter golpista do 31 de Março e da natureza ditatorial dos governos militares.

As democracias aprenderam a respeitar a autonomia das escolas. Nelas, há muito, os governos se abstêm de formular a "ideia verídica, real" da história que deve ser ensinada. O sucesso relativo do PT e o inevitável fracasso de Vélez funcionam como sinais de alerta: a sala de aula não é pátio de diversões de ideólogos ou doutrinadores. Pare (mesmo) de acreditar no governo, pois o pior professor ainda é melhor que o discurso do poder estatal.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Ministros temem que STF fique acuado em julgamento de 2ª instância

Ao adiar debate, ala do tribunal tenta poupar fôlego para enfrentar pressões

Contrariado com o novo adiamento da discussão sobre a prisão de condenados em segunda instância, Marco Aurélio sacou uma velha máxima dos togados. “Estou habilitado a relatar e votar desde 2017. Processo, para mim, não tem capa, tem conteúdo”, disse o ministro.

O caso, que se tornou o centro de um cabo de guerra no tribunal, de fato não tem sujeito definido. Desde o ano passado, porém, o processo carrega na primeira página uma grande fotografia do ex-presidente Lula.

A ação estava pautada para quarta (10), mas Dias Toffoli decidiu esperar. O presidente do STF entendeu que não era hora de expor a corte ao desgaste de julgar um processo que poderia tirar o petista da cadeia.

O debate sobre o cumprimento de penas se tornou o principal fator de divisão no tribunal. Ministros que querem mudar a interpretação atual temem que a hesitação em enfrentar o assunto indique um enfraquecimento de suas posições.

Depois de meses de bloqueio durante o período de Cármen Lúcia, Toffoli assumiu a corte disposto a enfrentar o assunto de vez. Parecia haver maioria para consolidar a tese de que as prisões se dariam após condenação em terceira instância.

Ao marcar o julgamento para abril, Toffoli acreditava que a prisão de Lula seria confirmada até aqui pelo Superior Tribunal de Justiça, o que faria com que o petista não fosse afetado pela ação do Supremo. Numa sucessão de manobras mal explicadas, porém, o STJ adiou essa decisão.

Lula seria um peso grande demais para a corte carregar num momento em que sua reputação se esfarela em ritmo acelerado. O STF, afinal, ainda tenta se recuperar de ataques sofridos depois que contrariou a Lava Jato e determinou a remessa de processos para a Justiça Eleitoral.

Alguns integrantes consideram a vacilação um mau sinal. Creem que o tribunal corre risco de ficar acuado diante da pressão popular e política. Para a ala que se denomina garantista, evitar um embate com o retrato de Lula como pano de fundo foi a única maneira de preservar fôlego.


Vinicius Torres Freire: Falta dinheiro, vai faltar paciência

Sem recursos, sem PIB, sem coordenação política, governo ainda incentiva raiva

O sururu entre os deputados e Paulo Guedes não vai dar em nada: é sintoma, não motivo. A fibrilação dos preços no mercado, que o pessoal da finança atribuiu ao arranca-rabo na audiência do ministro, também foi nada.

O ministro da Economia foi nesta quarta-feira (3) à CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara falar sobre Previdência, na CCJ em que a reforma vai começar a tramitar. Guedes e deputados bateram boca e daí para baixo.

Juros e dólar subiram, a Bolsa caiu, “business as usual”.

Teria sido um desastre se a turumbamba fosse imprevista, se não fosse apenas um sintoma óbvio.

O circo estava armado para Guedes apanhar pelo motivo sabido: desgoverno, um governo sem tropas no Congresso e ânimos nacionais acirrados.

De resto, o ministro não é um mestre na arte de fazer amigos e influenciar pessoas, por assim dizer. Enfim, é conversa mole dizer que a audiência “evidenciou” as dificuldades que o governo terá para aprovar a reforma.

Para quem tem um tico de discernimento, prever tais dificuldades era fácil desde antes da posse de Jair Bolsonaro, quando o presidente eleito disse que desdenharia o Congresso e nomeava uma equipe sem capacidade de coordenação de governo e de atuação parlamentar. Mas basta de obviedades maiores.

De modo desordenado e amador, pelo menos por estes dias o governo tenta salvar o que sobrou do incêndio. Já não seria fácil mesmo com uma súbita boa vontade pragmática e com profissionais em campo. Ficou mais difícil porque em um trimestre houve degradação do ambiente.

Primeiro, o governo tem ainda menos dinheiro para gastar do que previa. Não tem como levar deputado para ao menos inaugurar obra. Como se escrevia aqui na semana passada, o corte do investimento faria a construção civil estrilar. Pois bem, começou. A bancada do boi quer perdão de dívidas previdenciárias.

Outras querem manter subsídios. Etc. Mas não há dinheiro. Pelo menos até meados do ano, não vai melhorar.

Segundo, empresários começam a dar sinais de impaciência ou irritação. Mesmo quando associações empresariais soltam manifestosde apoio à reforma da Previdência, dão a entender que estão vendo o gato subir no telhado.

Gente de empresa vaza notas para os jornais, “externando preocupação”, alguns francamente revoltados com a baderna. Quando as coisas vão bem, essas pessoas ficam quietas.

Terceiro, ainda que o ano não esteja perdido para a economia, o primeiro trimestre foi ruim, talvez de crescimento zerado, e o segundo é uma incógnita que vai se equilibrar sobre esse quase nada.

A confiança econômica baixou. As pessoas estão cansadas de frustração, com medo de um terceiro ano de quase estagnação depois de promessas de crescimento que vêm desde o final de 2016.

Para piorar, em outros assuntos o governo incentiva ódios e divisões ainda maiores no país, em vez de tentar disseminar esperança e calma, enquanto (possivelmente) as coisas se ajeitam.

Besteira sentimental? Não, não é. Quem observa e analisa séries de pesquisas de opinião, de confiança e dados de atividade econômica nota que, por vezes, um líder político esperto consegue levar no gogó uma situação materialmente difícil.

Promessas não pagam dívidas e conversa não enche barriga, mas um diálogo politicamente inteligente pode sustentar uma travessia do deserto.

Aconteceu com Lula da Silva, aconteceu com FHC. Não foi assim com Dilma Rousseff nem com Fernando Collor.


Bruno Boghossian: Rede de proteção acoberta possíveis mandantes da morte de Marielle

Caso 'tchutchuca' evidencia falta de uma coalizão comprometida com Bolsonaro

Em sua primeira visita ao Congresso, na semana passada, Paulo Guedes reclamou dos aliados do governo. Atacado até pelo PSL, o ministro parecia se sentir traído. “A gente anda dez metros e, de repente, vê que levou um balaço de gente que é nossa mesmo”, desabafou.

O chefe da equipe econômica voltou a encontrar o mundo políticonesta quarta (3) para discutir a reforma da Previdência. Na Câmara, o partido de Jair Bolsonaro não disparou, mas deixou Guedes sozinho por horas na linha de tiro.

A proposta do governo perambula como um filho feio sem pai. Parlamentares de centro e da oposição fazem críticas pesadas, enquanto poucos governistas se arriscam a apoiar uma medida impopular.

Nas primeiras quatro horas e meia de audiência, o único deputado do PSL a discursar foi o líder do governo na Câmara. Seria generosidade dizer que Major Vitor Hugo fez uma defesa enfática da reforma.

O deputado gastou quase metade de seu tempo com elogios a Guedes por sua “coragem e determinação”. Nos minutos que restaram, desfiou platitudes sobre a proposta, sem responder ao festival de bobagens de alguns integrantes da oposição.

No meio do tiroteio em cima do ministro e da reforma, Vitor Hugo ainda parabenizou tanto a oposição quanto “deputados mais alinhados com o governo”. Não seria possível chamá-los exatamente de “aliados”.

O episódio evidenciou a falta que faz uma coalizão comprometida com o governo. Líderes dos partidos que poderiam dar sustentação a Bolsonaro estavam sorridentes numa sala reservada para cumprimentar o ministro antes da sessão, mas foram embora antes do início do falatório.

Sem proteção, Guedes ainda foi obrigado a ouvir um insensato Zeca Dirceu (PT) dizer que ele é “tigrão” para cortar benefícios de pobres, mas “tchutchuca” para tirar privilégios de banqueiros. O vexame só terminou porque o presidente da comissão encerrou a audiência. O ministro teve que ser escoltado por policiais e meia dúzia de deputados.


Matias Spektor: Itamaraty enfraquecido é estratégia de Bolsonaro

Presidente abriu mão de construir um consenso tecnocrático e dele se valer

Quando Lula e FHC chegaram ao poder, ambos correram para ajustar o Itamaraty às suas promessas de campanha.

Nos dois casos, houve ocupação da máquina com embaixadores simpatizantes, e o Planalto operou para garantir que as ideias do presidente criassem raiz institucional forte o suficiente para atravessar as vicissitudes de um mandato.

Petista e tucano apostaram no fortalecimento da burocracia, utilizando-a como instrumento para aumentar o prestígio do mandatário no país e no exterior. O Itamaraty empoderado era uma ferramenta formidável na mão de um presidente ambicioso e cheio de ideias.

Não é assim com Bolsonaro. O presidente abriu mão de construir um consenso tecnocrático e dele se valer. Em vez disso, o grupo que está no poder operou, desde o início, para impedir que a máquina impusesse limites às ideias revisionistas prometidas na campanha.

O governo ataca o Itamaraty porque, agora, um ministério forte poderia conter e barrar as propostas exóticas que circulam no Planalto.

O bolsonarismo entende a dinâmica do jogo. “O corpo diplomático”, concluiu o assessor presidencial Filipe Martins, “terá de ser observado de perto e liderado por um diplomata que tenha a capacidade de evitar que seus subordinados, macaqueando o ‘deep state’ americano, se tornem um fator desestabilizador do governo Bolsonaro”.

“O que eu escuto falar”, afirmou na sequência Eduardo Bolsonaro, “é que o Itamaraty é um dos ministérios onde está mais arraigada essa ideologia marxista e onde haveria uma maior repulsa ao presidente”.

Não surpreende, portanto, que Bolsonaro tenha escolhido para ministro do Exterior alguém para defender o governo diante de uma burocracia hostil e arredia, e não para costurar um consenso favorável às teses do Planalto.

O chanceler modificou o organograma do ministério, fez ajustes ao currículo do Instituto Rio Branco, tirou de postos confortáveis velhos expoentes do tucano-petismo e premiou indivíduos dispostos a mostrar fidelidade à nova ordem.

Em nenhum momento, porém, apostou as fichas em construir uma comunidade de diplomatas comprometidos com a concepção bolsonarista de relações exteriores e, assim, institucionalizar as ideias de política externa de direita que o candidato consagrou nas urnas.

Não houve aposta na construção institucional, pois, para fazer algo dessa natureza, as ideias de política externa, mesmo se discutíveis, teriam de fazer algum sentido, oferecendo perspectiva política futura aos vários interesses brasileiros.

Sem doutrina diplomática para chamar de sua, o governo continuará na mesma toada, destruindo a capacidade do Itamaraty de conter, retardar ou atrapalhar a agenda revisionista, sem capacidade de colocar uma alternativa no lugar.


Bruno Boghossian: Bolsonaro falsifica a realidade para enganar a população

Do nazismo ao desemprego, presidente adultera fatos para reduzir desgastes

Ao contestar números oficiais sobre o desemprego, Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de ser desmentido por seu próprio governo. De Israel, o presidente distorceu dados do IBGE para tentar convencer o país de que o mercado de trabalho, na verdade, está bombando. “É uma coisa que não mede a realidade. Parecem índices que são feitos para enganar a população”, disparou.

O instituto havia calculado que o número de brasileiros desocupados subiu para 13,1 milhões em fevereiro. A conta segue padrões internacionais e leva em consideração pessoas que procuram emprego, mas não encontram. Bolsonaro não gostou.

O IBGE precisou divulgar uma nota de cinco parágrafos para explicar sua metodologia. Afirmou que adota regras semelhantes às de outros países e ainda negou a declaração do presidente de que beneficiários do Bolsa Família não são classificados como desempregados.

Bolsonaro produz falsificações que atropelam instituições consolidadas, critérios científicos, a história e o mínimo bom senso. O objetivo é adulterar a realidade a fim de reduzir desgastes e atacar opositores.

Para fustigar seus arquirrivais na política brasileira, o governo agora patrocina o delírio de que o nazismo era um regime de esquerda. O próprio Adolf Hitler deu uma entrevista em 1923 em que dissociava suas ideias do marxismo, mas Bolsonaro disse que “não há dúvida” de que o chanceler era vermelho, já que seu partido era o Nacional Socialista.

Dessa vez, quem desmentiu o presidente foi o vice Hamilton Mourão.“De esquerda é o comunismo. Não resta a mínima dúvida”, declarou.

A lógica estapafúrdia é a mesma que leva Bolsonaro a buscar um revisionismo rasteiro da ditadura militar. Ao argumentar que os fatos são deturpados por seus adversários e até por institutos oficiais, ele tenta moldar a verdade a seu gosto. Assim, nunca estará errado.

O presidente pode até contar suas histórias, mas quem olhar o passado ou as ruas do país verá quem está tentando “enganar a população”.


Vinicius Torres Freire: Economia definha na desordem política

Indústria vai mal, governo segue sem rumo e Bolsonaro duvida das estatísticas nacionais

A indústria não cresce quase nada, soube-se nesta terça-feira (2) pelo IBGE.

No início da semana no Congresso, gente do governo tentava apagar os incêndios criados pelo próprio governo, mas o fazia com baldes d’água e à matroca.

A economia esfria, o que deve azedar os ânimos no país e, por tabela, no Congresso. Ânimos azedos no Congresso pioram o humor econômico.

A confiança de consumidores e empresas regride desde o início do ano. Virou fumaça a esperança que sempre se reaviva na eleição de um presidente.

O resultado da indústria foi ainda pior por causa dos efeitos econômicos da barbaridade de Brumadinho. Mas não convém dourar a pílula com lama assassina. A indústria extrativa (como minério de ferro) é responsável por 11% da produção industrial total. O restante é indústria de transformação.

A indústria de transformação cresceu apenas 0,4% neste primeiro bimestre, em relação aos primeiros dois meses de 2018. Em 12 meses, o crescimento foi de apenas 0,5%. O crescimento previsto para março da indústria em geral é próximo de zero.

O governo ainda apanha no Congresso. Até os líderes da bancada evangélica batem em Jair Bolsonaro.

Há racha no PSL e entre o PSL e o governo. Ouve-se revolta contra vários ministros relevantes e ameaças de aprovar restrição dura da capacidade do governo de baixar medidas provisórias.

O governo inventa mais moda. Debate o tal “pacto federativo”, em tese redistribuição de recursos e deveres entre União, Estados e municípios.

Ou o governo vai frustrar todo o mundo com essa história de divisão de dinheiro (não há dinheiro) ou, se bobear, vai levar um tombo, perder recursos e ficar com um buraco maior nas contas.

É possível. A desordem e a besteira estão grandes.

Lideranças do Congresso dizem que vai passar uma reforma da Previdência, mas sem cortes nos benefícios de idosos (BPC), de trabalhadores rurais e com alívio nas regras de aposentadorias de servidores, afora o veto ao sistema de capitalização e à desconstitucionalização das normas previdenciárias. Para começar.

BOLSONARO ATACA IBGE
Demagogos sinistros e autoritários em geral gostam da ideia ou da prática de falsificar estatísticas econômicas, dentre outras mentiras. No mínimo ou a princípio, assediam quem trabalha para produzir informações confiáveis, por meio das melhores técnicas conhecidas.

A falsificação de estatísticas é um desastre. Pode alterar o valor das coisas, violar a segurança de contratos, abater a confiança econômica. Enfim, é uma violência contra o debate democrático.

Tiranos como os chavistas e demagogos como os Kirchner destruíram o sistema de estatísticas de Venezuela e Argentina. Foi um dos meios pelos quais essa gente depauperou a economia e a vida inteligente de seus países.

Pela segunda vez, Jair Bolsonaro atacou sem fundamento as estatísticas de emprego do IBGE. Há quem se conforte com a ideia de que o presidente nada fez de concreto contra o instituto federal de estatísticas. Não é consolo. Se e quando o fizer, será tarde demais. O prejuízo da perda de credibilidade é imediato e leva anos para ser revertido.

“Ah, isso não vai acontecer.” A gente pode lembrar de fatos improváveis que aconteceram recentemente: pedaladas imensas, déficit público de mais de 10% do PIB (Produto Interno Bruto), tabelamento e manipulação de preços básicos da economia, decretação de mais sigilo sobre documentos de governo etc.


Elio Gaspari: Lula livre, em casa

Manter um ex-presidente na cadeia faz mal à história do país

No próximo domingo (7) Lula completará um ano de prisão, fechado numa cela de 15 metros quadrados na carceragem da Polícia Federal de Curitiba. Sua situação é inédita na história do Brasil e essa circunstância sobrepõe-se aos aspectos jurídicos, porque a decisão dos magistrados um dia será uma nota de pé de página na narrativa de um fato maior. Em 1889 decidiu-se banir a família imperial. Vá lá, mas fazia sentido negar sepultura no Brasil a d. Pedro 2º durante décadas?

Para quem vive com a cabeça quente, Lula deve "apodrecer na cadeia", como disse Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Quando as cabeças esfriam, as coisas voltam para seu lugar.

Três precedentes mostram que seria melhor permitir, em algum momento, a transferência de Lula para o regime de prisão domiciliar. Nele só poderia receber um número fixo de visitantes. (Em 2017, quando Marcelo Odebrecht passou a cumprir a pena em casa, tinha direito a 15 visitantes previamente listados.)

Jefferson Davis, o incendiário presidente dos estados confederados do Sul dos Estados Unidos, foi preso em 1865 e libertado dois anos depois. A Guerra Civil americana custou ao país quatro anos de combates e algo como 700 mil mortos (2% da população).

As condições carcerárias de Lula são dignas, mas assemelham-se àquelas que a República Francesa impôs ao marechal Philippe Pétain em 1945. Ele presidira o regime ditatorial e racista de Vichy, colaborando sinceramente com a ocupação nazista. Nonagenário e doente, teve a pena comutada em 1951 e logo depois morreu, em casa. Lula não foi um Pétain.

Os Estados Unidos e a França têm um tipo de história. A China tem outro. Mao Tse-tung prendeu o presidente Liu Shaoqi em 1967. Ele viveu em condições deploráveis até 1969, quando morreu. Ao contrário do que aconteceu com Pétain e Davis, Liu foi reabilitado. Sua filha formou-se na Universidade Harvard e geriu investimentos da família Rockefeller.

Lula encarcerado não faz bem à história do país, como não faz bem a lembrança de que João Goulart morreu na Argentina depois de 12 anosde desterro.

Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, nenhuma trapalhada foi produzida pelo PT. Tendo perdido o monopólio das encrencas, o comissariado vive em relativa paz. Noves fora alguns arroubos de Gleisi Hoffmann, a presidente do partido, prevalecem vozes mais equilibradas. Prometendo o fim da ideologia de gênero e escolas sem partido, o Ministério da Educação vive uma guerra de facções, sem ensino algum.

Combatendo uma diplomacia militante, o chanceler Araújo meteu-se numa pregação inútil em torno do que seria uma essência esquerdista do nazismo.

Se Lula for transferido para um regime de prisão domiciliar a questão legal continua quase do mesmo tamanho. Afinal, estão nele Marcelo Odebrecht (que colaborou com as investigações) e o comissário Antonio Palocci (que colaborou com a campanha eleitoral).

A transferência de Lula para o regime domiciliar, aventada em junho do ano passado pelo advogado Sepúlveda Pertence, foi rebarbada pelo PT. Supunha-se que "Nosso Guia" pudesse ser favorecido pela eleição de um presidente-companheiro ou pelo clamor da rua. Nenhuma das duas coisas aconteceu.

Para a turma de cabeça quente que defendia a transferência da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, o gambito de Bolsonaro oferecendo um escritório comercial foi um gesto hábil. Lula em casa seria um gesto de pacificação histórica. Afinal, no ano passado 45% dos eleitores, não podendo votar nele, votaram no seu candidato.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Fábio Fabrini: Governo virou usina de factoides

Às vésperas dos cem dias, presidente e equipe dão mais resultado na geração de polêmicas vazias

Jair Bolsonaro está perto de completar cem dias de governo sem alcançar metas para o período.

Na saúde, prometeu ampliar a cobertura de cinco vacinas, mas as campanhas de imunização não ocorreram.

Medidas econômicas para facilitar o comércio internacional empacaram por falta de ambiente tributário.

O Itamaraty compromete-se a baixar tarifas do Mercosul. Ainda falta, porém, combinar o jogo com argentinos, paraguaios e uruguaios.

Se falta ao presidente e seus ministros eficiência para essas e outras missões administrativas, eles têm mostrado talento de sobra para fabricar polêmicas baseadas em premissas falsas ou fatos inexistentes.

Quase que semanalmente Bolsonaro e sua equipe elegem um cavalo de batalha sem vínculo com as prioridades do país e dele se ocupam.

Já se lançou suspeita sobre o valor pago pelo Ibama no aluguel de carros. Descobriu-se que o contrato gerou economia e tinha OK do TCU.

Na Educação, o que o ministro Ricardo Vélez produziu de mais expressivo foi uma Lava Jato de estimação, que mira desvios em programas.

Bolsonaro defendeu a iniciativa. Semana passada, Vélez admitiu que não há fato concreto a ser apurado.

O presidente estigmatizou o carnaval no episódio do golden shower.

Dias atrás, negou a história e declarou que não houve ditadura militar. Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, tirou da manga outro embuste ao contrariar o consenso acadêmico e defender que o nazismo era de esquerda.

Produzir factoides em série desvia a atenção popular dos desafios reais do governo e só cumpre o propósito de escamotear a já demonstrada inépcia do presidente e seus auxiliares para as funções que exercem.

Bolsonaro embarcou para Israel deixando uma desordem, criada por ele próprio, na articulação política. A economia continua estagnada, a reforma da Previdência faz água, o desemprego sobe, mas a tendência é que se invente mais uma parlapatice diversionista para tirar o foco de tudo isso que está aí


Hélio Schwartsman: Foi golpe mesmo

Ruptura da ordem constitucional em 1964 não deve ser descrita de outra forma

A mente de cada indivíduo constitui um universo próprio, que opera sob um conjunto único de paixões, condicionamentos e preferências. Além disso, em termos filosóficos, demonstrar a existência de uma realidade externa objetiva e cognoscível permanece um desafio irrealizado. Nesse contexto, em que até o estatuto de verdade das ciências duras se torna precário, o da historiografia desmancha no ar.

Isso significa que devemos abraçar de vez o relativismo? Está autorizado o vale-tudo hermenêutico, que permite descrever o mesmo conjunto de eventos como golpe ou como sucessão dentro da lei? Eu não iria tão longe.

Pragmaticamente, creio que faz sentido supor que palavras e definições conservam valor mais ou menos estável, que acessamos através de uma intersubjetividade comum. Nem todos concordarão sempre com tudo, mas não é desprezível o número dos que aceitam bem aquilo que se convencionou chamar de fatos, isto é, juízos empiricamente verificáveis, como o de que a água ferve a 100°C ao nível do mar.

É filosoficamente frágil, admito, mas esse acordo intersubjetivo já deu mostras de ser útil. Ele está na raiz da revolução científica, que tanto fez pela humanidade, e de alguns consensos políticos importantes.

E, nesse estranho mundo em que a linguagem significa algo, a ruptura, “manu militari”, da ordem constitucional vigente, como ocorreu em 1964, precisa ser descrita como golpe. E o período de governos autoritários que a sucedeu, em que as principais eleições diretas foram suspensas, liberdades civis, suprimidas, e em que agentes do Estado torturavam e matavam concidadãos, à revelia das leis editadas pelo próprio poder central, não comporta outra designação que não a de ditadura.

Podemos discutir até o fim dos tempos se o que ocorreu foi bom ou ruim para o país —esse é terreno legitimamente aberto a especulação—, mas não que houve um golpe seguido de duas décadas de ditadura.