Folha de S. Paulo
Leandro Colon: Disputa por sucessão de Dodge é um retrato do país
É ingenuidade pensar que todos estão só bem intencionados em conduzir a Procuradoria-Geral
A sucessão de Raquel Dodge no comando da Procuradoria-Geral da República bate à porta de Brasília. Nos bastidores, a guerra está conflagrada entre procuradores.
Em entrevista à Folha no sábado (13), o subprocurador-geral Augusto Aras lançou-se candidato avulso, fora da briga pela polêmica lista tríplice da associação da categoria (ANPR). O seu discurso é um aperitivo do que vem por aí até setembro, quando acaba o mandato de Dodge.
Aras ataca o modelo de eleição interna em que os procuradores votam nos candidatos declarados e uma lista com os três mais votados é enviada ao presidente da República.
Na opinião dele, a prática de realizar um escrutínio entre os membros do Ministério Público Federal leva a um cenário de politização, com doses de clientelismo e fisiologismo, que geralmente contaminam os Poderes Legislativo e Executivo.
Ele ainda colocou sob suspeita o sistema de votação eletrônica da ANPR. A direção da entidade reagiu às declarações e defendeu o método.
O presidente Jair Bolsonaro afirmou algumas vezes que não tem compromisso com a escolha da ANPR. Nada o obriga a segui-la. A tendência, aliás, é que ele realmente indique um nome de fora da relação oficial.
Não foi à toa que Aras emitiu sinais ao presidente. Suas chances são mínimas de integrar a lista tríplice. O mesmo vale para Raquel Dodge. Desgastada na categoria, sobretudo na ala ligada ao antecessor e desafeto, Rodrigo Janot, a chefe da PGR se movimenta no Judiciário e busca apoio de militares para ser reconduzida.
Os “janotistas” jogam pesado para ter um nome com força na eleição da ANPR. Um cotado é Vladimir Aras, primo de Augusto. O Ministério Público Militar, por sua vez, faz lobby para emplacar o sucessor de Dodge.
É ingenuidade pensar que todos estão apenas bem intencionados em conduzir uma instituição tão importante. Há uma briga por cargos, gratificações, prestígio, vaidade e muito poder. Infelizmente, o Ministério Público Federal talvez seja hoje o retrato mais fiel do que virou o país.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ataca o governo
Caso Petrobras é só uma tolice de uma gestão à beira de não ter como pagar contas
Não é muito difícil o governo inventar uma história para arrumar a bagunça que fez ao meter a mão nos preços da Petrobras, desde que tome tenência. Mas:
1) esses disparates deixam sequelas, que se acumulam e têm custos para a economia inteira;
2) Jair Bolsonaro faz fama de que é um caminhão desembestado, que se move por caprichos, pinimbas e impulsos na estrada da demagogia. Até agora, não funcionam os freios tutelares, de generais ou outros;
3) o presidente já prepara outros atentados contra seu governo. Gente que não se ocupa de finanças, o povo em geral, acha que esses colapsos de preços na Bolsa são brincadeirinha de especulador. Não é bem assim.
A venda em massa de ações da Petrobras é um aviso. A queda do valor da empresa significa que os investidores não querem negócio com uma companhia sujeita a controle de preços e outras tolices que reduzem lucros ou causam dano ainda pior.
Caso a besteirada persista, o desconto no valor das ações será maior, assim como vai aumentar o custo de a empresa levantar recursos no mercado, de se financiar por empréstimos ou outros meios.
Arrazoado semelhante vale para a economia inteira, para o custo de financiamento do governo (juros) e, por tabela, para as empresas do país.
Mesmo com os tantos recuos do governo, bobagens e incompetências frequentes em política e economia deixam sequelas: um dólar mais caro, juros de médio e longo prazo mais altos, Bolsa mais barata, risco maior. Em suma, fica mais caro fazer negócio. As empresas investem menos. Em resumo simples, assim a economia cresce menos.
Já está acontecendo de novo.
O preço do diesel não foi o único dedaço de Bolsonaro na Petrobras. O presidente prometeu investimento da petroleira em Israel, por exemplo (apenas ele descobriu que haveria um maná de óleo na costa israelense?). Já mexeu na periodicidade do reajuste do diesel. Vai se emendar?
Governo mais falido
Com jeito, o governo ainda pode atenuar esses estragos. Falta combinar com Bolsonaro.
Está claro nos ministérios e claríssimo no Ministério da Economia que, se não entrar um dinheirinho extra, o governo não vai ter como pagar alguns serviços no fim deste ano. Sim, vai ter de parar atividades sérias; algumas partes da administração já funcionam apenas no papel, motores sem gasolina.
Mas Bolsonaro ainda pensa seriamente em anistiar dívidas de ruralistas, algo em torno de R$ 11 bilhões, para ficar em apenas um exemplo de tolice séria que vem por aí.
Gente graduada de vários ministérios diz que o Brasil já não está pagando compromissos com organizações internacionais, por exemplo.
O investimento em obras vai cair dos cerca de R$ 53 bilhões do ano passado para algo entre R$ 35 bilhões e R$ 40 bilhões neste 2019 (em valores de hoje): a uns 40% do que era em 2014 (como proporção do PIB).
Se houver a graça para os ruralistas, vai haver asfixias e necroses de partes da administração.
Todo o investimento federal em obras viárias (estradas etc.) no ano passado ficou em R$ 10 bilhões, menos que o dinheiro da anistia dos ruralistas. Cortar ainda mais obra em andamento é contraproducente e acelera a ruína da infraestrutura. “Ou vão cortar submarino nuclear, aviões de combate?”, pergunta um alto burocrata do governo sobre o orçamento de investimento ora mais privilegiado, o da Defesa.
Ainda não é uma situação Rio de Janeiro. Mas já dá para sentir o cheiro da maresia.
Bruno Boghossian: Bolsonaro cumpriu promessas, por que sua popularidade cai?
Confetes conservadores não fazem nenhuma diferença na segurança e na economia
Não se pode acusar Jair Bolsonaro de estelionato eleitoral. A interferência na Petrobras, a mudança na relação com Israel, o choque com o Congresso e a complacência desprezível diante do fuzilamento de um inocente estavam todos lá, na campanha. Se o presidente cumpre o que sempre disse, por que sua popularidade caiu tanto?
A resposta mais razoável é que nada disso importa de verdade para o eleitor. O discurso de Bolsonaro cumpriu papel simbólico durante a campanha, mas ficou vencido depois que ele subiu a rampa do Planalto.
Antipetistas e gente farta da política em geral podem ter votado naquele deputado transgressor por diversos motivos. Alguns não ligavam para seus absurdos e outros aderiram à campanha acreditando que ele não faria tudo aquilo que prometia.
Antes da virada do ano, 88% dos eleitores de Bolsonaro diziam que o governo seria ótimo ou bom. A última pesquisa do Datafolha, no entanto, mostrou que só 54% deles consideram a gestão positiva até agora.
Os confetes conservadores, a polêmica do golden shower e as caneladas nos políticos não fazem nenhuma diferença nas pautas que interessam mais à população: a segurança e a economia. Nessas duas áreas, o presidente enfrenta dificuldades.
Na terceira semana de governo, Bolsonaro fez festa ao ampliar a posse de armas de fogo em casa. Prometeu trabalhar ainda para que os cidadãos também pudessem andar armados nas ruas. O problema: quase metade de seus eleitores diz ser contrária a esta nova medida.
Na economia, o presidente encontrou a frustração de quem esperava se recuperar da ruína dos anos Dilma. Em dezembro, 62% dos entrevistados mais pobres achavam que o governo seria ótimo ou bom. Agora, só 26% o classificam assim.
Entre os brasileiros que votaram no presidente, 42% diziam que ele fez menos do que o esperado até aqui. Bolsonaro pode pensar que essa é a senha para radicalizar sua plataforma de governo. Se dobrar a aposta, ele dobra as chances de errar.
Elio Gaspari: Cabral mente até em confissão
O pastel de vento é demonstrativo da banalização em que caíram as delações
A colaboração de Sérgio Cabral com o Ministério Público do Rio e com o juiz Marcelo Bretas virou conversa de botequim. Até agora, suas confissões confirmam que ele corrompeu o mandato de governador do Rio, mas isso já se sabia, pois está condenado a 198 anos de prisão.
Num depoimento espetaculoso, Cabral contou que em 2011 o chefe de sua Casa Civil, Régis Fichtner, pressionou-o, até com “ameaça”, para que seu cunhado, o desembargador Marco Aurélio Bellizze, fosse nomeado para uma vaga no Superior Tribunal de Justiça, atropelando a candidatura do advogado Rodrigo Candido de Oliveira, sócio do escritório da mulher de Cabral.
O juiz Bretas e o meio jurídico sabem que uma nomeação nada teve a ver diretamente com a outra. Belizze foi escolhido para uma vaga de magistrado, e Rodrigo disputava uma cadeira dos advogados. Ademais, quem nomeia ministros para o STJ é o presidente da República, e Bellizze tinha currículo que superava o parentesco.
O ex-governador disse ao juiz Bretas que foi obrigado a fazer “esse papelão de barrar o sócio de minha esposa”. Colocou-se em outro papelão ao embaralhar os fatos. Os dois disputavam páreos diferentes em ocasiões diferentes, Rodrigo perdeu em abril e Bellizze ganhou em julho. A farofa leva água para a suspeita de que Cabral instrumentaliza suas confissões pelos ventos da política do Rio de Janeiro.
O pastel de vento é demonstrativo da banalização em que caíram as delações. Quando Cabral, o Magnífico Gestor, fez coisas que nem Asmodeu imaginava, tudo parecia normal. Agora, quando Cabral, o Penitente, confessa seu “papelão”, busca crédito de virgem.
Olhando-se para trás, quando Antônio Palocci era o quindim da banca, viam-no como um grande ministro da Fazenda. Apenado, tornou-se uma fábrica de delações espetaculares, vazias de provas. Ele contou que foi nomeado gerente de uma caixinha de empreiteiras, o que pode ser verdade, mas não se sabe ainda como recolheu o dinheiro nem como o distribuiu.
A divulgação do anexo de Palocci pelo juiz Sergio Moro foi instrumentalizada na campanha eleitoral do ano passado. O Rio não precisa que mais essa praga entre na sua política.
O JUIZ DA SUPREMA CORTE LOUVA O BANQUEIRO
Acaba de sair nos Estados Unidos “First”, uma boa biografia da juíza Sandra O’Connor, a primeira mulher nomeada para a Suprema Corte. Há ali uma pequena história reveladora dos jogos de influência que cercam as nomeações para aquele tribunal.
O’Connor é uma tremenda figura. Foi criada num rancho do Arizona e formou-se politicamente no partido republicano. Quando ela estava na universidade Stanford, namorou e quase casou com William Rehnquist, seu colega de turma.
Em 1971, O’Connor era uma juíza influente no andar de cima do Arizona e Rehnquist foi indicado para a Suprema Corte. Ela batalhou pelo ex-colega e conseguiu o apoio do presidente do maior banco do estado, Sherman Hazeltine.
Aprovado pelos senadores, Rehnquist agradeceu à ex-namorada com uma carta:
“Fui surpreendido pelos contatos de Hazeltine junto aos banqueiros do Oeste. Apreciei não só os seus esforços, mas também admirei a eficácia dos seus contatos no Congresso. Talvez seja por isso que os banqueiros têm mais influência que os advogados”.
Rehnquist foi aprovado pelos senadores e presidiu a Corte Suprema por 19 anos, até 2005, quando morreu.
Nenhum magistrado brasileiro tem coragem de escrever uma carta dessas. Rehnquist foi um conservador honrado, espalhafatoso ao se vestir mas com um uma cabeça de primeira ordem.
MULHERÃO
Sandra O’Connor era senadora no estado do Arizona, contrariou um colega e ele lhe disse:
—Se você fosse homem eu acertava o teu nariz.
Ela respondeu:
—Se você fosse homem, acertava.
MADAME NATASHA
Natasha tem horror aos marxistas culturais e votou em Marcelo Crivella porque sua bandeira de campanha era “Eu vou cuidar das pessoas”.
A senhora viu que o prefeito visita áreas alagadas tomando cuidado para não molhar os sapatinhos. Depois de duas enchentes nas quais morreram 14 pessoas em apenas três meses, Crivella reconheceu: “Nós falhamos”.
Natasha acredita que Crivella martiriza as pessoas que votaram nele com suas acrobacias pronominais. Quando fala bem de si, usa o “eu”. Confrontado com a qualidade de sua gestão, pula para o “nós”.
APEX VIROU MÃE JOANA
Ao demitir o embaixador Mário Villalva da presidência da Apex, o chanceler Ernesto Araújo emitiu uma nota informando que ato visava a “dinamização e modernização do sistema de promoção comercial”. Naquele texto a única coisa verdadeira era a data.
Villalva foi chamado pela sua competência, depois que Araújo nomeou e defenestrou um monoglota. O embaixador devia saber onde estava pisando, mas atritou-se com dois diretores saídos do ventre do bolsonarismo. Ele os classificou como “pessoas despreparadas, inexperientes, inconsequentes e irresponsáveis”.
Nesse caso, como em algumas de suas declarações desastrosas, Araújo faz o que ouve no Planalto.
Pelas regras da corte de Brasília, é comum que alguns ministros papagueiem o que ouvem do presidente. Ao serem criticados, os bonecos do ventríloquo acreditam que se fortalecem junto ao chefe. Ricardo Vélez acreditou que esse truque poderia blindá-lo.
WEINTRAUB DELIRA
No seu primeiro dia como ministro da Educação, o doutor Abraham Weintraub fez uma reunião com um colaborador e foi categórico:
“Não pode ficar falando. Se ele toma uma posição sem autorização minha, é mandado embora no mesmo instante”.
O doutor se esquecera de desligar o seu celular e sua fala foi ouvida pela repórter Jussara Soares.
Se Weintraub acha que vai silenciar o MEC, talvez faça melhor tornando-se consultor mundial de blindagens. Conter vazamentos foi o sonho de Barack Obama, que impedia a entrada de celulares em reuniões.
O ministro faria melhor se ouvisse “Maria Moita”, de Carlos Lyra:
“Vou pedir ao meu Babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Pra por pra trabalhar
Gente que nunca trabalhou”.
CÉU DE BOLSONARO
Jair Bolsonaro disse que nos primeiros cem dias seu governo voou em “céu de brigadeiro”.
Seu ministro da Ciência e Tecnologia foi oficial da Força Aérea. Bolsonaro poderia perguntar-lhe em que tipo de céu voa um esquadrão de 22 aviões e dois deles (0,9%) são abatidos (Gustavo Bebianno e Ricardo Vélez).
CIRO QUER QUEBRAR
Ciro Gomes acha que, se o projeto de autonomia do Banco Central passar, será o caso de “ir para a rua e quebrar tudo”.
Falou em linguagem figurada, mas em 2006, quando manifestantes foram para a porta de sua casa à noite para fazer barulho (sem quebrar nada), ele foi para a calçada, peitou-os, mandou-os circular e em seis momentos referiu-se às suas mães.
Hélio Schwartsman: Nova política de drogas
Se há um consenso, é o de que não há tratamento único que sirva para todos
A Política Nacional de Drogas do governo Bolsonaro vai priorizar programas que busquem a abstinência do usuário, em vez da redução de danos. Penso que é um erro.
Há políticas públicas que são “one size fits all” (de tamanho único) e outras que não são. Um bom exemplo da primeira é a definição do método de alfabetização. Não há criança que aprenda a ler sem desenvolver a consciência fonológica, daí que é importante ensinar explicitamente a correspondência entre sons e letras.
Um bom corpo de trabalhos científicos feitos em outros países corrobora a ideia de que os métodos fônicos são superiores. Nunca será o caso de proibir técnicas diferentes, mas faz sentido apostar mais no que comprovadamente funciona melhor.
A questão da dependência é totalmente diferente. Se há um consenso na psiquiatria, é o de que não há tratamento único que sirva para todos os pacientes. Se o sujeito é um dependente pesado e tem inclinações religiosas, o internamento numa comunidade terapêutica com vistas a alcançar a abstinência tende a ser uma boa pedida.
Se, porém, a cessação total do hábito já se demonstrou uma meta irrealizável para aquele paciente ou se ele rejeita a espiritualidade das comunidades terapêuticas —grande parte delas é ligada a igrejas—, pode-se adotar uma abordagem menos ambiciosa, que procure reduzir o número de episódios de uso e diminuir os impactos negativos para a saúde. Usuários cujo grau de dependência é mais baixo também podem beneficiar-se de estratégias que tentem reforçar o autocontrole, evitando o agravamento de sua condição.
Aqui, nem sequer é possível comparar direito programas de redução de danos com os baseados em abstinência, já que o que é considerado sucesso para um configura fracasso na métrica do outro.
Os serviços de saúde precisam oferecer alternativas para todos os perfis de usuário. Priorizar um tratamento é antirrepublicano, pois acaba excluindo parte dos pacientes.
Demétrio Magnoli: Rumo ao segundo Israel?
Netanyahu rompe com o consenso sionista que se estendia da esquerda à direita
A reeleição de um líder político deve, normalmente, ser examinada sob o registro da continuidade. A regra não se aplica ao triunfo de Binyamin Netanyahu nas eleições gerais israelenses. Na campanha, o primeiro-ministro prometeu anexar as colônias israelenses na Cisjordânia e declarou que "Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos".
À luz do "Deus de Trump" (apud Ernesto Araújo), Netanyahu avançou os sinais vermelhos sempre respeitados pela corrente principal do sionismo. Nesse passo, ameaça levantar a âncora que prende Israel à rocha da democracia.
A maior vitória militar de Israel trouxe com ela um desafio de natureza existencial. Depois da Guerra dos Seis Dias (1967), o Estado judeu converteu-se em potência ocupante dos territórios palestinos (Jerusalém Oriental, Cisjordânia, faixa de Gaza).
O rápido crescimento demográfico palestino descortinou a perspectiva de configuração de uma maioria populacional árabe no conjunto geopolítico Israel/Palestina. O exercício da soberania sobre uma maioria destituída de direitos políticos terminaria por corroer os fundamentos democráticos de Israel. O Estado judeu teria que escolher entre a democracia e a ocupação.
Os Acordos de Oslo (1993) surgiram como solução para o dilema. A paz pela partilha da Terra Santa em dois Estados não só atenderia à demanda nacional palestina como protegeria o caráter judeu e democrático de Israel. O fracasso dos acordos de paz recolocou o dilema. Netanyahu oferece, agora, sua própria solução: a ocupação permanente, a renúncia à democracia, a refundação de Israel como Estado baseado na discriminação étnica oficial.
A falência dos Acordos de Oslo foi obra conjunta dos fundamentalistas palestinos do Hamas e da direita israelense polarizada pelo Likud. Mas Ariel Sharon, o "falcão" do Likud, conservou a porta aberta para a solução dos dois Estados ao promover a retirada israelense da faixa de Gaza (2005).
Sharon reconhecia, por meio do desengajamento, que só um Estado, uma nacionalidade e uma cidadania para os palestinos assegurariam a sobrevivência do Israel democrático fundado em 1948.
Netanyahu rompe, hoje, com o consenso sionista que se estendia da esquerda à direita. Depois de anos de sabotagem tácita da retomada de negociações de paz, a prometida anexação de extensas áreas da Cisjordânia equivale a uma sentença de morte para a solução dos dois Estados.
Sob o amparo de Trump, que acaba de reconhecer a soberania israelense sobre o território sírio das colinas de Golã, o chefe de governo de Israel ameaça inviabilizar um futuro Estado palestino.
Israel não é um, mas dois. Historicamente, é o Estado-nação do povo judeu. Legalmente, é um Estado de todos os seus cidadãos. A alma histórica expressa-se na Lei do Retorno: a concessão de cidadania a qualquer judeu que imigrar para Israel. A alma legal exprime-se na Corte Suprema, que não distingue os direitos de cidadãos judeus dos direitos de cidadãos não judeus. As duas almas convivem em perene tensão, formando as faces paradoxais do Estado judeu. Netanyahu almeja eliminar a tensão pela supressão do princípio da igualdade perante a lei.
O conceito de que "Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos" abre a fresta por onde podem passar iniciativas já em curso legislativo como a remoção da cidadania de não judeus "desleais" ao Estado.
No limite, a ruptura do princípio da igualdade legal propiciaria a retirada em massa da cidadania dos árabes israelenses, uma violação flagrante dos direitos humanos. A ideia escandalosa circula entre correntes supremacistas judaicas, como o Otzma Yehudit (Poder Judaico), que transitam dos subterrâneos para as cercanias do governo israelense.
Netanyahu é um refundador pós-sionista. O Israel que ele pretende reinventar renega os valores básicos do Estado proclamado por Ben Gurion em 1948.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Vinicius Torres Freire: Desânimo, a maior obra dos cem dias
Avaliação presidencial, mercado, confiança na economia, paz política: tudo piora
A barulheira virtual abafa várias notícias do mundo dos fatos da economia e da política, que seguem devagar quase parando e malparados, no entanto.
No universo do trabalho, dos negócios, das empresas e das expectativas, o assunto mais relevante dos cem dias do Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro foi a estagnação produtiva e a reversão dos ânimos políticos e econômicos.
As empresas levantaram menos dinheiro no mercado de capitais neste primeiro trimestre do que no início de 2018 (venda de novas ações, empréstimos via debêntures e outros títulos, captações no exterior etc.). Os dados foram divulgados nesta quinta-feira (11) pela Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais).
O custo e o risco de levantar capital estão mais altos, em suma.
A CNI (Confederação Nacional da Indústria) rebaixou sua previsão de crescimento do PIB industrial para 2019 de 3% para 1,1%, também nesta quinta-feira. Reduziu sua estimativa do crescimento do PIB de 2,7% para 2%. Ainda está até otimista. O pessoal de consultorias e bancos já começa a chutar na direção de 1,5%.
Como já se sabia, de resto, também a confiança de consumidores e empresários regrediu, a perspectiva de melhoria no mercado de trabalho se aproxima de zero e o crescimento do PIB no primeiro trimestre deve ter ficado por aí. Não é sinal de que a atividade econômica esteja embicando inevitavelmente para baixo, mas é um aviso de que o caldo está entornando rápido.
A inépcia do governo degrada um pouco as condições financeiras (juros, Bolsa, câmbio, risco), mas já por tempo bastante para causar incômodo e, daqui a pouco, efeitos reais na economia.
A irritação começou no terço final de março, quando o presidente e sua guarda ideológica fizeram questão de criar caso com lideranças no Congresso que se tinham declarado aliadas do governo, tal como Rodrigo Maia, presidente da Câmara, mas não apenas.
A desaceleração da economia no primeiro trimestre nada tem a ver com Bolsonaro, mas a degradação de expectativas é sim obra do novo presidente e do núcleo puro do bolsonarismo.
Dá para virar o jogo: a cada dia, seu tormento. Mas o governo não falha em dar tiros no pé ou na testa, diariamente.
Não é este o governo do ajuste fiscal? Bolsonaro então diz que vai cumprir a promessa de anistiar dívidas previdenciárias de ruralistas, por baixo R$ 12 bilhões, dinheiro que não tem nem de onde tirar (e, se o fizer, deve burlar a lei fiscal ou a orçamentária).
Para piorar, contraria seu próprio Ministério da Economia.
A Câmara anuncia que vai tocar uma reforma tributária razoável e respeitada, um projeto liderado pelo economista Bernard Appy.
Gente do governo diz então que quer aprovar uma outra, que pode até incluir uma espécie de CPMF, ideia que costuma causar revolta ou escárnio na elite econômica.
O governo anuncia que quer aprovar a autonomia do Banco Central, projeto “pop” entre o eleitorado bolsonarista de elite, mas nem isso dá certo, pois a Câmara já tem um projeto seu e se sentiu outra vez esnobada ou atacada pela falta de modos políticos do governo.
As conversas do presidente com lideranças partidárias até agora não surtiram efeito maior, se algum. O centrão continua entre ressabiado e avesso ao governo, o PSL presidencial ainda é uma bagunça e não há quadros bastantes no Planalto e no Congresso para articular uma coalizão partidária.
Até agora, a maior obra do governo foi o desânimo.
Bruno Boghossian: Estado que fuzila inocente abre mão de seu papel na segurança
Valentes para atacar bandidos, políticos não têm coragem de reconhecer tragédia
Primeiro, o Exército fuzilou o carro de uma família no Rio. Foram mais de 80 tiros no Ford Ka em que estavam Evaldo Rosa dos Santos, a mulher, o filho, o sogro e uma amiga. Depois de matarem o músico, os militares mentiram. Alegaram que só revidaram um ataque de criminosos, matando “um dos assaltantes”. Por fim, consumada a tragédia, os governantes decidiram ficar calados.
Um Estado que encoraja o bangue-bangue e atira oito dezenas de vezes contra um inocente abriu mão de seu papel na segurança pública. Amorte de Evaldo é mais um sintoma das décadas de fracasso no combate ao crime e à violência, turbinadas pelo estímulo à barbaridade das execuções extrajudiciais.
Os políticos que incluíram o incentivo à matança em seus programas de governo agora preferem o silêncio. Aqueles que soam valentes para dizer que a polícia “cancela CPFs” ou manda bandidos “para o cemitério” em suas operações não tiveram coragem de reconhecer o desastre.
Wilson Witzel, o governador que manda “mirar na cabecinha”, disse que não cabia “fazer juízo de valor ou tecer crítica”, porque sua Polícia Militar não estava envolvida no caso.
Jair Bolsonaro também fingiu que não era com ele. Jornalistas perguntaram três vezes ao porta-voz do Planalto o que o presidente achava do episódio. Nas três vezes, ele só respondeu que o governo esperava a conclusão do inquérito para que “tenhamos o caso totalmente elucidado”. Sobre o fuzilamento em si, nada.
O principal plano de políticos que se consideram rigorosos com o crime é distribuir licenças para matar. Num dia, eles sorriem ao condecorar militares e policiais que acertaram bandidos. Noutro, eles se recusam a encarar os abusos e erros cometidos sob essa autorização.
Mortes em conflito deveriam ser tratadas como exceção, não como regra. Governantes que pregam o fuzilamento como política de segurança precisam saber que o assassinato de um inocente na frente do filho de sete anos pode estar dentro do arco de consequências de seus métodos.
Hélio Schwartsman: Universidades são antros de comunistas?
Motivo para desequilíbrio não é um complô, mas uma razão bem mais trivial
É verdade que o pensamento de esquerda predomina nas universidades. Isso não é exclusividade do Brasil, mas uma tendência geral no Ocidente.
Nos EUA, onde existe medida para quase tudo, a proporção dos professores universitários (todas as áreas) que se declaram liberais ou de extrema esquerda em relação aos que se dizem conservadores ou de extrema direita atingiu o pico de cinco para um em 2011. Durante a maior parte do século 20, a taxa oscilou entre dois e três para um.
O motivo para o desequilíbrio não é um complô do globalismo gramsciano, mas uma razão bem mais trivial: um dos traços de personalidade mais fortemente correlacionados à esquerda, a abertura ao novo, é também uma característica que leva pessoas a aprofundar-se nos estudos e a procurar a carreira acadêmica.
De modo análogo, encontramos mais direitistas nos quartéis e nas polícias, porque esse grupo tende a pontuar mais alto na escala de conscienciosidade, a preferência por previsibilidade e por ações planejadas.
E a desproporção é um problema? Depende do tamanho dela. De acordo com Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, autores do excelente “The Coddling of The American Mind”, do qual eu tirei a maior parte das informações desta coluna, não é necessário estabelecer cotas de professores conservadores, mas é importante que haja diversidade ideológica suficiente para evitar a instalação do pensamento único.
A dupla acredita que uma “ratio” de dois ou três professores de esquerda para um de direita basta para garantir a liberdade acadêmica e o que chama de desconfirmação institucionalizada, isto é, assegurar que uma corrente não se encastele em posições-chave e passe a bloquear contratações e publicações de pesquisadores que pensem de outra forma.
As áreas de estudo em que a homogeneidade se enquista acabam mesmo produzindo material que se parece muito mais com religião do que com ciência.
Elio Gaspari: ‘Quartel não tem algemas’
O general Leônidas Pires Gonçalves comandou o Exército de 1985 a 1990. Foi um daqueles chefes militares que viram de tudo. Em 1945, estava na cena da deposição de Getúlio Vargas. Em 1961, na escuta dos telefonemas de João Goulart durante a crise da renúncia de Jânio Quadros. Em 1964, viu quando o general Costa e Silva começou a emparedar o marechal Castelo Branco. Em 1984, foi um dos generais que garantiram a eleição de Tancredo Neves. Como ministro do Exército de José Sarney, manteve a disciplina na tropa, inclusive quando enquadrou o jovem capitão Jair Bolsonaro, que emergia como uma espécie de liderança sindical militar.
Leônidas ensinava: “Quartel não tem algemas”.
Ele era o ministro do Exército em 1988, quando mandou uma tropa para desocupar a usina de Volta Redonda, ocupada por grevistas, e morreram três operários. Passaram-se 31 anos, e uma patrulha do Exército disparou 80 tiros contra o carro que conduzia uma família e matou o motorista.
“Quartel não tem algemas”, os soldados não são profissionais treinados para operações policiais, e quando acontece uma dessas tragédias, quem vai para a frigideira são recrutas, um sargento ou, no máximo, um jovem oficial. Em menos de 24 horas, o comando do Exército prendeu dez militares envolvidos na fuzilaria do Rio. A informação inicial, falsa, de que a patrulha respondeu a “injusta agressão”, foi substituída pelo “compromisso com a transparência”.
Há épocas em que as eternas vivandeiras pedem aos militares que façam isso ou aquilo. A ideia de botar a tropa nas ruas do Rio podia parecer “golpe de mestre”, mas é apenas a criação de novos problemas. Passa o tempo, as vivandeiras vestem as camisetas da ocasião e mandam a conta para os quartéis.
Jair Bolsonaro entrou no Palácio do Planalto com um discurso popular de defesa da lei e da ordem, confundindo-se com as Forças Armadas. Há dias o presidente disse que “nasci para ser militar”. Só ele pode falar da própria vocação mas, de cadete a capitão, foi militar durante 14 de seus 64 anos de vida e deixou a carreira marcado por 15 dias de prisão por indisciplina. Daí em diante, Bolsonaro foi parlamentar por 29 anos. Parece mais precisa a avaliação de seu vice, Hamilton Mourão, para quem ele é “mais político do que militar”.
O general Mourão formulou uma perigosa profecia: “Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”
Isso não deve acontecer. Primeiro, porque as Forças Armadas não são o governo. Há cerca de cem militares na nova administração, mas quase todos estão na reserva, inclusive Mourão. Apesar de poucas manifestações impróprias durante a campanha eleitoral, nos quartéis prevaleceram a disciplina e o silêncio. Três dos quatro comandantes do Exército deste século não disseram uma única palavra. Ganha um fim de semana em Caracas a vivandeira que lembrar os nomes desses generais.
Nenhuma conta pode ir para as Forças Armadas, a menos que se trapaceie o jogo, coisa que ocorreu no ocaso da ditadura, quando o andar de cima vestiu camisetas amarelas, foi para a campanha das Diretas e jogou o entulho do regime na porta dos quartéis.
Quem namora a ideia da expansão das atribuições dos militares sonha com impasses, talvez um conflito com o Congresso. Nesse sonho, “se o governo falhar”, as Forças Armadas ficariam com a conta. A conta será do governo. Os militares, calados, estão na mesa ao lado.
Luiz Weber: A retirada de Bolsonaro
Presidente perde capital político diariamente imerso em batalhas imaginárias
Militares veem valor até mesmo nas retiradas. Exigem esforços logísticos, são operações que salvam vidas e permitem a reorganização das tropas acuadas pelo inimigo para uma futura ofensiva. O Exército brasileiro registra um recuo histórico. Foi na Guerra do Paraguai, no episódio conhecido como Retirada Laguna.
Nesta segunda-feira (8), os militares perderam uma batalha na disputa por espaço no Ministério da Educação (MEC). Incrivelmente associados à vanguarda iluminista do governo, os oficiais generais perderam com a nomeação de Abraham Weintraub para o lugar de Ricardo Vélez.
Weintraub é um Vélez turbo, menos caricato. Mas o combustível batizado que o move é o mesmo, o da guerra cultural. Em seminário gravado disponível nas redes sociais o novo ministro diz que os "comunistas" no Brasil estão no topo das organizações financeiras, no comando da mídia e das grandes empresas.
Com a mexida, Bolsonaro reforça a posição dos guerreiros culturais no governo, em detrimento de uma representação partidária ética. Afaga suas falanges digitais, mas não as forças necessárias à governabilidade e à aprovação de reformas.
Bolsonaro virou um presidente paraguaio, fake. Em três meses, deixou de representar a parcela majoritária da população que o colocou no Planalto, como mostrou o Datafolha, para se refugiar no território conflagrado da internet, onde governa via Twitter um monte de perfis radicalizados.
Eleito com os votos de um amplo espectro da sociedade, que rejeitara a candidatura do indicado de Lula, Bolsonaro insiste em ser um avatar e não um presidente de carne e osso para todos os brasileiros. Está na hora de bater em retirada do terreno hostil em que se meteu.
O presidente perde capital político a cada dia que passa imerso em batalhas imaginárias. Uma hora estará só, vulnerável —sem apoio popular, sem a retaguarda dos militares que já terão se retirado. Aí será tarde demais para cuidar do mundo real.
Hélio Schwartsman: O incrível homem que derreteu
Surpreende a intensidade com que a avaliação de se desmilinguiu
A queda na popularidade de Jair Bolsonaro após os primeiros três meses de governo era esperada. O fenômeno é universal, atingindo democraticamente todas as gestões. O que talvez tenha surpreendido é a intensidade com que a avaliação do presidente se desmilinguiu.
O índice de ruim e péssimo de Bolsonaro atingiu a marca de 30%, a maior de todos os dirigentes eleitos em seu primeiro mandato, desde a redemocratização. Num distante segundo lugar vem Fernando Collor com 19% —e Collor, vale lembrar, confiscara a poupança.
Há dois fatores que, creio, ajudam a entender o derretimento. O primeiro é que o governo é mesmo um caos. Despreparo e foco nas coisas erradas resumem bem esses três meses iniciais. O segundo é que há um descasamento entre as ideias defendidas pelo presidente e as preferências do eleitorado. Isso já ficara claro na pesquisa Datafolha de janeiro, que mostrou que a maioria das bandeiras do dirigente —coisas como Escola sem Partido, política ambiental, indígena, facilitação do porte de armas— era rejeitada pelos eleitores, por margens às vezes graúdas.
Basicamente, as pessoas votaram em Bolsonaro não pela pauta que ele propôs, mas por ele ter sido o candidato que melhor encarnou o papel de antípoda do PT e do próprio sistema político, percebido como corrupto pela população.
Bolsonaro não vai mudar. É da natureza do neopopulista insistir na retórica inflamada, apostando em criar inimigos, mesmo que imaginários, para agregar aliados. O problema é que essa tática antissistema se torna meio autofágica quando se é governo, isto é, quando se está no centro mesmo do sistema.
Acho até que Bolsonaro conseguirá, aos trancos e barrancos, atravessar os quatro anos de mandato, se não houver uma piora notável da economia. Mas, se vier uma deterioração, em especial se a inflação de alimentos voltar a subir, o jogo muda, e a impopularidade pode tornar-se letal.