Folha de S. Paulo
Bruno Boghossian: Governo não faz muito esforço para manter poderes de Moro
Ex-juiz veste capa de superministro, mas descobre que política é sua criptonita
O governo não faz muito esforço para segurar o Coaf nas mãos de Sergio Moro. A recente derrota do superministro no Congresso mostra que, além da resistência de alguns partidos à expansão de seus poderes, nem sempre Jair Bolsonaro estará na retaguarda para defendê-lo.
A decisão que abriu caminho para tirar o órgão de controle financeiro do Ministério da Justiça expõe uma vulnerabilidade política. Até a última hora, Moro tentou convencer os parlamentares a apoiarem o fortalecimento de sua pasta. O Planalto, no entanto, agiu como se aquela fosse uma batalha particular do ex-juiz.
Quando a votação foi aberta na comissão especial, o líder do governo usou apenas 22 segundos para defender a vontade de Moro. O sempre estridente Major Olimpio (PSL) não brigou pela palavra e a deputada Joice Hasselmann (PSL) só chegou para acompanhar a derrota.
O isolamento ficou completo quando o chefe da Casa Civil pediu que o PSL, partido do presidente, deixasse o trem seguir sem o vagão de Moro. Onyx Lorenzoni procurou os deputados e pediu que aprovassem logo no plenário a medida que reorganiza o governo, deixando o Coaf de lado.
Bolsonaro entregou Moro de bandeja ao Congresso para evitar derrotas maiores. O presidente tem um capital político limitado e, até agora, não conseguiu formar uma base aliada que seja fiel a suas causas. Ele decidiu preservar seus poucos trocados para outras brigas.
Quando convidou Moro para o governo, Bolsonaro lhe prometeu amplos poderes, incluindo o Coaf. Antes de dar de ombros para o órgão, o presidente já havia vetado uma escolha do ex-juiz para um conselho e atropelado as restrições feitas pelo ministro aos decretos que facilitaram o acesso a armas de fogo.
Moro é um personagem mais popular do que Bolsonaro, mas as derrotas sucessivas e o respaldo vacilante do presidente impedem que o subordinado ofusque o próprio chefe. O ex-juiz trocou a toga pela capa de superministro, mas descobriu que a política é sua criptonita.
Bruno Boghossian: Sem interditar ataques a militares, Bolsonaro coroa o olavismo
Auxiliar diz que presidente sempre escolherá o lado dos filhos contra generais
Jair Bolsonaro escolheu seu uniforme na guerra travada entre militarese o núcleo ideológico do governo. Embora tenha declarado que o conflito era uma “página virada”, o presidente deixou o caminho aberto para as pirraças e ofensas disparadas pelo escritor Olavo de Carvalho contra seus próprios auxiliares.
“O Olavo é dono do seu nariz”, disse Bolsonaro nesta terça (7), depois de ter elogiado o ideólogo num longo tuíte pela manhã. “Eu recebo críticas muito graves todo dia e não reclamo. Eu engulo sapo pela fosseta lacrimal e estou quieto aqui, ok?”
O presidente não move um dedo para defender o ministro que foi chamado de “bosta engomada”, o vice que foi qualificado como “cara idiota” e o ex-comandante do Exército a quem o ex-astrólogo se referiu como “um doente preso a uma cadeira de rodas”. Em vez disso, Bolsonaro sugere que todos eles fiquem quietos.
Os últimos comentários do presidente consagram de vez o olavismo como doutrina principal do governo. Bolsonaro parece interessado em fermentar a plataforma radical e populista que rendeu uma onda de votos na campanha, enquanto relega a moderação e os projetos dos generais ao status de linha auxiliar.
Um assessor do presidente diz que, nessa batalha, quem colocar suas fichas nos militares vai perder a aposta. Embora eles continuem com espaço no governo, Bolsonaro sempre escolherá, no fim das contas, o lado em que estiverem seus filhos —chefes do fã-clube de Olavo.
Tratada como adversária, a tentativa dos generais de tutelar o governo cede cada vez mais espaço para sandices como a decisão oficial de bloquear verba de universidades consideradas hostis ao governo, como fez o ministro da Educação, ou o discurso de que o controle de armas nos transformaria na Venezuela, como fez o chefe da Casa Civil.
Não existe cessar-fogo se apenas um lado para de atirar. Os militares decidirão se reagem aos disparos, se recuam e cedem terreno ou se abandonam o front. Caso permaneçam imóveis, a guerra parece perdida.
Hélio Schwartsman: Por que Carvalho xinga tanto?
Guru da família Bolsonaro não está só, palavrões são um universal humano
Se há uma marca no pensamento de Olavo de Carvalho, são os palavrões —e não sei se há muita coisa mais. Na última série de críticas que lançou contra os militares que estão no governo, o ideólogo radicado na Virgínia (EUA) aludiu à parte final do tubo digestivo de um general e se referiu a outro pelo nome mais vulgar da matéria fecal. Por que Carvalho xinga tanto?
Nisso o guru da família Bolsonaro não está só. Palavrões são um universal humano. Não há idioma que não conte com um arsenal de palavras-tabu, quase sempre recrutadas da mesma meia dúzia de campos semânticos: sexo (foda, caralho), excrementos (merda, porra), religião (diacho), doenças e morte (lazarento, cretino) e minorias desfavorecidas (bicha, puta).
Como ensina Steven Pinker em “Do Que É Feito o Pensamento”, o que distingue palavrões dos termos mais ordinários da linguagem é a carga emocional que os primeiros encerram. Basta que apareçam numa fala ou mesmo por escrito para que sequestrem nossa atenção. Psicólogos desenvolveram até métodos (uma adaptação do teste Stroop) para medir quanto.
Nosso relacionamento especial com palavrões está tão arraigado no cérebro que o discurso blasfemo parece ocupar vias neuronais exclusivas. Há casos de pessoas que sofrem lesões cerebrais que lhes tiram a faculdade de falar (afasia), mas não afetam a capacidade de praguejar.
Em termos funcionais, o xingamento serve a múltiplos propósitos, que vão da agressividade (provocar o conflito) até a catarse (soltar um “porra” depois de martelar o próprio dedo ou de desperdiçar um pênalti). Em qualquer hipótese, o uso de palavras-tabu se inscreve como uma modalidade de pensamento mágico. É como se a pessoa que recorre ao palavrão estivesse invocando encantamentos que teriam o dom de afetar o mundo. É óbvio que a realidade não funciona assim, mas é um modo de agir que combina bem com quem acredita em astrologia.
Leandro Colon: Laranjal e balbúrdia
Bolsonaro teve dois encontros privados com ministro envolvido em esquema de laranjas
A Polícia Federal sob o governo de Jair Bolsonaro avança cada vez mais nas investigações do esquema de desvio de verba pública por candidatas laranjas do PSL, partido do próprio presidente.
O inquérito foi aberto após esta Folha, em uma apuração realizada pelos repórteres Ranier Bragon e Camila Mattoso, revelar que mulheres foram usadas pelo PSL em Minas para burlar a regra que destina 30% de recursos para uma cota feminina nas eleições.
E quem dirigia o PSL local na época? O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, deputado eleito. Empresas ligadas a assessores dele receberam recursos das chapas. Uma candidata acusou o ministro de participação na falcatrua.
A deputada Alê Silva, também eleita pelo PSL de Minas, afirma ter sido ameaçada de morte por Álvaro Antônio pelo fato de ela ter contribuído na descoberta do escândalo que envolve a sigla do presidente.
O que fez Bolsonaro até agora? Prometeu tomar uma decisão quando acabar a investigação policial. Curiosamente, o presidente teve dois encontros privados com o ministro do Turismo nas duas últimas semanas.
Trocaram figurinhas sobre o laranjal do PSL? Bolsonaro repassou ao seu ministro algum tipo de informação sigilosa que tem recebido de seus subordinados? Ou as duas reuniões oficiais no gabinete do Palácio do Planalto serviram para o presidente e o ministro discutirem estratégias de combate ao turismo gay no país? O que de fato a dupla tem conversado tanto reservadamente?
Nas buscas feitas há uma semana, a PF não encontrou evidências de que as gráficas citadas pelas candidatas laranjas à Justiça prestaram o serviço pago com verba pública eleitoral.
De nanico a força na Câmara catapultada pela onda bolsonarista, o PSL é uma balbúrdia (palavra da moda) política. É suspeito de desviar dinheiro de campanha, tem um ministro inexpressivo e enrolado até o pescoço e pouco contribui para o sucesso da agenda governista no Congresso. Um fiasco até aqui.
Bruno Boghossian: Bolsonaro exerce diplomacia da canelada na América Latina
Brasileiro parece distante de liderar uma possível guinada à direita na região
Em 2007, Lula disse aos jornais argentinos que Néstor Kirchner era “uma bênção extraordinária” e que a continuidade de sua gestão era “extremamente importante para a integração regional”. O petista dava os braços a outros políticos de esquerda para conquistar um papel de liderança na América Latina.
Na eleição daquele ano, Néstor lançou Cristina Kirchner, que saiu vitoriosa da disputa. Agora, a ex-presidente tenta voltar ao poder sob a oposição obstinada de Jair Bolsonaro.
A aliança esquerdista foi turbinada pela prosperidade econômica da época, graças à alta do petróleo e de outras matérias-primas. A diplomacia brasileira lubrificou ainda mais a relação, com financiamentos generosos. Os tempos mudaram, e o Brasil joga seu peso em outra direção.
Bolsonaro aposta numa onda de direita, escorado em sua própria eleição e na parceria com Donald Trump. A diferença é que sua diplomacia usa a truculência como método, tem pouco poder econômico e abusa das lentes ideológicas que sua chancelaria adora denunciar.
Nos últimos dias, o presidente atacou três vezes a possível volta de Cristina à Casa Rosada. “Peço a Deus que não aconteça”, afirmou. A candidata peronista carrega oito acusações de corrupção, mas lidera as pesquisas para a eleição de outubro.
Enquanto metia o bedelho na disputa, Bolsonaro fazia festa com um acordo comercial diminuto com os argentinos. Na sexta (3), ele foi às redes sociais para celebrar a abertura do mercado vizinho ao abacate brasileiro. A fruta representa só 0,007% das exportações do país.
O presidente dá outras caneladas internacionais violentas. Em meio à escalada da tensão na Venezuela, ele voltou a flertar com uma ação armada no país: “Quando acaba a saliva, entra a pólvora”.
Ainda que a América Latina vire à direita, Bolsonaro parece longe de liderar essa guinada. O chileno Sebastián Piñera, que nada tem de esquerdista, distanciou-se do brasileiro. Ele não gostou do entusiasmo com as ditaduras militares da região.
Demétrio Magnoli: Faroeste Brasil
Iniciativas presidenciais atacam regras que previnem a 'guerra de todos contra todos'
Bolsonaro organizou sua campanha presidencial em torno de um discurso ideológico, não de uma plataforma de governo. Hoje, quatro meses após a posse, temos finalmente uma clara plataforma de governo. O nome dela é faroeste Brasil.
Bolsonaro anunciou a intenção de conceder aos proprietários rurais o direito a portar armas e um passaporte de impunidade, cinicamente descrito como "excludente de ilicitude", para os que alvejarem invasores. A pretensão, que viola as leis existentes, implica a formação de milícias rurais privadas com selo oficial: o retorno a um passado no qual a proteção da propriedade privada se sobrepunha ao monopólio estatal da violência legítima.
Bolsonaro anunciou uma "limpa no Ibama e no ICMBio" e um drástico corte de recursos para a estrutura de fiscalização das unidades de conservação. Seu filho Flávio apresentou projeto de alteração do Código Florestal que eliminaria o capítulo referente à reserva legal de vegetação nativa nas propriedades rurais. A supressão permitiria o avanço das culturas em áreas de matas protegidas em estabelecimentos situados na Amazônia. De fato, seria a legalização dos negócios ilegais de desmatadores, madeireiros, palmiteiros, mineradores e invasores de terras indígenas. No Brasil profundo, passaria a valer a lei do colono armado.
Bolsonaro anunciou a retirada de todos os radares de tráfegoinstalados em rodovias federais. Há, de fato, uma lucrativa indústria de multas de trânsito que opera à base de armadilhas como radares ocultos, variações bruscas de limites de velocidade e confusa sinalização. Daí, o presidente não extraiu a necessidade de adequar o sistema de fiscalização ao propósito de educação dos motoristas. Optou, no lugar disso, por um programa de anarquia individualista nas estradas.
O ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, tem especial apreço por prisões preventivas. O juiz Marcelo Bretas, que segue a mesma linha, criticou a "visão tradicional" dos tribunais superiores que limitam a prisão preventiva às hipóteses previstas no Código de Processo Penal. Bretas expressou a visão de Moro ao afirmar que "hoje em dia é muito difícil o sujeito fugir" e, por isso, "o que querem é conseguir habeas corpus". No discurso legal bolsonarista, o habeas corpus é rebaixado do estatuto de pilar fundamental do direito moderno, salvaguarda da liberdade do cidadão diante do arbítrio estatal, à condição de estratagema de criminosos para escapar à justa punição.
Lula restaurou o Estado balofo, paternalista, corporativista e intervencionista, legado pelo varguismo. Bolsonaro gira o leme até a posição oposta, tentando instaurar o vale-tudo. O espírito da fronteira tomou o Palácio do Planalto. Cada uma das iniciativas presidenciais constitui um ataque às regras de convivência social que previnem o "estado de natureza" hobbesiano: a "guerra de todos contra todos".
Mas, que ninguém se engane: a plataforma de governo não é, rigorosamente, a do "Estado mínimo" desenhado nas utopias ultraliberais. Segundo Bolsonaro, o princípio do "Estado mínimo" aplica-se às esferas da administração das coisas e da garantia da liberdade dos indivíduos. Por outro lado, aplica-se o princípio do "Estado máximo" à esfera dos costumes e aos interesses das corporações de "amigos do rei".
O "Estado máximo" bolsonarista emerge em atos de puro arbítrio inscritos numa arena de "guerra cultural", como a interferência palaciana na publicidade do Banco do Brasil e os propalados cortes seletivos de verbas a cursos de humanas e universidades "esquerdistas". Assoma, igualmente, na concessão de benefícios preferenciais a grupos de pressão como igrejas, caminhoneiros e ruralistas.
Bolsonaro só não é um Putin, um Erdogan, um Maduro ou um Ortega porque está no país errado. Aqui, vale o que está escrito na Constituição. Por enquanto.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Bruno Boghossian: Quanto custa a reeleição
Reforma pode impulsionar economia, mas está longe de assegurar segundo mandato
O deputado Paulinho da Força (SD) disse algo está na cabeça de outros parlamentares. Em ato do 1º de maio, ele afirmou que o Congresso quer desidratar a reforma da Previdência porque acha que a aprovação de um texto potente vai encher o cofre do governo e “garantir de cara” a reeleição de Bolsonaro.
Líderes partidários foram a público para dizer que a ideia era mentira, doidice, loucura. “Acho que o Paulinho se entusiasmou”, declarou Wellington Roberto (PR).
Não existe nenhum acordo formal nesse sentido, mas alguns deputados acreditam, sim, que a reforma dará ao presidente um cheque em branco que se traduzirá em força política. Apertar o torniquete seria uma maneira de restringir a bolada que cairia nas mãos de Bolsonaro.
No limite, a lógica se assemelha ao método de Eduardo Cunha, que liderou o centrão para aprovar uma pauta-bomba que sangraria o caixa já detonado do governo Dilma e desgastaria ainda mais a presidente.
A aprovação da reforma, contudo, estará longe de garantir a reeleição de Bolsonaro. Ao lançar o alerta, Paulinho disse que um projeto levemente enxugado colocaria R$ 80 bilhões por ano no caixa do governo até o fim de 2022, mas os dados do Ministério da Economia apontam que o alívio nas contas não chegaria a metade disso, nos primeiros anos.
Se o texto passar pelo Congresso como está (o que é impossível), a poupança em 2020 será de R$ 16 bilhões. O valor daria uma folga apenas modesta aos ínfimos R$ 100 bilhões que o governo terá no Orçamento do ano que vem para investimentos e custeio da máquina pública.
O cenário é mais complexo. Em abril, perguntaram a Rodrigo Maia se o Congresso temia que Bolsonaro ficasse forte demais. O presidente da Câmara minimizou a preocupação: “Se ele aprovar a reforma, o Brasil crescer, gerar empregos e recuperar a capacidade de investimento, merece ser reeleito. Por que não?”. O novo governo ainda precisa cumprir muitas outras etapas antes de pensar em um segundo mandato.
Pedro Cavalcanti: Terrorismo
Como compreender que jovens aparentemente normais resolvam partir para atentados fatais?
Diante de ações terroristas que nos parecem tão cruéis e insensatas como incompreensíveis, hesitamos ante contra-atacar com maior violência ou tentar entender um fenômeno que, não sendo novo, adquire nova fisionomia com o passar dos anos. A primeira ideia de dobrar as apostas na contraviolência parece a muitos eficaz e inevitável.
Depois de quase cinco anos de combate, o califado islâmico de Abu Bakr al-Bagdadi foi destruído em duas etapas: em julho de 2018 rendeu-se a cidade de Mossul, no Iraque, e em 23 de março caiu o último bastião de guerreiros em Banghusz, na Síria. Antes de gritar vitória, contudo, interessa saber se não foram só mais dois episódios isolados na guerra interminável desencadeada pelo atentado às torres do World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Seguiram-se a morte de Saddam Hussein, no Iraque, em dezembro de 2006, em 2011 a de Muamar Kadafi, na Líbia, e no mesmo ano a de Osama bin Laden, fundador da Al-Qaeda.
Além dos resultados mais que duvidosos da política de pacificação regional, vale lembrar que a morte dos líderes ou apoiadores do terrorismo islâmico não impediu a continuidade dos atentados. De mais a mais, ataques perpetrados pelos chamados “lobos solitários” não se prestam a esse tipo de estratégia. Não se podem lançar bombas preventivas contra psicopatas isolados em quartos desconhecidos sonhando com massacres em escolas ou mesquitas. É quase uma constante: colegas de classe, de trabalho ou vizinhos caem das nuvens quando lhes dizem que o rapaz tímido e silencioso que conheciam saiu jogando bombas ou metralhando gente ao acaso.
Após o ato, muitos cometem suicídio, como os assassinos da escola Raul Brasil, em Suzano. Outros preferem seguir vivendo em busca da notoriedade que lhes darão as manchetes. Foi o caso, entre tantos outros, do terrorista que matou 49 pessoas no recente atentado a duas mesquitas da Nova Zelândia.
Na tentativa de contrariar esse exibicionismo sinistro, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, inaugurou um novo sistema de defesa. Falando ao Parlamento, ela disse que quando se referisse ao assassino não diria seu nome. E prosseguiu: “Imploro a todos que digam o nome daqueles que perderam a vida, não do terrorista que as tirou. Ele pode estar em busca de notoriedade, mas aqui, na Nova Zelândia, não lhe daremos isso. Não diremos nem mesmo seu nome”.
Embora simpática, a ideia de Jacinda seria melhor se fosse exequível, o que não parece ser o caso. O ídolo absoluto dos supremacistas brancos, muito citado em seus manifestos, é o norueguês que em 2011 liquidou 77 pessoas num ataque à bomba e a tiros num acampamento de verão para adolescentes.
Mas com ou sem nome na imprensa, seu feito será sempre lembrado pelos lobos solitários da supremacia branca. Com a internet a tentativa de negar notoriedade aos assassinos torna-se literalmente impossível. O atentado às duas mesquitas de Christchurch foi filmado pelo próprio assassino com equipamento amarrado na cabeça e postado na rede. O Facebook disse que removeu mais de 1,5 milhão de versões do vídeo. Outras plataformas, como YouTube e Twitter, igualmente lutaram para conter o alastramento da imagem. Mas já era tarde.
Outra maneira de combate ao terrorismo é localizar e vigiar indivíduos suspeitos de radicalização. É o que faz a França, que tem um sistema de supervisionar frequentadores de mesquitas conhecidas por pregadores simpáticos a atividades extremistas. Mas o sistema tem inúmeros inconvenientes. O primeiro deles é que não funciona. No tempo da ocupação nazista, a Gestapo montou um sistema contra a resistência francesa de uma brutalidade inigualável. Uma vez preso um resistente, alegava-se que não poderia ter agido sem o auxílio da família, e por essa razão não ia sozinho para a forca, mas eram igualmente castigados seus pais, irmãos e filhos maiores de 14 anos. Nos cartazes espalhados pela cidade todos eram classificados como terroristas judeus. Havia ainda castigos indiscriminados de populações suspeitas de ajudar os bolsões de resistência nas florestas.
Logo depois do desembarque aliado na Normandia, o Sturmbannführer Adolf Diekmann comunicou a seus oficiais que havia sido avisado por dois civis franceses da região da cidadezinha de Oradour que um oficial SS havia sido preso pelos “terroristas” e estava prestes a ser executado. Em represália, os habitantes de Oradour, homens, mulheres e crianças, foram trancados num celeiro e na igreja, que foram incendiados. Quem tentasse fugir era metralhado.
O vento da História logo viraria tudo de cabeça para baixo e os “terroristas”, transformados em heróis, assumiriam o controle do governo comandado pelo general Charles de Gaulle, até então apontado como líder dos terroristas.
Se hoje ninguém duvida do lugar a ser ocupado na História pelos resistentes franceses, assim como dos outros países europeus ocupados pelo regime nazista, o mesmo não se dá com os islamitas de hoje. Acreditam eles que defendem a religião, a independência em relação aos costumes e valores ocidentais, os ensinamentos do profeta Maomé. Até aí, nada de novo. Morrer por um ideal religioso ou político sempre foi motivo de respeito e estar disposto a morrer pela pátria é valor permanente em todos os exércitos regulares, mesmo em circunstâncias extremas, como a dos pilotos camicases prontos a morrer pelo imperador do Japão.
Agora, o que países ocidentais parecem incapazes de compreender é como rapazes que até então pareciam perfeitamente normais passam subitamente a orar voltados para Meca. Suas namoradas abandonam as minissaias e cobrem o rosto com o véu islâmico. Um dia partem para os atentados fatais. Catalogá-los simplesmente como fanáticos, vítimas de lavagem cerebral, não ajuda a entendê-los nem a combatê-los.
Mas o que os atrai? Talvez a vontade de dar um sentido à sua vida, desejo comum à juventude de todos os tempos.
*JORNALISTA E ESCRITOR
Daigo Oliva: Juan Guaidó, o breve?
Pobre oratória escancara a falta de repertório e carisma para liderar a oposição
Em janeiro de 2017, já distante da produção literária, o escritor americano Philip Roth retomou as descrições que fazia da bestialidade humana para caçoar de Donald Trump.
Mais do que os adjetivos que os contrários ao presidente dos EUA frequentemente usam para atacá-lo, o romancista apontou, em entrevista à revista New Yorker, um outro aspecto do republicano: o vocabulário enxuto, que teria apenas “77 palavras”.
Ainda que a falta de recursos linguísticos do líder de uma nação como os EUA esteja na prateleira das bestialidades humanas, o número escolhido por Roth foi um exagero cômico.
Talvez seja possível dizer que o vocabulário de Juan Guaidó, líder oposicionista que protagoniza o noticiário sobre Venezuela há três meses, seja tão vasto quanto o de Trump.
Em seus discursos, Guaidó parece um disco riscado que gravita em torno da palavra “usurpador”. Desde que se declarou presidente interino, foram poucas as vezes em que suas falas tenham pegado na veia ou não passassem de déjà-vu.
A pobre oratória do venezuelano escancara a falta de repertório e carisma que seriam necessários para liderar a deposição de Nicolás Maduro. Entretanto, fossem só as palavras o problema de Guaidó, a vida da oposição venezuelana estaria fácil.
Tanto a investida para tirar o chavista do poder com ajuda de militares dissidentes quanto a frustrada tentativa de entrada de ajuda humanitária foram marcadas por improviso.
Por isso, emendou uma turnê por países sul-americanos que o apoiam, decidindo o itinerário a cada dia e mudando agendas a todo momento. O que sobra de ousadia falta em estratégia.
Na terça (30), outro lance surpreendente foi seguido de um deus nos acuda. Ao lado de desertores da Guarda Nacional Bolivariana, Guaidó apareceu com Leopoldo López, que até então estava em prisão domiciliar, para anunciar o apoio de militares para tirar Maduro.
A reação do regime mostrou que as deserções não atingiram altas patentes das Forças Armadas. Guaidó sumiu e só voltou a aparecer ao fim da noite, com mais uma declaração insossa nas redes. Já López não sabia se dormia na embaixada do Chile ou na da Espanha.
Mas agora López não está mais confinado em casa. Mentor do plano de lançar Guaidó à presidência da Assembleia Nacional e depois transformá-lo em “presidente interino”, ele ainda é a grande figura do partido Vontade Popular.
Tão grande que foi condenado a 14 anos de prisão, algo que não ocorreu com o colega. Seria natural que López usurpasse o protagonismo de Guaidó.
Vinicius Torres Freire: Para entender a miséria da Venezuela
Preço do ovo, salário e petróleo contam um pouco da vida impossível no vizinho
A vida cotidiana parece impossível na Venezuela. Parece inviável até quando a gente compara a dureza dos vizinhos à situação terrível das famílias muito pobres no Brasil, que recebem em média R$ 186 por mês do Bolsa Família e pagam R$ 2,50 pelo quilo do arroz mais barato. Pode ser pior.
Uma dúzia de ovos em Caracas sai por 6.400 bolívares. Um quilo de arroz, por 8.000 bolívares. O salário mínimo, mais o bônus alimentação, é de 65 mil bolívares, US$ 12,50, pelo câmbio oficial. Um frango custa uns 25 mil bolívares. Uma banana (uma unidade), 1.200 bolívares. Mais da metade dos trabalhadores do setor formal ganha um salário mínimo, mas as estatísticas são precárias.
É difícil entender a economia de um país em que a inflação em março era de 1.623.656% ao ano. Baixou um pouco. Havia chegado a 2.688.670%, em janeiro.
No auge do horror, a inflação brasileira foi a 6.821% ao ano, em 1990. Diferença de milhares para milhões, favor prestar atenção.
A inflação é calculada pela Assembleia Nacional, pois faz muitos anos ninguém acredita nas mentiras do governo (quando os números existem). É preciso recorrer a estimativas privadas ou a instituições internacionais para saber algo tão básico quanto o valor da produção nacional, o PIB.
Os números da ONU (Cepal) e do FMI divergem um pouco, mas desde 2013 a economia encolheu pelo menos 45%. O PIB do Brasil, que vive uma depressão, diminuiu 4,2% no mesmo período. Nos chutes para este ano, a recessão venezuelana deve ser de 10% a 25%.
Em uma década, a produção de veículos caiu uns 95%. Sim, quase tudo se foi, quase não se fabricam carros por lá, como quase mais nada. O que havia de indústria foi arruinado por desordem extrema e por importações, facilitadas pela demagogia do dólar barato e pagas pelo petróleo caro —enquanto durou.
As importações totais do país caíram 85% desde 2012. O país não tem dólares suficientes para comprar produtos no exterior, dá calotes na dívida e se vira com refinanciamentos e empréstimos de russos e chineses. Nos chutes informados do FMI, a taxa de desemprego seria de 35%.
O país começou a entrar em colapso no ano da morte de Hugo Chávez, em 2013. Na média dos últimos 20 anos, cerca de 90% do valor das exportações veio do petróleo (mais de 95%, nesta década).
O preço do barril baixou muito a partir de 2014, o que explodiu de vez a economia, é verdade.
No entanto: 1) Quase todos os países da América Latina vivem de commodities. Mesmo levando em conta a importância excessiva do petróleo, a Venezuela se desgraçou mais que os vizinhos; 2) O governo gastava como se o preço do barril fosse ficar alto para sempre. Quem tem renda variável e despesa permanentemente alta, um dia quebra; 3) O governo destruiu a PDVSA, a petroleira estatal; 4) Não há nada parecido com política econômica na Venezuela faz mais de dez anos; 5) A produção de petróleo caiu pela metade desde 2013.
O déficit do governo começou a explodir nesta década. Nas contas do FMI, anda pela casa de 30% do PIB (no pior desta crise desesperadora, chegou a 11% no Brasil). O governo paga as contas com emissão de dinheiro (digital, pois nem imprimir notas consegue: falta moeda na praça).
Sim, o boicote americano piorou a situação, o que nem de longe explica o desastre. A reconstrução, se e quando vier, vai depender de anos de tutela e de empréstimos externos de muitas dezenas de bilhões de dólares.
Bruno Boghossian: Bolsonaro incentiva a formação de um governo de puxa-sacos
Auxiliares escancaram ideias bizarras para agradar e enterram critérios técnicos
Nenhum governante quer ter uma equipe que trabalha na contramão das diretrizes estabelecidas por sua gestão. Se um ministro não quiser seguir a linha determinada pelo presidente, por exemplo, pode tentar convencer o chefe a mudar de rumo ou, então, voltar para casa.
Jair Bolsonaro deixou essa orientação clara para seus subordinados. Depois de demitir um diretor do Banco do Brasil por causa de uma propaganda que tinha atores negros, ele passou o recado: “Quem indica e nomeou o presidente do banco? Sou eu? Não preciso falar mais nada”.
O presidente quer assessores afinados com suas visões. É normal que ele busque se livrar de dissidentes, mas o objetivo final é outro. Bolsonaro se move para eliminar focos de moderação e limpar terrenopara suas ideias mais radicais.
Na prática, o governo estimula a formação de um time de puxa-sacos. Nesse programa de incentivo à bajulação, pouco importam critérios técnicos ou avaliações sobre os projetos de um ministério. O importante é dizer “sim” para o chefe.
“Eu não sou armamentista? Então, ministro meu ou é armamentista ou fica em silêncio. É a regra do jogo. Tá ok? Mais alguma coisa?”, afirmou Bolsonaro no sábado (27).
Em primeiro plano, o núcleo extremista do governo quer evitar as marolas provocadas por declarações públicas como as do vice-presidente Hamilton Mourão. O objetivo secundário é neutralizar e constranger personagens, principalmente entre os militares, que trabalham para bloquear os planos desse grupo.
Ganham espaço, como consequência, um ministro da Educação que pratica asfixia financeira em universidades consideradas críticas ao governo e um presidente de banco como Rubem Novaes, que acusa a esquerda de valorizar minorias e tratar “o cidadão normal como exceção”.
Os dois podem disputar a plaquinha de funcionário do mês. Além de escancararem posições bizarras para agradar ao presidente, mostram que não têm a menor preocupação com políticas públicas sérias.
Folha de S. Paulo: Líderes da oposição se unem a militares dissidentes para derrubar Maduro, que reage
Operação Liberdade, de Juan Guaidó e Leopoldo López, leva a confrontos com forças de segurança leais à ditadura
Nesta quarta-feira (1º), a oposição da Venezuela convocou novos protestos contra o ditador Nicolás Maduro, no segundo dia de ações pra tentar retirá-lo do comando do país.
Na terça (30), houve confrontos em Caracas. O líder da oposição, Juan Guaidó, e o preso político Leopoldo López se dirigiram à base aérea de La Carlota e anunciaram uma ação contra Maduro, com apoio de militares dissidentes.
Em resposta, o ditador disse que as Forças Armadas do país seguem leais a ele, e convocou uma manifestação popular em apoio a seu governo.
López, que estava prisão domiciliar desde agosto de 2017, cumprindo pena de quase 14 anos por incitação à violência em protestos contra o governo, disse ter sido "liberado por militares à ordem da Constituição e do presidente Guaidó".
Os dois deixaram a base quando o local passou a ser alvo de bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela Guarda Nacional Bolivariana (GNB), alinhada ao regime Maduro.
Isso deu início a uma série de confrontos pelas ruas de Caracas entre os opositores e as forças leais a Maduro. Dezenas de pessoas ficaram feridas na ação e López acabou se refugiando com a família na embaixada do Chile em Caracas.
A situação teve repercussão internacional, com diversos líderes se manifestando a favor e contra o regime de Maduro.
O chanceler venezuelano, Jorge Arreaza, acusou o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, de ser uma "peça no xadrez de [Donald] Trump".
Já Bolsonaro afirmou que é "próxima de zero" de Brasil participar de ação armada na Venezuela.
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