Folha de S. Paulo
Elio Gaspari: A fábula do investidor estrangeiro
O governo, o "mercado" e os bumbos da orquestra garantem que, uma vez aprovadas as reformas do "Posto Ipiranga", a economia brasileira entrará num ciclo virtuoso. Tomara. Em tese, há bilhões de dólares esperando o sol nascer para jogar dinheiro no Brasil.
Imagine-se um investidor belga que já pôs milhões no Chile, reunido em Bruxelas para decidir um investimento.
Seu consultor informa:
— O novo presidente do Brasil quer abrir a economia, está afrouxando as leis do meio ambiente, fez uma faxina no marxismo cultural e combate os movimentos LGBT.
— E como são suas relações com os políticos?
— Ele diz que não negocia no varejo.
— Ele manda no Congresso?
— Ainda não, mas promete apertar os parafusos.
— Manda no Judiciário?
— Não, tudo depende das turmas do Supremo, mas o presidente do tribunal tem a sua simpatia.
— Manda na imprensa?
— Ele tem apoio nas redes sociais e em algumas redes de televisão.
— Tem apoio popular?
— Ele prometeu acabar com o ativismo, mas há manifestações de rua de estudantes contra o governo.
— Sua política econômica nos favorece?
— Ele tem um passado estatista, mas é um liberal converso. Nos primeiros três meses de governo a economia encolheu 0,2%.
— Como anda a economia do Chile?
— No último trimestre ela cresceu 1,6%. O presidente Sebastián Piñera é um conservador que sabe operar pelas regras do jogo.
— E a da Rússia?
— Cresceu 2,3% no ano passado.
— Então vamos continuar no Chile e botar esse investimento na Rússia. Lá o Vladimir Putin já fez o serviço que esse brasileiro promete.
Paes e o óbvio delirante
O ex-prefeito Eduardo Paes tem uma queda pelo uso da expressão "é óbvio".
Depois do terceiro desabamento da ciclovia Tim Maia ("certamente a mais bonita do mundo", nas suas palavras) ele disse o seguinte:
"É óbvio que, se eu pudesse, não faria de novo".
O doutor justificou-se lembrando que "o grande problema ali é o fato de a ciclovia estar em uma área que tem, de um lado, o mar, e do outro, a encosta do morro". Ao que se saiba o mar e o morro estão lá há milhões de anos.
Quando a ciclovia desabou pela primeira vez, em 2016, matando duas pessoas, Paes foi didático:
"É óbvio que se essa ciclovia tivesse sido feita de forma perfeita, não teríamos essa tragédia".
Paes governou o Rio de 2009 ao final de 2016 e dizia que todos os governantes "têm inveja de mim".
Felizmente o doutor começa a reconhecer o que não "faria de novo". Antes tarde do que nunca.
Ficando-se só no caso da ciclovia, talvez ele não entregasse a obra a uma empresa que pertencia à família do seu secretário de Turismo. Mesmo que fizesse isso, não entregaria o gerenciamento da construção à mesma firma. Nem deixaria que a obra tivesse oito aditivos, elevando seu custo de R$ 35 milhões para R$ 45 milhões.
Quando o Rio vivia a síndrome do delírio do governador-gestor Sérgio Cabral e do prefeito olímpico Eduardo Paes, chamar a atenção para o óbvio era falta de educação.
A diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, andou no teleférico do Alemão e sentiu-se "nos Alpes". O bondinho custou R$ 210 milhões, operou de 2011 a 2016 e desde então está parado.
Jabuti milionário
Com a paciência dos jabutis, o projeto de reabertura do jogo vai em frente.
Sabe-se lá qual mágica Bolsonaro tinha na manga quando prometeu "um projeto" capaz de gerar um "caixa maior do que a reforma previdenciária em dez anos".
Há poucas semanas, o jabuti reapareceu quando surgiu na Câmara a ideia de se apresentar um substitutivo para o projeto de reforma da Previdência.
Nas contas dos defensores da legalização da jogatina, ela poderia render de R$ 10 bilhões a R$ 18 bilhões anuais aos cofres públicos.
Nos últimos anos a tavolagem teve ilustres defensores: os governadores Sérgio Cabral e Pezão, bem como o ministro Geddel Vieira Lima. Estão todos na cadeia.
Maré baixa
Depois de um período de inédita prosperidade, escritórios de advocacia que foram abastecidos pela clientela da Lava Jato começaram a encolher.
Sistema C
O sindicalismo patronal deveria mudar o nome do Sistema S, chamando-o de Sistema C, com a inicial da censura.
Os doutores não querem cumprir a determinação do governo que manda colocar as contas das confederações e federações no banco de dados alimentado para atender à Lei de Acesso à Informação.
Querem arrecadar bilhões mordendo as folhas de pagamento, mas não querem mostrar o que fazem com o dinheiro.
Poderiam expor apenas os custos dos jatinhos usados pelos maganos em suas viagens pelo país.
Saudade do Vélez
O ex-ministro Ricardo Vélez tinha um lado folclórico. Seu sucessor, Abraham Weintraub, trocou o pitoresco pela truculência.
Na quinta-feira (30) ele disse que estava recebendo "cartas e mensagens de muitos pais de alunos citando explicitamente que alguns professores, funcionários públicos, estão coagindo os alunos e que serão punidos de alguma forma caso eles não participem das manifestações".
O doutor precisa definir "coagindo" e mostrar as provas, responsabilizando, na forma da lei, os eventuais coatores.
No embalo, informou que pais, professores e alunos "não são autorizados a divulgar e estimular protestos durante o horário escolar".
Não há registro de que o doutor Weintraub fume, tabaco ou qualquer outra coisa.
Eremildo, o Idiota
Eremildo convida seus admiradores para a posse do ex-deputado André Moura no cargo de secretário extraordinário da representação do Rio de Janeiro em Brasília. O doutor responde a três ações penais no Supremo Tribunal Federal.
Na ocasião o idiota compartilhará com seu colega Wilson Witzel o título de doutor pela Universidade Harvard.
Como é hábito nas escolas americanas, os ex-alunos acrescentam aos seus nomes o ano da formatura. Eremildo será o "Idiota, Fake '19". O governador do Rio é "Witzel Fake '15".
Alquimia
O ministro Dias Toffoli começou um pós-doutorado em alquimia. Inventou um evento para firmar um pacto com o Executivo e o Legislativo e conseguiu rachar o Judiciário.
Ganha uma senha para escalar o Everest quem souber qual será o resultado concreto do tal pacto.
Doria e FHC
Se João Doria pudesse, queimava vivos os tucanos elegantes.
Mesmo assim, não lhe passa pela cabeça hostilizar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Levy e Salles
Joaquim Levy atravessou incólume as administrações de Sérgio Cabral e de Dilma Rousseff.
Como presidente do BNDES de Bolsonaro engoliu um sapo cururu ao dispensar a chefe do departamento de meio ambiente do banco para atender a um delírio do ministro Ricardo Salles.
Resta saber se achou que sapo tem gosto de mexilhão.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Hélio Schwartsman: O poder da inteligência
Segurança aeronáutica é exemplo de que o anti-intelectualismo não se justifica
Um dos ingredientes da onda de populismo de direita que afeta vários países é a perda de confiança na figura do especialista. Não é uma coincidência que o anti-intelectualismo marque o discurso de figuras tão distintas como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Não vou discutir hoje as origens dessa descrença, mas apenas tentar mostrar que ela não se justifica (ao menos não de forma generalizada).
Um bom exemplo do poder da inteligência é a segurança aeronáutica. Em meados dos anos 70, a taxa de óbitos por milhão de voos comerciais era um pouco superior a quatro. Hoje, é inferior a 0,5. A razão principal para a diminuição são melhorias tecnológicas e de procedimentos concebidas por especialistas.
O que tornou os avanços na aviação tão perceptíveis é uma rara conjunção de fatores. Para começar, a maior parte dos problemas a resolver é de física (clássica), e a física, ao contrário de seres humanos, responde de modo sempre igual às intervenções.
Um setor com relativamente poucos fabricantes e aerolinhas de grande porte, aliada a uma regulação relativamente eficaz, faz com que cada acidente (mesmo os pequenos) seja metodicamente investigado e se traduza rapidamente em aperfeiçoamentos técnicos e recomendações que são seguidas por todos.
A Folha trouxe na edição de sexta a bela história do engenheiro brasileiro que, após perder uma filha na queda do voo AF447, que fazia a rota Rio-Paris, desenvolveu três soluções para o problema do tubo de Pitot congelado, falha que desencadeou a tragédia.
Não conseguimos a mesma eficiência na prevenção de outros tipos de desastre, mas, se atentarmos para as tendências históricas, verificaremos que tem havido progresso global em quase todos os campos, de mortes no trânsito a óbitos por cataclismos, passando por acidentes do trabalho.
Enquanto o mundo avança, Bolsonaro fala em acabar com os radares de velocidade.
Demétrio Magnoli: Nossa Moncloa de mentira
Partidos podem firmar pactos, pois representam seus eleitores; Poderes, não
O "pacto dos três Poderes" ensaiado por Toffoli, Rodrigo Maia e Bolsonaro foi descrito como uma reedição dos pactos assinados no governo Lula, em 2004 e 2009. A interpretação apega-se à forma para ignorar a substância. Os pactos lulistas circunscreviam-se à criação do Conselho Nacional de Justiça e à reforma do Judiciário. Já o "Pacto pelo Brasil", nome cunhado no forno da novilíngua orwelliana, pretende reinventar a sociedade (reformas previdenciária e tributária) e o Estado (pacto federativo, administração pública e segurança pública). Seria a nossa versão da Moncloa: uma Moncloa ao avesso.
O Pacto da Moncloa —um acordo político e outro econômico, assinados em outubro de 1977— traçou o rumo da transição espanhola do franquismo à democracia parlamentar. Na foto histórica, estão os líderes dos partidos de direita (Manuel Fraga, da AP), centro-direita (Adolfo Suárez e Calvo-Sotelo, da UCD), centro-esquerda (Felipe González e outros), esquerda (Santiago Carrillo, do PCE) e dos autonomistas bascos e catalães. A reinvenção da Espanha, obra quase milagrosa, foi um pacto entre partidos, não entre Poderes. Sugiro aos três "pactuadores do Brasil" que estudem o evento do Palácio da Moncloa, uma aula magna sobre a arte da construção de consensos democráticos.
Os espanhóis fizeram uma grande transação. A economia herdada do franquismo, um capitalismo de Estado erguido sobre oligopólios, desfazia-se sob os golpes da inflação e do déficit público. As reformas modernizantes nas esferas fiscal e previdenciária envolveram a contenção temporária de aumentos salariais. Os social-democratas e comunistas aceitaram a pílula amarga em troca de reformas políticas que consagraram as liberdades de imprensa, associação e manifestação, além da criminalização da tortura e da despenalização do adultério. Na encruzilhada da reforma previdenciária, o Brasil teria transações significativas a realizar, se escolhesse inspirar-se na experiência da Espanha.
Partidos têm o direito de firmar pactos, pois representam seus eleitores. Poderes não têm esse direito, pois suas prerrogativas estão limitadas ao que prescreve a legislação. Maia nada pode assinar sem a anuência impossível do conjunto dos deputados. O caso de Toffoli é mais grave: sua mera presença numa reunião destinada a costurar acordos políticos indica uma disposição subversiva de submeter o Judiciário às conveniências do Executivo. Os ministros do Supremo fariam bem se proibissem ao presidente do tribunal a travessia da Praça dos Três Poderes.
O "Pacto pelo Brasil" é uma encenação tão pomposa quanto vulgar. Para decifrá-la, substitua o nome da pátria pelos de seus promotores. Bolsonaro, que não comanda nem mesmo seu partido, almeja terceirizar a responsabilidade de formação de uma maioria parlamentar pela reforma da Previdência. Maia tenta, apenas, desviar-se da mira dos canhões montados nas redes sociais olavo-bolsonaristas. Toffoli sonha galgar a posição de Moderador da República, aceitando trocá-la pela independência do STF.
O pacto espanhol de 1977 nasceu da necessidade de enterrar uma ditadura de quatro décadas. O esboço de pacto brasileiro emana de manifestações governistas que clamaram pelo fechamento do Congresso e do STF. A Moncloa deles orientava-se pela bússola da democracia; a nossa reaviva o discurso autoritário da "harmonia entre Poderes" para anular os contrapesos institucionais ao Executivo.
Na Espanha que rompia com o franquismo, as lideranças colocaram o interesse nacional acima dos interesses partidários. A Moncloa de verdade inaugurou a nação moderna, próspera, integrada à União Europeia. No Brasil que se recusa a avançar, a invocação do interesse nacional funciona como camuflagem de mesquinhos interesses pessoais. A Moncloa de mentira é só uma nota de rodapé na crise do bolsonarismo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Bruno Boghossian: Popularidade de Bolsonaro já sofre desgaste entre os mais ricos
Pesquisa XP/Ipespe mostra que insatisfação com governo subiu a pirâmide de renda
O desgaste da imagem de Jair Bolsonaro começou a subir a pirâmide de renda. O presidente já havia perdido pontos entre eleitores mais pobres e da classe média, mas preservava seu capital político nos andares de cima. Pesquisas do último mês sugerem que a insatisfação chegou a quem ganha mais.
O último levantamento XP/Ipespe indicam uma disparada da reprovação a Bolsonaro desde abril em segmentos de renda mais alta. No grupo que recebe mais de cinco salários mínimos, o índice de eleitores que consideram o governo ruim ou péssimo passou de 22% para 41%.
As fatias mais ricas da população foram as primeiras a aderir à candidatura de Bolsonaro durante a campanha, segundo pesquisas da época. O candidato conseguiu consolidar o apoio desses núcleos e, depois, expandiu seu eleitorado para a classe média e para os mais pobres. Agora, a erosão ocorre no sentido inverso.
Números de março registravam que os brasileiros com renda de até cinco salários reduziam sua aprovação ao presidente. Dois meses depois, é possível enxergar uma curva semelhante nas faixas superiores.
Entre eleitores com renda acima de cinco salários mínimos, o percentual de entrevistados que consideram o governo ótimo ou bom caiu de 47% para 34%. A margem de erro nesse recorte é maior, mas os dados apontam para uma tendência relativamente constante nesse grupo.
Regiões que deram vitórias expressivas a Bolsonaro no segundo turno também registram mudanças. No Sul, onde o candidato do PSL recebeu 7 de cada 10 votos válidos, sua aprovação está em 40%. Em janeiro, só 13% dos entrevistados consideravam o governo ruim ou péssimo. Agora, esse índice é de 32%.
A desidratação da popularidade é normal, especialmente no meio de um atoleiro econômico duradouro. As pesquisas, porém, mostram que culpar forças terríveis pelas frustrações do governo não deve colar. Quase metade da população (47%) ainda acha que o governo será bom, mas o tempo está passando.
Hélio Schwartsman: O voto tem consequências
Sabemos desde Platão que o eleitorado é presa fácil para demagogos
Fica cada vez mais fundo o buraco em que o Reino Unido se meteu ao decidir pelo brexit. Com a renúncia de Theresa May, ampliam-se as chances de o país deixar a União Europeia sem nenhum tipo de acordo, o que seria desastroso para a economia.
Também fica maior a probabilidade de “remainers” encontrarem alguma brecha política ou jurídica para exigir um segundo plebiscito, que, na hipótese de produzir um resultado diferente daquele do primeiro, causaria danos para o mecanismo de consulta popular e, por extensão, para a própria democracia.
Como os britânicos puderam cair nessa armadilha? A triste verdade é que a democracia, em especial a democracia sem filtros, traz esses riscos. Nós sabemos desde Platão que o eleitorado é presa fácil para demagogos. O que a ciência política e a psicologia modernas fizeram foi descrever com minúcia os vieses pelos quais as pessoas se deixam levar, além das aporias irredutíveis de processos de decisão por maioria.
O curioso é que, apesar das possibilidades quase infinitas de a democracia dar errado, os países que a adotam estão no geral muito melhor do que os que a desprezam. Ao que tudo indica, ela funciona, mas não pelas razões que gostaríamos.
As virtudes da democracia não estão nas escolhas que ela gera, mas em efeitos secundários que vêm no pacote de produtos que costumam acompanhá-la. São itens como liberdades individuais, direito de propriedade, segurança jurídica e, também, a percepção de que a disputa pelo poder segue regras justas e que a parte derrotada não enfrentará ameaça existencial, podendo até vencer no próximo ciclo. Juntos, esses elementos costumam promover a moderação.
O problema do populismo é que, ao vender falsas soluções fáceis, ele desequilibra o jogo e pode colocar países em caminhos totalmente inadequados ou mesmo sem volta. Como os brasileiros estão descobrindo, o voto tem consequências.
Leandro Colon: Bandeira e boneco não dão votos a Bolsonaro no Congresso
Se presidente quer tirar o governo da UTI, deveria parar de medir forças
O presidente Jair Bolsonaro pagou para ver e conseguiu, surpreendentemente, um público considerável nas ruas a favor de seu governo. O protesto deste domingo (26), no entanto, é incapaz de contornar a maior fragilidade de sua gestão: a relação com o Congresso.
A eleição já passou. Não adianta empunhar bandeira verde-amarela mirando em quem pode inviabilizar as pautas governistas. Os alvos principais foram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o centrão.
Sem eles, Bolsonaro não vai a lugar algum. É política, queira ou não. Na falta de capacidade para fazê-la, o presidente apelou, e quem apela tem grandes chances de perder no final.
Se ele quer tirar o governo da UTI, deveria parar de medir forças. Bandeira e boneco inflável não dão voto no Congresso. É hora de pragmatismo, de colocar a bola no chão, dar um pito na deslumbrada e ineficiente bancada da selfie do PSL e aconselhá-la a usar os telefones para negociar voto a favor do Planalto.
É um governo sem base e com o agravante de o partido do presidente comportar-se de maneira negligente. Não há graça alguma na imagem dos deputados desfilando simpatia pelas redes sociais em plena sessão de interesse do país.
A votação da reforma da Previdência no plenário da Câmara, quando e se ocorrer, será uma final de Copa do Mundo. O Planalto e seus apoiadores no Congresso podem errar agora, agir como se estivessem em um parque de diversões, mas não terão margem para falhas lá na frente.
O ministro Paulo Guedes (Economia) avisou que pulará fora do barcose a reforma fracassar. Caso o Senado confirme a votação da Câmara, o Coaf sairá da Justiça e Sergio Moro terá ainda de trabalhar muito para conseguir passar o projeto anticrime.
Guedes e Moro são os fiadores políticos do governo. Bolsonaro perderá prestígio e musculatura se um dia ficar sem um deles ou ambos. Embora finja que não, o presidente sabe que, em um cenário hipotético de catástrofe política, as ruas, por si sós, não são suficientes para sustentá-lo.
Igor Gielow: Bolsonaro volta à radicalização e contrata próximo capítulo da crise
Manifestações garantem fidelização de eleitorado, mas risco institucional continua no ar
A condução retórica de Jair Bolsonaro (PSL) à frente da Presidência segue uma previsibilidade banal, como atestou seu comportamento ao longo do domingo (26).
Primeiro, ele deu as senhas para as manifestações convocadas por sua militância virtual ao endossar um textoque via na dita “velha política” a origem de todos os males que o impedem de revolucionar a vida brasileira. Depois, dada a reação dentro (militares) e fora (praticamente todos os atores políticos) do governo, Bolsonaro voltou atrás e pediu comedimento.
Quando surgiram as primeiras imagens de gente na rua em apoio a qualquer coisa associada ao governo, incluindo aí ataques ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro passou a alimentar suas redes sociais com a celebração da manifestação. Alguém poderá argumentar que foi o filho vereador, Carlos, o responsável pela tática, mas o fato é que não faz diferença a essa altura do campeonato.
Se não “lacrou”, para ficar na novilíngua virtual em vigor, ao menos surfou nos atos que foram conclamados por ele e sua claque. Nesse sentido, a espontaneidade proclamada pelo presidente não é nada mais do que uma empulhação, assim como foram os movimentos supostamente racionais ao longo da semana passada.
Como o bom senso sugeria, houve bastante gente na rua, mas nenhum tsunami inesperado. Nem tampouco houve o fracasso que a torcida à esquerda previa. O presidente ficou no meio-termo, curiosamente neste ponto muito semelhante ao apoio orgânico dado ao PT —algo como um terço do eleitorado, conforme indicam as pesquisas eleitorais neste ponto.
Assim, não houve nada que assustasse o Congresso como o ato em defesa da educação da semana retrasada —cujo poderio ainda precisa ser avaliado, pois se refluir a um ambiente esquerdista, tenderá a dissolver enquanto força de pressão. O Brasil de 2019 é um país à direita.
Por outro lado, o apoio e o tom em vários pontos do país, de confronto e radicalização, dão a senha para a contratação das próximas crises do governo. Como não tem uma base organizada, o governo verá o Congresso reagir à retórica das manifestações ditas espontâneas. Parlamentar tem medo de rua, mas é possível argumentar que elas estão longe de falar uma única língua. O fracasso do PT em defender Dilma Rousseff em 2015-16, apesar de toda a “expertise” de protestos, é um lembrete útil ao bolsonarismo.
A eventual aprovação da reforma da Previdência, pauta incluída entre tantas outras nos protestos deste domingo, não poderá nesse sentido ser colocada na conta dos efeitos de uma pressão popular. Até porque ela está longe de ser uma bandeira popular.
No Judiciário, engana-se quem acha que o Supremo não cerrará fileiras em torno da defesa da instituição. A movimentação recente do presidente da corte, Dias Toffoli, indica uma interlocução bastante efetiva com diversas instâncias do mundo político. O presidente não terá vida fácil.
Desde o começo do governo Bolsonaro, as alas mais próximas do presidente no círculo que se autointitula antiesablishment só procuram o confronto. Acreditam, de forma declarada, que é preciso “quebrar o sistema”, seja lá o que for isso, em nome da purificação das práticas políticas do país. Historicamente, esse tipo de ruptura nunca dá em coisa boa quando ocorre.
Naquele núcleo duro, o único filho mais ponderado do presidente na política, o senador Flávio, perdeu voz ao se ver envolvido na investigação sobre milícias do Rio de Janeiro. A radicalização da prole restante e do pai deram o tom do enfrentamento, que a esta altura só garantiu uma vitória: a da degradação ainda maior do ambiente político, com meros cinco meses de governo.
Vinicius Torres Freire: Quando está sem rumo, governo e dinheiro, país fala de parlamentarismo
Sem rumo, governo, dinheiro e dividido, Brasil volta a falar de mudar de regime
Quando a elite política está perdida, ressurge a conversa de parlamentarismo, seja “branco”, pingado, semidesnatado ou até integral, com mudança de fato de regime de governo.
Isso deu em nada ou jamais prestou, em 1961, 1988, 1993 ou 2016. No entanto, a pressão do presidente e do bolsonarismo contra o Congresso incita medo e revolta parlamentar, clima propício para o impasse, beco sem saída onde justamente vivem fantasmas ou fantasias como a do parlamentarismo.
Vários senadores, não apenas tucanos, planejam lançar a mudança constitucional para o governo que começa em 2022. Vários deputados, no limbo entre a falta de liderança do governo e a pressão de ruas e redes, se interessam pelo assunto.
Além desse devaneio, há o programa conhecido, mas ainda tateante, de limitar os desvarios de Jair Bolsonaro e de substituir a inoperância do governo. Como se tem sabido, a Câmara em particular pretende, imagina ou fantasia:
1) ter “pauta própria”, a começar pelas reformas da Previdência e tributária;
2) limitar o poder do presidente de baixar medidas provisórias;
3) evitar que Bolsonaro faça nomeações estrambóticas para agências de governo, Ministério Público e Judiciário;
4) derrubar decretos ilegais, ineptos ou repugnantes do presidente, que tem apreço especial pelo instrumento.
Apesar dessas vontadezinhas de poder, a voz esganiçada das redes e a ameaça das ruas assustaram deputados, como se notou nas votações da semana passada. O ronco das redes também fez aumentar na Câmara aquela raiva derivada do medo. Um dos principais motes das manifestações convocadas pela extrema direita neste domingo (26) é “Contra o centrão”.
Além disso haverá faixas e discursos pela reforma da Previdência, pela Lava Jato e gritos golpistas. Desse modo, o centrão e, em geral, o miolão do Congresso, mais de 300 deputados, ficam no triângulo das bermudas assim demarcado: a) pelos chinelos de Bolsonaro, que os detesta; b) pelas ruas adversárias da reforma; c) pelas ruas que os odeiam e os pressionam a votar com o presidente, até pela reforma.
Ficam, pois, acuados, sem ter para onde correr e com dificuldade de fazer qualquer coisa. Mesmo com o bom senso de lideranças que querem evitar o colapso econômico e administrativo, o Parlamento não tem condições de governar no presidencialismo.
Em outra era geológica do Brasil, o parlamentarismo foi o meio de evitar um golpe militar, apenas adiado em 1961.
Na ruína de José Sarney (1985-90), o Congresso dominado pelo velhoMDB (incluía tucanos e “autênticos”) tentou controlar o governo —não evitou o naufrágio nem o descrédito das lideranças políticas, o que daria em Fernando Collor.
No começo dos anos 1990, depois de uma década de crise econômica, com o colapso de Collor (outro salvacionista populista) e com a perspectiva de um plebiscito, voltou a conversa parlamentarista, derrotada de lavada pelo eleitorado.
Pouco antes da derrubada de Dilma Rousseff, ainda se pensou em trocar impeachment por parlamentarismo. Depois do Joesley Day, Michel Temer falava em mudar o regime em 2018.
Essa conversa de parlamentarismo é sintoma de país desembestado, desgovernado, sem acordo nenhum do que deve ser feito, sem força hegemônica capaz de impor direção, desarticulado politicamente e com sociedade dividida e à deriva. Não é remédio, é diagnóstico. Errado.
Se a re-recessão vier, florescerão ainda mais flores de ideias malucas.
Bruno Boghossian: Auxiliares de Bolsonaro já veem risco em choques com Congresso
A ficha começou a cair em alguns gabinetes do Planalto. Parte dos auxiliares de Jair Bolsonaro considera um risco o comportamento do partido do presidente e acredita que a estratégia de apostar na pressão das ruas contra o Congresso pode levar o governo ao precipício.
O primeiro teste da bancada lacradora, que usa a gritaria das redes para constranger os demais deputados, mostrou aos assessores presidenciais que esse modelo é insustentável. Enquanto blogueirinhos do PSL festejavam os 210 votos obtidos na derrota que tirou o Coaf de Sergio Moro, outros aliados de Bolsonaro assistiam a um desmoronamento.
A sigla se tornou um problema para os articuladores que estão verdadeiramente interessados em aprovar os projetos de interesse do governo. Em um par de dias, os parlamentares conseguiram descumprir acordos firmados dentro do palácio e ofenderam até colegas que estão dispostos a votar a favor de Bolsonaro.
Ainda que o tumulto tenha forçado a Câmara a desistir de criar um novo ministério, assessores do presidente entendem que é impossível governar dessa maneira. Se cada votação exigir uma balbúrdia do tipo, em poucas semanas não restará de pé nenhuma ponte com o Congresso.
Alguns deputados já levaram a queixa a Bolsonaro. Eles disseram ao presidente que a situação é grave, pediram que ele imponha disciplina ao PSL e interrompa os conflitos com os parlamentares.
Com o receio da deterioração completa das relações políticas do Planalto, cresceu entre assessores presidenciais a defesa de uma reforma ministerial imediata. A ideia é aproximar siglas e políticos que possam dar sustentação ao governo e reduzir sua dependência do caos.
Ainda que conselheiros mais sensatos tentem convencer Bolsonaro de que é preciso mudar, o resultado é incerto. Eles temem que as manifestações deste domingo empurrem o governo de volta ao caminho anterior. Embora possa se sentir mais forte, o presidente fica cada vez mais vulnerável em seu castelo de areia.
Folha de S. Paulo: 'Estamos em transição, mas sem saber para quê', afirma FHC
Ex-presidente diz que sistema político criado em 1988 desapareceu na última eleição
Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo
Fernando Henrique Cardoso diz que sistema político criado em 1988 desapareceu na última eleição, pautada mais pela negação do que pela proposição; sociólogo e ex-presidente acredita que sucessor de Bolsonaro deverá ser um nome carismático.
No princípio da reforma política brasileira está o verbo de um líder quase carismático, afirma o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, 87, em entrevista à Folha, um dia depois das manifestações de 15 de maio.
FHC diz que esse é um caminho arriscado, mas saída provável para a superação da crise do sistema político do pós-1988, que para ele se desmilinguiu, e de um cenário de instituições abaladas pela fragmentação e pelo imediatismo das redes sociais.
Quanto ao impasse criado pelos atritos entre Jair Bolsonaro e o Congresso, FHC diz que a democracia depende de paciência histórica e comedimento no uso da força política.
Pode haver impeachment? FHC diz que continua reticente quanto a essa medida —em sua visão sempre traumática, mas por vezes inevitável. “O que produz impeachment é a confluência da infração legal com a paralisia do governo, quando o Congresso para de decidir”. Não seria o caso agora, avalia.
Quanto à liderança carismática, trata-se de alguém com grande capacidade de comunicação (sim, um Luciano Huck), que pode criar um projeto nacional pactuado que aglutine movimentos políticos novos.
Ao falar de carisma, FHC trata de Max Weber. Para o sociólogo alemão (1864-1920), o líder carismático deve sua força ao reconhecimento de suas características extraordinárias. Isto é, daquelas que lhes são atribuídas por um grupo social que reconhece a autoridade legítima desse líder, de quem espera a transformação da rotina cotidiana, da vida normal e, no limite, da ordem estabelecida.
O ex-presidente observa que PT e PSDB, que organizaram a disputa política por um quarto de século, não perceberam a “tempestade que vinha”. Além das mudanças na interação via redes, o surgimento rápido de grupos sociais e a perda de representatividade de organizações tradicionais da sociedade civil contribuíram para a ruptura e o aumento do conflito nas elites do poder. Há uma transição para não se sabe onde.
“A eleição de Bolsonaro foi consequência do ‘não’, não do ‘sim’. ‘Não quero PT, corrupção, partidos, políticos, desordem, crime’”, diz FHC.
“Nossa elite política é também consequência da mudança muito rápida da sociedade. Tem menos habilidades políticas tradicionais, que a antiga classe dominante tinha. Nossa democracia é mais representativa [agora], mas não quer dizer que seja mais capaz de lidar com grandes problemas institucionais. Mas vai aprender”.
O governo não forma uma coalizão. O Congresso fala em ter pauta própria. A insatisfação com a situação econômica e social cresce. Na política, onde vai dar isso?
Algo está errado no nosso sistema institucional. Depois de 1988, todos os presidentes sofreram impeachment ou foram presos, com a minha exceção. Há um sistema de coalizão em que não há partidos, que se deterioraram mais, se desmilinguiram.
A formação de maiorias é cada dia mais difícil. Por outro lado, o nosso sistema é presidencialista, mas o Congresso tem um peso grande, tem força. A Constituição foi preparada para um regime parlamentarista.
Quando o Executivo tem a capacidade de propor uma agenda à nação, quando motiva a nação, o Congresso de alguma maneira se ajusta a essa agenda. Quando o Executivo não tem essa capacidade, o Congresso tenta fazer a agenda e começa a patinar. Estamos nessa fase.
Crise política ou constitucional?
O sistema [político] anterior, que nós montamos em 1988, sumiu nessas eleições, depois de muitos problemas. Mas não vejo no Executivo a capacidade de propor uma agenda aceita nacionalmente, porque negocia pouco e não controla o Congresso. Então, abriu-se uma zona de dúvida, de incerteza.
E então...?
Como já passei por vários momentos desse tipo ou mais graves do que esse, nunca fui muito inclinado a apoiar impeachments. Continuo não sendo.
Alguns autores recentes nos Estados Unidos chamam a atenção para o fato de que, no sistema americano, há certa dose de tolerância. Não se usam todos os poderes disponíveis. Não é aconselhável o Congresso usar todos os poderes, porque isso vai resultar em um trauma, sem que a população tome consciência dos verdadeiros problemas.
O que fazer?
Estamos em uma transição, mas não se sabe para quê. Se sabe o que não se quer. A eleição do presidente Bolsonaro foi consequência do “não”, não do “sim”. “Não quero PT, corrupção, partidos, políticos, desordem, crime, não, não, não”. Mas o que fazer?
Os mercados apostam na reforma da Previdência. É verdade que o Estado está falido. A lei do teto amarra mais a possibilidade de manobra do Executivo. Então há a expectativa de que, se for aprovada a Previdência, vai resolver. Não tenho certeza.
O que está faltando no Brasil é confiança: em nós mesmos, no governo, no futuro do país. O investidor sofre os efeitos disso, não põe dinheiro. Os últimos dados são preocupantes, a taxa de crescimento per capita é nula e não há empregos.
Alguma reforma vai passar. Mas não se consegue orientar uma maioria para um projeto com mais durabilidade. Falta continuidade nas políticas públicas.
Ainda falando do curtíssimo prazo: há uma sensação de aceleração da crise. O que vem a seguir?
Sociólogos gostam de explicar os diversos aspectos das mudanças sociais, que são importantes, mas não é assim que as coisas acontecem no dia a dia. Por vezes as coisas explodem quando se menos espera, como em maio de 1968 na França.
Você pode ter um fio desencapado em qualquer setor da sociedade —tem sempre fio desencapado. A manifestação de ontem [quarta-feira, 15 de maio] foi porque o governo formulou de maneira equivocada o que iria fazer com a educação. Recuou, mas não adiantou. Aquilo foi a fagulha. Tem momentos em que esses movimentos não param mais, como na França, em que todo sábado tem manifestação dos coletes amarelos contra o Macron.
E hoje você tem uma sociedade que se move por este aparelho aqui [mostra o celular], que conecta pessoas, que salta as estruturas, organizações, partidos, governos, tudo. Isso coloca em questão como as formas de governo, que requerem um pouco de persistência, vão se adaptar a uma sociedade que, como diz o [Zygmunt] Bauman [sociólogo polonês, 1925-2017], é líquida.
As questões políticas precisam ter uma atenção maior. Por que não se aproveita agora para fazer o voto distrital? Não é para fazer parlamentarismo neste momento, porque as pessoas não vão acreditar. Voto distrital para dar uma maior proximidade entre o eleitor e o eleito.
Não sei se resolve, mas alguma coisa tem de ser tentada. Mas está tudo esquecido, está tudo concentrado: “ou faz a reforma da Previdência ou o país acaba”. O Brasil não acaba, mas vai mal e não basta a reforma da Previdência.
O grau de conflito político e na elite do poder está alto. Não é só conflito partidário. Vem também do Ministério Público, do Judiciário. Por que houve esse destampatório? Por que a elite não baixa a bola?
Esse é o ponto. Ou se consegue um clima que se permita baixar a bola e, ao mesmo tempo, fazer mudanças, ou vamos ficar nesse impasse.
Qual foi a proposta do governo? Foi muito mais no sentido linha-dura. O Congresso acaba de tornar a lei de drogas mais dura, até tentei intervir, mas era tarde. É [uma lei] contra a maré do mundo, acham que vão resolver, mas vão agravar a situação. Agora vão discutir o porte de armas.
As pessoas estão com medo, há crime organizado, que controla a cadeia, o exército de reserva do crime. Qual a resposta da sociedade? Põe por mais tempo na cadeia, mais presos. É irracional. Como se muda o irracional? Pelo emocional. É preciso de uma liderança capaz de contrapor argumentos e tocar as pessoas.
Há grupos sociais novos que não se sentiam representados, novas classes médias, pessoas ligadas ao mundo do agronegócio, conservadores, religiosos, que pareciam não se sentir representados pelo menos pelos partidos, PT e PSDB, que organizavam ou mesmo dominavam o debate, a disputa política. Quando falta essa representação, há rupturas...
Aconteceu por aqui. O Brasil funcionava em um sistema com PT e PSDB, mas não esqueça o PMDB, o grande partido do Estado, era o pessoal que sabia manejar o Estado.
O PFL [DEM] era uma coisa intermediária, entre o Estado e o PSDB. A elite dirigente de PT e PSDB não entendeu o que poderia acontecer, nunca entendemos. O PT dizia que nós éramos de direita, neoliberal etc. Uma coisa realmente patética.
O país é conservador. A questão do Brasil é: quem conduz o atraso, que é parte do Brasil. O PT esperava acabar com o atraso. O PSDB convivia mais com o atraso, tentava conduzir o atraso. Isso que estou chamando de atraso se tornou uma posição política. Não é o velho atraso, clientelista, só. Não. É ideológico. Tem ideias de colocar um molde no país, ideia de outra natureza. Isso nunca foi percebido pela direção do PT ou do PSDB, nem nada.
Antes da eleição, o senhor dizia que Luciano Huck era uma possibilidade [de candidatura]. Neste momento, é mais fácil criar um movimento mais personalista, que consiga agregar tendências e formar um novo movimento político, ou há chance de formação de partido ou de reorganização de partidos que estão por aí?
Max Weber tinha pavor do que ele chamava de dominação burocrática, tinha medo do comunismo, que ia por aí, era nacionalista, democrata. Achava que, em certas circunstâncias, só o carisma quebra as estruturas de dominação. Aqui no Brasil, poucos votam em partidos. Qual o partido do Bolsonaro? PSL. Existe uma organização? Não existe.
Então, o Huck...
Achava que, dado o grau de deterioração das forças políticas, era preciso uma renovação. Não deu, por motivos pessoais dele. Nesta situação, de novo será preciso haver preeminência do verbo. Não é o que eu gosto, não é o que eu quero. Estou dizendo que a coisa pode ir por aí.
A sociedade contemporânea quebrou muito a coesão das pessoas. A sociabilidade é diferente. Ela vive no verbo, desorganizadamente. Acho que só com alguém que tenha capacidade de falar e ser ouvido você pode, eventualmente, criar um novo início.
Bolsonaro tem um tanto disso.
O problema não é de ele ter ido por aí. É de talvez não ser capaz de se expressar de uma maneira que as pessoas sintam que, por ali, tem caminho.
Aqui, não me parece que o presidente Bolsonaro tenha as características pessoais, a capacidade pessoal. Você vê que é uma família que está operando, que é contrário um pouco ao nosso espírito aqui, não é uma pessoa, é uma família, que está batendo com instituições, militares, não sei até que ponto.
É pouco provável que partidos consigam se organizar e predominar nesta transição. Não se sente isso de nenhum lado, não apenas na vida política. As grandes instituições brasileiras do passado tinham peso, como a OAB, a ABI, os sindicatos, as centrais sindicais, inclusive religiões como a católica. Perderam a capacidade de condução.
Então, a mudança precisaria de carisma.
Acho mais provável que haja pessoas com capacidade de juntar, de chamar, de conclamar para uma direção. A sociedade que está em gestação precisa de condução quase carismática. Isso é perigoso, se não houver uma contrapartida da organização de estruturas que segurem. Veja o que está acontecendo na Turquia ou na França, em que os partidos existiam, sindicatos existiam com força.
O impeachment de Dilma Rousseff resultou do aumento da intensidade do conflito político e causou ainda mais conflito. Foi uma boa ideia?
Sempre fui reticente quanto aos impeachments. A todos. Por que reticente? Pelo trauma que produzem. O voto para presidente foi para quem está sendo “impichado”; o vice-presidente no Brasil ninguém sabe quem é, quando vota.
No caso do Lula, quando houve o mensalão, havia um movimento de impeachment. Eu não queria. Não é que eu não achasse justo, [mas era como se eu dissesse] “olha a consequência”. Você faz um impeachment do primeiro líder sindical que é presidente da República? Vêm as elites e derrubam? Você vê a leitura que vai ser. O custo histórico é muito elevado.
E o caso de Dilma Rousseff?
Fui reticente também. Não fui contra, porque era muito difícil naquele momento ser contra. Quando é que acontece impeachment no Brasil? Quando o governo para de governar. É preciso ter uma razão legal, é verdade. Mas o que produz impeachment é a confluência de alguma infração legal com a paralisia do governo, quando o Congresso para de decidir.
Quando o Congresso passa a não decidir, o governo começa a paralisar, é quando se criam as condições mais propícias para o impeachment [FHC atribui a tese a estudo do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos]. Quando paralisa, não tem outro jeito. Não é o caso atual. Aí continuo a ter a visão dos teóricos americanos: vai devagar, dá tempo ao tempo, “paciência histórica”, uma expressão que é fácil para sociólogo e difícil para político.
O seu partido também tem muitas acusações de corrupção, de Aécio Neves ao caso Paulo Preto. É dominado por alguém marginal na história do PSDB, João Doria. Teve influência grande na derrubada de Dilma Rousseff, na votação do impeachment e com as pautas-bomba. Perdeu quase metade da bancada na Câmara e o candidato a presidente teve votação quase nenhuma. Que futuro tem o PSDB?
O mesmo dos demais grandes partidos. Ou seja, depende.
Por quê? O Brasil vai passar por um momento que não é de partido. No meio tempo, o que acontece? Os partidos têm dinheiro, o fundo partidário. Têm meios de sobreviver. Os grandes partidos têm algum enraizamento. O PSDB tem forte enraizamento em São Paulo, por exemplo.
Não posso dizer que todos os partidos vão desaparecer. Mas estão sofrendo reveses enormes porque não perceberam a tempestade que vinha por aí. Veio a tempestade e estão molhados.
Podem se secar? Não tenho certeza. Vão tentar. O partido que está no governo não é partido. A próxima eleição vai ser movida pela definição dos candidatos. O PSDB vai ter candidato.
Como as grandes estruturas partidárias têm recursos, ainda têm alguma ressonância e dominação de certas áreas, podem permanecer. Mas isso não é força suficiente para levar adiante um país.
Por isso estou insistindo no Weber. Há momentos em que você precisa de líder. E a sociedade contemporânea, quanto mais ela dissolve estruturas, ela requer referências, que é um paradoxo. Não sei quem vai ser capaz de ser essa referência.
Quem poderia ser essa referência?
No caso do PSDB, o governador de São Paulo [João Doria] tem força, porque é governador de São Paulo e é obstinado. Tem suas qualidades. Já tem experiência. Ganhou São Paulo. Não acreditei que ele fosse ganhar. Ganhou. Conseguiu se adequar aos meios de comunicação contemporâneos e tem uma linguagem que atinge essas pessoas que estão subindo na sociedade, as novas camadas sociais.
Haverá outros? É possível. Conheço o governador do Rio Grande do Sul [Eduardo Leite], que é do PSDB, parece composto, adequado. Tem o Paulo Hartung, que foi um bom governador [do Espírito Santo], de um estado com base eleitoral menor. O PFL [DEM] tem o Ronaldo Caiado, que agora é governador de Goiás. O Caiado tem capacidade expressiva. Não sei se o PMDB tem alguém.
O PT também tem bases. Vai permanecer.
Não tenha dúvida.
O PT vai mudar?
Difícil, porque tem o Lula. O PT cresceu muito por causa do Lula. E o Lula é também o limite do PT. O Lula não aceita muito um outro dentro do PT. A esquerda do Lula é uma coisa muito relativa, também. Não sei muito qual é a concepção dele. Ele é um operador, competente como operador.
É preciso recompor um centro radical. Digo “radical” para evitar o fisiologismo, um centrão. Nesse momento, ser razoável, ter bom senso, está mal, pois o momento é de engalfinhamento. Isso não faz com que eu me engalfinhe. Espero que seja possível manter um pensamento mais tolerante, valores essenciais à democracia. Mas é preciso fazer reformas, não apenas aquelas para salvar o caixa [do governo], mas para salvar as pessoas.
Não só aqui. A tecnologia moderna, a sociedade da economia 4.0, não dá emprego. Ou melhor, dá emprego para quem é muito qualificado. O que vai se fazer com os outros?
Estão discutindo de novo o que era antiga ideia do [Eduardo] Suplicy [renda mínima universal]. De qualquer maneira, é preciso fazer alguma coisa. É preciso falar em nome disso, se chame de esquerda ou não, dos “deserdados da terra”, dos “condenados da terra” [referência a um livro famoso nos anos 1960, do revolucionário e ensaísta marxista e anticolonialista Frantz Fanon, francês da Martinica, 1925-1961], aqui ou nos Estados Unidos.
*Vinicius Torres Freire, colunista da Folha, foi secretário de Redação do jornal. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
Roberto Simon: Populismo das redes sociais fracassou
Ao colocar Brasil em perspectiva global, limites do bolsonarismo ficam evidentes
Desde o início, a emergência de Jair Bolsonaro foi corretamente interpretada em seu sentido global, à luz dos populismos nos EUA de Donald Trump e na Europa do brexit e da extrema direita “anti-globalista”.
Em cinco meses de governo, essa mesma perspectiva internacional —ao se comparar o Brasil a modelos de populismo na Europa de hoje e na América Latina de décadas recentes— agora ajuda a entender a acelerada deterioração da versão tupiniquim.
Experiências populistas mundo afora somaram a ambição de um governo “da maioria silenciosa” e “contra as elites” à hipertrofia do poder Executivo.
Governantes acumularam poder em detrimento do Legislativo, Judiciário, imprensa e sociedade civil.
Bolsonaro vive a contradição de almejar a primeira parte da equação, em textos de WhatsApp ou lives de Facebook, enquanto seu governo se atrofia com espantosa rapidez.
Várias causas arrastam o Brasil a esse populismo distinto, com outros riscos institucionais. Mas uma das questões-chave é a natureza da base de apoio ao poder populista. Hungria, Venezuela e Peru oferecem comparações ilustrativas.
O centro do poder do premiê húngaro, Viktor Orbán, é o Parlamento. Orbán e seu partido, o Fidesz, jamais consolidaram um apoio popular acima dos 50%. Mas o sistema parlamentar e as regras eleitorais húngaras, somadas à fraqueza do establishment e ao clima de xenofobia, deram à extrema direita sucessivas supermaiorias legislativas, desde 2010.
Com poderes de mudar a Constituição, Orbán passou a desmantelar a democracia.
Bolsonaro vive situação oposta. Da reforma da Previdência ao destino do Coaf, o noticiário recente é uma lista de evidências de sua debilidade frente ao Congresso.
No presidencialismo latino-americano, populistas acharam outras bases de apoio.
O venezuelano Hugo Chávez usou a colossal renda do petróleo para cooptar setores sociais, sobretudo os mais pobres, elevando sua popularidade à estratosfera.
Apesar do maior colapso de que se tem registro na história econômica latino-americana, a nostalgia de Chávez ainda garante a seu partido, o PSUV, mais de 25% de apoio popular.
O Brasil passa por um cenário de crise fiscal à beira de uma recessão, no extremo oposto de uma petro-economia num período de bonança.
O peruano Alberto Fujimori usou a guerra civil contra o Sendero Luminoso para abater antagonistas, incluindo com o fechamento do Congresso. Seu poder popular nasceu da luta contra o inimigo interno.
Em vez de uma insurgência maoísta, o bolsonarismo declarou guerra a uma esquerda desnorteada, ao centrão e ao moinho de vento do “globalismo”.
Bolsonaro não conta com a força legislativa, o poder econômico ou a violência política para sustentar sua posição antissistema. A base de apoio ao seu radicalismo é WhatsApp, Twitter e Facebook.
O Brasil traiu Abraham Lincoln e ergueu um governo das mídias sociais, pelas mídias sociais e para as mídias sociais. Elas de fato foram decisivas na campanha presidencial de 2018. Mas um populista cujo poder emana do mundo virtual não governa na realidade, muito menos é capaz de subjugar os demais poderes do Estado.
Em vez do acúmulo de poder, o grande risco institucional desse populismo atrofiado é a ingovernabilidade crônica.
*Roberto Simon é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
Bruno Boghossian: Bolsonaro não consegue conviver com os contrapesos da democracia
Vontade de proteger militares fechou os olhos do tribunal
“A manutenção da prisão assumiria certamente contornos de prejulgamento. Estaríamos antecipando a pena. Estaríamos ferindo de morte a presunção de inocência.”
Se os versos fossem recitados por Gilmar Mendes, hordas iradas iriam às ruas para apedrejar o STF. A frase, porém, é do general Lúcio Góes, do Superior Tribunal Militar. Ele foi relator do julgamento que mandou soltar oficiais e praças que atiraram 257 vezes e mataram o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo.
Dez ministros disseram que não havia razão para manter os militaresem prisão preventiva. Outros três sugeriram que, soltos, eles deveriam sofrer restrições, como a proibição de participar de operações. A maioria achou que não era necessário.
O tribunal adotou a linha que preserva o direito do indivíduo de não ser punido antes da condenação. Mas a vontade de proteger a corporação era tão grande que alguns juízes fecharam os olhos para os fatos.
A única a votar pela manutenção da prisão foi a ministra Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, que é civil. Ela lembrou que os oficiais e praças mentiram inicialmente sobre o caso e que houve um “excesso claro e evidente”. “Com todo o respeito, desonraram a farda”, afirmou.
Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Francisco Joseli Parente argumentou que os militares, “como humanos que são”, estão sujeitos a cometer “equívocos e até excessos” em suas ações. O carro da família de Evaldo foi atingido por 62 disparos.
O presidente Jair Bolsonaro defende mudar a lei para afrouxar as punições aplicadas a militares em operação. “Não colocarei tropa na rua sem retaguarda jurídica. Não quero visitar soldado humilde, com 20 anos, na cadeia por ter atirado em um bandido”, disse, em novembro.
O Estado já admite seu fracasso ao transferir a segurança pública para o guarda-chuva das Forças Armadas, colocando jovens praças nas ruas com fuzis e pistolas. Se é impossível exigir deles a devida responsabilidade, a violência se torna método e a falência fica completa.