Folha de S. Paulo

Vinicius Torres Freire: Além dos juros, o que a economia pode fazer para se tratar da depressão

Lei do Saneamento e reforma tributária andam no Congresso; obras param no governo

O que aconteceria se o Banco Central diminuísse a taxa básica de jurosde 6,5% ao ano para 6% nesta quarta-feira (19)? Quase nada, para o bem ou para o mal. Na prática, os negociantes de dinheiro grosso, “o mercado”, já o fizeram.

Ainda assim, a gente tem de prestar atenção a essa história. Mas não apenas. A eventual e lenta recuperação da economia depende de muitas outras decisões, como a reforma tributária, as concessões de infraestrutura e a Lei do Saneamento, assuntos sobre os quais há novidades.

Quanto aos juros, o Banco Central está atrasado em relação ao mercado, repita-se. O único argumento razoável restante para manter a Selic em 6,5%, e olhe lá, é o risco de a reforma da Previdência ir para o vinagre.

O corte de juros não ajuda em nada o crescimento de 2019 e pouco em 2020. Teria efeito marginal sobre a dívida do governo e, talvez, das famílias, embora esses trocos tenham relevância, pois estamos na miséria. Mas é possível dar um talho maior na Selic até o fim do ano.

O investimento em transporte, saneamento, energia, moradias, instalações produtivas etc. é o nosso problema. Tão cedo não haverá investimento público extra. Fazer obras de serviços públicos com dinheiro privado é uma saída, por ora no fim de um túnel longo. Daí a dificuldade de sair da depressão.

A lei do saneamento pode levar dinheiro privado para essas obras. Passou no Senado em 6 de junho, vai para a Câmara. Se “pegar”, pode permitir investimentos com o peso que o Minha Casa Minha Vida teve nos anos petistas, que foi grande. Mas, até que a lei seja aprovada, regulada, entendida e utilizada por estados e municípios, estaremos em 2021, com sorte.

Não se sabe o que virá do programa de concessões, afora umas previsões vagas de licitações para o início de 2020. Estes são ainda projetos do governo de Michel Temer, assim como as concessões feitas neste ano (aeroportos, áreas de portos e trecho da ferrovia Norte-Sul). De Jair Bolsonaro não se tem nada, nem projeto.

"O Programa de Parceria e Investimentos, PPI, deve sair da secretaria de Governo (estava sob o decapitado ministro Santos Cruz). Além dessa mudança de escaninho burocrático, espera-se agora extrema urgência na limpeza do entulho burocrático e dos projetos das concessões, não apenas para iniciar obras como também para dar perspectiva de futuro para as empresas. Novos canteiros, porém, só em fins de 2020 ou em 2021, se der tudo certo."

Além dessa mudança de escaninho burocrático, espera-se agora extrema urgência na limpeza do entulho burocrático e dos projetos das concessões, não apenas para iniciar obras como também para dar perspectiva de futuro para as empresas. Novos canteiros, porém, só em fins de 2020 ou em 2021, se der tudo certo.

A reforma tributária andou. Na segunda-feira (17), foi instalada a Comissão Especial da Câmara para analisar a emenda constitucional que cria o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que substituiria PIS, Cofins e IPI (impostos federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal), aos poucos, ao longo de dez anos.

Como o IBS tira autonomia estadual e municipal para fazer farra, haverá problemas na tramitação da PEC e da lei que vai regulá-la.

O IBS em si mesmo começaria a fazer efeito notável apenas em 2022, mas a perspectiva de redução considerável da demência tributária pode animar empresas, assim como a mudança no saneamento e um sinal de vida nas concessões.

Seria uma longa convalescença. Seria uma mudança no padrão de financiamento do investimento e, também, um meio de fazer com que o país e a receita do governo cresçam de modo que o Estado volte a investir (até relaxando a lei do teto), pois a empresa privada nem de longe vai dar conta de tudo.

Por ora, é o que temos.


Bruno Boghossian: Lobby ruralista fica protegido da ira de Guedes na Previdência

Ministro acerta ao atacar pressão de servidores, mas deixa passar bancada do boi

Quem ouviu a explosão de Paulo Guedes contra as mudanças na reforma da Previdência deve ter pensado que o ministro usaria um trator para derrotar qualquer grupo de interesse. Sem medir palavras, o chefe da economia acusou o Congresso de ceder ao “lobby dos servidores” e de enfraquecer o projeto para favorecer “os privilegiados”.

As letras miúdas do texto em discussão na Câmara mostram que havia uma certa ira seletiva na reação do ministro. Guedes tinha razão quando atacou a campanha do funcionalismo para preservar benefícios, mas deixou passar as pressões do consórcio ruralista, que caminha para manter suas benesses.

O projeto original do governo proibia o perdão de dívidas de produtores rurais com o INSS —coisa de R$ 17 bilhões, nas contas de economistas. O agronegócio acionou seus articuladores no Congresso e conseguiu reverter esse veto. O relator do projeto mudou a proposta de Guedes e abriu novamente a porteira.

O lobby foi escancarado. Reportagem publicada na Folha na última semana revelou que um deputado da bancada do boi apresentou uma emenda para fazer essa alteração na reforma. O texto, na verdade, havia sido redigido pelo diretor de uma associação ruralista.

Trata-se de um caso típico de manutenção de privilégios. A aprovação da mudança quebraria o espírito da reforma de Guedes, que se propõe a barrar vantagens individuais.

Os deputados do agronegócio dizem que a mudança foi negociada com o relator, Samuel Moreira (PSDB), embora o tucano negue que a alteração beneficie o setor. Os ruralistas também afirmam o governo foi alertado, mas não houve censura pública a esse movimento até agora.

A bancada do boi é a mais organizada do Congresso e costuma servir de tropa de choque para presidentes que atendem a seus desejos. Foi assim com Temer, que abriu os cofres do governo em troca de blindagem na crise da JBS. Bolsonaro e Guedes também parecem interessados em colher esse apoio político.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro rebaixa os superministros

Fraqueza no Congresso e desordem da Presidência tiram status de Guedes e Moro

Era uma vez um governo que teria dois superministros, Paulo Guedes (Economia) e Sergio Moro (Justiça). Entraram por uma porta, saíram por outra.

São príncipes transformados em plebeus da Esplanada dos Ministérios pelo caldeirão da política de Jair Bolsonaro, que tem intestinos envenenados, filé de serpente, pelo de morcego, língua de cão e múmias de feiticeiras, como o cozido das bruxas de Macbeth, mas não tem coalizão parlamentar. Fim.

Os superministros foram rebaixados porque o quase governo do Congresso independente poda suas capas heroicas. Porque Bolsonaro não tem um programa que respalde na prática os projetos de Guedes e Moro. Porque o presidente implicou com Moro, que não incorporou o bolsonarismo "raiz", como no caso menor do decreto faroeste.

Pior, o ministro da Justiça se tornou suspeito de querer a cadeira presidencial em 2022, assunto cada vez mais frequente de Bolsonaro, diz seu entorno.

Moro se torna um retrato na parede, mofado pela umidade da República de Curitiba, um troféu inerte do bolsonarismo.

Até agora incapaz de articulação social e com os estados, não tem assim como inventar um plano funcional e politicamente aceitável de segurança pública.

Qual será o projeto de Moro? Bater ponto até ser promovido ao STF pelo mérito de engolir sapos e de sobreviver a suspeitas da VazaJato?

Guedes pode ainda fazer um grande ministério, segundo a medida dos objetivos do programa liberal, mas não pela régua das ambições de sua estratégia grandiosa de refundação do país. Vide o sururu recente que causou na reforma da Previdência.

Rodrigo Maia, presidente da Câmara, ofereceu ao ministro da Economia a aliança recusada de modo desatinado por Bolsonaro. Guedes balançou o coreto porque a Câmara deve dar cabo da proposta de capitalização, um pilar do seu plano de reconstrução nacional em termos liberais, com desmanche da lei trabalhista e a criação de um novo padrão de poupança.

O ministro ainda pode conseguir uma expressiva reforma da Previdência, mas parece achar pouco. Portanto, criou uma crise grátis, como dizia no final da semana qualquer liderança política, do PT ao DEM.

Guedes não vai refundar a economia, se por mais não fosse porque Bolsonaro não sabe nem quer saber do que se trata. Mas há mais: revoluções dependem de sangue ou ditaduras, para dizer a coisa de modo dramático, mas em última instância adequado.

O ministro pode fazer história, como tanto deseja, caso consiga relançar algum crescimento com peso maior da iniciativa privada. Para tanto, poderia contribuir para a reviravolta da regulação obtusa, errada e caquética que emperra o investimento privado em infraestrutura e novos negócios em geral.

Tende a dar certo, embora não tenha o apelo dramático, na verdade cafona, de enormidades ideológicas como o "conflito da social-democracia com a grande sociedade aberta" e essas conversas que pareciam novas em 1969.

Se o plano de reformas regulatórias e o planejamento de concessões não saírem neste ano, haverá obras apenas em 2021. Cadê? Um plano respeitável de reforma tributária tramita no Congresso, por iniciativa parlamentar. Os economistas de Bolsonaro vão ajudar ou vão querer reinventar a roda? Cadê a política comercial, que leva muito tempo para implementar?

É tarde. O Brasil está em crise faz seis anos, e o governo só tem mais três pela frente (os seis meses finais são de eleição).


Bruno Boghossian: 'Descuido' muda posição de equilíbrio de Moro no centro do poder

Ex-juiz derrapa ao admitir que tentou praticar uma espécie de caixa dois processual

Até agora, Sergio Moro não se saiu muito bem no papel de inquirido. O ex-juiz derrapou ao admitir que indicou uma testemunha aos procuradores da Lava Jato sem respeitar formalidades. “Recebi aquela informação e, vamos dizer, foi até um descuido meu, apenas passei pelo aplicativo”, afirmou, na sexta (14).

Embora tenha reconhecido o desvio, o ministro diz que não há nada anormal no caso. A alegação, porém, falha em alguns testes básicos. Ao fazer uma colaboração não declarada com a parte acusadora, Moro não parecia ser vítima de distração.

Em diálogo publicado pelo The Intercept, o procurador Deltan Dallagnol afirma que uma testemunha indicada informalmente pelo juiz não estava interessada em falar. Ele diz, então, que faria uma intimação com base numa notícia anônima. Só depois da sugestão dessa farsa Moro afirma que seria “melhor formalizar”.

O ministro da Justiça argumenta que a lei prevê esse tipo de repasse de informações, mas deixa de dizer que o envio deveria ter sido registrado oficialmente desde o início. Se a testemunha tivesse aceitado o contato de Dallagnol, a colaboração teria sido mantida em segredo, numa espécie de caixa dois processual?

Outras explicações ainda deverão ser cobradas de Moro. A divulgação das conversas não corroeu a popularidade do ex-juiz, mas alterou sua posição de equilíbrio em Brasília. Nos últimos dias, ele se tornou um pouco menos ícone da Lava Jato e um pouco mais ministro de Bolsonaro.

O trabalho pregresso permitia que Moro se escorasse no passado para transitar com relativa independência. A aura de juiz valia para que ele pudesse dizer até que, ainda que tivesse entrado no governo, não fazia parte do mundo político.

O descuido de Moro mudou o jogo. Ele teve que aguentar dias de silêncio até que seu chefe manifestasse apoio público a ele diante do caso. Depois de acompanhar o subordinado a uma cerimônia de condecoração e a um jogo de futebol, Bolsonaro demonstrou que, agora, o ministro precisa se amparar no presente.


Folha de S. Paulo: Joaquim Levy pede demissão da presidência do BNDES

Saída de Levy do banco de fomento é mais uma crise do governo Bolsonaro

Alexa Salomão, William Castanho e Bernardo Caram / Folha de S. Paulo

SÃO PAULO E BRASÍLIA - O economista Joaquim Levy renunciou à presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) neste domingo (16), após o presidente Jair Bolsonaro declarar que ele estava “com a cabeça a prêmio”.

A saída de Levy do banco de fomento é a primeira baixa na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, e mais uma crise do governo.

“Solicitei ao ministro da Economia meu desligamento do BNDES. Minha expectativa é que ele aceda”, disse Levy, em mensagem a Guedes.

O economista agradeceu a lealdade, dedicação e determinação de sua diretoria. “Agradeço ao ministro o convite para servir ao país e desejo sucesso nas reformas.”

No sábado (15), Bolsonaro disse estar “por aqui” com o economista. O estopim, segundo o presidente, foi a indicação de Marcos Barbosa Pinto para a diretoria de Mercado de Capitais do banco. Ele foi assessor do BNDES no governo do PT e voltaria ao banco para o cargo de diretor de Mercado de Capitais.

Levy não comentou as declarações de Bolsonaro. Levado por Guedes para a presidência do BNDES durante a atual gestão, ele foi ministro da Fazenda de Dilma Rousseff (PT). Antes, foi secretário do Tesouro Nacional de Lula. Assim como o ministro da Economia, fez doutorado na Universidade de Chicago —reduto do pensamento econômico liberal.

Bolsonaro disse que "governo é assim, não pode ter gente suspeita" em cargos importantes. "Essa pessoa, o Levy, já vem há algum tempo não sendo aquilo que foi combinado e aquilo que ele conhece a meu respeito. Ele está com a cabeça a prêmio já há algum tempo", afirmou.

A resistência do presidente a Levy vem desde o governo de transição. Em novembro de 2018, quando já estava eleito, Bolsonaro disse que, ao aceitar a indicação, precisava “acreditar em Guedes”.

Na ocasião, o presidente afirmou que “houve reação” ao nome de Levy por ele ter “servido à Dilma e ao [ex-governador do Rio do Janeiro Sérgio] Cabral”. Ele foi secretário de Finanças.

Antes de assumir o cargo de presidente do BNDES, Levy foi diretor financeiro do Banco Mundial, em Washington. Também trabalhou como técnico do FMI (Fundo Monetário Internacional). No setor privado, o economista foi diretor do Bradesco.

CRISE
Barbosa Pinto, no sábado, enviou uma carta a Joaquim Levy, à qual a Folha teve acesso, para renunciar ao cargo.

Bolsonaro havia dito pouco antes que o presidente do BNDES tinha de demitir o advogado ou seria demitido até esta segunda-feira (17).

O advogado, que foi assessor e chefe de gabinete da presidência do BNDES em 2005 e 2006, afirmou ter “muito orgulho” da própria carreira. Ele, informalmente, ajudou o governo petista na elaboração de projetos de PPPs (parcerias público-privadas).

Em entrevista à revista Capital Aberto, Barbosa Pinto disse que colaborou na criação do Prouni, programa que concede bolsas a alunos carentes, com então ministro da Educação, Fernando Haddad (PT), em 2008. Bolsonaro venceu Haddad no ano passado.

Barbosa Pinto atuou ainda na CVM (Comissão de Valores Mobiliários).

No setor privado, de 2011 a 2018, foi sócio de Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, na Gávea Investimentos. Integrou conselhos de administração de diversas empresas.

O advogado recebe elogios de economistas. A decisão de enviar a carta, mesmo sem ter conseguido conversar com Levy, foi para demonstrar que não tem engajamento partidário.

A intenção de não ser usado como pivô de disputa política na aérea econômica do governo pesou na decisão. Ele tomou posse na quarta-feira (12) e começaria a trabalhar na segunda.

Guedes indicou insatisfação com o trabalho de Levy à frente do BNDES em entrevista a Gerson Camarotti, do G1, neste sábado. “O grande problema é que Levy não resolveu o passado nem encaminhou solução para o futuro”, afirmou o ministro.

Guedes referia-se a investigações de possíveis responsáveis por empréstimos concedidos pelo banco a empreiteiras, nos governos do PT, para obras no exterior. Em troca, elas pagariam propina.

Até o momento, nenhum funcionário do banco foi apontado como participante do esquema, mas Bolsonaro e Guedes insistem no discurso de abrir a caixa-preta do BNDES.

Outro motivo de descontentamento do ministro com Levy é a resistência do economista em devolver o dinheiro injetado no BNDES no passado.

Guedes já disse que espera receber R$ 126 bilhões neste ano, mas Levy não se comprometeu com a cifra. Os recursos são tratados como necessários para ajudar no ajuste fiscal do governo.

DEMISSÕES
No período de três dias, o presidente demitiu ou prometeu demitir três nomes importantes do alto escalão do governo.

Na quinta-feira (13), o governo anunciou a saída do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, após seguidas crises com os filhos do presidente.

Em encontro com jornalistas, Bolsonaro disse na sexta (14) que demitiria também o general Juarez Aparecido de Paulo Cunha da presidência dos Correios por ter comportamento sindicalista.

Nesse mesmo dia, após críticas de Guedes ao relatório apresentado pelo deputado federal Samuel Moreira (PSDB-SP), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que o governo é uma “usina de crise”.

No sábado, foi a vez de Bolsonaro ameaçar Levy.

O general do Exército da reserva Frank limberg Ribeiro de Freitas deixou a Funai (Fundação Nacional do Índio) na terça (11).

Desde o começo do ano, o governo registra quedas de nomes ligados à ala ideológica e militar.

Já deixaram o governo, além de Santos Cruz, Ricardo Vélez Rodríguez (ex-ministro da Educação) e Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral).

A Apex (Agência de Promoção de Exportações do Brasil) já foi comandada por Alecxandro Carreiro e Mario Vilalva.

Três já foram demitidos da presidência do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas), do MEC.


Vinicius Torres Freire: Planos de Guedes caem da reforma

Emendas na Previdência preservam economia, mas podam planos liberais do ministro

A reforma da Previdência recauchutada pela Câmara atropela ambições de Paulo Guedes, dificulta a mudança frequente da lei previdenciária e obriga os governadores a pedir votos aos deputados, caso queiram abater os gastos estaduais com aposentadorias. Tem lá também uma esquisitice que quebra as pernas do BNDES.

Caso o relatório emendado pelos deputados seja aprovado no plenário como está, deve resultar em contenção de despesa maior do que a prevista pela reforma Michel Temer, embora a conta de poupar R$ 915 bilhões seja, por ora, chute. Se vier pelo menos o dinheiro, já é lucro. No mais, o espírito da reforma Guedes foi para o vinagre.

É um resumo breve dos efeitos das mudanças na PEC (Proposta de Emenda à Constituição) de Jair Bolsonaro e Guedes, consolidadas pela comissão especial da Câmara. A reforma é enorme, e certas mudanças, em particular no caso de servidores públicos, ainda serão mastigadas.

De mais notável, a princípio, temos:

Um: está congelado sem dia previsto de degelo o projeto de Guedes criar um regime de capitalização (trabalhadores que entrarão no mercado teriam de poupar para a Previdência em conta individual). A capitalização seria criada por lei complementar, pós-reforma, mas mesmo essa janela foi fechada pelo Câmara, na prática.

Dois: além de reinventar a Previdência, a capitalização seria um meio de acabar com a contribuição patronal para o sistema (sugeria o governo. Ainda não havia projeto de lei oficial). Trabalhadores que optassem por esse regime custariam menos para as empresas, com o que haveria mais empregos, imaginava Guedes. Era, na prática, um modo de embutir o desmanche das leis trabalhistas na reforma da Previdência e, segundo o ministro, mudar o padrão de poupança no país. Não vai passar.

Três: tirar do texto da Constituição o grosso das normas da Previdência ("desconstitucionalização") facilitaria futuras reformas (por exigir menos votos no Congresso). Não vai adiante.

Quatro: no caso da reforma do Regime Geral da Previdência Social (para trabalhadores do "setor privado", grosso modo), não há muita diferença em relação à reforma Temer, em particular na contenção de despesas. O dinheiro adicional da reforma Guedes-Bolsonaro vinha da poupança com o pagamento do abono do PIS/Pasep, que nem bem é assunto previdenciário. De qualquer modo, o talho no pagamento do abono, pago a quem ganha até dois salários, será bem menor do que o previsto, se algum. No mais, a reforma do RGPS não foi pouco emendada.

Cinco: a reforma pode criar tanto problemas quanto soluções para os governadores, por causa de aposentadorias especiais (policiais, bombeiros, professores), embora o aumento da cobrança de contribuição dos servidores tenha ficado na reforma. Só haverá reforma estadual obrigatória se os governadores convencerem o Congresso a recolocar esses dispositivos na PEC, derrubados na comissão especial, atendendo a pedido majoritário na Câmara, que não quer fazer o trabalho pesado sozinha, enquanto os governadores posam de bonzinhos, em especial os do Nordeste, quase todos de esquerda.

Seis: na PEC de Guedes-Bolsonaro, o BNDES perdia parte do dinheiro que recebe do PIS/Pasep (abrigado no FAT), uns R$ 6 bilhões por ano. Agora, vai perder tudo (R$ 18 bilhões), pois o relator quer usar esse dinheiro na Previdência. É mais de um terço da fonte de recursos do BNDES. O banco vai acabar ou virar tamborete?


Hélio Schwartsman: O tamanho da encrenca

Frequência dos maus hábitos não deve servir de habeas corpus

Reza a lenda que, em Esparta, as crianças eram incentivadas a roubar. Mas aquelas que se deixassem apanhar seriam severamente punidas. Podemos classificar a pedagogia espartana como um hino à hipocrisia. Mas também dá para interpretá-la como uma solução, ainda que imperfeita, para dilemas sociais complexos, que envolvam interesses contraditórios.

Deixemos por ora Esparta de lado e retornemos ao Brasil. Nossa Justiça é, para usar uma palavra recatada, um lupanar no que diz respeito ao relacionamento entre juízes e partes. Os problemas começam na família —reportagem de 2016 da Folha mostrou que um terço dos ministros do STJ tinha cônjuges ou filhos advogando na corte— e se estendem a amigos, colegas, ex-clientes e bajuladores.

A frequência dos maus hábitos não deve, porém, servir de habeas corpus. O ex-juiz Sergio Moro foi pego em diálogos comprometedores com o MP e não podemos fingir que não vimos isso, mesmo que a interceptação das conversas tenha sido ilegal. O que está em jogo é a noção de que todos têm direito a um juiz pelo menos não demonstradamente parcial.

Isso significa que, se a Justiça considerar que Moro violou dispositivos do CPP, não devemos ter medo de decretar as nulidades cabíveis. Mas é preciso avaliar cuidadosamente a extensão do comprometimento, para anular só aquilo que precisa ser anulado. Nosso histórico aqui —Castelo de Areia, Satiagraha— é de 8 ou 80, o que é ruim. Uma interpretação muito extensiva da doutrina da árvore dos frutos envenenados levaria a absurdos, como devolver aos corruptos o dinheiro repatriado do exterior.

A exemplo dos pedagogos espartanos, servimos a dois princípios que caminham em direções opostas. Temos de mostrar que atalhos para condenar não serão tolerados pela Justiça e preservar ao máximo a essência da Lava Jato, que teve a virtude republicana de não poupar os poderosos da aplicação da lei.


Bruno Boghossian: Bolsonaro descobre que tinta de sua caneta não tem poderes mágicos

Senado e Supremo começam a derrubar decretos que encantaram o presidente

A longa carreira no baixo clero deixou Jair Bolsonaro meio traumatizado. “Nós sabemos da dificuldade de um parlamentar aprovar uma lei. É muito difícil! É quase como ganhar na Mega-Sena”, lamentou, em maio, durante um evento.

Em 28 anos, o então deputado só teve sucesso em dois projetos. Agora, ele parece encantado com a caneta presidencial. Bolsonaro acreditou que poderia assinar decretos à vontade para driblar o Congresso e fazer valer seus desejos. Aos poucos, ele aprende que a tinta de sua assinatura não tem poderes mágicos.

Nesta quarta (12), o Senado deu o primeiro golpe na medida que ampliou o porte de armas no país. A comissão que analisou o caso decidiu que o decreto de Bolsonaro é ilegal. Para os parlamentares, essa flexibilização só pode ser feita a partir da aprovação de um projeto de lei.

Foram 15 votos contra o texto do presidente e 9 a favor. Os principais defensores do atropelo foram Flávio Bolsonaro e o exagerado Major Olímpio. “Vai ser festa na quebrada! Festa das facções!”, bradou o último. A discussão ainda passará pelo plenário do Senado e pela Câmara.

O volume da gritaria do grupo de Bolsonaro deve ter encoberto uma lição básica da democracia. Um decreto presidencial jamais poderia alterar uma norma estabelecida em lei, que passa obrigatoriamente por um processo de discussão e precisa do apoio da maioria do Parlamento.

Aquela não foi a única transgressão do governo. Também na quarta, a maioria dos ministros do STF decidiu que Bolsonaro não pode extinguir por decreto conselhos federais previstos em lei, como a Comissão de Erradicação do Trabalho Escravo.

O relator do caso, Marco Aurélio Mello, disse que a canetada deBolsonaro era um “atalho à margem do figurino legal”. O presidente argumentava que pretendia economizar com a extinção daqueles grupos, mas o ministro Luís Barroso disse que o fim do colegiado era um retrocesso. “Nós não estamos vivendo um momento em que possamos prescindir desses conteúdos”, declarou.


Vinicius Torres Freire: Por que é difícil sair desta crise?

País tem síndrome múltipla, 40 anos de crise crônica e uma década de loucura

A construção civil acha que vai crescer 0,5% neste 2019. Em janeiro, esperava avançar ainda medíocres 2%. A estimativa é da FGV, feita para o SindusCon de São Paulo, anunciada nesta terça-feira (11).

Sem obras, vai ser difícil sair da crise. Metade do investimento (em máquinas, moradias, instalações produtivas) vem da construção. É do investimento que vêm as viradas da economia. O setor, que emprega uns 8% dos trabalhadores, foi o mais arruinado na recessão.

É impossível dar tratamento tópico, específico, aos problemas da construção sem cuidar também da síndrome depressiva multidimensional que desgraça a economia. Mas, no meio do caminho da cura, é preciso dar atenção à pedra das obras.

Sim, síndrome múltipla. A julgar por estudos dos economistas, a economia entrou em recessão extravagante e derivou para a depressão porque:

1) em 2014, estava inflacionada. O IPCA devia estar entre os 6% da média 2010-2014 e abaixo dos 11% de 2015, quando acabaram os tabelamentos de preços. O déficit externo (uma medida de excesso de consumo) chegava ao nível de alerta de 4% do PIB. A indústria estagnara desde 2010. Por problemas de preço e qualidade, o país importava bens industriais, parte do crescimento "vazava" para o exterior. Era uma economia sem musculatura e agilidade para correr no ritmo em que vinha no terço final dos anos petistas;

2) é baixa a produtividade, problema crônico faz 40 anos e evidente na situação da indústria mesmo nos anos do pico do PIB: vivia estagnada;

3) quando PIB e arrecadação de impostos chegavam ao pico, em 2014, a despesa fixa do governo estava nas alturas. Com a crise e, pois, perda de receita, o buraco nas contas públicas, o déficit, passou a abrir de modo desastroso;

4) alta de juros e déficit fizeram a dívida pública explodir;

5) há choques políticos faz seis anos: Junho de 2013, eleição de 2014, estelionato eleitoral e campanha da deposição de Dilma Rousseff em 2015, impeachment em 2016, Joesley Day e fiasco das reformas de Michel Temer em 2017, caminhonaço e eleição de 2018. Tal tumulto deprime a confiança de consumidores e empresas;

6) a economia mundial ficou lerda;

7) a intervenção inepta na economia contribuiu para avariar setores (petróleo, álcool, elétrico) e desperdiçar capital em investimento ruim (refinarias e petroquímicas, obras de Copa e Olimpíada, excesso de fábricas de carros, obras de infraestrutura mal planejadas, paradas pelo caminho etc.). As reduções de impostos para empresas e o meio trilhão de reais de endividamento público para subsidiar investimento privado a juros baixinhos deram em nada;

8) a penúria do governo redundou no corte brutal do investimento em obras, ainda mais reduzido por causa da crise dos estados, quebrados pelo gasto excessivo em salários e Previdência;

9) a dívida federal ainda cresce sem limite, e o governo faz déficit para pagar despesas correntes. Assim, aumentar despesa de investimento a fim de estimular a economia é um problema nada trivial;

A sucessão rápida de governos (três em quatro anos), inépcia, instabilidade macroeconômica e velhos problemas regulatórios prejudicam as concessões de obras de infraestrutura para a iniciativa privada. Tal programa pode em parte compensar a depressão dos investimentos governamentais e das demais empresas privadas, na retranca por excesso de dívida, de capacidade ociosa e por medo crônico da crise sem fim.


Bruno Boghossian: Caso Moro deflagra operação para chancelar erros da Lava Jato

Alguns têm pressa para defender vale-tudo, mas combate à corrupção não autoriza abuso

A evidente colaboração entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol deveria ser suficiente para jogar ao menos um ponto de interrogação nas cabeças dos mais firmes defensores da dupla de Curitiba. Em vez disso, parece estar de pé uma operação para endossar até métodos de vale-tudo adotados pela Lava Jato.

As conversas que mostram um juiz discutindo táticas de acusação e apresentando uma testemunha contra os acusados são corrosivas. As implicações desses fatos e do acesso ilegal a conversas privadas ainda serão discutidas, mas alguns atores conferem uma chancela prematura a atropelos da lei e da ética jurídica.

No Supremo, Luís Roberto Barroso afirmou que a troca de mensagens divulgada pelo site The Intercept Brasil será apurada, mas se antecipou. “A corrupção existiu e precisa continuar a ser enfrentada, como vinha sendo”, disse, em entrevista à GloboNews. “Tenho dificuldade em entender a euforia que tomou os corruptos e seus parceiros.”

O ministro poderia ter separado os elementos, já que a existência da corrupção não autoriza ninguém a transgredir limites. Para piorar, ele insinua que o caso só interessa mesmo a criminosos e seus aliados.

Moro fará uma dobradinha afinada com Barroso se for indicado por Jair Bolsonaro para o STF. O ex-juiz afirmou não ver “nada de mais” nos diálogos. Em uma das conversas publicadas, ele disse a Dallagnol que não se arrependia de ter divulgado a gravação, feita ilegalmente, de uma conversa entre Lula e Dilma Rousseff, às vésperas do impeachment.

A defesa dos excessos perde ainda mais substância quando ganha tintas políticas. Onyx Lorenzoni tentou proteger Moro sob o argumento de que ele “ajudou a salvar o Brasil do projeto doente do PT”. O ministro da Casa Civil é aquele que admitiu ter recebido doação via caixa dois e foi perdoado pelo implacável ex-juiz.

O entendimento de que o combate à corrupção justifica o desrespeito a algumas regras pode fazer muito sucesso nas ruas, mas não deveria passar das portas dos gabinetes.


Joel Pinheiro da Fonseca: A ilegalidade não tolera o jornalismo

Militância bolsonarista dá mostras explícitas de autoritarismo e ataca repórter

Se Sergio Moro tivesse trocado mensagens e dado conselhos, não para o Ministério Público, mas para a defesa de Lula, a militância bolsonarista exigiria sua cabeça imediatamente. E com boa razão. Que o defendam agora e que busquem atacar o material revelado e o jornalista que o revelou é sinal do partidarismo que tomou conta do debate público.

Há diversas defesas plausíveis da Lava Jato. A prisão de Lula assenta sobre bases sólidas, já ratificada já por três instâncias. Há também defesas possíveis do caráter e da imparcialidade de Sergio Moro ao julgar petistas: ele absolveu, por exemplo, Paulo Okamotto. Pode-se também tentar argumentar que, nas mensagens registradas entre Moro e Deltan Dallagnol —dando conselhos, indicando testemunhas— não há nada de irregular.

Infelizmente, não tem sido esse o caminho tomado pelos defensores de Moro e autodeclarados apoiadores da Operação Lava Jato. (Apoiador da Lava Jato eu também sou, mas não de ilegalidades cometidas na Lava Jato.)

Eles levantam, primeiro de tudo, a origem ilegal das informações: o hackeamento de celulares. Uma informação conseguida por um hackeamento ilegal traz consigo, inevitavelmente, dúvidas legítimas quanto à sua autenticidade. Contudo, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, em suas notas de esclarecimento, não a contestaram. Moro, pelo contrário, disse que teriam sido tiradas de contexto. Ora, se esse é o caso, então as mensagens são verdadeiras. Temos bons motivos para acreditar na autenticidade delas. E o fato de terem origem ilegal não invalida em nada o teor das informações reveladas.

Tampouco é motivo para que jornalistas não as publiquem, como, aliás, é prática corrente no jornalismo brasileiro. A mesma lógica que é contra publicar as conversas de Moro com Dallagnol, por sua origem ilegal, também deveria ser contra a publicação de delações vazadas ilegalmente à imprensa ao longo dos últimos anos, e mesmo contra a divulgação do áudio em que Dilma procurava salvar Lula da Justiça tornando-o ministro, tornado público pelo próprio Moro, então juiz, à revelia da legislação.

A última e mais baixa linha de defesa tem sido atacar o site The Intercept e o jornalista Glenn Greenwald. Os ataques homofóbicos dirigidos a ele (nisso, apenas imitam o presidente), por incrível que pareça, não são ponto mais baixo da infâmia. No que é (por enquanto) a mostra de autoritarismo mais explícita da militância bolsonarista, foi lançada nas redes sociais a campanha #DeportaGreenwald para que o jornalista seja expulso do Brasil. Maduro não faria diferente.

Podemos e devemos questionar o modo como informações são obtidas; se for ilegal, que seja punido nos rigores da lei. Mas, uma vez descoberta, não há como esquecer e nem por que abafar. O jornalismo tem tido papel central em nos informar aquilo que pessoas poderosas gostariam de esconder. Na Lava Jato, no Wikileaks, na relação suspeita entre juiz e procurador. Conhecemos nosso mundo melhor graças ao trabalho corajoso de jornalistas. Muitas vezes, a fonte da informação (um policial que vazou conteúdo sigiloso de delação, um hacker que copiou mensagens de celulares) não tinha o direito de a transmitir. Uma vez transmitida, contudo, o público tem o direito de saber. Os jornalistas estão aí para cumprir esse direito. Que os defensores do atual governo os tenham como inimigos jurados é prova da falência ética e política que se apossou do país.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP


Hélio Schwartsman: A tragédia do normal

Relacionamentos promíscuos entre juízes e partes são normais demais

As mensagens trocadas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol sobre os processos de Lula deixam o ex-juiz em maus lençóis. O prejuízo político é líquido e certo. Se o pacote de medidas de segurança proposto pelo herói da Lava Jato e atual ministro da Justiça já era visto com certa má vontade pelos parlamentares, sua tramitação fica agora empacada. Moro tem muitas explicações a dar. Até sua nomeação para uma vaga no STF se tornou mais difícil.

Na esfera jurídica as implicações são mais nebulosas. Pelo que o site The Intercept Brasil divulgou até agora, não há sugestão de que Moro e os procuradores tenham interferido na realidade fática das provas, o que seria inapelavelmente razão para anular tudo. Está claro, porém, que o ex-juiz e os procuradores estabeleceram uma relação de proximidade absolutamente inadequada, que dá substrato à suspeita, desde sempre levantada pela defesa do ex-presidente, de que Moro não atuava com imparcialidade.

Ao fim e ao cabo, caberá ao STF determinar se isso é o suficiente para anular feitos da Lava Jato e, em caso positivo, em qual extensão. Se o vazamento tivesse ocorrido um ano atrás, Moro muito provavelmente passaria incólume. Hoje, contudo, a situação é outra. Em parte devido a erros táticos e posicionamentos políticos inoportunos da força-tarefa, o Supremo já não chancela todas as ações de Curitiba.

Concordo com praticamente tudo o que Celso Rocha de Barros escreveu em sua coluna desta segunda na Folha, mas acho que ele escolheu mal as palavras quando disse que o vazamento dá força à tese de que o julgamento de Lula não foi “normal”.

A tragédia da Justiça brasileira é que manipulações estratégicas e relacionamentos promíscuos entre juízes e partes são normais demais, da primeira à última instância. Se olharmos com lupa, não são muitos os processos que passariam num escrutínio ético um pouco mais rigoroso. É um horror, mas é a Justiça que temos.