Folha de S. Paulo

Julio Wiziack: Golpes do governo Bolsonaro às instituições ferem princípios democráticos

Sob o escudo da 'despetização', governo Bolsonaro ataca princípios democráticos

Em um evento com parlamentares ligados ao agronegócio, Jair Bolsonaro voltou a repetir que seu governo precisa “desfazer o que foi feito para depois fazer”. Mas sob o pretexto de “despetizar” a administração federal, seu governo já faz: ataca as instituições públicas.

Somente na semana passada, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, afirmou que os índices de desmatamento na Amazônia são manipulados, jogando lama no Inpe, centro de excelência em pesquisas espaciais.

Na Justiça, o próprio presidente disse que o ministro Sergio Moro vazou para ele informações de uma investigação sigilosa da Polícia Federal. Colocou em xeque a independência do órgão, que deve investigar até o ministro se for preciso.

No início de sua gestão, Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, acusou o Ibama de forjar contratos de aluguel de veículos. Foi apoiado por Bolsonaro, que prometeu nas redes sociais expor o esquema de corrupção. Nada havia de errado com os contratos, como se provou depois.

Nas palavras de parlamentares, Bolsonaro e seus principais assessores pintam o Congresso como um reduto de corruptos. Mas usam deputados de seu partido, o PSL, para tentar emplacar uma proposta de emenda constitucional que restrinja a atuação do Supremo Tribunal Federal, especialmente em temas ligados aos costumes.

Servidores são perseguidos e demitidos por serem “petistas” ou “ideologizados”, o que fere o princípio democrático da impessoalidade na administração pública.

Um processo assim não é de “desfazer”, como diz Bolsonaro, mas um golpe no próprio Estado.

Se os fins continuarem a justificar os meios, o risco é o de virarmos uma Turquia. Recep Erdogan foi eleito presidente com uma agenda liberal na economia e a promessa de reverter os estragos causados pela crise econômica e a corrupção.

No final, ele aparelhou as instituições do país que, considerado autocrático, fica cada vez mais distante de ser aceito como membro da União Europeia.


Elio Gaspari: A privataria ameaça a UFRJ

Hospital em declínio é símbolo de uma época em que a universidade sonhava

O hospital Sírio-Libanês retifica: “Não está nos planos atuais da instituição abrir uma filial do hospital no Rio de Janeiro.” (Em 2015 esteve, com gente boa conseguindo promessas de doações, mas isso é passado.)

A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) trabalha, com o BNDES e o banco Fator, na modelagem de uma licitação para conceder, por até 50 anos, 485 mil metros quadrados de terrenos na ilha do Fundão e na praia Vermelha (onde fica o falecido Canecão).

Quem desenhou a girafa foi Deus. Só Ele sabe o que sairá da modelagem que estão cozinhando. Felizmente, o BNDES e a UFRJ garantem que tudo será feito às claras, em processo licitatório, com o devido debate.

Segundo a universidade, o cessionário disporá dos terrenos de acordo com seus interesses e a “vocação imobiliária” das áreas: “Provavelmente essas vocações estão associadas à ocupação para residências, comércio ou serviço. Há possibilidade de haver centros de compras ou de convenções, supermercados ou hotéis.”

O edital que licitou o pregão que contratou o banco Fator foi mais claro. Em duas ocasiões mencionou a possibilidade de uso dos terrenos para “condomínios corporativos, (...) redes de hotéis, redes de hospitais e redes de ensino”.

O que se cozinha é um amplo projeto capaz de botar dinheiro nos magros cofres da universidade. Coisa de bilhão de reais. Começa pela cessão dos terrenos, por até 50 anos. Essa seria a parte fácil. Ela complica-se porque modela-se um projeto pelo qual o cessionário, ou seus parceiros, devem dar contrapartidas à UFRJ, construindo prédios, restaurantes e alojamentos.

Talvez fosse mais simples não misturar gravata com abacate, mas vá lá. Serão duas bolas no ar.

Está na panela também a eventual criação de um “Fundo de Investimento Imobiliário” que ficaria encarregado de gerir o ervanário resultante das operações.

Assim, o malabar tem três bolas. (Esse fundo poderia ficar parecido com a Harvard Corporation, que cuida do patrimônio da universidade. Caso ele venha a ter investidores particulares, arrisca-se a misturar Boston com Borel.)

O projeto imobiliário ganhou um nome de fantasia —”Viva UFRJ”— e na essência desenhará o futuro da universidade. Shoppings, redes de hotéis e de hospitais muita gente faz, universidades são coisa para gente grande.

Quando ficar pronta a modelagem, tudo poderá ser discutido. Até agora, sem que o banco Fator tenha algo a ver com isso, saiu uma fumaça cinzenta do “Viva UFRJ”.

Apesar de se sonhar com recursos, redes de hotéis e de hospitais (privados), a universidade já esclareceu que “o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho não entrou nas contrapartidas pois estimativas preliminares indicaram que o custo da obra não cabe no projeto.”

O Clementino Fraga é um grande hospital, público, símbolo de uma época em que a UFRJ sonhava grande. Hoje ele é o retrato de uma realidade ruinosa. O doutor Clementino, tio-avô de Armínio Fraga, foi um grande reitor da universidade no ano bicudo de 1968.

Ele não merece que seu hospital público seja o que é, enquanto a centenas de metros do seu gabinete da Praia Vermelha reluza um grande hospital para endinheirados.

A nova morte do major
A Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) deu a uma de suas salas o nome do major alemão Otto von Westernhagen, assassinado com dez tiros por terroristas do Colina em julho de 1968, cinco meses antes da edição do Ato Institucional nº 5.

Da homenagem resultou uma barulheira. Teria sido festejado um nazista, condecorado por Hitler. Devagar com o andor, por três motivos.

Primeiro porque Westernhagen era um jovem oficial do Exército. Combateu na França e foi ferido na tomada de Berlim, em 1945. Anos depois foi reintegrado à tropa, como capitão. Em 1966 veio para o Brasil, onde cursava a Eceme.

Um alemão que combateu na Segunda Guerra não pode ser automaticamente classificado como nazista. Em 1941, aos 14 anos, o jovem Joseph Ratzinger estava na Juventude Hitlerista e dois anos depois, compulsoriamente, foi para a tropa. Em 2005 tornou-se o papa Bento 16.

O caso de Westernhagen tem um segundo aspecto. Ele foi morto por engano. Os terroristas campanaram e executaram um homem que supunham ser o capitão Gary Prado. Um ano antes, Prado participara da captura de Che Guevara.

Os terroristas sabiam onde ele morava, mas só descobriram que não era o boliviano quando abriram sua pasta e acharam documentos em alemão. Percebido o engano, calaram-se. O crime só foi desvendado anos depois pelo historiador Jacob Gorender.

Westernhagen não era nazista nem boliviano e morreu numa rua da Gávea sem ter nada a ver com o pato. Nada mais natural que homenageá-lo dando o seu nome a uma sala de aula na escola militar onde estudava.

Num terceiro aspecto, a homenagem ao major repara um injusto esquecimento. Um dos integrantes do comando que o matou, o ex-sargento da FAB João Lucas Alves, é nome de rua em São Paulo e no Rio. (Ele foi torturado e morto no DOPS de Belo Horizonte. Na versão da ditadura, suicidou-se).

Em 1968 mataram Westernhagen por engano. Meio século depois, sua memória merece respeito.

Bola na rede
O ministro Abraham Weintraub, da Educação, acertou uma. Tirou do mundo das falsas promessas a ideia de fazer o exame do Enem por meio digital e anunciou que a novidade começará a funcionar no ano que vem.

Inicialmente, o Enem digital será oferecido em 15 capitais, dando ao estudantes o direito de optar pela prova de papel. Se tudo correr bem, em 2026 o Enem será todo feito em computadores.

Não se trata de uma simples mudança de plataforma. A prova eletrônica criará uma facilidade logística e o exame poderá ser aplicado em até quatro ocasiões durante o mesmo ano. É assim que funciona o SAT americano.

Quando isso acontecer, a garotada ficará livre do pesadelo de jogar um ano de vida em duas manhãs.

Ar de Coimbra
A nobiliarquia oficial descobriu as delícias dos seminários portugueses. A coisa funciona assim:

Organiza-se um seminário sobre seja lá o que for numa universidade estrangeira, de preferência em Portugal (lá fala-se um idioma confortável), quase sempre colada a um fim de semana.

O magano viaja com as despesas total ou parcialmente cobertas.

Na quinta-feira (4), estudantes da universidade de Coimbra zoaram o evento onde estavam o governador Wilson Witzel (Harvard Fake ‘15) e três ministros do Supremo, entre eles Ricardo Lewandowski. A manifestação provocou o fim da sessão.

A repórter Mônica Bergamo informou que depois da zoada o ministro Lewandowski abraçou alguns estudantes.

O ar de Coimbra amacia os corações. Em Brasília. quando o passageiro de um avião hostilizou Lewandowski, ele reagiu de outro jeito: “Vem cá, você quer ser preso?”

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Demétrio Magnoli: A lei, o povo e o inimigo do povo

Tudo é anormal nas mensagens que evidenciam o conluio entre juiz e Estado

“Caim, que Brasil queremos?”. A indagação que encerra o artigo do procurador Edilson Bonfim (Folha, 3/7) evoca a mítica fonte do mal e da violência. É uma conclusão apropriada para um texto eivado de ódio, mas que funciona como síntese perfeita do discurso reativo de Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato.

Diante das revelações oferecidas pelo The Intercept Brasil, eles respondem com dois argumentos sucessivos, incongruentes entre si.

1) Os diálogos foram obtidos por hackers (“a flor do mal de mais um crime”), podem ter sofrido adulterações (“como saber da autenticidade, contexto ou conteúdo das mensagens?”) e sua publicação destina-se a caluniar as autoridades judiciárias, condenando-as à “morte moral”.

2) As mensagens não indicam nenhuma violação das leis e normas do processo penal (“o seu conteúdo é normal como diálogo de autoridades públicas”).

Um ou outro, senhores! Se é verdadeiro o segundo argumento, inexiste tentativa de calúnia. Nessa hipótese, Moro e os procuradores deveriam celebrar a publicação, que comprovaria de uma vez a lisura do processo. Mas, pelo contrário, como sinaliza a fúria santa do artigo de Bonfim, tudo é anormal nas mensagens que evidenciam o conluio entre juiz e Estado acusador na montagem de estratégias jurídicas e de comunicação midiática.

O segundo argumento é um medíocre exercício de contradição: a negação de um fato incontroverso. Já o primeiro orbita o planeta da especulação vazia. Qual é a prova de que as mensagens foram obtidas por hackers (e não por um procurador de facção rival, por exemplo)?

Há algum vestígio, por mínimo que seja, a sugerir falsificação dos diálogos?

“Ó crime sórdido! Caluniam-me ao dizer que escrevi essas coisas, que posso ou não ter escrito —mas, se de fato as escrevi, nada fiz de errado.” O cerne do discurso de Moro e dos procuradores emana do manual de advogados embrenhados na missão de produzir uma defesa para réus carentes de álibis verossímeis. O fato embaraçoso é que, postos diante de um caudal de diálogos referentes ao principal caso jurídico de suas vidas, não conseguem apontar uma única instância de falsificação.

A conjunção dos dois argumentos resulta em catástrofe lógica. Daí, o recurso a um terceiro, de tipo nuclear: a acusação de que os críticos de Moro e dos procuradores não passam de agentes de corruptos presos ou ainda soltos (“mais de uma centena de potentados acusados”). Aí, sim, nas palavras de Bonfim, identifica-se “o parto de uma calúnia”.

Na estante dos argumentos polêmicos, o ataque “ad hominem” ocupa a prateleira inferior: algo como virar a mesa, levar embora a bola do jogo, chamar o irmão mais velho. Mas, na esfera política, é ferramenta cotidiana dos espíritos autoritários. Sob esse aspecto, os fiéis de Moro emulam o procedimento padrão dos regimes comunistas. Critique Stálin (ou Castro, ou Maduro) e você será um agente da CIA. Critique as sagradas figuras da Lava Jato e será um comparsa dos corruptos.

Bonfim só menciona a Constituição, a lei, o Código de Processo Penal para circundar o tema da separação entre juiz e Estado acusador. No lugar disso, dedo em riste, fala do povo e do inimigo do povo, em alocuções condoreiras: a “grandeza bilionária das cifras da corrupção, abjeto monstro que produz exclusão social”, “mais uma tunga na história e no povo brasileiro nacional” (sic).

Seu discurso, que reproduz o utilizado por Moro na Câmara, pede tradução. Ele está dizendo que a lei deve se curvar ao interesse do povo, tal como interpretado por seus arautos. Todos os regimes autoritários do mundo dizem isso.

Lula é um detalhe, quase uma nota de pé de página, nessa história triste. Não é necessário acreditar na inocência do ex-presidente para desprezar juízes e procuradores que se pronunciam como políticos. Mais precisamente, como políticos populistas.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Elio Gaspari: Fanfarronadas têm um preço

A capitã do navio de africanos expôs o risco político do radicalismo xenófobo de Matteo Salvini

O retumbante Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália, aprendeu uma lição. Quando o barco Sea Watch 3 entrou à força no porto de Lampedusa com 40 refugiados líbios, ele anunciou a prisão da capitã Carola Rackete com a teatralidade do radicalismo fanfarrão. A entrada do navio no porto teria sido um "ato de guerra" praticado por uma embarcação "pirata".

Os 40 africanos que haviam sido resgatados pelo Sea Watch em alto-mar seriam mais um lote de desesperados e Carola Rackete, mais uma ativista dessas ONGs que azucrinam os poderes estabelecidos. Nunca se sabe quando o vento da história sopra em cima de um poderoso da ocasião. O vento soprou em cima de Salvini.

O Sea Watch tem a bandeira holandesa e Carola Rackete é alemã. O ministro das Relações Exteriores de Berlim, Heiko Maas, pediu a libertação da marinheira: "Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso" —exatamente o que achou a juíza que ordenou sua soltura nesta terça (2). O governo da França classificou o ato de "histeria" e o presidente italiano recomendou que se baixasse a bola. Duas vaquinhas internacionais arrecadaram mais de 1 milhão de euros para ajudar a ONG do Sea Watch.

Os refugiados não precisam ficar na Itália e não era razoável que 40 pessoas ficassem à deriva no Mediterrâneo. As leis italianas pretendem conter o êxodo de refugiados africanos, na defesa dos interesses do país, e quando a marinheira desceu no cais de Lampedusa, populares chamaram-na de "vendida". Um deles gritou que ela devia ser estuprada pelos negros que transportou. Coisa dos tempos de hoje. No século passado os europeus fizeram coisas piores e em 1944 o governo italiano colou cartazes mostrando um soldado simiesco com o uniforme americano saqueando obras de arte. Deixar barcos em alto mar, chamando os tripulantes de piratas metidos em atos de guerra, é um triste retorno, e Salvini percorreu-o.

Isso era o que acontecia em 1947. O governo inglês capturava navios com judeus que seguiam para a Palestina. Depois, quando a saga do navio Exodus (com Paul Newman no papel principal) tornou-se um marco na vida de Israel, tiraram o corpo fora.

Por trás do Sea Watch e das ONGs há uma rede de apoios e cumplicidades. A tripulação do barco tinha jovens franceses, holandeses e espanhóis. Nada de novo: havia uma rede clandestina e multinacional por trás de navios como o Exodus. (Nela militava Samy Cohn, que se tornou banqueiro e morreu no Brasil.) Há diferenças entre os refugiados judeus de 1947 querendo ir para a Terra Santa e os africanos de hoje querendo entrar na Europa, mas o ministro alemão que defendeu a libertação de Carola Rackete foi ao essencial: "Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso". Os líbios do Sea Watch poderiam ter morrido no Mediterrâneo e, segundo a capitã, ameaçavam jogar-se ao mar, como faziam os africanos dos navios negreiros do século 19. Calcula-se que neste ano 600 africanos afogaram-se no Mediterrâneo.

As falas de Salvini, repudiadas na terça pela juíza, foram uma fanfarronice demagógica. O ministro tinha motivos para saber que a marinheira, uma "fora da lei", segundo ele, não ficaria muito tempo presa. Sendo alemã, poderia ser deportada. Sabia também que os africanos não ficarão em Lampedusa. Jogou para sua plateia, mas subestimou a reação de outros países e das próprias instituições italianas. Nos dias de hoje, isso é comum.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Demétrio Magnoli: De volta a Versalhes

Com Trump, a semente congelada do isolacionismo foi cruzada com a do nacionalismo

O SS George Washington, com Woodrow Wilson a bordo, levantou âncora de Nova York no dia 4 de dezembro de 1918. Pela primeira vez, um presidente dos EUA viajava ao exterior durante seu mandato.

Junto com o presidente, o navio levava doutrinas que, nas palavras de Henry Kissinger, “situaram os diplomatas europeus em terreno completamente desconhecido”.

O Tratado de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919, consagrou as duas ideias fundamentais de Wilson: autodeterminação dos povos e segurança coletiva. Cem anos depois, os esperançosos faróis de Versalhes converteram-se nas encruzilhadas cruciais da ordem global do século 21.

Paz perpétua —a utopia de Wilson seria erguida sobre o duplo alicerce do direito de todas as nações a um governo soberano e da cooperação mundial numa estrutura de prevenção de conflitos. Um “governo mundial”? A igualdade entre as potências e as pequenas nações?

Na avaliação sardônica de um diplomata britânico, conta-nos Margaret MacMillan, o sonhador presidente dirigia-se à Conferência de Paris imbuído da “mesma fascinação de uma debutante com a perspectiva de seu primeiro baile”. Mas, como a força quase tudo pode, os europeus bailaram a valsa americana. A ordem que dali emergiu durou curtos 20 anos, até a deflagração da nova guerra mundial. As duas ideias revolucionárias continuam a nos atormentar.

A Liga das Nações, imaginada por Wilson como substituto da doutrina europeia do equilíbrio de poder, continha uma dúbia promessa americana de ruptura com o isolacionismo. O próprio Wilson elegera-se, em 1916, sob um slogan isolacionista: “Ele nos manteve fora da guerra”. Sua promessa foi quebrada pelo Senado, que rejeitou a adesão dos EUA à Liga em novembro de 1919. Mais tarde, diante de uma tragédia ainda maior, Franklin Roosevelt restauraria o vaso partido da segurança coletiva, refazendo a obra inconclusa de Wilson pela criação da ONU.

A longa paz armada da Guerra Fria sustentou-se tanto sobre a segurança coletiva quanto sobre o equilíbrio de poder. A convicção internacionalista de Roosevelt nutriu a aliança entre EUA e Europa, que propiciaria, meio século depois, a derrubada do Muro de Berlim e a incorporação dos antigos Estados-satélites soviéticos à União Europeia. Mas a corrente histórica entrou em forte refluxo.

“America First”: no laboratório de Trump, a semente congelada do isolacionismo foi cruzada com a do nacionalismo. Os EUA renegam, um após o outro, seus compromissos multilaterais. O conceito de segurança coletiva, invenção americana que reconfigurou a política mundial do século 20, terá um lugar neste século 21?

“Os direitos e liberdades das pequenas nações” —o lema de Wilson nunca ganhou significado preciso. Quais seriam, no xadrez das línguas e etnias, os nacionalismos legítimos? O presidente americano não deu ouvidos aos irlandeses, que queriam se separar do Reino Unido. Na prática, a autodeterminação serviu ao objetivo das potências aliadas —Reino Unido e França— de fragmentar os impérios da Europa Central. Mas o mapa wilsoniano da Europa só durou até 1945, quando o manto da URSS desceu sobre os estilhaços orientais dos impérios Russo, Alemão e Áustro-Húngaro.

Os impérios ressurgiram em novas roupagens. Na Europa Ocidental, para extinguir a chama dos nacionalismos e resistir à pressão da URSS, nasceu o embrião da União Europeia. O tratado fundador foi assinado em Roma, num gesto simbólico destinado a avivar a memória de uma unidade ancestral.

Dois blocos geopolíticos em confronto: alguém, apressado, declarou a morte dos nacionalismos. Contudo, na Europa desse novo século, pelos megafones de uma direita reinventada, ressurge o clamor da “nação de sangue”, com seu cortejo de ressentimentos e seus agressivos impulsos de exclusão.

Cem anos, quase nada. As indagações de 1919 seguem, intactas, entre nós.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Igor Gielow: Derrota de Lula mantém PT vítima e tira bônus de Bolsonaro

Partido ganha tempo para ajustar discurso; presidente perde chance de inflar antipetismo

A derrota da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) naquela que talvez tenha sido sua maior chance de ver o ex-presidente livre da cadeia é, por óbvio, péssima notícia para o petista.

Para o PT, contudo, é garantia de manutenção de seu arcabouço retórico, que até agora não conseguiu encontrar algo melhor do que as palavras golpe ou processo injusto para definir seu estado político atual. Não é preciso assistir ao documentário “Democracia em Vertigem” (Netflix) para entender isso, embora seja educativo.

Claro que um Lula solto seria bom para a imagem pública do PT, ao menos à centro-esquerda, e mesmo para o discurso de vitimização. Mas também obrigaria o partido a definir rumos que a mitologia do líder acorrentado convenientemente empurra para a frente, quando talvez o ambiente político seja mais favorável à esquerda. Esse momento não é agora.

Assim, PT e, ironicamente, o governador paulista João Doria (PSDB) são beneficiários indiretos dos eventos inusuais ocorridos na Segunda Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) na tarde e noite desta terça (25).

Explica-se. Lula na rua, mesmo que apenas temporariamente, seria uma benesse inesperada para Jair Bolsonaro (PSL) no momento em que o presidente se vê numa grande ofensiva para tentar reforçar a imagem de sua conturbada administração.

Nada seria melhor para o presidente do que a volta à cena do espantalho-mor do eleitorado que o levou ao Planalto em 2018. Ele veria reforçada sua bandeira antipetista, visto que seria inevitável uma reação dessa fatia da população contra uma libertação do ex-presidente petista.

Aqui cabe a digressão sem análise de mérito: o ministro Gilmar Mendes operou com sagacidade, esticando a corda interna da Segunda Turma com sua promessa de adiar a votação da suspeição de Sergio Moro no processo que levou Lula à cadeia, só para quase fazer valer a ideia da soltura provisória.

Ao fim, contudo, foi derrotado com o outro legalista do colegiado, Ricardo Lewandowski. O peso da Lava Jato segue forte no Judiciário, ainda que tudo isso possa mudar lá na frente, quando Moro for de fato colocado sob escrutínio por suas conversas com a Lava Jato.

Voltando a Bolsonaro, com o Supremo e o Congresso alternando-se como fonte de derrotas para suas iniciativas fora da pauta única da reforma da Previdência, o mandatário passou as últimas semanas dando razão àqueles que o chamam de Donald Trump tropical.

Assim como o presidente americano, que viu sua agenda confrontada no Congresso só para lançar-se à óbvia tentativa de reeleição, Bolsonaro se colocou no jogo de 2022 com seis meses incompletos de mandato.

No processo, encastelou-se, reforçando seu time de colaboradores com nível familiar de proximidade, isso numa Presidência que já se assemelhava a uma casa imperial pela influência dos filhos do rei. Emasculou as alas militares que o apoiavam, demitindo generais e restringindo elementos moduladores de intensidade de ação.

Já tendo Moro enfraquecido pelas conversas reveladas com procuradores da Lava Jato, mas longe de estar abatido politicamente, mirou outro candidato potencial em 2022: Doria.

Em polêmicas ora centrais, como a questão da presença de estados e municípios na reforma da Previdência, ora laterais, como o destino da Fórmula-1, Bolsonaro chamou Doria para dançar e foi correspondido até aqui.

A saída de Lula da cadeia, por tempo limitado que fosse, daria a Bolsonaro o elemento galvanizador que falta para buscar retomar o apoio que viu se esvair no eleitorado de centro-direita fora da franja mais radical que o sustenta.

Essas pessoas são as mesmas que defendem a Lava Jato irrestritamente, mas hoje estão afastadas do presidente. Com Lula solto, os olhos tenderiam a voltar-se a Bolsonaro, ora fiador político de Moro e, por extensão simbólica, do combate à corrupção da operação. Assim é o presidencialismo à brasileira.

Com isso, Lula mantém-se como um elemento central do debate político, mesmo que de formas algo contraintuitivas.


Leandro Colon: Não tem tonto no Planalto

Bolsonaro não se aproveita só do desgaste de Moro para se posicionar como força eleitoral

Jair Bolsonaro flerta com a reeleição e desfila simpatia nas ruas. No sábado (22), deu uma escapada para comprar xampu em um supermercado. Ao mesmo tempo o ministro da Justiça, Sergio Moro, potencial nome para a disputa presidencial de 2022, está cada vez mais encurralado pelas mensagens comprometedoras trocadas com a Lava Jato.

Bolsonaro não se aproveita só do desgaste de Moro para se posicionar como o nome governista com força eleitoral. Outros fatores têm estimulado o presidente a sair da toca.

Ao aumentar as aparições públicas e o diálogo rotineiro com a imprensa, por exemplo, Bolsonaro busca reagir ao isolamento e às derrotas que o Congresso tenta lhe impor. Não à toa, avisou que não será uma rainha da Inglaterra. Já caiu a ficha.

Bolsonaro diz que Moro é “patrimônio nacional” e tem seu apoio na crise. Cada declaração de respaldo ao ministro, no entanto, é sucedida de uma revelação de diálogos delicados do ex-juiz com Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato.

No domingo (23), a Folha e o The Intercept Brasil mostraram que Moro e Deltan discutiram detalhes de estratégia envolvendo delações da Odebrecht e o seu rumo no STF.

Moro passou (informalmente) pista para investigadores, sugeriu a troca de uma procuradora nos interrogatórios, deu orientações sobre manifestação do MPF à imprensa, reclamou de demora em nova operação policial e sinalizou certa proteção ao ex-presidente FHC (PSDB).

O ex-juiz diz que não confirma a autenticidade das mensagens, mas não a nega. O seu conteúdo, segundo ele, não configura ilicitude. Moro adotou narrativa peculiar. Não quer ratificar que não fez nada de errado.

No Reino Unido, o conservador Boris Johnson, favorito para virar premiê, está no sal depois da notícia de que a polícia foi chamada por vizinhos para averiguar um bate-boca dele em casa com a namorada. Lá, a régua costuma ser outra. Por aqui, quem levar a sério algo parecido envolvendo político brasileiro corre risco de ser chamado de tonto.

*Leandro Colon, Diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso.


Bruno Boghossian: Bolsonaro coroa debate sobre armas com distorções e trapaças

Em festival de enganações, presidente só oferece ao cidadão a opção de 'se virar'

“Santa Catarina é o estado que tem mais clube de tiro. Não por coincidência, é o estado menos violento do Brasil”, disse Jair Bolsonaroem sua última transmissão ao vivo. A relação estapafúrdia vendida pelo presidente coroa o festival de distorções e enganações no debate sobre a ampliação das armas de fogo. Mais uma vez, os fatos ficaram para trás.

Existe uma série de argumentos para embasar propostas de flexibilização. Há justificativas razoáveis em defesa da extensão do porte para algumas profissões ou a favor da liberação em propriedades rurais. Prevalece, entretanto, a falta de lógica.

Na quinta (20), Bolsonaro riu ao contar que senadores que votaram para derrubar seus decretos haviam sido ameaçados e —“olha só”— pediram proteção. “Você, que não tem como pedir proteção armada ao poder público, vai se virar como?”

A pergunta transforma em discurso institucional a ideia de que, na segurança, cada um cuida de si. Ainda que o Estado deixe muito a desejar, um governante não deveria oferecer ao cidadão só a opção de “se virar”.

Além disso, o presidente não deve ter percebido que o exemplo nega suas próprias posições. Os parlamentares que pedem proteção querem segurança oficial da polícia, exercida por profissionais. Só haveria hipocrisia se, após a ameaça, eles mesmos pedissem para andar armados.

O governo recorre também a uma versão fantasiosa do referendo de 2005. Na ocasião, eleitores derrubaram um artigo do Estatuto do Desarmamento que proibiria a venda de armas. A votação, porém, não derrubou restrições à posse e ao porte. Se quer mudar a lei, o presidente precisa enviar um projeto ao Congresso.

Para completar, Bolsonaro sustenta que armar a população é essencial para conter a ascensão de ditadores. O raciocínio extrapola a questão da criminalidade e mostra que o presidente é capaz de trapaças criativas para fazer valer sua vontade.

Faço uma pausa e volto a escrever por aqui no dia 12 de julho.


Janio de Freitas: Em vez dos militares

O verdadeiro combate à corrupção só pode ser feito por gente honesta

Ainda sem saber o que liga o Exército ao bolsonarismo, estamos sob um teste novo do nosso futuro democrático e das perspetivas do país. As consequências que o Poder Judiciário der às transgressões de Sergio Moro vão indicar a determinação de sustentar o Estado de Direito ou a capitulação a um vale tudo irremediável, escancarando o país, ainda mais, ao que nele haja de pior.

Já era tempo de se vislumbrarem alguns sinais nos níveis de responsabilidade legal e moral na aplicação de Justiça e dos direitos civis. Ali não se ouve, não se vê, não se fala e, sobretudo, não se age a respeito da conduta de Moro na Lava Jato.

Não fugiu a esse imobilismo o requerido à Polícia Federal pela procuradora-geral Raquel Dodge: a investigação pedida é sobre a obtenção das gravações e sua divulgação. Os alvos verdadeiros são o jornalista Glenn Greenwald e o site The Intercept Brasil.

A Polícia Federal é um departamento sob controle de Moro no Ministério da Justiça (nome cada vez mais impróprio). A primeira nomeação de peso desse novo ministro, na PF, foi para a seção do Crime Organizado. Até poderia vir a calhar.

Não bastando, porém, que o principal interessado seja o próprio ministro, seu nomeado foi um dos delegados da Lava Jato que fizeram propaganda, pela internet, para Aécio Neves na campanha de 2014. Pretendente a novo mandado, Raquel Dodge deixa bem claro o limite de sua iniciativa quando, em relatório ao Supremo, opina contra habeas corpus para Lula.

Não se ocupa da questão Lula, propriamente, mas do intercâmbio de transgressões de Moro e Dallagnol. Tem “manifesta preocupação com a circunstância” de que as mensagens “tenham sido obtidas de maneira criminosa”. Dá essa “circunstância” como decisiva, mas vai além.

Considera que “a autenticidade não foi analisada e muito menos confirmada”, logo, as gravações não têm validade processual. Mas, nesse caso, a afirmação de “maneira criminosa” de obtê-las também não é válida: “não foi analisada e muito menos confirmada”. E quem informou que a obtenção foi criminosa? Ou o que, mais do que admissível probabilidade, prova essa “circunstância”?

A autenticidade das vozes e dos diálogos de Moro e Dallagnol, no entanto, foi reconhecida por ambos. De imediato. Bastou-lhes ouvi-los, para que saíssem só pela tangente, “não tem nada de mais”, “isso é normal”, “não houve ilegalidade”. Nenhum dos dois negou serem sua voz e suas palavras nem negou o diálogo. Haveria, portanto, muito mais a ser pedido por Raquel Dodge. Mesmo na exótica situação de fazê-lo ao gravado Moro.

Não há como ter dúvida honesta sobre a autenticidade das gravações. Além disso, o site The Intercept, sua seção Brasil e Greenwald fazem jornalismo sério. Dúvida e honestidade de propósitos e métodos voltam-se para os setores que vão dar, ou negar, as consequências apropriadas ao embuste praticado em nome da Lava Jato.

O verdadeiro combate à corrupção só pode ser feito por gente honesta, a Lava Jato não precisa das outras. Nem a população precisa de mais gente a enganá-la e explorá-la.

Este é um momento de decisões graves —o que é sempre perigoso no Brasil.

GUERRA ELEITORAL
São dois os beneficiados pela tensão bélica no Oriente Médio. Donald Trump começa uma campanha difícil e Binyamin Netanyahu vai para a repetição eleitoral, por lhe faltarem na eleição anterior os votos e apoios para formar novo governo. O ambiente de guerra é historicamente favorável aos candidatos de linha-dura. E não consta que o Irã tivesse algo a ganhar com ataques a navios estrangeiros e o risco que daí lhe adviria.


Vinicius Torres Freire: Países ricos afrouxam taxas de juros e ajudam a acalmar finanças por aqui

 

A economia do Brasil continua entre a desordem e a estagnação, mas o mundo, vasto mundo, lá fora dá um rumo para a nossa bagunça, ao menos no que diz respeito às condições financeiras.

A decisão desta quarta-feira do Fed, o Banco Central dos EUA, nos ofereceu outra dose de ansiolítico monetário. A taxa básica de jurosdeles fica na mesma, mas já olhando para baixo. A nossa continua a olhar para os lados, pois o Banco Central do Brasil também nesta quarta decidiu manter a Selic já enferrujada em 6,5%, sublinhando e dizendo em negrito e maiúsculas que, tudo mais constante, vai se mexer apenas se vierem reformas.

Pelo terceiro ano consecutivo, é bem provável que este país em depressão tenha taxa de inflação abaixo da meta. Mas passemos. Por enquanto, convém observar como o barquinho brasileiro é arrastado pelas correntes mundiais. A gente é muito jeca e dada a olhar demais para o umbigo sujo.

Desde que os juros americanos começaram a rolar a ladeira no mercado, em meados de maio, deu-se o seguinte: 1) as taxas de juros brasileiras no atacadão de dinheiro pegaram carona na banguela; 2) o Ibovespa saiu do fundo do pocinho deste ano; 3) o dólar saiu das alturas de R$ 4,10, mesmo preço em que estivera durante as semanas quentes da campanha eleitoral, em agosto e setembro.

Dado o histórico nacional, podemos reagir a boas oportunidades nos dando um tiro no pé ou mesmo na cabeça. Entretanto, mesmo o tumulto político bolsonariano nos rende por ora apenas uns sorvetes na testa.

Tudo em paz? Nunca está. Donald Trump pode requentar a guerra comercial com a China ou fazer uma bobagem mortífera com o Irã, não convém subestimar o líder antiglobalista. Além do mais, os bancos centrais dos países importantes estão afrouxando a política monetária porque suas economias estão mais lentas.

Crescimento menor não costuma ser bom para ninguém. Neste caso, a desaceleração é paulatina e, nos Estados Unidos, pouco notável. No balanço dos problemas, uma alta de juros seria muito pior do que a calmaria monetária devida à freada por enquanto suave das economias centrais. Não é por causa da lerdeza lá fora que o Brasil não está crescendo nada, mas porque arruinou sua economia de modo extraordinário e está em tumulto político faz seis anos.

Ganhamos algum tempo para consertar os danos e até um motivo adicional para baixar as nossas taxas de juros. Como se tem escrito nestas colunas, os negociantes do dinheiro grosso, “o mercado”, já diminuíram as taxas de seus negócios, no atacadão de dinheiro. As expectativas de inflação de quem faz negócio na finança são menores do que as inertes previsões de seus pares dos departamentos de pesquisa macroeconômica, aquelas compiladas semanalmente pelo BC.

Nem é preciso dizer que o BC sabe disso muito bem e faz tempo. É também óbvio que um revertério na reforma da Previdência tende a enterrar nossas cabeças na lama que está pelos nossos narizes. Isto posto, assim que a reforma passar pelo mata-burro, o BC vai ser agressivo com os juros?

“Taxa de juros não resolve a crise brasileira”, diz a conversa mole. Não, nenhuma medida parcial resolve. De resto, estamos falando aqui de curto prazo, de minorar danos e de uma atitude razoável que não causará prejuízo algum para a suposta alternativa (reformas estruturais, aumento de produtividade). Não podemos abrir mão de impulso racional algum para empurrar esta carroça.


Bruno Boghossian: Moro não dá respostas sobre diálogos, mas ganha o jogo no drible

Ministro deixa dúvidas no ar e adota o diversionismo como estratégia no Senado

Na sétima hora de depoimento sobre sua troca de mensagens com procuradores, Sergio Moro se disse perplexo por “ter de falar tanto sobre esse tema”. O ministro insistiu em questionar a veracidade dos diálogos e se desviou das suspeitas de que sua atuação na Lava Jato foi parcial. Ganhou o jogo no drible.

O ex-juiz não saiu do Senado com uma sentença absolutória, mas também não caiu diante das perguntas dos parlamentares. Moro aceitou deixar no ar questionamentos sobre as conversas publicadas pelo site The Intercept e se refugiou atrás de dúvidas lançadas por ele mesmo.

O ministro ficou na retranca. Acusou a publicação de sensacionalismo 52 vezes e repetiu que não reconhecia a veracidade dos diálogos. No entanto, não ofereceu qualquer indício de que as conversas reproduzidas sejam falsas ou deturpadas.

Embora o assunto em debate fosse sua atuação como julgador, Moroabriu mão de apresentar argumentos para defender que sua parceria com os procuradores era legal e ética. Ele disse mais de 30 vezes que aquilo era algo normal, “absolutamente normal”, “absurdamente normal”. Não era, e o ex-juiz não explicou por que discutia táticas de acusação com o Ministério Público.

Moro buscou abrigo nas provas e em resultados incontestáveis obtidos pela Lava Jato. A certa altura, precisou lembrar aos parlamentares que “agentes políticos inescrupulosos haviam capturado a Petrobras”. Era verdade, mas também diversionismo. Ninguém estava ali para fazer um balanço da operação.

A sessão evidenciou que há uma base política favorável ao ex-juiz no Senado. Ele recebeu elogios, embora tenha estranhado algumas críticas. Quando Fabiano Contarato (Rede) enalteceu a Lava Jato, mas censurou seu comportamento, Moro reclamou que aquela defesa era “um tanto quanto peculiar”.

O ministro não sepultou o caso, mas repisou o discurso de que o combate à corrupção justifica sua conduta. Moro reforça sua proteção enquanto aguarda novas revelações.


Maria Hermínia Tavares de Almeida: Deus no Itamaraty

Nacionalismo míope e alinhamento automático podem levar o país à insignificância

“Deus em Davos. Falei disso em minha apresentação na abertura do seminário Globalismo”, informou o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em sua conta no Twitter.

Vale uma visita ao site da Fundação Alexandre de Gusmão para ouvir as conferências do seminário. Especialmente, as de duas figuras importantes na política externa brasileira: o chefe da diplomacia e o assessor internacional da Presidência.

Durante longos 45 minutos, o chanceler empilhou ideias e citações no esforço de explicar que o “globalismo” é uma espécie de religião ateia, cujo evangelho junta “ambientalismo”, a ideia de direitos humanos universais e o politicamente correto. Tudo produto do “gramscismo” (de Antonio Gramsci, pensador e líder comunista italiano que morreu sob o fascismo, em 1937) e do “fisiologismo” (muito provavelmente o ministro queria dizer materialismo).

Ainda segundo a sua teoria, quando descartou a ideia de Deus, ao fim da Guerra Fria, o liberalismo ocidental haveria aberto o caminho para a expansão da ideologia globalista. Ao levar Deus ao Fórum Mundial deDavos, o presidente Jair Bolsonaro teria começado a alinhar o Brasil à cruzada conservadora mundial.

O seu assessor internacional Filipe Martins foi mais direto. O globalismo é a ideologia de uma tecnocracia apátrida e cosmopolita, instalada nas organizações multilaterais, querendo destruir a soberania nacional.

Nacionalismo versus globalismo, eis o grande combate do século 21, proclamou o professor que se notabilizou também por enriquecer a agenda do país com a luta contra a tomada de três pinos, as urnas eletrônicas e a reforma ortográfica. Na guerra do século, avisou, estamos ao lado do nacionalismo, abraçados a Trump, ao húngaro Orban, ao indiano Modi.

Não é possível avaliar o impacto desse livre-pensar sobre a política exterior do Brasil. Esta não depende só, nem principalmente, da vontade dos governantes, mas da pressão de interesses internos, assim como da geopolítica e dos recursos de poder e influência ao alcance de um país como este.

Muitas coisas continuarão a se mover sobre os mesmos trilhos de há muito assentados e sob a condução de um corpo diplomático treinado para buscar o melhor para o país.

Mas o nacionalismo míope à existência de problemas globais —como a degradação ambiental, as migrações ou as pandemias— somado a alinhamentos automáticos a governantes estrangeiros, na base de proximidade ideológica, podem isolar o Brasil e condená-lo à insignificância.

O Deus de Bolsonaro passou por Davos sem abalar a ordem mundial. Falta saber que estragos poderá fazer no Itamaraty.

*Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.