Folha de S. Paulo
João Pereira Coutinho: O trem da história
Para Chantal Mouffe, só o populismo de esquerda pode derrotar o de direita
De vez em quando, alguns leitores interessados em política me pedem conselhos bibliográficos. Eu dou. Eles reclamam. Sobretudo quando recomendo autores de esquerda que esteja a ler no momento (Agamben, David Graeber, o excelente Paulo Arantes etc.).
Nunca entendi o descaso. É mais proveitoso ler autores com os quais discordamos (grosso modo) do que gente que se limita a pregar aos convertidos.
Um dos melhores exemplos é Chantal Mouffe, a filósofa belga que tem pensado como ninguém os dilemas que a esquerda contemporânea enfrenta.
Na década de 1980, e perante a "ofensiva neoliberal" de Thatcher e Reagan, Mouffe criticava a (sua) esquerda pela visão essencialista de só considerar os trabalhadores como sujeitos oprimidos da história. Para a autora, existem vários tipo de dominação que merecem uma resposta progressista.
Sem o saber, Mouffe influenciou aquela parte da esquerda que encontrou na luta das minorias --sexuais, culturais, étnicas etc.-- uma nova bandeira pós-marxista.
O problema, porém, é que Mouffe nunca defendeu que as classes trabalhadoras deveriam ser substituídas pelas minorias. Na estratégia de Mouffe, uma nova "hegemonia progressista" seria plural, feita de várias vozes, e não de uma tribalização selecionada.
Eis o programa que Mouffe relembra no seu mais recente ensaio, que obviamente recomendo: "Por um Populismo de Esquerda" (edição portuguesa pela Gradiva).
O título é um achado. "Populismo" é palavra maldita para muitos progressistas, compreensivelmente assustados pelos populistas de direita que tomaram conta do palco.
Não para Mouffe. Mais: ela defende explicitamente que a única forma de derrotar o populismo de direita passa por uma alternativa populista de esquerda.
O momento histórico que vivemos assim o determina. Durante 30 anos, o que Mouffe entende por "hegemonia neoliberal" teve rédea solta. De tal forma que os tradicionais partidos socialistas se converteram à ortodoxia dos mercados, aceitando a sua trilogia sagrada --desregulação, privatização, austeridade. Bill Clinton ou Tony Blair, os papas da "terceira via", foram os rostos dessa rendição.
Mas a crise financeira de 2008 abriu uma brecha na narrativa de sucesso neoliberal. A direita populista entendeu isso, conquistando o voto dos deserdados da globalização. A esquerda, obcecada com as minilutas das miniminorias, perdeu o trem da história.
É preciso recuperá-lo. Primeiro, replicando a dicotomia do populismo de direita: é mesmo "nós" contra "eles" --ou, melhor dizendo, o "povo" contra a "oligarquia" neoliberal. E que povo é esse?
Para Mouffe, é a reunião de todas as forças democráticas --trabalhadores, imigrantes, minorias etc.-- que não se reveem no modelo neoliberal e na pós-democracia reinante.
Entendo o diagnóstico da autora. Parcialmente, concordo com ele. A globalização, como qualquer processo histórico revolucionário, provocou rupturas tecnológicas que atingiram duramente o "proletariado".
Além disso, a pós-democracia, entendida como redução da soberania nacional e desvalorização dos parlamentos, é uma evidência na Europa. A União Europeia pode ter vários méritos, mas há uma sombra antidemocrática no funcionamento político da Europa que tem alimentado a abstenção e a revolta entre os eleitores. É preciso lembrar o brexit?
Acontece que a proposta de Mouffe tem várias contradições. A primeira delas é mais ou menos óbvia. Como conciliar na sua noção de "povo" interesses tão díspares?
Uma parte dos trabalhadores que hoje votam em Donald Trump ou Marine Le Pen o fazem, precisamente, contra as minorias que Mouffe pretende aglutinar. É um voto contra a imigração irrestrita, entendida também como ameaça econômica global.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre esse assunto? Abram as fronteiras e tudo será perfeito?
Mas não só. Na narrativa de Mouffe, há duas datas que a autora ignora: o 11 de Setembro e a crise dos refugiados de 2015. Podemos dizer que a primeira data, pela reação militar que despertou a Ocidente, está diretamente relacionada com a segunda.
O populismo de direita é filho dessas duas datas e do sentimento de insegurança coletiva correspondente.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre isso? O terrorismo é mera "islamofobia"?
Como sempre, Chantal Mouffe toca em temas essenciais, como o abandono do "proletariado" pela nova esquerda ou o momento pós-democrático na Europa.
Mas desconfio que ainda não é dessa vez que o populismo de direita tem um rival à altura.
*João Pereira Coutinho é escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
José Serra: Um grande homem público
Barelli deixou marcas importantes na história do país
Na última quinta-feira (18), morreu o economista Walter Barelli, cuja militância profissional na área deixou marcas importantes na história brasileira após o golpe militar de 1964.
Foi ele quem conduziu o Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (Dieese) a partir da segunda metade dos anos 1960 até o início dos 90, instituição que teve um grande papel no fortalecimento do movimento dos trabalhadores de São Paulo, ao pesquisar índices de preços, ou custo de vida, que serviam de base às reivindicações sindicais.
O Dieese sobreviveu aos piores anos do autoritarismo no Brasil, com Barelli à frente, mantendo sempre sua credibilidade técnica.
Além de diretor do departamento, ele foi ministro do Trabalho de outubro de 1992 a abril de 1994, secretário do Emprego e Relações do Trabalho do Estado de São Paulo de 1995 a 2002 e deputado federal pelo PSDB de 2003 a 2007. Foi ainda professor do Departamento de Teoria Econômica e membro do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), da Unicamp.
Como ministro do Trabalho do presidente Itamar Franco, assinou juntamente com Fernando Henrique Cardoso a lei 8.678, de 1993, que introduziu na legislação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) a possibilidade do trabalhador sacar a poupança no fundo quando fica fora do regime por um período de três anos ininterruptos. Nada mais justo.
Outra novidade da lei 8.678 foi o estabelecimento de uma taxa adicional de juros para remunerar o saldo nas contas dos trabalhadores que ficam fora do mercado de trabalho por três anos ininterruptos. Os recursos para cobrir essa bonificação são obtidos pela Caixa Econômica Federal cobrando-se compensações nas operações de crédito financiadas com recursos do FGTS.
No comando do Ministério do Trabalho, Barelli liderou ações para combater o trabalho escravo. Quando ocupou o cargo, coordenou um mapeamento das ocorrências de trabalho escravo no Brasil. Concluiu-se na época que 31% dos registros de trabalho escravo estavam no Sudeste; 26%, na região Norte; 18%, no Centro-Oeste; 13%, no Nordeste; e 12%, no Sul. Entre os setores, os casos se concentravam especialmente nas áreas sucroalcooleira, agrícola, carvoeira e de reflorestamento.
Ele também se voltou a propostas que tornassem a gestão pública mais eficiente. Como deputado federal, criou em 2005 uma subcomissão na Comissão de Trabalho e Administração Pública da Câmara para avaliar gestão de pessoas, processos, tecnologia e ética no setor público.
Barelli e eu militamos juntos no movimento estudantil na primeira metade dos anos 1960. Dele recebi apoio decisivo para assumir então a presidência da União Estadual dos Estudantes (UEE), que me levou a presidir, em seguida, a União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1964.
Quando voltei do exílio, em 1977/78, contei sempre com apoio do Barelli para integrar-me na vida acadêmica e na política nacionais. Ao longo desses anos todos, mais de perto ou mais de longe, dependendo das diferentes conjunturas, mantivemos sempre a relação de fraterna amizade. Perdemos um grande homem público.
* José Serra é senador da República (PSDB-SP), ex-governador de São Paulo (2007-2010), ex-prefeito de São Paulo (2005-2006) e ex-deputado federal (1987-1991), doutor em economia pela Universidade Cornell
Elio Gaspari: Novo livro conta história da carreira militar de Bolsonaro
'O Cadete e o Capitão' relata episódio de 'rebeldia' do capitão reformado
Vem aí o livro "O Cadete e o Capitão", do repórter Luiz Maklouf Carvalho. Ele conta a carreira militar de Jair Bolsonaro e revisita o episódio dos anos oitenta do século passado em que o jovem oficial foi submetido a um Conselho de Justificação que considerou "seu comportamento aético e incompatível com o pundonor militar. O caso foi para o Superior Tribunal Militar e lá ele foi considerado "não culpado" das acusações do conselho. O capitão deixou o Exército e elegeu-se vereador no Rio.
Bolsonaro era um jovem ativista crítico da política salarial dos militares, havia tomado 15 dias de cadeia por indisciplina. Ele era acusado de ter desenhado um croquis com um plano de explosão da adutora do Guandu, no Rio de Janeiro.
Jair Bolsonaro joga basquete com amigos da brigada paraquedista - Arquivo pessoal
Pela sua documentação, o livro de Maklouf é encrenca da boa. Assim como foi encrenca da boa sua reportagem mostrando que a presidente Dilma Rousseff nunca concluíra o doutorado pela Unicamp que enfeitava sua biografia oficial.
O TESOURO DA UFRJ
O projeto "Viva UFRJ" sugere que a universidade pode arrecadar milhões vendendo seus terrenos na Praia Vermelha e na ilha do Fundão.
A área da Praia Vermelha pode valer bastante. No caso das terras do Fundão, a "vocação imobiliária" deixou de ser o sonho de um campus e foi noutra direção. Os interessados nos terrenos gostariam de construir galpões para apoiar a logística do aeroporto do Galeão.
TERRENO BALDIO
De uma víbora que já viu de tudo e ouviu Bolsonaro e Paulo Guedes festejando o Mercosul que eles tanto atacavam:
"Campanha eleitoral é que nem terreno baldio, as pessoas passam por ele, jogam de tudo, de pneu velho a sofá quebrado."
DIFICULDADE
O pessoal do palácio do Planalto sabe que a reforma da Previdência chegou ao Congresso azeitada pela iniciativa tomada no governo de Temer e com relativo apoio na opinião pública.
Um projeto de reforma tributária não terá uma coisa nem outra.
Mathias Alencastro: Saque ao Itamaraty
Indicação de Eduardo Bolsonaro leva Itamaraty a risco de implosão
A indicação de embaixadores de fora da carreira diplomática não é apenas moralmente aceitável como também é perfeitamente banal nas democracias ocidentais.
As coisas se complicam quando motivações espúrias estão por trás das escolhas e os indicados demonstram absoluta falta de experiência para o cargo.
Um terço dos embaixadores indicados por Donald Trump contribuíram financeiramente para a sua vitoriosa campanha presidencial de 2016. Somente 5% possuíam algum tipo de conhecimento prévio da região onde servem atualmente. Os restantes tinham apenas fritado hambúrgueres.
Na era Obama, o finado senador republicano John McCain se indignou com a escolha de Colleen Bell para chefiar a embaixada na Hungria. A produtora do melodrama "Paixão e Ódio" tinha zero experiência internacional, mas era um importante cabo eleitoral do presidente democrata na Califórnia.
Imune a esse tipo de intervenção presidencial, o Brasil está prestes a entrar numa nova era com a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington.
Manifestamente antirrepublicana, ela abre um precedente irreversível, que expõe a política externa a todo tipo de absurdo.
Depois de o Senado aprovar a nomeação de Eduardo, o que impedirá Jair de indicar Marco Feliciano para Tel Aviv, algum ideólogo das redes sociais para Roma, e, por que não, Luciano Hang para Tóquio?
A mais grave consequência desse processo seria a implosão do Itamaraty. A liga dos embaixadores amadores trataria diretamente com quem os designou —o presidente— , esvaziando a instituição dos seus poderes discricionários.
Outro efeito perverso seria a exposição do Brasil aos erros crassos dos seus deslumbrados, facilmente manipuláveis por diplomatas mais experientes de outros países.
Por fim, nada garante que essas manobras surtam o efeito esperado. Theresa May e Emmanuel Macron fizeram de tudo para estabelecer uma relação de confiança com Trump. Os seus respectivos embaixadores acabaram regressando com o rabo entre as pernas.
Mas o mal já está feito. Se Bolsonaro recuar, ele pode seguir os passos de Trump, que também enfrentou resistência no Senado, e vetar a indicação de novos embaixadores. Por esse motivo, postos relevantes para a diplomacia americana, como México e Austrália, permanecem desocupados.
O impasse se deve, em parte, à corajosa reação do corpo diplomático americano às intervenções de Trump. Embaixadores entregaram os seus cargos, funcionários se demitiram.
No Brasil, tem sido o contrário.
Servil, Ernesto Araújo, um diplomata de carreira, vem ratificando alegremente a devassa, consolidando a ruptura com a ideia centenária de que o Itamaraty era uma instituição imune à politicagem do Alvorada.
Frequentemente apresentado pela imprensa como um desequilibrado, ele tem se revelado ser um zeloso ajudante de obras do presidente.
Resta saber se os restantes diplomatas vão continuar tolerando por muito tempo o saque do Palácio.
*Mathias Alencastro é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Lucio Rennó: Hiperativismo legislativo da Câmara
Maior autonomia do Congresso avança rapidamente
O Brasil vivencia um interessante processo de fortalecimento do Legislativo, o que se reflete em números. No primeiro semestre deste ano, nove proposições legislativas, incluindo projetos de lei, propostas de emenda à Constituição e projetos de lei complementar, foram remetidas ao Senado depois de conclusão favorável de sua tramitação na Câmara.
Trata-se de um fenômeno novo. Em igual período da legislatura anterior (de 3 de fevereiro a 30 de junho de 2015), somente uma proposição teve o mesmo destino. Em todas as anteriores, desde a eleita em 1994, nenhuma proposição apresentada na primeira metade do ano foi enviada aos senadores antes do final de junho, após a finalização de sua tramitação na Casa.
Nas legislaturas anteriores, as propostas efetuadas no mesmo intervalo vieram a ser expedidas para o Senado muito tempo depois, ou seja, o número absoluto de proposições que tramitaram com sucesso neste ano na Câmara indica também prazo recorde de processamento.
Proposições, normalmente, levam muito mais meses até sua aprovação —e todas as aprovadas são de autoria de deputados e deputadas ou da própria Casa.
O que explica essa altíssima eficiência legislativa?
As respostas são de duas naturezas: institucional e conjuntural.
Institucionalmente, o país mudou nos últimos anos. Foram várias as reformas políticas que transformaram a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo, sendo todas na direção de maior autonomia do Congresso e de redução do controle da agenda legislativa pelo Executivo.
As principais alterações envolvem dois importantes recursos de poder do governo para exercer esse controle: emendas orçamentárias e medidas provisórias (MP).
As últimas revisões dessas duas fundamentais ferramentas de administração reduziram a discricionariedade do Executivo.
As primeiras são agora praticamente carimbadas e devem ser pagas, reduzindo a margem de negociação do Executivo.
Já o uso das segundas não impõe custos ao Legislativo, que, se as deixa de analisar, não vê seus trabalhos paralisados como ocorria no passado. Hoje, quem tem que se esforçar para aprovar as MPs é o Executivo, uma vez que, se não houver deliberação, elas perdem validade.
Uma demanda antiga da classe política, a de maior autonomia do Congresso frente ao presidente da República, está em andamento.
No entanto, não houve um enxugamento do quadro partidário brasileiro. Muito pelo contrário: as reformas em vigência até este ano estimularam a criação de novas legendas como alternativa para a migração partidária.
Além disso, mudanças recentes ampliaram a janela de mudança partidária às vésperas das eleições, elevando a incerteza quanto à composição das legendas. Assim, o número efetivo de agremiações no Brasil, que já era o mais alto do mundo, explodiu.
Nossas reformas políticas reduziram a capacidade do Executivo de governar: dilataram o leque de partidos e, consequentemente, a dificuldade de construção de maiorias estáveis, bem como enfraqueceram os poderes do governo para avançar sua agenda legislativa.
Dilma Rousseff (PT) navegou esses mares, assim como ocorre com Jair Bolsonaro (PSL) hoje, diferentemente de seus antecessores. Michel Temer (MDB), um parlamentar experiente, conseguiu reorganizar a coalizão, mas não governou, mergulhado em escândalos.
Conjunturalmente, o atual governo rejeita a construção de coalizões nos moldes do passado e conta com o apoio estável de uma minoria. Dessa forma, sua capacidade de coordenação dos trabalhos legislativos é reduzida e seu controle sobre a agenda da Câmara, menor. Ademais, sua limitada base é inexperiente, dificultando a defesa de seus interesses.
Por outro lado, é importante ter claro que o objetivo do governo no primeiro semestre era a aprovação da reforma da Previdência. A gestão Bolsonaro tem deixado de lado outras questões.
Neste vazio de poder, abriu-se espaço para deputados aprovarem projetos de relevância para lidar com questões de interesse nacional, conforme deixam claro as ementas das propostas remetidas ao Senado.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), por sua vez, vem apoiando a atuação dos parlamentares, ampliando a primazia da Casa.
O Legislativo brasileiro se fortaleceu. Precisa ser acompanhado de perto pelo eleitor. Nunca antes foi tão importante prestar atenção no que nossos representantes fazem.
*Lucio Rennó é professor do Instituto de Ciência Política da UnB, doutor em ciência política pela Universidade de Pittsburgh (EUA) e ex-presidente da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (2015-2018)
Leandro Colon: Refúgio na galera
Estratégia de Bolsonaro é falar o que quer e correr para as ruas
De surpresa, Jair Bolsonaro apareceu em uma tradicional galeteria em Brasília para almoçar no domingo (21). “O calor do povo não tem preço”, disse em rede social.
Pouco antes, o presidente esteve em um culto evangélico e discursou aos presentes. Ele afirmou que não sofre a solidão do poder porque tem lealdade com o povo. No sábado (20), deu uma passada em um encontro de motociclistas no DF. Divulgou as imagens da visita logo em seguida.
Nenhum desses eventos estava previsto na agenda de fim de semana do presidente. Episódios semelhantes, com escapadas sem aviso prévio, ocorreram em sábados e domingos recentes. E a imprensa, logicamente, precisa correr atrás dele.
Assim como também virou rotina o presidente terminar a semana sob artilharia após declarações polêmicas, muitas descabidas, desconexas da realidade e até da verdade.
O que faz Bolsonaro? Tem usado o fim de semana para tentar prevalecer sua narrativa dos fatos da véspera, culpando a imprensa por, segundo ele, deturpar o que dissera.
Ao mesmo tempo, produz e difunde imagens com simpatizantes. Noves meses depois de ser eleito presidente, Bolsonaro mantém a tática de campanha eleitoral pendurada em seguidores fora e dentro das redes.
Parece ser a aposta dele diante de ausência de um apoio fidelizado no Congresso, da escassez de estratégia política e de comunicação no Planalto e da intolerância que não esconde ter a críticas da imprensa.
Há três dias, Bolsonaro surpreendeu até quem já desistiu de se surpreender com ele. Foi uma sexta-feira (19) maluca e sem fim. Declarou que não há fome no país, agrediu governadores do Nordeste e admitiu que criticou um filme (o da Bruna Surfistinha) ao qual não assistiu.
Questionado sobre o fim dos 40% de multa sobre o FGTS, deu resposta confusa. E colocou em xeque dados do governo sobre desmatamento.
Está posta a estratégia do presidente de falar o que quer e correr para a galera. A dúvida é o preço que o país pagará por isso no longo prazo.
Samuel Pessôa: A velha e a nova esquerda
A esquerda tradicional levanta-se da mesa e diz não; a nova faz o acordo e diz sim
O caso dos 19 deputados dissidentes do PDT e do PSB, com destaques para os jovens Tabata Amaral, pelo PDT de São Paulo, e Felipe Rigoni, do PSB do Espírito Santo, tem causado na imprensa.
O governo envia uma proposta de reforma da Previdência. A esquerda tem diversos reparos. A esquerda tem outra proposta. Governo, esquerda e, principalmente, o centrão negociam. Diversos pontos criticados pela esquerda são retirados por intervenção do centrão.
A esquerda tradicional levanta-se da mesa e diz não. A nova esquerda faz o acordo e diz sim.
Em 1985, o PT expulsou os deputados Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes por votarem no Colégio Eleitoral na chapa Tancredo Neves e José Sarney contra Maluf, candidato dos militares.
Em 1994, o PT foi contra o Plano Real. Segundo Guido Mantega, em artigo nesta Folha em 16 de agosto de 1994, “essa estratégia neoliberal de controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa”.
Nossa hiperinflação foi fruto do desequilíbrio fiscal dos estados após a redemocratização. Somente superamos a hiperinflação com a renegociação da dívida dos estados com a União, lei 9.496 de 1997, e com a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). O PT votou contra ambos.
O PT também votou contra o Fundef, instituído pela emenda constitucional nº 14, de setembro de 1996. O Fundef aumentou muito a eficiência do gasto com educação e permitiu a universalização do ensino fundamental.
Qual é a justificativa para um partido que se preocupa com a melhora da vida dos mais vulneráveis ser contra medidas que eliminam a inflação e melhoram a eficiência do gasto em educação, para ficar em apenas dois exemplos?
Há duas velhas esquerdas. A primeira aposta no quanto pior, melhor. Simplesmente porque apenas deseja a melhora do país se estiver no governo. Caso contrário, é melhor que o país se afunde ainda mais.
O segundo tipo de velha esquerda é a esquerda autoritária. É aquela esquerda que diz que fez a crítica do socialismo real, mas é mentira.
São autoritários. Têm alma autoritária. Acreditam que o sofrimento produzido pelo capitalismo justifica a violência. É essa esquerda que não consegue se desapegar de Cuba ou da Venezuela. Vergonhosamente se silencia diante do relatório contundente da ONU produzido por Michelle Bachelet, ex-presidenta do Chile.
Recentemente, o site de esquerda The Intercept Brasil publicou texto de Amanda Audi (bit.ly/2YRHAER) sobre Tabata. Era para ser um texto crítico à jovem deputada e aos movimentos cívicos que têm contribuído com a preparação de uma nova geração de políticos.
Tabata é contra a agenda de maior presença privada no ensino público, certamente é favorável à maior progressividade dos impostos e, após os inúmeros ajustes feitos, foi favorável à reforma da Previdência. Pelo bem do país.
A maior crítica do texto de Audi ao grupo do qual Tabata participa é que eles se preocupam “que a escola prepare os alunos para servir ao capitalismo”.
Para essa esquerda pobre, tacanha e mesquinha, um pobre que, em razão de uma boa educação, progride e tem elevada renda no setor privado serve ao capitalismo. Esse pensamento é intrinsecamente autoritário.
Temos a nova esquerda. E temos a velha esquerda. Esta ou é oportunista, jogando no quanto pior, melhor, para garantir seu emprego no aparelho do Estado, ou é a velha esquerda que não foi civilizada pela queda do muro.
Que venha a nova esquerda. A velha certamente morrerá de morte morrida.
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Bruno Boghossian: Plano de Bolsonaro é anunciar que os problemas do país não existem
Presidente nega fome e racismo porque não sabe ou não tem interesse em enfrentá-los
Quando estava prestes a completar cem dias no cargo, Jair Bolsonaro desabafou: “Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema”. Cem dias depois, o presidente decidiu pegar um atalho para se livrar dos males do país. Passou a anunciar que eles não existem.
No território governado por Bolsonaro, não falta comida para ninguém, o racismo quase não existe e o trabalho infantil não atrapalha. Não há exagero no uso de agrotóxicos e o desmatamento é coisa do passado.
O presidente superou os limites da fantasia na sexta (19), ao dizer que a fome não é um problema no país. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí, eu concordo. Agora, passar fome, não”, sentenciou.
Ou Bolsonaro não sabe o que é a fome ou resolveu distorcer a realidade descaradamente. Informações do próprio governo mostram que 15 pessoas morrem de desnutrição por dia e que quase meio milhão de crianças sofrem com o problema.
Um governante só finge que uma questão não existe quando não sabe como resolvê-la ou não tem interesse em enfrentá-la. Quando era deputado, Bolsonaro afirmava que a solução para a fome, a miséria e a violência era esterilizar os mais pobres para evitar que eles tivessem filhos.
O presidente tentou mudar, na própria sexta-feira, o que dissera com tanta convicção. Até admitiu que “alguns passam fome”, mas emendou: “não é culpa minha, vem de trás”.
Naquele mesmo dia, Bolsonaro quis negar um levantamento oficial que mostrava uma disparada do desmatamento em julho. Para ele, a devastação medida pelos órgãos estatais é uma ilusão. Os dados fariam parte de uma conspiração de ONGs.
Bolsonaro também já tentou convencer o país de que o trabalho infantil não prejudica crianças e declarou à apresentadora Luciana Gimenez que o racismo é “coisa rara”.
O presidente acredita que basta negar os problemas para não ser incomodado. Assim, ele pode se dedicar a temas importantíssimos como a qualidade dos filmes nacionais.
Elio Gaspari: Bolsonaro tem muito tambor e pouco violino
Houve época em que era mais fácil comprar cocaína que importar computador
Em julho de 2017 o procurador Deltan Dallagnol foi convidado para fazer uma palestra no Ceará, pediu cachê de uns R$ 30 mil, mais passagens para ele, a mulher, os filhos e estadia no Beach Park ("as crianças adoraram"). Em junho passado o ministro de Economia baixou a Portaria 309, que reduzia os impostos de importação de bens de capital, informática e tecnologia. Dezoito dias depois, suspendeu-a. Nada a ver uma coisa com a outra? Elas mostram como a mão invisível do atraso leva o leão a miar.
Quem pagou a villeggiatura do doutor Dallagnol foi a Federação da Indústrias do Ceará, uma das estrelas do Sistema S, aquele em cuja caixa de R$ 20 bilhões arrecadados compulsoriamente nas veias das empresas o doutor Paulo Guedes prometeu "meter uma faca".
Passaram-se seis meses sem que Guedes voltasse a falar no Sistema S, mas quando ele assinou a portaria 309 cumpriu uma das maiores promessas de campanha do capitão Bolsonaro. Baixando os impostos de importação de bens de capital e de equipamentos de informática, baratearia os preços de computadores, celulares e produtos eletrônicos. A alegria durou pouco pois recolheu-a prometendo revê-la.
A mão invisível de uma parte do patronato da indústria ganhou a parada mostrando ao governo que poderia bloquear seus projetos no Congresso. Ela já conseguira o arquivamento do projeto de abertura comercial deixado por Michel Temer. Esse jogo tem quase um século. Houve época em que era mais fácil comprar cocaína do que importar computador.
Quando a economia nacional começou a se abrir, o agronegócio foi à luta, modernizou-se e hoje é internacionalmente competitivo. A indústria blindou-se atrás de federações (alimentadas pelo Sistema S), aliada a "piratas privados e criaturas do pântano político" (palavras de Guedes). Poderosa, preserva-se com leis protecionistas. Resultado: os piratas prosperaram, a indústria definhou e seus produtos custam caro. Já as federações, nadam em dinheiro, custeando palestras que poucos empresários sérios custeiam.
O capitão Bolsonaro é um mestre do ilusionismo. A cada semana agita o país com tolices ("golden shower"), impropriedades (o conforto de um trabalho infantil que não conheceu) ou mesmo irrelevâncias (a nomeação do filho para a embaixada em Washington, ganha um almoço de lagosta no Supremo Tribunal quem souber os nomes dos três últimos embaixadores nos Estados Unidos).
Quando um assunto relevante como a abertura da economia vai para o pano verde, o leão revoga a portaria 309 no escurinho de Brasília, prometendo revisá-la em agosto. A ver, pois essa orquestra tem muitos tambores e poucos violino.
A trava de Toffoli
A trava do ministro José Antonio Dias Toffoli que congelou as investigações relacionadas com as contas do senador Flávio Bolsonaro mostra que a Justiça é cega e lenta para o andar de baixo. Para o de cima, a história é outra.
A ideia segundo a qual movimentações financeiras estranhas só podem ser compartilhadas depois de uma decisão judicial transformam o Coaf e a Receita Federal em sucursais do Arquivo Nacional. (Cadê o Queiroz?) Olhada de outro jeito, essas informações não deveriam ser usadas, sem ordem de um juiz, por procuradores voluntariosos, capazes de destruir reputações na busca de quinze minutos de fama.
Os advogados de Flávio Bolsonaro foram brilhantes ao engatar seu argumento a um litígio que nasceu em 2003 num posto de gasolina do interior de São Paulo. Os sócios do posto foram autuados pela Receita Federal, tiveram a conta bancária da empresa bloqueada pela Receita e passaram a mover o dinheiro como pessoas físicas. A Receita voltou a autuá-los e o Ministério Público enfiou-lhes uma ação penal. O advogado do posto de gasolina contestou a legalidade do compartilhamento de informações da Receita com o Ministério Público, perdeu na primeira instância e ganhou na segunda. O Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal, onde o processo entrou e ficou sonolento.
O caso foi para o gabinete do ministro Toffoli. Em abril do ano passado o STF entendeu que esse litígio deveria ter repercussão geral, ou seja, valeria para qualquer caso semelhante. O julgamento foi marcado para 21 de março deste ano e depois foi transferido para o próximo dia 21 de novembro.
Estavam assim as coisas, quando os advogados de Flávio Bolsonaro tinham um habeas corpus para ser apreciado no Rio de Janeiro e decidiram engatar seu caso ao do posto de gasolina de Americana (SP), pedindo uma liminar. Como o Supremo está em férias e seu presidente torna-se plantonista, coube a Toffoli tomar a decisão, com repercussão geral, congelando a essência da investigação das contas de Flávio Bolsonaro.
A briga do posto de gasolina de Americana com a Receita começou em 2003 e estava no STF há mais de um ano. A Justiça é lenta, mas às vezes não tarda.
Demétrio Magnoli: Um conto de dois embaixadores
A nomeação de Eduardo Bolsonaro equivaleria a transferir as chaves da embaixada brasileira ao próprio Trump
Escrevi, para o Itamaraty, décadas atrás, um manual de Relações Internacionais destinado ao exame de ingresso na carreira diplomática.
O primeiro capítulo aborda as origens da diplomacia e as funções do diplomata. Se fosse reescrevê-lo, hoje, missão para a qual certamente não serei convidado, eu organizaria o texto em torno de Kim Darroch e Eduardo Bolsonaro.
O contraste entre as duas figuras esclarece a cisão conceitual que inaugurou a diplomacia contemporânea. Já a queda do primeiro e a ascensão do segundo iluminam o impacto do populismo sobre os corpos diplomáticos.
“O Estado sou eu” —nas antigas monarquias absolutas, o diplomata era um representante pessoal do soberano. Nessa condição, sua única qualificação indispensável era a fidelidade ao soberano. O círculo familiar do rei e a corte funcionavam como instâncias privilegiadas de recrutamento. O enviado era uma ponte entre duas cortes. Por isso, para sua escolha, pesavam positivamente eventuais relações de amizade estabelecidas por ele com os cortesãos estrangeiros.
A indicação de Eduardo obedece ao figurino do Antigo Regime. Candidamente, seu pai e ele mesmo explicaram que, na desolada planície de seu currículo, mais que o hambúrguer, destaca-se a amizade recente travada com o clã familiar de Donald Trump.
Darroch simboliza o oposto disso: representa uma nação, não um soberano. O embaixador britânico nos EUA, diplomata profissional culto e experiente, serviu a governos trabalhistas e conservadores, ocupando inúmeros cargos de alta responsabilidade. Paradoxalmente, na fonte do escândalo que provocou sua renúncia encontram-se os sinais distintivos da diplomacia do Estado-Nação.
Darroch foi atingido por três raios sucessivos. Um: o vazamento de mensagens sigilosas que enviou ao seu governo com avaliações negativas sobre a Casa Branca de Trump e a política externa americana.
Dois: a reação furiosa de Trump, vetando contatos de seu governo com o embaixador. Três: o desamparo a que foi relegado por Boris Johnson, candidato favorito à chefia do governo britânico.
As mensagens vazadas classificam o governo Trump como “singularmente disfuncional” e a política dos EUA para o Irã como “incoerente e caótica”.
Uma das funções do diplomata é conduzir atividades de inteligência, oferecendo a seu governo diagnósticos sobre o país estrangeiro. Darroch apenas cumpria o dever de transmitir a Londres suas apreciações políticas, certas ou erradas. Foi, porém, colhido pelo vendaval do populismo.
Trump extrapolou os limites diplomáticos normais das relações entre aliados, aproveitando-se do vazamento para humilhar os britânicos e ganhar aplausos de sua base eleitoral. Johnson, por sua vez, preferiu lambuzar-se em elogios a Trump, colocando suas convicções ideológicas acima da obrigação de proteger a diplomacia de seu país. Darroch foi traído pelos poderosos de uma nação à deriva, ferida pelo plebiscito do brexit, que já não sabe separar o interesse nacional das conveniências da ala reacionária do Partido Conservador.
A tragédia brasileira é, sob esse aspecto, um tanto parecida com a britânica. Uma prova disso emerge na indicação de Eduardo para a embaixada em Washington, posto estratégico ocupado originalmente por Joaquim Nabuco.
O filho 03 jamais enviaria avaliações críticas como fez Darroch, pois não é capaz de distinguir o interesse nacional brasileiro dos interesses dos EUA —e nem os interesses legítimos americanos das conveniências ideológicas de Trump ou de Steve Bannon.
A sua nomeação, mais que um novo ultraje ao pobre Itamaraty, equivaleria a transferir as chaves da embaixada brasileira ao próprio Trump.
A palavra final cabe ao Senado. Otimista, acalento a esperança de que os senadores decidam declarar o Brasil um Estado-Nação, não uma monarquia absoluta.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Bruno Boghossian: Bolsonaro insiste em desatinos e esquece economia
Prioridades estapafúrdias e vacilação embaçam perspectiva de recuperação do PIB
Jair Bolsonaro teve tempo para falar de muita coisa na cerimônia que marcou os 200 dias de seu governo. Reclamou do filme “Bruna Surfistinha”, reforçou a campanha para dar uma embaixada ao próprio filho e fez piada com a gravata rosa do presidente do Senado.
Em mais um balanço de seus primeiros meses no cargo, o presidente se ocupou de sua caçada ideológica tacanha e de outros desatinos. “Acho que eu falei um pouco demais”, admitiu, no fim. Não achou um minuto, porém, para apontar soluções para os tropeços da economia.
As prioridades estapafúrdias de Bolsonaro e sua própria vacilação diante das propostas da equipe do governo embaçam as perspectivas de recuperação. Enquanto o time econômico busca um canudinho para respirar embaixo d’água com o dinheiro do FGTS, o presidente parece mais preocupado em procurar espaços para sua família no poder.
Bolsonaro ficou satisfeito com a primeira aprovação da reforma da Previdência, mas seus auxiliares foram obrigados a reconhecer que a proposta não tira a economia do atoleiro. Enquanto a Câmara aprovava o texto, na semana passada, o governo teve que reduzir a previsão de crescimento do PIB de 1,6% para 0,81%.
O núcleo de Paulo Guedes planeja medidas emergenciais e tenta emplacar uma reforma tributária, incluindo a criação de um tributo sobre operações financeiras, nos moldes da CPMF. Há poucos sinais de que o presidente seja capaz de desatar esse nó. Na verdade, assim como na Previdência, pode até atrapalhar.
Bolsonaro sempre foi um opositor da cobrança. Votou duas vezes contra a CPMF no governo Lula, disse que a proposta era “contra o povo” e, na campanha, chamou de “notícias mal intencionadas” os relatos de que Guedes defendia a contribuição.
O presidente parece acreditar que manterá sua popularidade com ataques ao ativismo no cinema e com o envio do filho para os EUA. Ele deve saber que a ladainha ideológica e o favorecimento da família não sustentam a economia por quatro anos.
Bruno Boghossian: Ciro e PDT transformam caso Tabata em peça de propaganda
Ex-ministro busca primazia na esquerda, mas depende de ataques a outros personagens
Ciro Gomes tenta transformar as dissidências dentro de seu partido em peça de propaganda. Depois que a bancada do PDT rachou na votação da reforma da Previdência, o ex-presidenciável passou a liderar uma campanha doméstica contra Tabata Amaral e os deputados que apertaram o botão verde para a proposta de Jair Bolsonaro.
A reação furiosa evidencia um esforço para limpar a imagem da legenda, que viu 8 de seus 27 parlamentares traírem a orientação partidária. "A história vai registrar quem estava de um lado e quem estava do outro", declarou Ciro, na segunda-feira (15).
O pedetista mostra que pretende usar esse grupo de infiéis como escada política. Ao tratar o voto a favor da reforma como um comportamento intolerável, Ciro quer amplificar sua própria oposição à reforma e conquistar terreno na esquerda como adversário principal da agenda econômica do atual governo.
Na largada, ele conseguiu atrair alguns holofotes. O PT, que tem o dobro da bancada do PDT, deu todos os seus 54 votos contra a proposta, mas foi Ciro quem apareceu como antagonista de destaque —graças a seu embate com Tabata e companhia.
O pedetista praticamente reivindicou o monopólio dos ataques à novata. "Uma turma do PT fica agredindo a Tabata e o PDT como se nós fôssemos pouco fiéis à luta do povo, e o PT fosse o perfeito guia genial dos povos que não falha", reclamou.
Embora a caçada pública aos dissidentes funcione apenas como marketing, o partido tem o direito de abrir processos de punição e até de expulsão. É verdade que as legendas se tornaram um amontoado de siglas, mas seria melhor se elas seguissem programas nítidos.
Em busca de primazia na esquerda, Ciro tenta reforçar sua figura e evitar a diluição das cores de seu partido. Enquanto aposta no ocaso dos petistas, o ex-presidenciável anuncia que não admite se embrulhar numa bandeira em tom pastel. É curioso, no entanto, que a briga por protagonismo dependa sempre de investidas contra outros personagens.