Folha de S. Paulo
Samuel Pessôa: Reformulação do FGTS
Fundo poderia ser instituído como o sistema público de previdência complementar
O governo acaba de enviar a MP 889, com três alterações no funcionamento do FGTS.
Cria uma nova modalidade de saque, conhecida por saque-aniversário. O trabalhador poderá retirar todo ano, no mês do aniversário, uma parcela —de 50% para saldo abaixo de R$ 500 até 5% e um adicional de R$ 2.400 para saldo acima de R$ 20 mil— e deixará de sacar quando houver demissão imotivada. Nesse caso, sacará a multa rescisória de 40% sobre o saldo da conta vinculada àquele contrato de trabalho.
A segunda alteração é poder transformar esses saques futuros em um empréstimo em consignação.
E a terceira é reverter aos trabalhadores todo o retorno dos investimentos do FGTS. Hoje, somente 50% são revertidos.
A MP cria uma forma adicional de saque e uma nova forma de empréstimo consignado. É positiva. Aumentará o valor de um contrato de trabalho formal ao trabalhador, reduzirá a rotatividade no trabalho e gerará fonte adicional de crédito.
A existência de um seguro específico para o desemprego reduz a importância do FGTS nessa função.
A flexibilização ao saque tem sido uma tendência recorrente nas últimas décadas. Basta checar as adições ao artigo 20º da lei 9.036, de 1990. Por exemplo, ser soropositivo para HIV, precisar colocar uma prótese óssea ou passar por alguma catástrofe natural, entre outras razões, permitem que o trabalhador levante os recursos do FGTS.
A flexibilização é fruto de uma particular economia política. As contas vinculadas são muito mal remuneradas. Sempre abaixo do mercado e, em alguns anos, com remuneração real negativa.
Os recursos do fundo são empregados para financiar obras de infraestrutura, principalmente saneamento básico e habitação popular.
O Congresso Nacional não consegue alterar a forma de remuneração do FGTS para garantir ao trabalhador uma remuneração justa, pois não consegue encontrar outra forma de financiar habitação popular e saneamento básico e, portanto, acaba criando possibilidades de saque.
Essa economia política tem reduzido muito o patrimônio do FGTS. E aí segue o lado ruim da atual MP e das anteriores.
O FGTS está perdendo o caráter de ser uma fonte de poupança do país. É importante termos uma fonte de poupança de longo prazo para o país, pois ela contribuirá para perenizar a queda dos juros a que temos assistido nos últimos anos.
Assim, a minha preferência seria uma reformulação do FGTS na direção contrária à da MP 889. O FGTS seria instituído como o sistema público de previdência complementar. Os recursos seriam acumulados, e a taxa de retorno seria a taxa dos títulos do Tesouro Nacional.
As possibilidades de saques seriam mínimas —essencialmente aquisição da casa própria, que também é uma forma de poupança para a velhice—, e os recursos iriam se acumulando.
Não haveria custo de gestão —pode-se usar a ferramenta do Tesouro Direto—, e o Tesouro teria uma fonte segura de financiamento, o que facilitaria em muito a gestão da dívida pública.
Todo o objetivo do ministro Paulo Guedes em criar um sistema previdenciário de capitalização seria satisfeito, e há boas razões para que criemos um sistema compulsório de previdência complementar.
De quebra, os juros da economia cairiam ainda mais, barateando as obras de infraestrutura e habitação popular.
Se a sociedade entende que deve subsidiar a habitação popular, o que faz todo o sentido, o subsídio deve sair do Orçamento do Tesouro, votado pelo Congresso, e não da poupança compulsória do trabalhador.
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Bruno Boghossian: Tinta política se acumula no debate sobre hackers e mensagens
Embate sobre Moro e nome de Manuela acirram disputa partidária em torno do caso
O deputado Filipe Barros, do PSL, saiu indignado às redes sociais para anunciar um pedido de prisão de Glenn Greenwald. Jogando para sua plateia, ele afirmou que o jornalista do site The Intercept deveria ir para a cadeia por sua proximidade “evidente” e pelos “fortes indícios de financiamento” dos hackers presos pela Polícia Federal.
O parlamentar preferiu ignorar os significados das palavras “evidência” e “indício”. Enquanto investigadores ainda colhem depoimentos e abrem focos de apuração, alguns políticos se antecipam para fazer uma exploração rasteira do caso.
Para surpresa de poucos, o deputado do PSL resolveu atacar as liberdades garantidas pela Constituição e disse que Greenwald é coautor de um crime. Como se sabe, um jornalista tem o direito de publicar informações que recebe, mesmo que os dados tenham sido originalmente obtidos de maneira ilegal.
No jogo de xadrez iniciado com o vazamento de mensagens da Lava Jato, disputa-se para ver quem dá a pancada mais forte para quebrar o tabuleiro e acabar com a partida. As regras não importam e parece haver pouca gente interessada em esperar os próximos movimentos.
As tinturas políticas se acumulam. O PT também acionou a Procuradoria-Geral da República e pediu a prisão de Sergio Moro. A sigla diz que o ministro teve acesso ilegal a informações do inquérito sobre os hackers. De fato, o ex-juiz procurou autoridades para avisar que elas haviam sido atacadas, mas não se sabe se Moro teve acesso aos diálogos.
Até agora, a investigação descobriu que o hacker conseguiu contato com Greenwald depois de ter procurado a deputada estadual Manuelad’Ávila, do PC do B. Ela confirmou a intermediação e disse que não conhecia a identidade do homem.
A revelação leva o caso a novos canais políticos. Embora muitos detalhes do caso ainda precisem de explicação, a disputa partidária certamente se encarregará de embaçar as discussões sobre as circunstâncias do vazamento e sobre seu conteúdo.
Elio Gaspari: A questão do conteúdo dos grampos persiste
A ideia de Moro de destruir as mensagens era primitiva e cheirou mal
A Polícia Federal fez um serviço de primeira localizando e prendendo a quadrilha que invadiu os celulares de centenas de autoridades, inclusive do presidente da República, do ministro Sergio Moro e de procuradores da Lava Jato. Um deles tinha antecedentes criminais e confessou ter sido o remetente dos grampos para o site The Intercept Brasil. Como isso foi feito e se era gratuito, como ele diz, só a investigação poderá esclarecer. Resta saber se Glenn Greenwald conhecia a extensão do crime de sua fonte. Essa é uma perna da questão.
A outra perna está no conteúdo das mensagens já divulgadas e ela continua no mesmo lugar. Os procuradores blindaram-se na recusa a comentar o que apareceu nos grampos. Muitos deles, como Sergio Moro, dizem que já apagaram os arquivos. Se o serviço da PF foi de primeira, essa blindagem é de quinta. A ideia de Moro de destruir as mensagens era primitiva e cheirou mal.
Na forma, o crime cometido pelo invasores dos celulares foi peculiar. Eles atacaram dados de centenas de pessoas e seus antecedentes afastam a ideia de que houvesse interesse público na operação. A questão do conteúdo é outra.
Não passa pela cabeça de ninguém querer apagar da memória dos americanos as revelações contidas nos famosos “Papéis do Pentágono” que expuseram documentos relacionados com a Guerra do Vietnã.
Eles foram furtados por um consultor do Departamento de Defesa. Indo-se mais longe, também, não passa pela cabeça dos americanos passar a esponja em cima dos documentos furtados por oito ativistas católicos que invadiram um escritório do FBI na Pensilvânia numa noite de março de 1971. Eles levaram perto de mil documentos. No meio estavam as provas de que o FBI espionava militantes pacifistas, artistas e negros, difamava pessoas e manipulava jornalistas.
Cópias de documentos foram mandados para o New York Times, o Los Angeles Times e o Washington Post. O governo tentou impedir a publicação e divulgou uma nota advertindo que eles comprometiam a segurança nacional. Ben Bradlee, o editor do Washington Post, e Katharine Graham, sua proprietária, decidiram publicar parte do material. Aberta a comporta, o conteúdo dos documentos mudou para melhor a história do FBI.
O FBI pôs 200 agentes atrás dos ladrões, e a investigação somou 33 mil páginas, para nada. O mistério só foi desvendado 40 anos depois, quando a repórter Betty Medsger, que recebeu a papelada em 1971, identificou e entrevistou 7 dos 8 invasores. Dois deles viviam longe da política e um tornara-se sincero admirador de Ronald Reagan.
Arminio Fraga: Brasil verde
Como a emergência está próxima, é de nosso interesse agirmos logo, por conta própria
Em tempos de obscurantismo afloram sentimentos que vão da indignação à profunda solidariedade. São emoções que alimentam a resistência. O estresse ativa defesas que nos levam a sonhar, ora como fuga, ora como projeto. Neste espírito escrevo a coluna de hoje.
Imaginem um país onde as praias, lagoas e rios são limpos. Onde todos têm acesso a esgoto e água corrente. Onde o ar que se respira é puro. Onde os alimentos são saudáveis. Onde a natureza é preservada e apreciada. Que tal? Um país assim melhoraria nossa saúde, qualidade de vida e autoestima, atrairia muito mais turismo, de maior poder aquisitivo, e viabilizaria a abertura de mais e melhores mercados para exportações.
A Costa Rica e a Nova Zelândia são exemplos de que, em tese, se trata de um futuro a nosso alcance. Uma forma de mobilizar apoios e coordenar ações nessa direção seria a criação de um projeto intitulado Brasil Verde, que definisse como metas os sonhos listados acima. Para que elas fossem atingidas, a cada uma estariam associadas planos de ação.
Uma primeira meta deveria ser desmatamento negativo, ou seja, parar de desmatar e ao mesmo tempo recuperar áreas desmatadas e abandonadas. Esta é a proposta dos respeitados cientistas Thomas Lovejoy e Carlos Nobre e de especialistas como Tasso Azevedo e Beto Veríssimo. Eles avaliam que há risco relevante de a Amazônia atingir um ponto sem retorno (um “tipping point”): a partir de um certo grau de desmatamento, a floresta perde sua capacidade de regeneração. As consequências de tal evento seriam catastróficas para o clima do Brasil e do mundo. Desapareceriam os famosos rios voadores que irrigam a produção agrícola mais ao sul e haveria perda de biodiversidade, com seu imenso potencial inexplorado. A floresta precisa ficar de pé.
Vale lembrar aqui que estudos econômicos coordenados por Juliano Assunção da Climate Policy Initiative demonstram que a produção da agropecuária brasileira tem imenso espaço para crescer sem derrubar uma árvore mais sequer, apenas reaproveitando áreas degradadas ou subutilizadas. Logo não há qualquer vantagem para a sociedade como um todo em seguir desmatando.
Há quem imagine que em algum momento o resto do mundo nos pagará pela função de reserva ambiental do planeta. Melhor esperarmos sentados. Como a emergência já está próxima, é de nosso interesse agirmos logo, por conta própria. Se assim o fizermos, além de cuidar de nossa própria qualidade de vida, estaremos ocupando uma posição de liderança iluminada no contexto internacional, que nos traria preciosos respeito e poder de natureza “soft”.
Uma segunda meta seria a despoluição de nossas águas. Banho de mar sem língua de esgoto, pesca e lazer nos rios, menor incidência de toda sorte de doença recomendam uma blitz no front do saneamento, hoje uma vergonha, carente há décadas de uma resposta competente. Os ganhos em termos de saúde e bem-estar seriam enormes, muito maiores do que os custos.
No campo dos alimentos estaria a terceira meta. Aqui há grande espaço para queimarmos etapas. O mundo caminha cada vez mais para produtos saudáveis, não processados, que eliminem ou pelo menos minimizem os riscos de contato com agrotóxicos, antibióticos e hormônios. O Brasil pouco acordou para essa tendência, parecendo caminhar na direção oposta. Todo cuidado é pouco. Cabe uma guinada radical, o quanto antes, melhor.
Caberia falar também de poluição atmosférica, energia limpa, poluição sonora. Brasil Verde poderia virar uma marca de qualidade, que seria a nossa cara.
Esse sonho pode ser transformado em realidade. Mas quando? A tempo?
*Arminio Fraga é economista, é ex-presidente do Banco Central.
Mauro de Azevedo Menezes: A degeneração ética de um herói
Toda autoridade deve observar a autocontenção
O exercício de funções públicas pressupõe a observância permanente de requisitos de honestidade. Essa premissa emerge da incidência do princípio constitucional da moralidade na administração pública (artigo 37, caput) e implica, entre outras obrigações, a rejeição de expedientes de abuso de poder e obtenção de vantagem pessoal.
A noção de integridade, essencial sob o paradigma da ética pública, costuma ser posta à prova justamente nas situações em que os agentes públicos são levados a encarar e esclarecer as suas condutas perante a sociedade.
Isso significa que o autêntico e definitivo juízo sobre a decência e a probidade das pessoas públicas não se concretiza quando elas, investidas em competências judicantes, investigatórias ou de controle, apontam desvios praticados por outros personagens da vida pública. É diante da prestação de contas de seus próprios atos que emerge a coerência das atitudes ou se escancara a desfaçatez dessas autoridades.
Prudência e moderação no exercício do poder são virtudes necessárias sobretudo quando exista alguma hipótese de envolvimento do interesse pessoal da autoridade em questão.
Resulta, portanto, em vilipêndio aos predicados da ética pública a atuação de ministro de Estado que desencadeie e interfira em processo investigativo sobre o qual tenha interesse direto, revelando a terceiros, em seu favor, parte do conteúdo de apuração sob sigilo.
A lei 12.813/2013 repele tal conflito entre interesse público e privado, que possa comprometer a predominância dos objetivos de Estado e influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública respectiva (artigo 3º). E determina que o ocupante do cargo previna ou impeça o conflito de interesses, sobretudo resguardando informação privilegiada, obtida em razão das atividades exercidas (artigos 4º e 5º, inciso I).
Em tais casos, a prática de atos de gestão em benefício próprio constitui séria transgressão (artigo 5º, inciso V) e pode configurar até mesmo improbidade administrativa (artigo 12), evocando a aplicação da lei 8.429/1992, por atentar contra os princípios da administração pública, ao violar o dever de imparcialidade (artigo 11, caput) e revelar fato que tem ciência em razão de suas atribuições e deva permanecer em segredo (artigo 11, inciso III).
Convém ainda assinalar que, de acordo com o princípio republicano, traduzido no dever constitucional de impessoalidade do administrador (artigo 37, caput), é imperioso o distanciamento entre o desempenho de funções públicas e o patrocínio de interesses pessoais da autoridade, especialmente ante suposições de irregularidades cometidas em função pública pretérita.
Por essa razão, o Código de Conduta da Alta Administração Federal, em seu artigo 10, prescreve que ministros de Estado e altas autoridades públicas federais respeitem eventuais impedimentos de participação em atividades ou decisões que possam vir a beneficiá-los.
Toda autoridade sob escrutínio público deve observar a autocontenção. Quem, alçado ao poder, considere-se ungido em missão redentora e, destituído de sobriedade e equilíbrio, ceda ao êxtase da glorificação, decerto cometerá abusos em sequência, revelando sua verdadeira face. Afinal, como escreveu Jorge Luis Borges, os espelhos têm algo de monstruoso.
*Mauro de Azevedo Menezes é advogado, ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (2016-2018)
Fernando Canzian: Desigualdade e populismo trancam o mundo em armadilha
Eleitores descontentes elegem líderes que adotam soluções simplificadas para problemas complexos
O Fundo Monetário Internacional revisou para baixo o crescimento da economia mundial de 2019 e 2020. Países emergentes como o Brasil terão neste ano o pior resultado desde a crise de 2009.
Gita Gopinath, a economista-chefe do Fundo, qualificou o crescimento atual como “lento e precário”. De modo transparente, emendou: “Não precisava ser assim, pois isso está sendo autoinfligido”.
Incertezas políticas provocadas por lideranças populistas turvam o cenário: entre as muitas estão a guerra comercial de Donald Trump contra a China e o processo que levou à ascensão de Boris Johnson no Reino Unido.
O primeiro ponto afeta as longas cadeias produtivas globais das duas maiores economias do mundo; o segundo poderá machucar não só o Reino Unido, mas a integração europeia e a economia da região.
Nesse cenário, o crescimento dos EUA de 2,6% neste ano deve cair a 1,9% em 2020. A China, que já roda no menor patamar em 30 anos, poderá crescer abaixo de 6% em 2020; os 19 países da zona do euro, menos de 1,6%.
O mundo parece ter caído numa armadilha: eleitores descontentes elegem populistas, que adotam soluções radicais e simplificadas para problemas complexos; os resultados são nocivos para a economia, que acaba prejudicando ainda mais os eleitores.
A série Desigualdade Global, que a Folha passou a publicar nesta semana, tenta jogar alguma luz sobre a alta complexidade dessas questões que engendraram o círculo vicioso.
Isso atravessa várias camadas: das mudanças geográficas e tecnológicas na produção mundial à elevada mobilidade de uma elite global bem formada; do encolhimento dos sindicatos ao aumento exponencial de ganhos financeiros em detrimento da produção física industrial que marcou o século 20; do endividamento recorde de governos, empresas e famílias à munição cada vez mais limitada de bancos centrais para enfrentar crises.
Embora o mundo nunca tenha tirado tantas pessoas da pobreza extrema como nos últimos 40 anos, sobretudo na Ásia, a desigualdade de renda subiu abruptamente, enquanto a classe média no Ocidente perdeu terreno.
Esse encolhimento relativo e o medo de seus membros de escorregarem para a pobreza têm ajudado a alimentar a ascensão do populismo ou da direita, em países como EUA, Rússia, Itália, Índia, Polônia, Filipinas, Brasil, Turquia, Hungria, França, Alemanha, Espanha e Suécia.
Com crescimento mundial menor, o provável é que não só a posição da classe média piore, mas que algo parecido aconteça também aos mais pobres, sobretudo no Ocidente.
Se isso levará a mais radicalismo de direita, fechamento de fronteiras e guerras comerciais, o tempo dirá. Alternativamente, os eleitores poderão buscar soluções políticas à esquerda —onde, infelizmente, já surgem também lideranças populistas com propostas econômicas inviáveis.
Não será fácil sair dessa. Nessas horas, o melhor é tentar entender a natureza dos problemas ouvindo os afetados e quem estuda a fundo o tema. É a isso que a nova série da Folha se propôs.
Bruno Boghossian: Operação contra hackers da Lava Jato ainda deixa perguntas
Por que apenas as conversas entre membros da força-tarefa vazaram até agora?
Em seu depoimento na Câmara no início do mês, Sergio Moro lançou uma suspeita. O ministro disse três vezes que o vazamento de mensagens da Lava Jato teria sido orquestrado por “alguém que ainda não foi atingido” pela operação.
A ação realizada pela Polícia Federal não revelou até agora um esquema desse tipo, mas Moro celebrou, nesta quarta (24), a prisão dos suspeitos de invasão dos telefones de autoridades. Além de alimentar teorias de todo tipo, a investigação deixa, por ora, algumas perguntas.
Os responsáveis pelo inquérito afirmam que o grupo hackeou mil celulares, mirando procuradores, juízes e políticos. Um dos suspeitos teria acabado de capturar o telefone do ministro da Economia, Paulo Guedes. A extensão e a abrangência desses alvos levanta certas dúvidas sobre os interesses dos invasores.
Se os integrantes da Lava Jato não foram as únicas vítimas, a ideia de que o objetivo central era aniquilar a operação precisa de novos elementos. Ao mesmo tempo, se os invasores acessaram tantos telefones, por que apenas as conversas entre membros da força-tarefa vazaram até agora?
Quando as primeiras mensagens foram divulgadas, o ex-juiz e os procuradores passaram a descrever uma rede sofisticada de hackeamento. Os suspeitos presos nesta semana, porém, integram uma quadrilha que comete fraudes bancárias e de cartões de crédito, segundo a investigação.
Na Câmara, o ex-juiz declarou que “alguém com muitos recursos está por trás dessas invasões”. A PF relata movimentações financeiras de R$ 627 mil pelos presos e diz que alguém pode ter patrocinado a ação. Afirma, entretanto, que ainda é preciso descobrir a origem do dinheiro.
As investigações vão prosseguir para responder a essas e outras dúvidas do caso. Moro já aproveitou para explorar a ficha corrida dos suspeitos e ironizar a publicação dos diálogos da Lava Jato. O ministro tenta se desviar das revelações que lançaram questionamentos sobre sua atuação como juiz. Essas perguntas também precisam de explicações.
Elio Gaspari: Bolsonaro errou o tiro no 'melancia'
O capitão precisa ouvir o conselho do general Médici e, todo dia, botar água na cabeça para esfriá-la
Com 13 milhões de desempregados, a economia andando de lado e a projeção de mais um ano de pibinho, o Brasil já tem problemas suficientes, não precisa trazer de volta o fantasma da anarquia militar. Com idas e vindas ele assombrou a vida do país dos últimos anos do século 19 até o final do 20.
Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República pela vontade de 57,8 milhões de brasileiros. Teve o apoio público de dezenas de oficiais das Forças Armadas e formou um ministério com oito militares. Fez um agradecimento ao ex-comandante do Exército dizendo que “o que nós já conversamos morrerá entre nós, o senhor é um dos responsáveis por estar aqui, muito obrigado, mais uma vez.” Sabe-se lá o que conversaram, mas desde o primeiro momento o capitão reformado associou seu governo às Forças Armadas. Como agradecimento, tudo bem. Além disso, é uma perigosa impropriedade.
Bolsonaro deixou a tropa depois de dois episódios de ativismo e indisciplina. Referindo-se ao capitão, o ex-presidente Ernesto Geisel classificou-o como “um mau militar”. Quem está no Planalto é um político com 30 anos de vida parlamentar e uma ascensão meteórica. Em seis meses de Presidência, demitiu três oficiais-generais e na semana passada disse que outro, Luís Eduardo Rocha Paiva, aliou-se ao PC do B: “Descobrimos um ‘melancia’, defensor da guerrilha do Araguaia em pleno século 21”. Ele havia criticado a escolha de EduardoBolsonaro para a embaixada em Washington e a fala dos governadores “de paraíba”.
Esse general de brigada chefiou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e, na reserva, em março foi nomeado para integrar a Comissão da Anistia. Chamá-lo de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro) foi um despautério. Em 2010 Rocha Paiva acusou o PT de “querer implantar um regime totalitário no Brasil”. Dois anos depois, lembrou as execuções praticadas pelo PC do B no Araguaia. Foram pelo menos três. (Esqueceu-se das execuções de guerrilheiros que se renderam, mas ninguém é obrigado a se lembrar de tudo.)
Tanto o general Rocha Paiva como Bolsonaro deram suas opiniões por meio desse instrumento diabólico que são as redes sociais. Num caso, falou um general da reserva que ocupa um cargo público. Noutro, o presidente da República. Juntos, produziram um inédito curto-circuito.
A presença de militares no governo gerou a compreensível curiosidade em torno de suas preferências e ansiedades. General da reserva é uma coisa, da ativa, outra. Muito outra é general da reserva que ocupa cargo civil. Os chefes militares raramente falavam, de Dutra até comandantes mais recentes, passando por Castello Branco, Médici e Geisel. O atual comandante do Exército, Edson Pujol, não tem conta no Twitter.
Na dia 12 de outubro de 1977, quando o presidente Geisel demitiu o ministro do Exército, general Sylvio Frota, um grupo de oficiais tentou sublevar-se e um general ligou para o ex-presidente Médici, que vivia no Rio, calado. Queria seu apoio e ouviu o seguinte:
“Põe água na cabeça. Põe água para esfriar a cabeça.”
(O general Augusto Heleno, que era capitão e ajudante de ordens de Frota, lembra-se de alguns episódios desse dia.)
Bolsonaro precisa por água na cabeça para cuidar de seu governo, deixando os quartéis em paz e silêncio.
Hélio Schwartsman: O mundo é complicado
Série sobre desigualdade apresenta dados para satisfazer otimistas e pessimistas
A bela reportagem especial publicada nesta terça, que dá início a umasérie sobre a desigualdade, traz dados que satisfazem tanto os otimistas como os pessimistas.
Para os que gostam de ver o mundo sob lentes leibnizianas, nunca tantas pessoas saíram da miséria quanto nos últimos 40 anos. Especialmente na China e na Índia, mas também em outros países emergentes, contingentes expressivos da população ganharam inaudito acesso a alimentos e bens. O abismo entre as nações ricas e as pobres se reduziu.
Essa sensação de que há algo dando certo é reforçada por trabalhos como o de Deirdre McCloskey, que mostra que, ao longo dos últimos dois séculos, o habitante médio do planeta viu sua riqueza multiplicar-se por dez, chegando a 30 nos países desenvolvidos. Também experimentamos quedas brutais nos índices de violência e melhoras comparáveis em estatísticas de saúde.
Só que os partidários da hiena Hardy do desenho animado (a referência é só para os mais velhos mesmo) também têm motivos para sentir-se justificados. Nos países mais avançados, houve um achatamento da classe média que, sentindo que ficou para trás, vem flertando com a extrema direita populista, num movimento que já originou retrocessos democráticos em várias partes do planeta.
Se isso já é ruim, leituras complementares dão vontade de tomar Prozac na veia. Uma delas é Gregory Clark (“The Son Also Rises”), que analisou a repetição de sobrenomes em cargos e profissões de prestígio ao longo de séculos em vários países e concluiu que a própria mobilidade social é um fenômeno mais raro do que gostaríamos de acreditar. Outra é Walter Scheidel (“The Great Leveler”, que também já comentei aqui), que sustenta que a desigualdade interna só cai de forma notável diante de grandes catástrofes sociais como epidemias, guerras e o colapso do Estado.
A conclusão, inescapável, é que o mundo é um lugar complicado.
Bruno Boghossian: Bolsonaro vê inimigos fictícios dentro do próprio governo
Presidente adapta teoria do 'Estado profundo', mas não é vítima de conspiração
O governo Bolsonaro vê inimigos dentro do armário, atrás das cortinas e debaixo da cama. Desde o início do mandato, o presidente e seus auxiliares dizem que agências estatais estão cheias de defensores da maconha, que órgãos de pesquisa são financiados pela esquerda e que até satélites de monitoramento ambiental são manipulados por ONGs.
Os tiros dentro de casa se intensificaram nos últimos dias. Defensor do endurecimento da política de drogas, Osmar Terra (Cidadania) disse ao site Jota que o governo pode fechar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária caso seus dirigentes insistam em regulamentar o plantio de Cannabis para fins medicinais.
O ministro não tem poder sobre a Anvisa, mas se irritou ao reclamar da presença de uma "turma pró-droga" na agência. Terra acusou o presidente do órgão, William Dib, de liderar o movimento pela liberação.
A Anvisa trabalha para dar aval ao plantio apenas para pesquisa e produção de medicamentos. O cultivo deve seguir regras rígidas de segurança, mas o ministro não se importou com os detalhes. Ele afirma que a ideia partiu de gente infiltrada na administração pública para agir contra os interesses do governo.
A explicação é muito conveniente para Bolsonaro. A história lembra a teoria da conspiração do "deep state" de Donald Trump. Aliados do líder americano já disseram que funcionários entranhados na burocracia do "Estado profundo" trabalham contra as decisões do presidente.
O ataque a peças da máquina administrativa faz parte da estratégia populista contra o que se conhece como "sistema". Dessa maneira, um governante tenta minar a credibilidade de estudos técnicos e de qualquer órgão que possa limitar seus poderes ou sua plataforma política.
Na semana passada, o presidente insinuou que o chefe do Inpe infla dados de desmatamento para atender ao interesse de ONGs internacionais. O governo tentará culpar traidores fictícios sempre que as pesquisas não confirmarem suas visões ou quando algo não sair como previsto.
Igor Gielow: Bolsonaro estica corda e aumenta impaciência institucional com ele
Arcabouço político dificulta comparação direta entre brasileiro e Johnson ou Trump
A ascensão de Boris Johnson à liderança do Partido Conservador britânico, o que o fará o próximo primeiro-ministro da democracia basal do Ocidente, fez o mundo político daquelas ilhas perder sua proverbial fleuma.
De comentaristas pedindo que a qualificação de palhaço seja evitada por ofender os profissionais da galhofa e questionamentos objetivos sobre as condições de jogo de um ator que já disse toda sorte de barbaridade num país em que ainda há quem se preocupe com isso.
Nada disso será obstáculo à entrada de Boris, o Vândalo, pela porta da frente do número 10 de Downing Street. Mas é lícito pensar o que ocorrerá se ele mantiver o padrão de agressividade gratuita e o espírito tosco que fazem lembrar que ser educado em Eton não é selo de garantia de fidalguia.
O que virá depois, Deus sabe, mas sempre é bom lembrar que o Reino Unido é o lugar no qual uma deputada perdeu o cargo e foi em cana este ano porque mentiu sobre estar dirigindo um carro com o celular na mão e acima do limite local de 48 km/h. Fiona Onasanya estava a meros 65 km/h.
Esse arcabouço institucional dificulta um pouco as tentadoras comparações da situação de Johnson, ou do americano Donald Trump, com o caso brasileiro. Cá nos trópicos, a inadequação da figura presidencial de Jair Bolsonaro (PSL) tem sofrido o efeito do tempo na cadeira. São quase meros sete meses, mas com um caráter canino que lhes aufere a qualidade temporal de anos.
O mais recente levantamento do Datafolha apontou isso, explicitando que 25% consideravam o presidente totalmente fora do figurino do cargo. Seus defensores mais árduos dizem que isso se deve ao fato de que Bolsonaro seria, ao contrário da classe na qual fez carreira, “autêntico”, “verdadeiro”, “sincero” ou outros adjetivos correlatos.
Pode ser, e funciona para os 22% que aprovam o seu jeitão de, como se diz, tio do churrasco. Apesar da precisão preconceituosa, a expressão em muitos meios trai também alienação em relação ao que se passa pelo país. O Brasil é uma nação de tios do churrasco, que tiveram um momento de expressão majoritária nas urnas em 2018.
Seja como for, há um processo de perda de paciência institucional com o presidente, em especial após o encaminhamento da reforma da Previdência.
O surto logorreico que Bolsonaro tem apresentado desde que viu sua principal pauta avançar na Câmara já se espraiou além do folclórico —indicar o filho para a Embaixada em Washington, criticar financiamento de “Bruna Surfistinha”, negar a fome no país, tentar desmoralizar o respeitado Inpe, há um pouco de tudo.
O caso politicamente mais sensível, do ponto de vista eleitoral, foi criticar os “governadores de paraíba” na sexta (19). Apelou ao modo bolsonarista de lidar com erros, que aliás aprendeu com o patrono da família vândala no poder mundial, Trump: disse que falou outra coisa, que é vítima de “fake news” e tal.
Ele tanto não acredita nisso que teve de se picar para a Bahia e colocar um indefectível chapéu de couro para provar-se amigo da região que mais o rejeita. Mas não é só ele.
Dois oficiais conhecidos do presidente o questionaram sobre ter chamado o general da reserva Luiz Eduardo da Rocha Paiva de “melancia”, ou seja, de ser do Exército e esquerdista (“verde por fora, vermelho por dentro”). Uma baita ofensa na esteira da imolação de generais no embate com olavistas e da geladeira pública aos brigadeiros ao não comparecer à data magna da Força Aérea —ainda reflexo do caso da cocaína no avião presidencial.
O general Rocha Paiva, um prócer da defesa do golpe de 1964 e de todo o arcabouço da ditadura, havia criticado a declaração dos “paraíbas” como antipatriótica. Entre seus iguais, é visto como corajoso.
A resposta do presidente para os militares foi a mesma: “fake news”, exagero. O fato de que o mandatário, ou mais provavelmente seu filho Carlos, tenha escrito em sua conta oficial no Twitter a imprecação foi simplesmente esquecido.
Como diz um desses militares, a piada cansou. O protagonismo da Câmara e do Judiciário sinaliza um pouco esse fastio com a sem-cerimônia do pessoal no poder. Mesmo no mercado que sempre incensou Bolsonaro, olhos se viram a cada menção sobre a figura presidencial. No empresariado de verdade, a dúvida já é sobre 2022, se João Doria, Luciano Huck ou outro.
E daí? Presidente algum cai no Brasil pela proverbial multa de trânsito —e olhe que Bolsonaro garantiu a sua num passeio recente de motocicleta. Figuras menores, como o ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, sim, mas aqui o jogo é outro, a começar pelo 1/3 de fiéis bolsonaristas na praça.
É preciso uma crise sistêmica que una economia e política no mesmo barco, e isso não está dado. Se há risco de recessão, há também nesgas de otimismo em áreas como infraestrutura. Mas nunca é demais anotar: a corda anda bem esticada, e o presidente parece adorar tal dinâmica.
Nelson de Sá: EUA abrem inquérito antitruste contra Google e Facebook
Departamento de Justiça quer levantar 'como as empresas cresceram e expandiram seu alcance para outros negócios'
O “Big Tech”, segundo o WSJ, que noticiou primeiro, vai passar por “inquérito” para levantar se vem “sufocando a concorrência”, para descobrir “como as empresas cresceram em tamanho e expandiram seu alcance para outros negócios”.
“Indica profundo interesse do secretário de Justiça, William Barr”, enfatizou o WSJ, “e ameaça Facebook e Google”.
O New York Times destacou que o Departamento de Justiça vai dedicar ao caso sua “força investigativa completa”.
SALTO NO ESCURO
Nas manchetes dos londrinos Telegraph e Times, o jornalista e futuro primeiro-ministro Boris Johnson voltou a prometer o que havia publicado no domingo, no mesmo Telegraph: seguir o espírito que levou os EUA à Lua.
A revista de humor Private Eye divulgou então a sua edição especial de 52 páginas, com a manchete-trocadilho “Loon landing”, aterrissagem do idiota, e a frase “Um pequeno passo para um homem... Um salto gigante no escuro para a humanidade”. Embaixo, “EUA plantam sua bandeira no Reino Unido”.
MOSCOU & PEQUIM
NYT e outros noticiaram que jatos sul-coreanos atiraram contra avião russo. Já o South China Morning Post destacou que o “impasse” envolveu “jatos de combate de Rússia, Japão, Coreia do Sul e China” —e que Pequim afirmou que a área “não é espaço aéreo” sul-coreano ou japonês.
O analista Dmitri Trenin, do Centro Carnegie de Moscou, avisou que “patrulhas assim” no Oceano Pacífico, com jatos russos e chineses, “se tornarão regulares sob acordo que está para ser assinado por Moscou e Pequim”, em meio a diversas parcerias. Abaixo, a patrulha no canal estatal russo RT:
BOLTON LÁ
A agência americana Associated Press noticiou que John Bolton, o “falcão” de Donald Trump, está em visita ao Japão e à Coreia do Sul.
PUTIN & BOLSONARO
A agência russa Sputnik despachou dias atrás a declaração de Jair Bolsonaro: “Tenho profundo respeito por Putin”, de quem guarda “impressão muito boa”.
Na terça (23), em Moscou, segundo a agência RIA Novosti, o chanceler Sergei Lavrov lembrou frase de Bolsonaro em favor do Brics, “refletindo a realidade do mundo multipolar”, e se disse “convencido de que o Brasil” também quer resolver a situação na Venezuela.
BOLTON 2
Por outro lado, Lavrov questionou a declaração de John Bolton sobre o retorno à Doutrina Monroe, de uma América Latina para os americanos —sem Rússia e China.
*Nelson de Sá é jornalista, foi editor da Ilustrada.