Folha de S. Paulo
Eugênio Bucci e Taís Gasparian: Sobre hackers e jornalistas
Informação de interesse público deve ser publicada
Recentemente, o presidente da República declarou que o jornalista Glenn Greenwald, do site Intercept, “talvez pegue uma cana aqui no Brasil”. Isso porque a origem das informações divulgadas pelo site decorreria da ação de um hacker.
Mas a origem da informação não tira dos veículos de imprensa e dos jornalistas o direito de publicá-la. Mais do que isso, de posse de uma informação de interesse público, relevante e íntegra, o veículo ou o jornalista tem o dever ético de divulgá-la. É disso que trata a atividade da imprensa, goste-se ou não.
Sempre foi assim, e a única novidade desse caso é a suspeita —ainda por se comprovar— de que uma das fontes pode ter sido um hacker, essa pessoa que teria capturado diálogos entre as autoridades em um aplicativo de celular.
No Brasil já foram divulgadas pela imprensa uma diversidade enorme de informações que tiveram sua origem em procedimentos ilícitos. Em 1998 foram divulgadas por esta Folha conversas do então do presidente Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Carlos Mendonça de Barros, dentre outros, por ocasião das privatizações do Sistema Telebras.
Um sem número de outros grampos foram divulgados por diferentes veículos e sites. Uma quantidade enorme de informações contidas em processos sigilosos já foi vazada para a imprensa. Sigilos bancários já foram violados e divulgados os dados daí decorrentes. Não há surpresa alguma, então, no fato de informações, apesar da origem ilícita, serem divulgadas licitamente.
Não adianta o chefe de Estado proclamar que é crime a reportagem do Intercept. Não é crime. O Tribunal de Justiça de São Paulo, o do Rio de Janeiro, o do Distrito Federal, o de Minas Gerais e o do Rio Grande do Sul, para citar alguns, em diferentes momentos já se manifestaram no sentido de que a responsabilidade em manter o sigilo é dos agentes públicos e que a simples divulgação do conteúdo de gravações e de documentos confidenciais não configura conduta ilícita. Do mesmo modo, a jurisprudência majoritária tem entendido ser impossível impor punição aos que divulgam conteúdo confidencial em virtude do princípio constitucional que assegura o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
O presidente também afirmou que existe uma analogia entre o trabalho jornalístico e o crime de receptação. Ao seu estilo, disse que ao aceitar um material de origem criminosa e publicá-lo, o jornalista agiria como alguém que pratica receptação.
Mas a fala do presidente não encontra amparo no direito. A receptação é tipo penal que se encontra no capítulo de Crimes contra o Patrimônio no Código Penal. Isso nada tem a ver com o jornalista que, investigando uma história, obtém uma informação que é de interesse público e, depois de checar sua veracidade, publica essa informação.
Mesmo se admitida a hipótese de que uma das fontes da investigação jornalística conduzida pelo Intercept foi um hacker, ou alguém ligado a um hacker, não há nenhum crime aí. A informação não é patrimônio particular. Mais ainda: a informação de interesse púbico, aquela com que trabalha o jornalista, pertence por definição ao público —não ao particular que, investido de algum poder, pretende escondê-la do público. O trabalho do jornalista, nesse sentido, consiste em entregar ao público o que, por direito, é do público. O fato de as informações estarem em um aplicativo de celular de uso pessoal também não retira delas a relevância e o interesse públicos.
Tendo em vista que as palavras do presidente podem gerar efeitos perversos na vida prática e jurídica dos cidadãos, somos, todos, obrigados a contestá-lo com argumentos juridicamente técnicos e racionais, para que sigam preservados, ainda que aos trancos e barrancos, os alicerces essenciais do Estado de Direito brasileiro.
*Eugênio Bucci
Jornalista e professor da ECA-USP
*Taís Gasparian
Advogada e sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian - Advogados
Elio Gaspari: De novo com vocês, delações de Palocci
Há um forte cheiro de pirotecnia nessa nova série de revelações do ex-ministro
Foi assim no ano passado: faltavam seis dias para o primeiro turno e o juiz Sergio Moro divulgou um anexo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci à Polícia Federal. Era um pastel de vento em cujo recheio havia uma única informação (Lula organizou uma caixinha de fornecedores da Petrobras e colocou o comissário como gerente), mas faltava a investigação. Quem pagou? Como? Para quem foi o dinheiro?
O efeito da "mão de Deus" no gol de Moro foi sentido no escarcéu que acompanhou a revelação. Hoje, graças ao site The Intercept Brasil, conhecem-se as mensagens trocadas pela turma da Lava Jato em torno do assunto.
Uma semana antes, no dia 25 de setembro, referindo-se a Moro e às confissões de Palocci, um procurador escreveu: "Russo [apelido do juiz] comentou que embora seja difícil provar, ele é o único que quebrou a 'omertá' petista". (Falava do código de silêncio do mafiosos.)
Uma procuradora acrescentou: "Não só é impossível provar como é impossível extrair algo da delação dele".
Um terceiro procurador foi além: "O melhor é que fala até daquilo que ele acha que pode ser que talvez seja. Não que talvez não fosse".
Dois dias depois da divulgação do anexo por Moro, uma procuradora perguntava: "Vamos fazer uso da delação do Palocci?"
Outro respondeu: "O que Palocci trouxe parece que está no Google".
Segundo outro procurador: "O acordo é um lixo, não fala nada de bom (pior que anexos Google)".
Fez-se um banquete com o lixo e o resto é história. Dez meses depois, Antonio Palocci volta a atacar com um novo vazamento de sua colaboração para a Polícia Federal. Moro é ministro da Justiça, e uma parte da turma da Lava Jato está sendo confrontada com suas próprias malfeitorias, mas pode ser coincidência.
Desta vez o comissário teria contado que a Ambev, uma das maiores empresas do país, fez "pagamentos indevidos" a Lula e Dilma Rousseff. Não se conhecem os anexos e, portanto, não se pode saber que pagamentos são esses, nem como foram feitos. Inicialmente, a Ambev disse que não comentaria o caso (o que foi má ideia), mas se sabe que durante três anos ela pagou legalmente um total de R$ 1,2 milhão à empresa de consultoria de Antonio Palocci. Como essa firma era um lindo biombo, nesse caso os doutores da Ambev foram comprar pasta de dentes na Cracolândia.
Há um forte cheiro de pirotecnia nessa nova série de revelações de Palocci. Quanto mais cedo forem conhecidos os anexos, melhor.
Levando areia para o vento pirotécnico, Palocci teria contado que em 2002 o ditador líbio Muamar Kadafi deu o equivalente a US$ 1 milhão ao PT.
Para quem olha esse caso de fora, a primeira pista de que havia algo de estranho na relação de Lula com Kadafi surgiu em 2003, quando ele foi a Trípoli e disse que "jamais esqueci os amigos que eram meus amigos quando eu ainda não era presidente".
Palocci mencionou o dinheiro líbio pela primeira vez no final de 2017, quando negociava sua colaboração com o Ministério Público. Os procuradores acharam que suas revelações tinham muito pirão e pouca carne e ele foi se confessar na Polícia Federal. Lá, voltou a falar do caso. É razoável supor que em dois anos o comissário tenha sido capaz de lembrar como esse dinheiro chegou ao Brasil e a quem foi entregue.
Na semana passada, Palocci se tornou o primeiro comissário a ganhar o direito de andar livre pelas ruas (de tornozeleira eletrônica). Ex-quindim da plutocracia, comprovadamente tornou-se um milionário durante o consulado petista.
Bruno Boghossian: Como o discurso radical ajuda Bolsonaro a fortalecer sua base
Plataforma extremista não é majoritária, mas funciona como jogada de imagem
Jair Bolsonaro nunca quis saber de moderação. As atrocidades que compõem seu repertório há três décadas ajudaram a construir a figura do candidato radical que, mesmo sustentando posições extremistas, conseguiu se eleger presidente. No poder, ele usa os mesmos artifícios para consolidar sua base política.
A popularidade de Bolsonaro caiu desde o início do mandato, inclusive em segmentos que deram apoio precoce a sua candidatura. Em vez de tentar recuperar esses grupos, ele insiste numa plataforma que, segundo as pesquisas, tem aprovação de no máximo 30% da população.
O presidente não está em busca de apoio majoritário —não agora, pelo menos. O que Bolsonaro faz é usar o cargo como megafone para ampliar o alcance de suas palavras e dar revestimento oficial a posições que, com razão, costumavam ficar à margem do debate público.
Ele trabalha para fidelizar seus redutos, não só para expandi-los. Hoje, o núcleo do bolsonarismo é maior do que era na campanha. Se chegar a um quarto ou um terço da população, será um ativo político poderoso.
Restrito a essas fatias, Bolsonaro fica vulnerável a crises e tropeços da economia. Ainda assim, ele não liga para essa conta da maioria porque faz, por ora, uma jogada de imagem. Na eleição, suas posições radicais também pareciam minoritárias, mas ele teve 55% dos votos válidos. Contou mais a percepção de que encarnava o antipetismo, a antipolítica e a intolerância com o crime.
O presidente poderia trocar os elogios a torturadores, os ataques ao Congresso e os incentivos à violência policial por uma retórica suave, que alcançasse os moderados. Esse movimento, porém, demandaria concessões e mancharia a estampa que ele vende como autêntica.
Ao investir no tom radical, Bolsonaro alimenta uma polarização que pode obliterar o centro do espectro político. Da extremidade, ele tentará apertar botões ideológicos contra a esquerda para inflar sua base sempre que precisar disputar votos ou quiser implantar medidas autoritárias.
Ruy Castro: Avaliando o avaliador
As pessoas estão sendo obrigadas a achar soluções para problemas que não criaram
Até outro dia, sapateiros eram sapateiros, mecânicos eram mecânicos, cientistas eram cientistas. Um mecânico não ia além da sola, um cientista não trocava rebimbocas e um sapateiro não dividia o átomo. Um advogado não se passava por médico, um químico não dava uma de padre e um jogador de futebol não escrevia "Hamlet". E nenhum deles precisava aprender o ofício de um engenheiro eletrônico. Hoje, todo mundo precisa ser engenheiro eletrônico.
Dei-me conta disso quando ouvi falar que o Telegram de Sergio Moro e Deltan Dallagnol tinha sido invadido e pessoas estavam lendo suas mensagens. Logo imaginei um espião embuçado abrindo os telegramas entre os dois, talvez aproximando-os do vapor para derreter a cola, copiando seus conteúdos e os lambendo para colar de novo. E até me espantei de alguém ainda se comunicar por telegramas. Para minha surpresa, fui informado de que o Telegram era um "serviço de mensagens instantâneas criptografadas fim a fim no modo client-to-client ou client-to-server, baseadas na nuvem".
Eu disse "Ah, bom!" e, vexado por minha ignorância, perguntei como acontecera. Responderam-me que uma invasão dessas se dá quando o usuário é induzido a fazer um reset de senhas e recebe um arquivo Office ou um app comprometido.
Assustado, quis saber como evitar isto e me disseram que, ao baixar um app, é preciso ativar o aplicativo dentro desta página da web após avaliar a descrição do aplicativo associado à nota de avaliação e considerar a quantidade de downloads efetivos e os comentários dados por estes usuários. Simples.
Ou seja, o cidadão comum está sendo obrigado a achar soluções para problemas que não criou, é isso? Estou fora. Nos últimos cem anos, tenho ganhado a vida lendo, fazendo perguntas e escrevendo. Se, em breve, isso não bastar, vou para a lavoura, feliz da vida.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigue
Bruno Boghossian: Bolsonaro esvazia Moro para ocupar espaço na pauta da segurança
Presidente e ministro descobrem que a cidade é pequena demais para dois xerifes
Raros ministros conseguem voar mais alto que um presidente. Sergio Moro talvez nunca tenha se iludido com essa possibilidade, mas a agitação de suas asas incomodou aliados de Jair Bolsonaro. Por garantia, o presidente mantém os pés de seu subordinado bem firmes no chão.
Quando o Congresso começou a criar dificuldades para o pacote de combate ao crime de Moro, Bolsonaro deu razão aos parlamentares. Disse que é melhor esquecer o assunto por um tempo, já que a discussão pode atrapalhar a pauta econômica.
“Lamento, mas tem que dar uma segurada. Não quero pressionar isso aí e tumultuar lá”, disse Bolsonaro, nesta quinta (8). Em poucas palavras, o chefe deixou claro que não gastaria capital político para bancar a principal bandeira do auxiliar.
Seria só uma avaliação trivial se o próprio presidente não tivesse, na véspera, anunciado que seu governo vai elaborar um projeto “mais amplo” que o de Moro. Um dos pontos seria a exclusão de punições a policiais que matarem em serviço.
Em um único movimento, Bolsonaro esvaziou um instrumento emblemático do superministro, ocupou parte desse espaço e mostrou que tem propostas ainda mais violentas para a segurança. Dias antes, ele já havia podado uma ferramenta de combate à corrupção de Moro ao sugerir a troca do comando do Coaf.
Depois de marcar posição, o presidente chamou o ex-juiz para uma transmissão nas redes sociais. O espaço não foi um palanque para o ministro. Serviu, principalmente, para que ele pudesse reverenciar o chefe.
O ministro deu crédito ao patrão pela transferência de traficantes de presídios e elogiou suas ideias para a segurança. O presidente levantou o pacote anticrime, e Moro retribuiu: “Não é um projeto do Moro. É um projeto do governo Jair Bolsonaro”.
O ministro entendeu que precisa se amarrar ao presidente para evitar sabotagens internas. Bolsonaro sabe que também se beneficia da imagem do ex-juiz, mas parece mais consciente de que essa cidade é pequena demais para dois xerifes.
Bruno Boghossian: Debate sobre transferência de Lula resume uma política contaminada
Petista está preso há quase 500 dias, mas opositores ainda buscam revanche
As decisões dos juízes de São Paulo e do Paraná animaram a militância bolsonarista. “O presidiário pode ficar em cela coletiva!”, comemorou a deputada Carla Zambelli (PSL). Lula está preso há quase 500 dias, mas alguns de seus opositores ainda estão em busca de revanche.
A discussão sobre uma possível transferência do petista de uma sala da Polícia Federal para uma penitenciária comum resume a contaminação do debate público no Brasil. O episódio conseguiu desgastar ainda mais as relações políticas e institucionais dos dois lados do fosso.
O ex-presidente estava na superintendência da PF em Curitiba por determinação da Justiça. Quando mandou prendê-lo, Sergio Moro afirmou que, em razão do cargo que havia ocupado, Lula deveria começar a cumprir sua pena “separado dos demais presos, sem qualquer risco para a integridade moral ou física”.
Um subordinado de Moro achou que isso deveria mudar. O superintendente Luciano Flores disse que a presença do ex-presidente mudou a rotina do prédio e que apoiadores do petista passaram a se aglomerar na região, demandando a presença constante de policiais. Isso acontece há 16 meses, mas só agora o órgão pediu a transferência do preso.
Ao saber que o ex-presidente poderia ser levado para o sistema prisional de seu estado, João Doria (PSDB) tentou passar a mão no troféu. “Ele será tratado como todos os outros presidiários”, escreveu. “Se desejar, terá a oportunidade de fazer algo que jamais fez na vida: trabalhar!”
O tom de vingança provocou reação de deputados de vários partidos. Na Câmara, um tucano foi ao microfone e disse que a decisão era absurda. Parlamentares pediram ao Supremo que julgasse o assunto no plenário. Os ministros suspenderam a transferência por 10 votos a 1.
O STF pôs de pé uma resposta institucional. A imagem de Moro se deteriorou um pouco mais, tanto no tribunal quanto no Congresso. De outro lado, os apoiadores do ex-juiz e de Bolsonaro tomam fôlego para atacar essa aliança. O fosso aumenta.
Elio Gaspari: Itaipu, uma usina de encrencas
A hidrelétrica de Itaipu, símbolo do "Brasil Grande", virou cenário de um lance de corrupção vulgar
O repórter José Casado disse tudo: "Sob Bolsonaro, [Itaipu] virou fonte de convulsão na outra margem do rio Paraná." A maior hidrelétrica do continente nasceu de um litígio e, graças a meio século de costuras diplomáticas, virou uma proeza binacional. Em poucos meses de conversas impróprias, voluntarismos e tráfico de influência, o Brasil viu-se metido num escândalo. Logo em Itaipu, usina construída por um ex-oficial do Exército que passou pela vida pública sem nódoa. José Costa Cavalcanti foi ministro de Minas e Energia e do Interior, assinou o Ato Institucional nº 5 e dirigiu a construção de Itaipu. Tinha pouca graça, talvez nenhuma. Morreu pobre, em 1991.
Logo na usina de Costa Cavalcanti estourou o escândalo de um acordo matreiro firmado entre os governos de Bolsonaro e de seu amigo Mario Abdo, "Marito", como ele o chama. Quando o caso estava no escurinho de Assunção, o ministro Sergio Moro revogou o status de refugiado que havia sido concedido em 2003 a três paraguaios que vivem no Brasil.
Espremendo-se uma história onde entram picaretas paraguaios, o empresário suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP) e diplomatas invertebrados, tudo poderia vir a se resumir ao seguinte: retirando-se um item do acordo, como foi feito, uma empresa brasileira, a Leros, compraria energia paraguaia para vendê-la no mercado brasileiro. Graças a algumas tecnicalidades, seria possível que ela pagasse US$ 6 (cerca de R$ 24) por um megawatt, vendendo-o, numa boa, por US$ 30 (R$ 119).
Na sua picaretagem um jovem advogado paraguaio dizia falar em nome do vice-presidente Hugo Velázquez e apresentava seu pleito como um ricochete do desejo da "família presidencial do país vizinho". Apanhado com a divulgação de mensagens trocadas com o presidente da estatal de energia de seu país, o moço informou que perdeu seu celular. (Ele é filho da ministra encarregada de combater a lavagem de dinheiro)
O presidente da estatal paraguaia de energia demitiu-se e botou a boca no mundo. Caíram a mãe do moço, o chanceler e o embaixador em Brasília. Arriscavam cair também o presidente Mario Abdo e o vice. Salvaram-se rasgando o acordo, no que foram acompanhados por Bolsonaro no dia seguinte. A costura pode ter levado meses, o desmanche deu-se em menos de uma semana. Hoje todo mundo garante que nunca ouviu falar dessa história.
Itaipu existe graças ao trabalho silencioso de presidentes e diplomatas que sempre evitaram acordar o sentimento nacionalista do Paraguai. Com a trapalhada do acordo, desmanchou-se um trabalho de meio século. Em 2023 o tratado que permitiu a construção da usina deverá ser renegociado, e lançou-se a semente da discórdia, com o Brasil sendo acusado de ter jogado bruto pelo presidente da estatal paraguaia que se demitiu.
Faz tempo, o engenheiro Octávio Marcondes Ferraz, construtor da usina de Paulo Afonso (BA) e um dos patriarcas da Eletrobras, batia de porta em porta dizendo que não se deveria fazer Itaipu com o Paraguai. Seria melhor construir três hidrelétricas na bacia do Paraná, mas em território brasileiro. Tinha o apoio do senador gaúcho PauloBrossard. Não foram ouvidos, mas nenhum dos dois seria capaz de pensar que o Brasil se meteria numa encrenca tão vulgar.
Bruno Boghossian: Bolsonaro trata o governo como uma ferramenta política pessoal
Presidente avacalha a República ao usar o poder em retaliações e favorecimentos
Na política miúda de muitas cidades, prefeitos e vereadores costumam confeccionar faixas de agradecimento toda vez que uma autoridade aparece para inaugurar uma obra. Além de puxar o saco de quem tem a chave do cofre, eles aproveitam para fazer propaganda de seus nomes entre os eleitores da região.
Jair Bolsonaro decidiu adotar essa bajulação como critério orçamentário. Depois de dizer que alguns governadores do Nordeste não devem "ter nada", ele afirmou que não vai negar recursos aos estados administrados pela oposição —com uma condição.
"Se eles quiserem que realmente isso tudo seja atendido, eles vão ter que falar que estão trabalhando com o presidente Jair Bolsonaro", declarou, após um evento na Bahia.
Aquele dinheiro é público, e a Constituição diz que a máquina estatal deve seguir o princípio da impessoalidade. Bolsonaro dá de ombros e trata o governo como uma ferramenta política particular.
A insistência em nomear o filho para a embaixada em Washington segue essa lógica, como se espaços públicos fossem domínios familiares. "Tem que ser filho de alguém. Por que não pode ser meu?", perguntou.
O presidente só consegue exercer o poder de maneira personalista. Fomenta divisões contra seus adversários e usa o cargo para aplicar retaliações. Nesta terça (6), anunciou mudanças na publicação de balanços financeiros em jornais e se vangloriou: "Retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou".
Bolsonaro também desfigura as funções do governo para encaixá-lo a suas fixações ideológicas. Ao jornal O Estado de S. Paulo, ele disse que o próximo chefe do Ministério Público não deve ficar "só preocupado de forma xiita com questão ambiental ou de minoria". Ignorou a missão do órgão de proteger o meio ambiente e outros direitos coletivos.
O resultado é uma avacalhação ainda maior das já desmoralizadas instituições republicanas. Diz-se que um governante costuma se adequar à cadeira que ocupa ao longo do tempo. Bolsonaro preferiu deformar a sua.
Leandro Colon: Dodge faz a lição de casa para ser reconduzida por Bolsonaro
O subprocurador Augusto Aras é o preferido, mas atual chefe da PGR emite sinais para ficar
Raquel Dodge deu a senha a Jair Bolsonaro no dia 7 de junho. “Estou à disposição, tanto da minha instituição quanto do país, para uma eventual recondução”, disse a procuradora-geral da República sobre o desejo de permanecer no posto.
Desde então, a chefe da PGR intensificou uma articulação nos bastidores, sustentada em alguns ministros do STF e parlamentares influentes. Em outra ponta, emitiu sinais para os pares no Ministério Público Federal, com os quais travou embates nos últimos dois anos. Não à toa, não quis disputar a lista tríplice da associação da categoria —provavelmente ela seria derrotada pelos colegas.
E Dodge fez o mais importante: aproximou-se de Bolsonaro,denunciado por ela por racismo e dono da caneta da indicação do próximo PGR.
Ao recorrer da decisão de Dias Toffoli (STF) que limitou o uso de dados do Coaf em investigações no país, Dodge deixou a porta aberta para manter parado o inquérito sobre Flávio, filho do presidente. Ela pede que Toffoli se limite ao caso do senador do PSL-RJ, que pediu a suspensão da apuração até análise em plenário, prevista para novembro. A procuradora-geral cumpriu o papel de recorrer, mas tomou cuidado para não incomodar o Planalto.
Depois de esnobar os colegas de Lava Jato em Curitiba por longo período, Dodge passou a bater bola com procuradores da força-tarefana reta final da sucessão na PGR.
A procuradora-geral, que evita a imprensa e o contraditório, faz vista grossa para a gravidade das mensagens trocadas por Deltan Dallagnol, pego atropelando regras de conduta, forjando a criação de empresa para levar dinheiro com palestra e usurpando competência ao estimular a investigação de ministro do STF.
Para Dodge, nada disso é preocupante, afinal ela precisa agora do respaldo de alas estratégicas da categoria, como a de Curitiba. No Planalto, o subprocurador Augusto Aras, que se mostrou pouco disposto a atrapalhar o governo na PGR, é o preferido. Mas Dodge tem feito direitinho a lição de casa para ser reconduzida.
Bruno Boghossian: Supremo não sabe o que fazer com vazamentos e abusos da Lava Jato
Tribunal precisará decidir como enfrentar o caso ou ficará na apatia dos últimos anos
A força-tarefa de Curitiba soprava as velinhas do primeiro aniversário da Lava Jato, em 2015, quando Gilmar Mendes estreou suas críticas à operação. Ele negou a soltura de um grupo de empresários, mas disse que a duração das prisões preventivas decretadas por Sergio Moro estava “se aproximando do limite”.
O tom das reprimendas subiu desde então, e o tribunal se mexeu para impor freios a alguns métodos da equipe responsável pelo caso. Na prática, porém, a força-tarefa fez o que queria nos anos seguintes.
Como se sabe agora, o juiz da operação abandonou a neutralidade ao atuar em parceria com os acusadores. Indicou uma testemunha e deu conselhos antes de escrever suas sentenças. Descobriu-se ainda que o chefe dos procuradores tentou investigar ilegalmente ministros do STF considerados seus adversários.
O vazamento das conversas da força-tarefa deu materialidade à discussão sobre os limites ultrapassados em Curitiba. O Supremo, no entanto, deu sinais de que não sabe muito bem o que fazer a partir daqui.
Quando os primeiros diálogos foram publicados, Marco Aurélio disse que eles colocavam em dúvida a “equidistância do órgão julgador”. Acrescentou que isso seria tratado dentro dos processos da Lava Jato.
O próprio STF conseguiu atropelar o debate. Ao aproveitar um inquérito claramente abusivo sobre fake news para obter as mensagens hackeadas, Alexandre de Moraes tentou tomar um atalho para validar provas obtidas a partir de um crime.
A reação veio de Luís Roberto Barroso, que disse que essa agenda está “sequestrada por criminosos”. Ele certamente não quis insinuar que o Supremo deva se render aos arbítrios do outro lado. O ministro afirmou ainda que “há mais fofoca do que fatos relevantes” e reclamou da “euforia” causada pelos diálogos.
Obtidas ilegalmente, as mensagens ganharam vida própria desde que a sociedade passou a conhecê-las. O tribunal precisará enfrentar essa questão ou permanecer na apatia observada nos últimos cinco anos.
Elio Gaspari: Ele é assim mesmo, mas é estratégia
Bolsonaro nunca mudou nem vai mudar, o problema de seu estilo está na relação com a verdade
‘Sou assim mesmo. Não tem estratégia’, disse o presidente Jair Bolsonaro à repórter Jussara Soares. Meia verdade, ele é assim mesmo, mas há uma estratégia para lá de bem-sucedida no seu estilo inflamado e provocador.
Em 2005 ele era um deputado periférico, havia defendido o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e foi entrevistado por Jô Soares (o vídeo está na rede). A conversa durou 21 minutos. Lá pelo final (minuto 19:00), Jô tocou na ideia de se passar FH pelas armas e Bolsonaro respondeu, rindo: “Se eu não peço o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, você jamais estaria me entrevistando aqui agora”.
Bingo. Se Bolsonaro não tivesse falado do desaparecimento de Fernando Santa Cruz, talvez houvesse mais gente falando dos 12 milhões de desempregados. Essa é a parte do comportamento do atual presidente que pode ser chamada de estratégica. A outra é a sua maneira de ser, e nela há dois componentes. Numa estão suas opiniões, que, como as de todo mundo, podem mudar. Noutra estão os seus próprios fatos, que são só dele.
Quando Jô classificou a ideia da execução de FH como “barbaridade” , Bolsonaro explicou: “Barbaridade é privatizar a Vale do Rio Doce, como ele fez, é privatizar as telecomunicações, é entregar as nossas reservas petrolíferas para o capital externo.”
Mudou de opinião, tudo bem.
Bolsonaro, contudo, tem seus próprios fatos, que não fazem parte do mundo real. Ele não sabe como militantes da APML mataram Fernando Santa Cruz, porque isso não aconteceu. Na mesma entrevista com Jô, Bolsonaro relembrou um crime cometido por terroristas que acompanhavam Carlos Lamarca.
No mundo do fatos, em maio de 1970, Lamarca e um grupo de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária que treinavam técnicas de guerrilha no Vale do Ribeira foram descobertos e enfrentaram um pelotão da Polícia Militar comandada pelo tenente Alberto Mendes Júnior. A tropa se rendeu, e o tenente ofereceu-se para ficar como prisioneiro, em troca da libertação dos sargentos, cabos e soldados. Dias depois, no meio da mata, os cinco captores que conduziam o tenente viram que ele seria um estorvo, capaz de denunciar sua localização. Decidiram matá-lo, e um deles (Yoshitame Fujimore) abateu-o, golpeando-o na cabeça com a coronha de um fuzil.
(Meses depois, um dos captores de Alberto Mendes foi preso, localizou a sua cova e foi libertado em 1979, pela anistia. Em 1967, na Bolívia, o Che Guevara capturou 30 militares, não matou ninguém.)
A cena do assassinato do tenente não bastou ao deputado Bolsonaro. Com seus próprios fatos, ele disse a Jô que “Lamarca torturou-o barbaramente, fez com que ele engolisse os próprios órgãos genitais e o assassinou a coronhadas”. (Minuto 9:00)
Bolsonaro tirou os detalhes escatológicos do acervo de barbaridades do Exército japonês durante a Segunda Guerra e ainda assim exagerou ao nível da inverossimilhança, pois nenhum homem consegue engolir seus órgãos genitais. Ao fim das contas, em 2005, como hoje, era estrategia, mas “sou assim mesmo”.
Hélio Schwartsman: Deltan deve ir para a cadeia?
É bom para a sociedade que o conteúdo das conversas hackeadas tenha se tornado público
Não há muita dúvida que é bom para a sociedade que o conteúdo das conversas hackeadas do pessoal da Lava Jato tenha se tornado público. Pudemos entender melhor como funcionam as entranhas da Justiça e ampliar nosso conhecimento sobre a natureza humana.
As consequências políticas da divulgação são inevitáveis. Sergio Moro e Deltan Dallagnol saem menores do episódio. Poderão ter dificuldades em dar seguimento ao que planejavam para suas carreiras. O caráter messiânico da Lava Jato também sai arranhado, o que não é mau desde que não se sacrifique toda a operação. Parece-me complicado, entretanto, usar as interceptações, que são um caso claro de prova ilícita, para condenar juridicamente quem quer que seja.
A questão das provas ilícitas é complicada, e a doutrina não é unânime, mas, de um modo geral, entende-se que elas não apenas não podem ser usadas no processo penal como ainda contaminam outras provas com que entrem em contato. Há, contudo, exceções. Elas podem, por exemplo, inocentar um réu.
Imaginemos um sujeito que foi condenado à morte, mas aparece uma gravação, obtida ilegalmente, em que outra pessoa admite ter cometido o homicídio. Seria obviamente uma loucura seguir com a execução, ainda que a prova seja ilegal e não sirva para condenar o real assassino.
Não é exatamente a mesma coisa, mas acho que, por derivação, dá para sustentar que as interceptações, ao revelar que Moro agiu com parcialidade em certos processos, podem levar à sua suspeição e possivelmente à anulação de algumas decisões. Usar essas provas para condenar Moro ou Dallagnol por algum crime que possam ter cometido, contudo, já me parece avançar demais.
O irônico aqui é que dupla fez um forte lobby para que o Congresso aprovasse uma legislação que flexibilizaria a vedação do uso de prova ilícitas. Eles perderam. Não acredito em deuses, mas admito que eles têm um profundo senso de ironia.