Folha de S. Paulo
Leandro Colon || Reação de instituições é fundamental para frear interferência presidencial
Não há brecha para garrancho na caneta de Bolsonaro
Os ministros do governo Bolsonaro estão apavorados, segundo palavras do próprio presidente. Começa a bater o desespero na Esplanada com a falta de dinheiro.
Enquanto isso, servidores públicos da Receita e da Polícia Federal reagem aos movimentos de interferência do chefe da República em postos estratégicos dos dois órgãos.
Em mensagem aos colegas, o delegado de alfândega do Porto de Itaguaí (RJ), José Alex Nóbrega de Oliveira, um dos alvos da pressão palaciana, afirmou que “existem forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalização” da Receita.
O presidente da ADPF (Associação Nacional de Delegados de Polícia Federal), Edvandir Felix de Paiva, declarou que Bolsonaro expõe a PF ao descrédito quando mete o dedo na nomeação de superintendentes.
No Congresso, diante do atropelo por parte do presidente, parlamentares articulam acelerar a PEC que dá autonomia administrativa à polícia vinculada hoje ao Ministério da Justiça, sob as ordens de Sergio Moro.
Um parecer de consultores do Senado afirma que a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro pelo pai para ser o embaixador do Brasil nos EUA seria uma prática de nepotismo.
O presidente tem postergado a oficialização da indicação do filho para Washington até que tenha uma certeza de que não passará o vexame da derrota no plenário do Senado.
Hoje, a aposta entre senadores é a de que a escolha tem mais chances de passar do que ser negada. No entanto, o fantasma do fracasso emite sinais em meio ao clima de desgaste contaminado por episódios recentes fabricados pelo próprio Bolsonaro.
Ele disse que não será um presidente “banana”. “Quem manda sou eu”, declarou sobre as trocas na PF.
Pouco depois, amenizou o tom. Provavelmente terá de segurar também seu ímpeto sobre a Receita. Vai precisar baixar a bola para emplacar o filho nos EUA e agir para evitar um apagão danoso nas contas do país.
A reação das instituições é importante para frear a caneta presidencial, sem brecha para garranchos.
Vera Chemim || A miopia da direita e esquerda
A República Federativa do Brasil tornou-se palco de constantes movimentos de “esquerda” e de “direita” que, graças a um regime democrático cada vez mais maduro acolhe posições ideológicas diferenciadas, tendo como pano de fundo, ainda, a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (ex-governo de esquerda) e por outro lado, a vontade da maioria que elegeu Jair Bolsonaro (governo de direita) para a Presidência da República, sem falar da consolidação da Operação Lava Jato no que diz respeito ao combate à corrupção, independentemente de qualquer ideologia de plantão.
Tais protestos estimulam uma reflexão extremamente útil e oportuna para a atual conjuntura política brasileira. Afinal! O que leva todas essas pessoas a defenderem uma pretensa posição denominada “de esquerda”, em contraposição, agora mais forte do que nunca, à posição “de direita”?
Até que ponto, as pessoas que se intitulam em uma ou outra posição têm consciência daquilo que elas pensam ter afinidades?
Trata-se de um engajamento que visa ao crescimento econômico do país? Uma justa distribuição de renda? Uma estabilidade macroeconômica?
Ou se direciona para uma questão puramente político-ideológica?
O eterno conflito entre capital e trabalho, tão explorado por diversos autores, desde Marx até os teóricos contemporâneos remetem a análise para o significado real ou tentativas exaustivas para se chegar a compreender a chamada “direita conservadora” ou a ”esquerda progressista” (nomenclaturas utilizadas no contexto americano).
O que se quer aprofundar nessa direção é a dicotomia existente entre as duas posições, as quais estabelecem desde o seu surgimento, um maniqueísmo teórico, tanto do ponto de vista político, quanto econômico.
Existem ainda, outros questionamentos procedentes dessa divisão: até que ponto a direita é supostamente conservadora e a esquerda é supostamente progressista?
Quais são os critérios que permitem aferir com segurança, tais afirmativas?
Acrescente-se também, que aquela divisão, seja analisada sob o ângulo da política ou da economia percorre diferentes metodologias que podem levar a resultados igualmente divergentes.
Por outro lado, a prática governamental em diversos países, tanto da Europa, quanto, da América Latina corrobora a complexidade do tema, quando se constata o sucesso de modelos ditos de “direita” como os de “esquerda”, como é o caso do Chile e de Portugal, respectivamente.
As políticas econômicas levadas a efeito naqueles países, assim como em outros se diferenciam por si só, até porque as peculiaridades geográficas, históricas, culturais, e políticas nunca serão iguais, assim como, os resultados positivos ou negativos também dependerão do tipo de ações governamentais a serem operacionalizadas em cada um daqueles contextos.
Diante de todos os questionamentos acima, o Brasil assiste no presente momento a um acirramento entre as classes de direita e as de esquerda, tanto do ponto de vista social e político, quanto econômico.
O que se depreende desse antagonismo agudo é que a chamada esquerda representa apenas um eco remoto e distante do que se entende daquele conceito que compõe a dicotomia direita-esquerda.
Afinal! O que a esquerda tem como objetivo? A defesa de um líder “personalista”? E o que esse líder conhece da verdadeira ideologia de esquerda?
Constatou-se de forma extremamente dura, as consequências econômicas do recente governo de esquerda.
Não se conseguiu delinear qualquer linha de política econômica ou metas de ações governamentais que tivessem a mínima identidade com a chamada política de esquerda.
O que se testemunhou de modo deprimente foi a decadência da política como um todo, provocada por gestores ineficientes pari passu com um viés ideológico negativo visando tão somente, as vantagens que poderiam angariar, com o comércio de cargos e funções públicas em instituições tradicionais, como a Petrobrás que sempre teve um histórico de sucesso e hoje se encontra juntando os remendos para poder se reerguer.
Porquanto, a esquerda brasileira esteve longe de seguir minimamente, os valores e princípios que norteiam aquela ideologia.
A busca por uma justa repartição de renda e a obtenção da igualdade ou pelo menos, de uma minimização da desigualdade social esteve longe de ser implementada no último governo.
Tampouco, as políticas micro e macroeconômicas marcaram presença, no sentido de manter ou promover o crescimento econômico. Ao contrário, a sua permanente ausência acentuou as disparidades sociais e provocou incontinenti, uma progressiva e séria recessão econômica, responsável pelo crescente desemprego e diminuição de renda.
O que se constatou indubitavelmente foi um total desprezo das questões econômicas, marginalizando qualquer tipo de política que pudesse ao menos, ser reconhecida como de “esquerda”.
Nessa direção há que se remeter do ponto de vista da doutrina, a uma das principais características que identificam uma política macroeconômica chamada de “esquerda”.
Trata-se especialmente, da função distributiva do Estado e por esta razão seria supostamente de “esquerda”, por privilegiar o objetivo de operacionalizar uma justa repartição de renda, como o meio essencial para se promover o crescimento econômico.
Perfilha-se o caminho inverso do modelo dito “conservador” ou de “direita”, uma vez que este persegue inicialmente, o crescimento econômico para que se tenham recursos suficientes para se repartir a renda.
É sabido de todos a afirmação extremamente criticada de Delfim Neto, ex- Ministro da Fazenda de alguns dos governos militares (1965-1974):
“primeiro é preciso fazer o bolo crescer para depois repartir”.
Por sua vez, o modelo distributivista prefere colocar em prática, políticas públicas voltadas do ponto de vista macroeconômico a dar acesso à população, à educação, saúde, assistência social e previdência social, tendo como pressuposto, o de que, uma pessoa sã e educada está devidamente preparada para entrar no mercado de trabalho, ter a sua renda e num segundo momento, contribuir para a promoção do crescimento econômico.
Porquanto, o pressuposto desse modelo é a redução da desigualdade social e econômica, por meio daquelas políticas.
Longe de tais objetivos, o que se tentou implementar a todo custo foi o fortalecimento do PT, em conjunto com as iguais e pretensas esquerdas de outros países latino-americanos ambicionando o protagonismo de um Partido Único que, seguramente, representaria uma perigosa ditadura de esquerda, aos moldes do que a história mundial já contou.
Para isso, não se pouparam os recursos públicos desviados para o seu atingimento, em conjunto com parcas políticas sociais populistas de um lado e de outro, concessões às classes mais abastadas para a manutenção do poder.
Por sua vez, a chamada “direita” insiste em focar no combate à “esquerda do passado” ressuscitando esqueletos, tal qual a própria “esquerda” que não cansa de remeter o debate para a “ditadura de direita” dos anos 1964-1984 como pressuposto para alçar o seu voo para o poder.
Diante de todo esse contexto, o que se pergunta é: qual é a identidade da direita e da esquerda brasileira?
Ao adentrar na clássica dicotomia “direita-esquerda” há muito o que debater, especialmente, se ainda existem razões suficientemente fortes para se corroborar aquela díade, usando as palavras de Norberto Bobbio.
A divisão entre direita e esquerda adquiriu maior importância, com a Revolução Francesa, quando o universo político se dividiu e deu o passo crucial para o fortalecimento do capitalismo. A partir daí, há numerosas vozes afirmando por meio de Sartre, que aquelas divisões constituem duas caixas vazias.
Bobbio explica aquelas razões. Em primeiro lugar, porque está se vivenciando uma crise das ideologias que nas entrelinhas demonstra mais do que nunca, que os seus defensores vêm perdendo progressivamente o real significado daqueles conceitos.
Ademais, o trade-off entre a busca de igualdade e da liberdade não mais se justifica, embora tenha tido a maior relevância do ponto de vista histórico (a partir da Revolução Francesa), tendo em vista as diferentes roupagens utilizadas em vários países, durante alguns séculos, em que se teve o enfrentamento de regimes ditatoriais de direita e de esquerda, ambos responsáveis pelas restrições radicais dos direitos civis, principalmente o da liberdade e dos direitos sociais.
Partindo do pressuposto de que se tem hoje, a garantia de preservação de um Estado Democrático de Direito exaustivamente previsto nas Constituições, aquele trade-off se torna inócuo.
O importante na caracterização da chamada “direita e “esquerda” ainda se justifica, pela natureza das políticas sociais e econômicas, que, ao serem contrapostas abrem a janela para a defesa de uma ou de outra “ideologia”.
Na verdade, as ideologias constituem um fator determinante do atraso político e econômico de uma Nação, haja visto que, em nome da ideologia, tal como, em nome de uma religião, se cometem atos totalmente atrozes e irracionais.
Cabe citar oportunamente: socialismo, capitalismo, comunismo, fascismo, nazismo, nacionalismo, marxismo, assim como o islamismo, cristianismo, judaísmo e outros…
As ideologias ou “visões ideológicas” pretendem promover mudanças radicais no sistema social, político cultural e econômico, visando a sua total transformação no que diz respeito às pessoas, grupos ou regimes.
Do ponto de vista político, a “direita” teria conquistado os “direitos civis” ou mais especificamente a liberdade de ir e vir, a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei, enquanto a “esquerda” teria lutado pelos “direitos sociais”, como o direito à educação e à saúde, o direito a um trabalho com justa remuneração, até os nossos dias em que se alcançaram os chamados “direitos coletivos (lato sensu)”, cujo exemplo mais relevante remete ao direito a um meio-ambiente saudável, além de outros.
Da mesma forma, conquistaram-se os direitos políticos propriamente ditos, como o direito ao voto, à participação popular inclusive por meio de representantes políticos agrupados em diferentes partidos políticos com o objetivo de satisfazer as demandas reclamadas pela “vontade da maioria”.
Nessa direção, a história registrou o surgimento de diferentes formas de governo, como a república e a monarquia, assim como os sistemas de governo, como o presidencialismo e o parlamentarismo e os regimes ditatoriais e democráticos.
A partir dessas constatações, surgiram outras dicotomias (mais sofisticadas!), como a que se comentou no início desse artigo: direita conservadora ou esquerda progressista, especialmente no contexto norte-americano.
Portanto, a “direita” e a “esquerda” podem ser pretensamente identificadas a partir dos seus programas sociais, políticos e econômicos que se contrapõem, com relação à solução de problemas, uma vez que, os seus pressupostos remetem a uma escala, com diferentes interesses e valores.
Do ponto de vista econômico, a direita conservadora teria afinidades com uma política voltada à livre concorrência e a manutenção do equilíbrio micro e macroeconômico de responsabilidade do mercado. Com isso, o Estado é mínimo, isto é, interviria apenas no que diz respeito às necessidades fundamentais dos cidadãos, como a saúde, educação, justiça e segurança.
A quase-ausência de intervenção do Estado no sistema econômico significa, a princípio, a operacionalização de políticas austeras que privilegiam o rigoroso atendimento ao orçamento fiscal, evitando a todo o custo, o déficit orçamentário.
Nesse sentido, as políticas de cunho social têm pouco protagonismo, relativamente às políticas que visem ao crescimento econômico.
Tais características se harmonizam com o chamado Estado Liberal de Adam Smith (1776), Ricardo, Stuart Mill e outros que deram origem ao Capitalismo pós-Revolução Francesa.
Nos Estados Unidos, a terminologia utilizada para a direita conservadora é o Neoliberalismo, cujos representantes políticos pertencem predominantemente, ao Partido Republicano.
A esquerda progressista americana, representada pelo Partido dos Democratas tenderia para a implementação de políticas sociais afirmativas visando uma justa repartição de renda, relativamente às ações governamentais de caráter estritamente econômico.
As ações governamentais desse modelo podem ser identificadas pela construção de escolas, hospitais, construção de rodovias, as quais venham a contribuir para o aumento do emprego, da renda e finalmente, do consumo e do investimento privado.
Por esta razão, o Estado adquire um maior protagonismo e consequentemente, interfere significativamente no sistema econômico, por meio de expressivos gastos orçamentários que, na maioria das vezes provocam déficits correspondentes àquela forma de intervenção.
É o chamado Estado do bem-estar social, cuja origem remete ao Welfare State colocado em prática nos Estados Unidos, no período, pós-Depressão Econômica de 1929 espalhando-se progressivamente aos demais países americanos e da Europa.
Tratava-se do antigo modelo keynesiano de John Maynard Keynes (economista originalmente monetarista), hoje denominado pós-keynesiano ou neokeynesiano.
Por outro lado, quando se intensifica a intervenção do Estado surge inevitavelmente a forte possibilidade de perda da liberdade individual, sob o pretexto da busca de igualdade. Aí, sim, emerge e se justica novamente o trade-off entre a liberdade e a igualdade, cujo trade-off, o artigo 170 e seguintes da Constituição Federal de 1988 procuram minimizar e levar a um macro equilíbrio óbvio entre o capital e o trabalho humano e por consequência, entre os conflitos da direita e esquerda, tanto do ponto de vista econômico, quanto político.
Finamente, o que se pode depreender de todo esse universo histórico, tanto do ponto de vista estrutural, quanto conjuntural – independentemente do caso brasileiro – é que as ideologias de plantão (esquerda e direita) são as armas utilizadas para a satisfação de objetivos corporativistas de toda a sorte de grupos políticos e sobretudo econômicos nacionais e internacionais, cujas metas constituem “os meios que justificam os fins”, as quais em ambos os casos remetem ao poder acima de tudo e de todos.
Assim, os Poderes Públicos – Executivo, Legislativo e Judiciário por si só caminham inevitavelmente naquela direção, ao aprovarem respectivamente, políticas públicas, criarem legislações e julgarem temas que venham a corroborar aquelas metas e objetivos, mesmo que isoladamente, no seio de cada um daqueles Poderes.
Daí, o surgimento de conflitos institucionais, quando os objetivos e metas de cada Poder Público diferem entre si e provocam o protagonismo de um deles, a depender da sua parcela de poder perante os demais Poderes e consequentemente, o potencial aumento de seu grau de intervenção no sistema político e econômico, o qual adquire nuances positivas ou negativas para o desenvolvimento de uma Nação.
Um claro exemplo nesse sentido é a recente aprovação da Lei de Abuso de Autoridade já aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional (Poder Legislativo) e extremamente criticada pelo Poder Judiciário e pelas demais instituições públicas interessadas, como o Ministério Público e a Polícia, sem olvidar da opinião pública que defende de modo geral, a atuação da Operação Java Jato que aparentemente tenderia a ser prejudicada por alguns dispositivos daquela legislação.
Do mesmo modo, a decisão em caráter monocrático do Presidente do STF, em suspender ações relacionadas às investigações levadas a cabo pela Polícia Federal, Ministério Público e a Receita Federal em conjunto com o Banco Central, sem a devida autorização judicial teriam contrariado a legislação existente sobre o tema (Lei nº 9.613/1998 – Lei de Lavagem de Dinheiro –, além de acarretar críticas incisivas de membros daquelas instituições pertencentes ao Poder Executivo – à exceção do MP que é uma instituição independente – e da sociedade civil em geral.
Independentemente do ativismo daqueles Poderes e especialmente, do ativismo judicial em razão das ideologias que os embalam, o que se percebe claramente é a conveniência daquela união de ideologias (de esquerda e direita) quanto os interesses em jogo são convergentes e denunciam os seus objetivos comuns e não necessariamente éticos e desenvolvimentistas.
O que se torna ainda mais relevante é que a união de ideologias expõe a sua inutilidade e irrelevância, quando os interesses se voltam para questões de real interesse nacional.
A despeito de tais constatações existem alguns exemplos de ideologias de direita ou de esquerda inteligentes que promovem o desenvolvimento em alguns países, como os já citados no presente artigo, sem contar os países tradicionalmente considerados desenvolvidos.
Contudo, o que realmente importa, não são as posições adotadas e sim a solução dos problemas a serem enfrentados por uma sociedade democrática, até porque, as relações atuais, independentemente de serem ou não globalizadas adquirem cada vez maior complexidade, levando a um leque infinito de “convergências” e “divergências” que, dificilmente se enquadram naquelas posições (exclusivamente de direita ou exclusivamente de esquerda!).
Ao contrário, a tendência é que haja uma crescente teia de múltiplas combinações que passam ao largo daquela dicotomia, no sentido de, ora se aproximar da suposta esquerda, ora da suposta direita, a depender da conjuntura política e econômica, cujos problemas demandarão políticas mais conservadoras ou mais progressistas, não representando necessariamente, aquelas posições radicais e até certo ponto, superadas.
E é nessa linha de pensamento que se deve tender para que se possa alcançar o pleno desenvolvimento…
*Advogada constitucionalista
Elio Gaspari || O embaixador Eduardo Bolsonaro
Jair Bolsonaro é um mágico. Baixa o nível do debate dos assuntos públicos, trata de cocô e não discute os 12 milhões de desempregados. É ajudado pela oposição que aceita sua agenda ilusionista. Um bom exemplo desse fenômeno é a qualidade do debate em torno da indicação de seu filho 03 para a embaixada do Brasil em Washington.
É nepotismo? Sem dúvida. O que isso quer dizer? Pouco. O ditador nicaraguense Anastasio Somoza nomeou o genro, Guillermo Sevilla Sacasa para Washington. Um craque, tornou-se decano do Corpo Diplomático e atravessou os mandatos de oito presidentes. O Xá do Irã mandou para os Estados Unidos um cunhado, e Ardeshir Zahedi foi um grande embaixador. As monarquias do Golfo mandam seus filhos para Washington e, com a ajuda do poder de petróleo, eles se desempenham com mais sucesso que outros embaixadores árabes.
Há o nepotismo das ditaduras e há compadrio das democracias. Bill Clinton mandou Jean Kennedy Smith (irmã do falecido presidente) para a embaixada na Irlanda e Barack Obama mandou Caroline Kennedy, (filha de John) para a do Japão. (Uma meteu-se em encrencas, a outra foi irrelevante.) Isso, para não falar de Pamela Harriman, mandada por Clinton para a França. Seu mérito foi ajudá-lo na campanha. Fora disso, foi uma cortesã, mulher do filho de Winston Churchill e colecionadora de milionários, de Averell Harriman a Gianni Agnelli, passando por Ali Khan, Elie de Rothschild e Stavros Niarchos.
Juscelino Kubitschek nomeou Amaral Peixoto embaixador em Washington. Genro de Getulio Vargas, tornara-se um cacique na política nacional. “Alzirão” saiu-se bem no cargo. Como ele, Eduardo Bolsonaro ganhou a embaixada depois de ter chegado ao Congresso pelo voto popular. Amaral Peixoto falava pouco e nunca disse bobagens do tipo “fritei hambúrgueres”.
A indicação do 03 para a embaixada foi aplaudida pelo presidente Donald Trump. Como muita gente não gosta de Trump nem dos Bolsonaros, isso foi visto como um demérito. Na realidade, 03 conseguiu algo que nenhum embaixador brasileiro teve, pois o aplauso do governante do país para onde vai o novo representante é tudo o que se quer. Não se pode ver defeito nessa trumpada. A Inglaterra gostava de saber que John Kennedy era grande amigo do embaixador David Ormsby-Gore. (Mais tarde, ele quase casou com a viúva.) Se Trump perder a reeleição, pode-se trocar o embaixador, zero a zero e bola ao centro.
03 será sabatinado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado. Ali, todos poderão mostrar suas qualificações.
Os senadores perguntando e o deputado respondendo. Afinal, se “diplomacia sem armas é como música sem instrumentos”, ele vai para Washington tocar chocalho. Nepotismo e trumpismo serão aspectos subsidiários. O essencial é o julgamento da relação que papai Bolsonaro quer ter com os Estados Unidos.
Em 2015 o plenário do Senado rejeitou o embaixador Guilherme Patriota, designado por Dilma Rousseff, mas esse resultado teve mais a ver com a fraqueza do governo do que com a capacidade do diplomata. Pamela Harriman foi aprovada por unanimidade na Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, viveu feliz em Paris, teve um derrame na piscina do hotel Ritz e morreu dias depois.
Julianna Sofia || O fantasma do 'shutdown'
No atoleiro fiscal, a receita patina enquanto a máquina administrativa afunda
Embora soasse disparatado, tão logo assumiu-se Posto Ipiranga, o ministro Paulo Guedes (Economia) prometeu zerar o déficit primário (que exclui os juros da dívida) das contas públicas ainda no primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro.
Passados oito meses, não foi que deu ruim —porque todos sabiam se tratar de promessa vã. Apesar dos bilhões esperados com o leilão de excedente do pré-sal, apesar de privatizações no setor elétrico, apesar de estupendos dividendos de estatais, apesar de tudo, para cumprir o feito seriam necessários R$ 140 bilhões em receitas extras, além de uma recuperação econômica vigorosa para melhorar a arrecadação de tributos.
Mas a economia flerta com uma recessão técnica. Passada a fase mais difícil de aprovação no Legislativo, a reforma da Previdência —solução para todos os males!— já foi precificada, mas os investimentos que poderiam estimular a economia não se concretizam. Haverá desconfiança dos donos do dinheiro enquanto durar o “freak show” diário de Bolsonaro nos portões do Alvorada.
No atoleiro fiscal, a receita patina enquanto a máquina administrativa afunda. Em vários setores, há risco de paralisia na prestação de serviços. Bolsas do CNPq foram suspensas e 84 mil pesquisadores podem ficar sem receber já em setembro. A emissão de passaportes na Polícia Federal será afetada se não forem desbloqueados R$ 61 milhões do valor previsto para este ano. Construtoras do Minha Casa, Minha Vida reclamam de R$ 470 milhões em atraso.
Desde 2014, todos os anos o fantasma do “shutdown” ronda a Esplanada em agosto. “Os ministros estão apavorados, estamos aqui tentando sobreviver no corrente ano. (...) Não é maldade da minha parte. Não tem dinheiro, só isso”, disse o presidente.
O Orçamento de 2019 foi herdado de Michel Temer. O próximo será 100% de Bolsonaro. A má notícia é que as amarras do teto de gastos e o aumento das despesas obrigatórias comprimirão ainda mais o custeio e o investimento. A assombração voltará a aterrorizar em 2020
Roberto Simon || A derrota do pragmatismo
Brasil e Argentina avançam rumo à pior crise bilateral em décadas
Com o colapso da candidatura de Mauricio Macri na eleição primária argentina do domingo, o governo Jair Bolsonaro topou com uma encruzilhada. De um lado, abriu-se o caminho do pragmatismo. Nele, o presidente se distanciaria de Macri e daria o benefício da dúvida à chapa Alberto Fernández-Cristina Kirchner. Mais ainda, o Brasil tentaria ampliar os incentivos para que Fernández se afaste do receituário kirchnerista.
Por exemplo, Brasília poderia defender publicamente a viabilidade do acordo Mercosul-UE, mesmo com a mudança no poder em Buenos Aires. Ou, privadamente, oferecer-se como facilitador do diálogo com o governo Donald Trump, caso Fernández dê uma guinada ao centro.
Na segunda-feira, já ficara claro que enveredávamos por outra rota. De um palanque em Pelotas, o presidente profetizou que o Rio Grande do Sul seria uma “nova Roraima”, tomado por refugiados argentinos, com a vitória da “esquerdalha”.
Na quarta, enquanto Macri parecia jogar a toalha na Argentina, Bolsonaro avançou no confronto aberto. Falando de improviso no Piauí, referiu-se aos prováveis novos governantes como “bandidos de esquerda”.
Não é difícil adivinhar o que nos aguarda no fim desse caminho: a pior crise entre Brasil e Argentina desde os anos 1980, quando as duas ditaduras iniciaram um processo de aproximação estratégica, o qual foi elevado a um patamar econômico e político inédito após as respectivas transições democráticas.
Há dois meses, ao visitar a Casa Rosada, Bolsonaro já havia declarado apoio a Macri na disputa —uma quebra de protocolo sem precedentes na história recente da diplomacia brasileira, feita também com Trump na Casa Branca. Mas o caminho da guerra ideológica não estava traçado de antemão.
No caso da China, por exemplo, o governo Bolsonaro claramente abandonou a retórica de campanha em benefício dos laços comerciais e de oportunidades de investimento. A ala militar do governo, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, e o Ministério da Economia persuadiram o presidente a recuar. Em outubro, Bolsonaro chega a Pequim com uma relação bilateral razoavelmente preservada.
Com a Argentina, conter a cruzada ideológica bolsonarista é mais difícil. Nos discursos dessa semana, Bolsonaro repetidamente citou os laços do kirchnerismo com PT, Chávez, Maduro e Fidel. O mito do Foro de São Paulo é muito mais poderoso no imaginário do bolsonarismo do que a suposta ameaça chinesa.
Ainda assim, a alternativa pragmática foi sempre uma possibilidade. O boliviano Evo Morales, afinal, esteve na posse de Bolsonaro e disputará, como favorito, sua reeleição na semana anterior ao primeiro turno na Argentina. O governo brasileiro não toca no assunto, e as relações Brasília-La Paz vão bem, obrigado.
Falta vontade ou poder —ou ambos— para generais e economistas conterem o presidente. “Quando o Brasil precisou da Argentina para crescer?”, cutucou Paulo Guedes. Fontes do governo disseminam na imprensa que o Brasil deixará, de facto ou de jure, o Mercosul se a Argentina se “rekirchnerizar”.
Entre promessas de diálogo com o FMI e críticas à Venezuela, Fernández passou a semana enviando sinais calculados. Sobre os ataques vindos de Brasília, decretou: “Não vou mais responder ao Bolsonaro, porque a união com o Brasil é muito mais importante do que Bolsonaro”. É o caminho do pragmatismo, saindo de Buenos Aires.
*Roberto Simon é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
Demétrio Magnoli || Consequências econômicas do sr. Trump
Sob o fetiche do déficit, o governo dos EUA empurra o mundo para o abismo
Não foi Donald Trump, mas Barack Obama, que encerrou quase meio século da parceria informal entre EUA e China articulada por Richard Nixon em 1972.
A cisão era inevitável: um fruto do fim da Guerra Fria e da ascensão chinesa à condição de potência global.
Contudo, Trump conduziu a rivalidade estratégica ao campo da guerra comercial e, diante da resistência chinesa, ameaça deflagrar uma guerra cambial.
Há 90 anos, uma corrida ao fundo do poço da mesma natureza desaguou na Grande Depressão.
Se Trump não fosse o Tariff Man, como se intitulou, formaria uma extensa aliança de potências para obrigar a China a desviar-se da prática de violações da propriedade intelectual das empresas estrangeiras que operam em seu território.
Mas, inspirado por assessores como Peter Navarro e Robert Lighthizer, o presidente americano segue a estrela do nacionalismo econômico primitivo.
Nessa moldura, o déficit no intercâmbio de bens, um espelho da pujança econômica dos EUA, converte-se no mal a ser erradicado. Sob o fetiche do déficit, seu governo empurra o mundo para o abismo de uma recessão geral.
A guerra comercial diminui a renda de americanos e chineses. Na ponta dos EUA, as tarifas impostas sobre produtos chineses equivalem a um forte aumento de tributação sobre os consumidores.
Na ponta da China, reduzem as taxas de crescimento econômico, provocando desvalorização da moeda.
Mas, por fatores políticos, não se concretiza a expectativa racional de um acordo de paz comercial.
Trump segue obcecado com o déficit e aposta nos dividendos eleitorais do confronto com o “inimigo externo”.
Xi Jinping não pode retroceder sem macular a imagem de líder inconteste, “o segundo Mao”, elaborada para entronizá-lo como presidente eterno, especialmente no momento em que enfrenta o desafio da revolta em Hong Kong.
“Guerras comerciais são fáceis para vencer”. A resistência chinesa, expressa em restrições às importações de produtos agrícolas americanos, transforma a declaração original de Trump num espectro que o atormenta. Diante do fracasso da ofensiva tarifária, seu governo deixa-se seduzir pela tentação da escalada rumo à guerra cambial.
Depois de qualificar a China como “manipulador cambial”, a Casa Branca pressiona o Fed (banco central dos EUA) a desvalorizar o dólar, às custas de brusca redução dos juros e, talvez, da compra em massa de moeda chinesa.
Se o Fed ceder, tornando-se um utensílio das políticas presidenciais, manchará a credibilidade dos mercados de capitais dos EUA e da própria moeda do mundo.
A China manipulou o câmbio, mas apenas até 2010. De lá para cá, pelo contrário, o governo chinês promoveu a apreciação do renminbi, a fim de atrair investimentos.
A decisão recente de permitir a desvalorização para além da fronteira simbólica de sete iuans por dólar é consistente com a retração das taxas de crescimento chinesas.
Ela suaviza os efeitos das tarifas de Trump e impede uma redução significativa do déficit americano. Mas, sobretudo, prepara a economia da China para uma guerra comercial prolongada.
A hipotética elevação do conflito ao patamar de guerra cambial destruiria o já frágil equilíbrio da economia global. A moeda chinesa experimentaria novas desvalorizações e, refletindo as baixas taxas de crescimento na Europa, o euro seguiria pelo mesmo caminho, numa espiral de contração irresistível.
O sistema internacional das economias abertas criado no pós-guerra sucumbiria à pulsão nacionalista da maior potência mundial.
A tormenta pega o Brasil no contrapé. “Cada vez mais apaixonado por Trump”, o governo Bolsonaro sabota nossa rede multidirecional de relações externas, hostilizando a União Europeia, a China, a Argentina, o Irã e os países árabes. Na hora da guerra econômica total, corremos voluntariamente o risco de figurar no registro das “baixas colaterais”.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Bruno Boghossian: Guedes se apressa e já encara risco de crise como uma marolinha
No jet ski desgovernado de Bolsonaro, ministro age de maneira pouco pragmática
Um ministro da Economia que não exagera nas doses de confiança certamente está no emprego errado. Paulo Guedes disse numa palestra para investidores que o Brasil não tem motivos para se preocupar com as turbulências na Argentina e com a desaceleração em alguns dos principais países do mundo.
“Não tenho receio nem do balancê da Argentina, nem dessa briga comercial. Não tenho receio de ser engolido pela dinâmica internacional”, afirmou. “O mundo estava acelerado, e a gente estava descendo. Se o mundo desacelerar, tudo bem.”
Guedes tentou convencer a plateia de que os planos do governo Jair Bolsonaro serão suficientes para blindar o país de qualquer alvoroço no mercado internacional. Já enxergou uma marolinha numa crise que mal começou a se desenhar.
Em 2008, quando o colapso imobiliário americano ameaçava se espalhar pelo mundo, o então presidente Lula se saiu como um bom animador de auditório: “Lá, ela é um tsunami. Aqui, se ela chegar, vai chegar uma marolinha que não dá nem para esquiar”. Sua equipe adotou medidas para absorver os choques. O país pagou a conta anos depois.
Desta vez, o Brasil tem menos opções dessa natureza para fazer frente a um esfriamento da economia global, mas o ministro encara os riscos de uma maneira pouco pragmática.
No caso dos argentinos, Guedes decidiu montar na garupa do jet ski desgovernado de Bolsonaro para enfrentar a onda. Fez pouco caso do comércio com o país vizinho e perguntou: “Desde quando o Brasil, para crescer, precisou da Argentina?”
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O país é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Exportadores de automóveis e calçados já começam a sentir o balancê por aqui. Nem Eduardo Bolsonaro conseguirá convencer os EUA a comprar o que ficar encalhado nesses estoques.
O ministro tem razão quando questiona a eficiência do Mercosul caso a chapa de Cristina Kirchner vença a eleição no país e feche a economia, mas também ecoa o que há de pior no discurso ideológico de seu chefe.
Bruno Boghossian || Plano do governo para mudar Receita e Coaf reflete oportunismo
Aliança entre Planalto e STF contra abusos acelera esforço para estancar a sangria
O ex-senador Romero Jucá deve estar com inveja. Em poucos meses, o novo governo pôs de pé um pacote para estancar a sangria e redefinir a atuação de órgãos encarregados de fiscalizar atividades financeiras. A ideia ganhou velocidade rara depois que os farejadores se aproximaram da família do presidente e de outras autoridades.
Nas últimas semanas, o ministro Paulo Guedes anunciou a intenção de fatiar a Receita Federal e mudar a estrutura do Coaf —que produz relatórios sobre movimentações suspeitas de dinheiro. O objetivo declarado é limitar a influência política sobre as duas entidades e reduzir sua autonomia para evitar abusos.
Não foram poucas as ocasiões recentes em que órgãos de fiscalização ultrapassaram as fronteiras da lei, mas o movimento de reforma, por enquanto, cheira a oportunismo.
A atuação do Coaf e da Receita tem sido alvo de críticas justas das figuras mais poderosas da cena política. A insatisfação parece ter criado entre os personagens dispostos a frear esses excessos uma aliança incomum —com o Supremo, com tudo.
A decisão do ministro Dias Toffoli de suspender investigações baseadas em relatórios detalhados do Coaf, a pedido da defesa de Flávio Bolsonaro, lançou a primeira ponte. O freio nos inquéritos deu respaldo à articulação do governo para fazer mudanças no funcionamento do órgão, especialmente depois que o presidente do conselho criticou o despacho de Toffoli.
O STF abriu mais um caminho ao mandar interromper apurações da Receita sobre movimentações financeiras de ministros do tribunal. Em pouco tempo, a equipe de Bolsonaro começou a esboçar um novo organograma para a entidade, a fim de circunscrever seus trabalhos.
A atuação ilegal de alguns auditores e servidores explica a reação, mas ela já nasce contaminada pelas circunstâncias políticas. Mudando algumas letras de lugar, o redesenho institucional pode muito bem se transformar num projeto de esvaziamento das estruturas de controle.
Ruy Castro: Fezes na cabeça
Bolsonaro estava ficando repetitivo, só pensando em cocô. Mas isso agora pode mudar
Andei pensando em demitir Bolsonaro desta coluna. O papel em que ela é impressa não tem a gramatura necessária para absorver as lambanças que lhe saem pela boca. Além disso, o jornal é um objeto que entra nas casas de família e costuma ser lido ao café da manhã. Não pega bem ficar citando um elemento que, depois de recomendar lavar o pênis com água e sabão, como fez há tempos, acaba de sugerir que se faça cocô dia sim, dia não. Como Bolsonaro só fala para seus eleitores, esta deve ser a ideia que ele faz deles —gente que não sabe se cuidar direito.
É preciso também considerar as crianças. Um jornal pode ser distraidamente deixado aberto, em cima da mesa, ao alcance delas —e quem pode prever as consequências da exposição de uma frase de Bolsonaro a uma criança? Você dirá que ele está à solta na televisão e as crianças podem vê-lo sem querer. É verdade, mas, nesse caso, cabe aos pais retirá-las da sala quando farejarem que ele vai aparecer.
É uma prerrogativa dos colunistas escolher sobre quem desejam escrever. Seja como for, o critério deve ser sempre jornalístico. E Bolsonaro há muito deixou de oferecer surpresa. Pode-se apostar que, todo dia, irá disparar suas barbaridades, mas contra os alvos de sempre: a Amazônia, as reservas indígenas, os direitos humanos, o desarmamento, a imprensa. E está ficando repetitivo —depois do cocô dia sim, dia não, veio agora com o cocô petrificado. Fezes não saem de sua mente. Já me perguntei: por que ele não faz algo realmente radical e tira as calças pela cabeça na frente de um general?
Mas, agora, podemos ter novidades. Em nome de um nacionalismo ardiloso e velhaco, Bolsonaro começou a insultar certos países estrangeiros. Uma coisa é bater numa árvore —a árvore não bate de volta. Outra coisa é falar grosso com a Europa.
Principalmente porque a resposta desses países é o talão de cheques.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Bruno Boghossian: Bolsonaro não consegue conviver com os contrapesos da democracia
Governo deturpa conceito de democracia ao tentar impor sua agenda ideológica
Jair Bolsonaro finge que não entendeu ainda o papel de um governo. Fazendo festa para o público evangélico da Marcha para Jesus, no fim de semana, ele disse que não tem preconceitos e não discrimina ninguém, mas avisou que “as leis existem para proteger as maiorias”.
O presidente fazia uma defesa explícita da pauta conservadora para frear as chances de expansão dos direitos das minorias. “É a única maneira que temos para viver em harmonia”, acrescentou. “O que minoria faz, sem prejudicar a maioria, vai ser feliz. Não podemos admitir leis que firam nossos princípios.”
Bolsonaro sabe que as leis existem para garantir os direitos de todos os cidadãos, não de grupos majoritários. Ainda assim, ele prefere fermentar um conceito deturpado de democracia para impor sua agenda ideológica, receber aplausos de seu eleitorado e expandir seus poderes.
O apelo ao desejo da maioria faz parte do livro dos governantes autoritários. Eles agem como se as vontades dominantes numa sociedade fossem uma justificativa para ultrapassar os limites da lei ou retirar direitos de grupos menores.
É verdade que o processo democrático, em geral, é baseado na manifestação da maioria. Ele traz consigo, porém, a garantia de que todos os cidadãos devem ter acesso a liberdades individuais e aos serviços que são desempenhados pelo Estado.
Se o raciocínio da maioria fosse mesmo absoluto, Bolsonaro deveria defender as invasões de terra. A propriedade privada é um direito que pode ser descrito como uma salvaguarda para elites minoritárias.
A mesma lógica parece pautar o filtro político que o governo quer fazer no cinema. Na semana passada, o porta-voz do Planalto disse que os filmes financiados pela Ancine deveriam estar alinhados a um “sentimento cristão”, que seria o “sentimento da maioria da sociedade”.
Como se vê, o plano não é incentivar uma diversidade que represente cada vez mais brasileiros. A ideia é usar o argumento para a aniquilar o que parece incomodar Bolsonaro.
Elio Gaspari: A falta que faz um chanceler
A declaração de Jair Bolsonaro de que a derrota de Mauricio Macri na prévia eleitoral argentina pode significar uma vitória da “esquerdalha” de Dilma Rousseff, Hugo Chávez e Fidel Castro foi coisa inédita, assombrosa. Ele pode achar o que quiser, mas não tem mandato para meter o Brasil numa disputa eleitoral argentina. Falando de questões internas, pode se intitular “Capitão Motosserra” ou expor sua teoria da relação do meio ambiente com o cocô. Bolsonaro é assim e, sem dúvida, prefere ver os brasileiros discutindo cocô, em vez do cheiro de uma recessão na economia.
Bolsonaro não gosta dos governos civis que o antecederam. Tudo bem. Ficando-se com os exemplos que lhe deixaram os militares, salta aos olhos uma lição: falta-lhe um chanceler ou, pelo menos, um ministro das Relações Exteriores com as qualidades profissionais de Mario Gibson Barboza (governo Médici), Azeredo da Silveira (Geisel) e Saraiva Guerreiro (Figueiredo). Os três descascaram abacaxis nas relações com a Argentina sem criar atritos. Graças aos dois primeiros, conseguiu-se negociar em relativa harmonia a construção da Hidrelétrica de Itaipu.
Médici aguentou um desaforo do general presidente Agustín Lanusse. Numa visita a Brasília, ele enfiou um caco no discurso que fez no Itamaraty, e sua comitiva chegou à grosseria de cortar do comunicado conjunto uma referência à “inquebrantável amizade” dos dois países. Na costura da calma estava Mario Gibson.
Lanusse foi substituído pelo demagogo larápio Juan Perón. Tinha tudo para acabar em encrenca. Ele vivia exilado na Espanha. Em 1964, tentou descer na Argentina mas foi barrado pelo governo brasileiro no aeroporto de Galeão e teve que voar de volta. Ainda por cima, era amigo do presidente deposto João Goulart e assumiu criando dificuldades para a construção de Itaipu. O general Ernesto Geisel detestava-o e disse ao embaixador brasileiro em Buenos Aires, Azeredo da Silveira, que não negociaria “com quem está de má-fé, sem honestidade de propósitos”.
O diplomata não havia sido convidado para o ministério e sabia que estava numa sabatina, mas disse ao general: “Mesmo assim, é preciso negociar”. Geisel negociou.
Perón morreu sem que a ditadura brasileira encrencasse com seu governo ou com o de sua substituta, a vice Isabelita, uma ex-dançarina de cabaré panamenho.
Coube a Saraiva Guerreiro, o chanceler de João Figueiredo, o melhor lance da diplomacia dos generais com a Argentina. Em 1982, ela era presidida pelo general Leopoldo Galtieri, um cavalariano chegado ao topo, que mantinha boas relações com Figueiredo. Em 1982, com a popularidade em baixa, Galtieri resolveu invadir a possessão britânica das Ilhas Malvinas. Se dependesse de Figueiredo e dos militares que o cercavam, o Brasil ficaria do lado da Argentina.
Coube a Guerreiro tomar distância. Não podia ficar perto da maluquice de Galtieri, mas também não podia se aproximar da inevitável vitória dos ingleses. Algo como tirar a meia sem descalçar o sapato, e Guerreiro conseguiu.
(Meses depois, a diplomacia brasileira conduziu uma gestão para que os ingleses devolvessem o capitão Alfredo Astiz, que se rendeu nas Malvinas. Tremenda sorte a de Astiz, pois recebeu o tratamento que merecem os soldados. Ele havia sido um dos maiores assassinos da ditadura militar argentina que sucedeu a Isabelita Perón. Era apelidado de Anjo Ruivo da Morte. Está na cadeia.)
Médici, Geisel e Figueiredo tinham suas opiniões, mas sabiam que na Presidência deviam ouvir os profissionais. Por sorte, tiveram Gibson, Silveira e Guerreiro.
Leandro Colon: Paciente do SUS não pode ser tratado como mané
Episódio envolvendo avó de primeira-dama deveria servir para cair a ficha de Bolsonaro
Dados compilados pela Folha e divulgados neste domingo (11) mostram uma piora nos indicadores de saúde nos primeiros seis meses do governo de Jair Bolsonaro.
As informações integram um robusto levantamento sobre outras áreas. No caso específico da saúde no país, identifica-se um agravamento, por exemplo, na oferta de assistência básica, porta de entrada do SUS.
Na avaliação de especialistas, um dos fatores que levam a esse cenário tem vínculo com o desmonte do programa Mais Médicos. Houve ainda uma redução no número de agentes comunitários que fazem o atendimento casa a casa do cidadão.
Seria injusto e equivocado debitar da conta de Bolsonaro os problemas enfrentados pelo SUS. Nenhum governo até hoje conseguiu diminuir a sobrecarga do sistema público nem encontrar caminhos para que o atendimento às pessoas seja justo, rápido e de qualidade.
A 37 km do Palácio do Alvorada, o Hospital Regional de Ceilândia já virou um modelo de caos, falta de estrutura e descaso com os pacientes. Em maio, o Ministério Público do DF fez uma visita e identificou superlotação, cadeiras usadas como leito, pacientes espalhados pelos corredores e ausência de equipamentos.
No sábado (10), o repórter Daniel Carvalho encontrou a aposentada Maria Aparecida Firmino Ferreira, 78, deitada havia dois dias em uma maca em um corredor (lotado de pacientes) do hospital de Ceilândia à espera de cirurgia após sofrer fratura.
Maria Aparecida é avó da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Minutos depois de a reportagem procurar o governo do DF, ela foi transferida a um hospital de melhor estrutura para que fosse, enfim, operada.
A aposentada não poderia furar fila só pelo fato de ser avó da primeira-dama. Assim como também pouco importa a relação que teve ou tem com a neta e mulher do presidente.
O episódio deveria servir para Bolsonaro entender que sua verborragia diária cansou. Há prioridades urgentes. O paciente do SUS não aguenta mais ser tratado como um mané.