Folha de S. Paulo
Leandro Colon: Os recados da pesquisa ao governo Bolsonaro
Datafolha indica que a escalada retórica do presidente tem afugentado boa parte dos que votaram nele
A nova pesquisa do Datafolha mostra que não tem agradado aos brasileiros a estratégia de governar de Bolsonaro ou a falta dela —se é que inexiste, como já declarou o presidente ("sou assim mesmo").
Foram oito meses até hoje, 16% do mandato. Tempo de sobra tem Bolsonaro para reverter a opinião dos eleitores, embora não haja pista de que ele esteja preocupado com isso.
A pesquisa indica que a escalada retórica do presidente tem afugentado boa parte dos que apertaram o botão para varrer o PT em 2018.
O Nordeste deu sinal de que reprovou o episódio dos "paraíbas", em que Bolsonaro foi flagrado em vídeo criticando governadores da região.
De acordo com a pesquisa, subiu de 41% para 52% o índice de avaliação ruim e péssima feita pelos nordestinos sobre o governo atual.
É um crescimento bem acima da margem de erro. Não há como contemporizá-lo. De nada adiantou o pano quente que o presidente tentou botar para amenizar a crise gerada. O recado foi dado pela população.
Recado também passado em relação às queimadas. O bate-boca com o francês Emmanuel Macron não trouxe ganhos a Bolsonaro. Para 51% dos entrevistados, a condução para combater o desmatamento e as queimadas é péssima ou ruim.
E 75% avaliam que é legítimo o interesse externo na Amazônia. Esse discurso de soberania, de que a Amazônia é do Brasil, não tem colado.
Outro dado sintomático: subiu de 25% para 32% o percentual dos que consideram que o presidente não tem se comportado de acordo com o cargo que ocupa desde janeiro.
De repente, Bolsonaro passou a atacar João Doria e Luciano Huck, potenciais obstáculos no eleitorado de direita a seu desejo de reeleição. Ao mesmo tempo mina os tentáculos de Sergio Moro (Justiça), sempre ventilado como presidenciável.
É difícil acreditar que os gestos contra os três não sejam calculados. A questão é simples: a pesquisa deveria servir para Bolsonaro entender que, se deseja ter chances em 2022, terá de repensar o que fez até aqui.
Bruno Boghossian: Economia vacilante infla aborrecimento da população com governo
Recuperação leva tempo, mas Bolsonaro deve prestar mais atenção no desânimo das ruas
O governo não vai demorar a perceber que planilhas mexem pouco com os humores fora dos gabinetes. Jair Bolsonaro cobrou paciência e reclamou de má vontade da imprensa ao comentar os números que mostraram que o país escapou de mais uma recessão. O presidente deveria olhar pela janela do Planalto com mais frequência.
Bolsonaro tem razão ao dizer que a recuperação do PIB é um movimento que leva tempo, "igual a um transatlântico". A economia vacilante e o desemprego resistente, no entanto, cobram um preço político até de mandatários iniciantes.
A popularidade em queda do presidente reflete seus despautérios em série, mas é especialmente sensível às percepções do povo sobre o próprio bolso. Ainda que anos recentes tenham terminado em ruína absoluta, só 24% dos brasileiros acham que a economia está melhor agora do que em governos anteriores.
A pesquisa CNT/MDA de agosto marca esse aborrecimento da população. Para 45% dos entrevistados, a situação econômica é igual à dos últimos anos, e 28% dizem que é pior.
É evidente que o governo respira aliviado com o PIB no azul, mas precisa estar atento aos sinais crescentes de desânimo. Quase todo mundo já percebeu que não há fôlego para uma virada neste ano. Entre os entrevistados, 23% acham que o tempo bom vem em 2020. Outros 24% esperam números melhores em 2021, e 29% são pessimistas irrecuperáveis.
A lentidão na recuperação da economia começa a ficar presente no dia a dia das pessoas --e não por culpa das manchetes de jornais. Quando Bolsonaro completou um mês de governo, 24% dos brasileiros diziam que o desemprego era seu maior desafio. Agora, esse índice é de 44%.
O presidente disse que ainda espera um crescimento leve nos próximos meses. "Quem diz são os economistas, não sou eu, porque eu não entendo nada de economia", ressaltou. Bolsonaro entregou a carta náutica à sua equipe, mas o capitão do transatlântico é ele. Se a tormenta piorar, não poderá abandonar o navio.
Elio Gaspari: O inferno de Moro, uma tragédia brasileira
Ministro é hoje uma fritura ambulante. Fritam-no (ou frita-se) no Planalto, no Congresso e no Judiciário
Quando decidiu largar a toga, trocando o altar da Lava-Jato pelo serpentário de Brasília, Sergio Moro fez uma escolha arriscada. Ele havia se tornado um símbolo da luta contra a corrupção, mandando para a cadeia gente convencida de que aquilo era lugar de preto e de pobre. Na última quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro chamou-o de “patrimônio nacional”, mas Moro e as paredes do Planalto sabem que há poucas semanas ele o chamava de outra coisa. Quem já fritou um bife sabe que é preciso virar a carne, para não queimá-la. Moro é hoje uma fritura ambulante. Fritam-no (ou frita-se) no Planalto, no Congresso e no Judiciário.
Há dois anos ele seria um forte candidato na disputa pela Presidência da República. Essa viagem do paraíso ao inferno é uma tragédia brasileira que aponta para algo maior que ele. Mostra os vícios de soberba inerente à ideia do “faço-porque-posso”. Em 2004, antes de se tornar famoso, o juiz Sergio Moro escreveu um artigo sobre a Operação Mãos Limpas italiana e disse o seguinte:
“Os responsáveis pela Operação Mani Pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. (...) A investigação da ‘Mani Pulite’ vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no ‘L’Expresso’, no ‘La Repubblica’ e outros jornais e revistas simpatizantes. (...) Os vazamentos serviram a um propósito útil.”
Moro e os procuradores da Lava-Jato repetiram a mágica. Agora queixam-se de vazamentos, e o ministro da Justiça lastimou que seus projetos “não têm tido a necessária exposição na imprensa”.
O doutor não percebeu a mudança climática a que se submeteu trocando Curitiba por Brasília. Era um juiz que encarnava o combate à roubalheira e, junto com os procuradores, era também a melhor fonte de notícias. Afinal, era preferível ouvir Moro ou Deltan Dallagnol a dar crédito às patranhas virginais de empreiteiros ou de comissários petistas. Moro, Dallagnol e os procuradores sempre souberam que seus serviços seriam avaliados nas cortes superiores de Brasília. Confiaram numa inimputabilidade que lhes seria concedida pela opinião pública, até que vieram as revelações do The Intercept Brasil e, acima de tudo, a decisão do Supremo Tribunal Federal que anulou a sentença de 11 anos de prisão imposta a Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil.
Os inimigos do procurador Dallagnol acusavam-no de manipular a fama com palestras bem remuneradas, mas ninguém seria capaz de supor que de 20 palestras vendidas entre fevereiro de 2017 e fevereiro de 2019, cinco fossem patrocinadas pelo plano de saúde Unimed, com um tíquete médio de R$ 32 mil. Em setembro de 2018 o procurador queria ir à Bahia e perguntou a uma agenciadora: “Será que a Unimed Salvador não quer me contratar para uma palestra na semana de 24 de setembro?” (A Lava-Jato passou ao largo dos planos de saúde.)
Dallagnol fez o que achava que podia fazer. Desde o aparecimento das mensagens obtidas pelo Intercept, os procuradores da Lava-Jato e Sergio Moro encastelaram-se numa defesa suicida de silêncio e negação. Danificaram a alma da Lava-Jato com a soberba do encastelamento que levou as empreiteiras e os comissários do PT à ruína e à cadeia.
Para Moro, a conta do “faço-porque-posso” veio na semana passada, com a decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.
Alberto Toron estava certo
No dia 19 de janeiro de 2018 o advogado Alberto Toron, defensor de Aldemir Bendine, encaminhou ao então juiz Sergio Moro um pedido para que seu cliente apresentasse seus argumentos finais depois de conhecer os memoriais de Marcelo Odebrecht e de outros colaboradores que o acusavam de receber propinas.
Toron argumentava que eles eram réus, mas haviam se transformado em acusadores, em situação que “se assemelha ao papel de um assistente do Ministério Público”. Quatro dias depois, Moro negou o pedido. Pouco custava aceitá-lo. Sua decisão foi ratificada em duas instâncias superiores, até que na semana passada, por três votos contra um, a Segunda Turma do STF anulou a sentença de Moro que condenou Bendine a 11 anos de prisão, por ter cerceado sua defesa. Talvez o resultado fosse, quatro a um, se o ministro Celso de Mello estivesse na sessão.
Vale a pena voltar no tempo. Na véspera do pedido de Toron, dois procuradores da Lava-Jato discutiam o projeto de colaboração do ex-ministro Antonio Palocci e achavam que ele estava enrolando. Um deles cravou: “Pensamos numa entrevista com o candidato, colocando de modo claro que ou ele melhora, ou vai cumprir pena.”
Moro rebarbou o pedido de Toron no dia 23. Dois dias depois os procuradores da Lava-Jato romperam as negociações com Palocci, que começou a negociar uma colaboração com a Polícia Federal.
Uma coisa nada teve a ver com a outra, mas ambas tiveram a ver com o “faço-porque-posso”. Moro achou que podia, assim como Palocci achou que podia oferecer sua colaboração à Polícia Federal. Conseguiu, e em abril fechou seu acordo com a PF. Daí em diante, num ano eleitoral, as revelações de Palocci começaram a vazar.
Os dois “faço-porque-posso” encontraram-se no dia 1º de outubro, seis dias antes da realização do primeiro turno da eleição presidencial, quando Sergio Moro divulgou o teor de um anexo da confissão de Antonio Palocci à PF. Como logo disse uma procuradora, “o acordo é um lixo”, mas teve eficácia eleitoral. Moro fez porque podia.
Semanas depois Jair Bolsonaro foi eleito, e Moro aceitou o convite para o Ministério da Justiça. (Segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, o primeiro “contato” da equipe de Bolsonaro com Moro ocorreu antes de segundo turno.)
Achavam, mas não podiam.
A PF e a pf
O presidente Bolsonaro pode não ter gostado da ação do Coaf acusando a bizarrice na movimentação financeira de seu filho Flávio e de seu amigo Fabrício Queiroz.
Tudo bem, mas seu entorno gostou de ter recebido a informação de que Queiroz estava sendo investigado. Essa informação teria vindo de uma voz amiga da Polícia Federal.
Graças a esse aviso, Queiroz pediu demissão do cargo que ocupava no gabinete do deputado Flávio Bolsonaro, uma semana antes do primeiro turno da eleição do ano passado. Por coincidência, no mesmo dia, Nathália, a filha de Queiroz, foi afastada do gabinete do próprio Jair Bolsonaro na Câmara.
Agrotrogloditas
Os agrotrogloditas do andar de cima conseguiram o impossível: estimulando seus próprios instintos e os dos piromaníacos da Amazônia, impuseram ao setor uma encrenca internacional que custará centenas de milhões de dólares.
Rodrigues Alves
Bolsonaro repete que quem manda no governo é ele. Faria bem se refletisse sobre o que dizia o grande presidente Rodrigues Alves (1902-1906):
Meus ministros fazem tudo o que eles querem, menos o que eu não quero que eles façam.
Demétrio Magnoli: Soldados de Caxias
Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas
“Os governos imperialistas aproveitam a crise para lançar uma ofensiva em torno da questão ambiental para atacar a soberania nacional brasileira. Aos incautos que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem: os soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos para repelir qualquer tipo de ameaça.”
Quem escreveu isso? Assim, ninguém. A primeira frase é do Partido da Causa Operária, um grupúsculo de ultraesquerda (e, nela, depois da “crise”, aparece um “criada por Bolsonaro”).
Já a segunda é do general Edson Pujol, comandante do Exército, na Ordem do Dia lida no último dia 23. Mas as duas ficam bem juntas, abraçadas no ninho do nacionalismo. A nação, ensinou Benedict Anderson, é uma “comunidade imaginada”. O patriotismo nacionalista, registrou Samuel Johnson, é “o último refúgio dos canalhas”.
A invocação da soberania nacional é o refúgio clássico de governantes quando estrangeiros apontam rupturas dos compromissos internacionais assumidos pelo país, desrespeito às leis nacionais ou violações dos direitos dos cidadãos. Os canalhas perfilam-se à sombra da bandeira sempre que emergem temas diplomáticos globais, como as políticas ambientais e os direitos humanos. Nessas horas, a extrema direita e a esquerda tradicional revelam suas notáveis semelhanças. Então, uns e outros começam a empregar as palavras “imperialismo” e “colonialismo”.
Jimmy Carter assumiu a Presidência dos EUA em 1977 e lançou sua política de direitos humanos, afastando Washington das ditaduras militares do Cone Sul. Ernesto Geisel reagiu rompendo o acordo militar bilateral para “não sujeitar o Brasil à interferência externa”. O general Gregório Álvarez, homem-forte da ditadura uruguaia, tentou costurar um pacto com o Brasil para resistir à “subversão comunista” e ao “desrespeito dos EUA à soberania” dos dois países. Eles só não aplicaram o rótulo de “comunista” a Carter para reservar o espetáculo do ridículo à extrema direita bolsonarista.
A guerra de verdade toma, eventualmente, o lugar da guerra retórica. Leopoldo Galtieri deflagrou a Guerra das Malvinas, em 1982, para unir a Argentina em torno de uma sangrenta ditadura que submergia. “As Malvinas são argentinas —e os desaparecidos também.” A resposta da oposição evidenciou o dilema da esquerda, incapaz de se desvencilhar de seu discurso ritual anti-imperialista. No fim, a ditadura desabou —mas como resultado da humilhação militar.
Soldados de Caxias, soldados de Bolívar. O hino da “luta contra o imperialismo” acompanha as prisões e a tortura na Venezuela chavista. “Esses bandidos vão lá e falam mal do país e ganham milhares de dólares”: Nicolás Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Jair Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas. ONGs formam um universo heterogêneo, multifacetado. Mas, na retórica compartilhada pelo nacionalismo autoritário de direita e de esquerda, todas são agentes do “inimigo externo” pois podem representar contrapontos ao poder estatal.
No G7, com o plano de ajuda para combate a incêndios e reflorestamento, Emmanuel Macron deu um xeque ao rei, prendendo Bolsonaro no canto do tabuleiro diplomático. Depois, sua incauta sugestão de um estatuto internacional para a Amazônia ofereceu aos nacionalistas um atalho rumo ao “último refúgio”.
A Amazônia, no imaginário militar, é o “verde de nossas florestas”, uma das cores da bandeira, e o pilar setentrional da doutrina geopolítica de integração nacional. Os “soldados de Caxias” estão lá, nas largas faixas de fronteiras mortas, nos caminhos líquidos disputados pelo narcotráfico.
A Ordem do Dia de Pujol, tão parecida com o brado insignificante da Causa Operária, era ainda mais previsível que a próxima fagulha de incêndio. Nem por isso deixa de ser uma fuga para o “último refúgio”.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Bruno Boghossian: Indulto de Bolsonaro pode favorecer milícias e grupos de extermínio?
Em defesa de policiais em serviço, presidente pode acabar beneficiando criminosos
O policial militar Adriano da Nóbrega foi preso três vezes antes de ser expulso da corporação, no Rio, em 2014. Nesse tempo, foi acusado de assassinar um guardador de carros e de trabalhar como segurança de um bicheiro. Em sua carreira, ele recebeu duas homenagens do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Uma medalha foi concedida quando o PM estava na cadeia.
Adriano era suspeito de usar a farda para cometer crimes. Ficou um ano e meio atrás das grades por matar um homem que havia denunciado policiais por extorsão. Foi solto depois que a sentença foi revertida em segunda instância.
Se Jair Bolsonaro estivesse no poder à época, talvez ele nem tivesse ficado preso por muito tempo. O presidente anunciou que vai conceder indulto a “colegas policiais que estão presos injustamente pelo Brasil”. Em sua transmissão semanal ao vivo pelas redes sociais, pediu que o público mandasse nomes para que ele pudesse “botar na rua” esses agentes.
A intenção é ampliar sua campanha para reduzir a punição a policiais que matarem em serviço. O saidão de Bolsonaro vai libertar agentes que atuaram em confrontos com criminosos, mas também pode ajudar milicianos e esquadrões da morte.
O clã presidencial mostrou, ao longo de sua história, que não dá muita bola para essas questões. Num discurso em 2003, Bolsonaro elogiougrupos de extermínio denunciados na Bahia. “Se não tiver espaço na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro”, afirmou. “Lógico que são grupos ilegais, mas meus parabéns.”
Políticos da bancada da bala costumam ignorar a existência de bandos paramilitares formados por policiais e ex-policiais. Essas quadrilhas se associam a traficantes e bicheiros ou agem sozinhas para extorquir moradores de bairros inteiros.
Embora a lei devesse ser mais dura contra esses grupos, Bolsonaro advoga por uma conduta branda que vai acabar favorecendo também os matadores de farda. Em alguns casos, eles ainda podem ganhar de brinde uma condecoração oficial.
Bruno Boghossian: Líderes populistas avançam, e a política reage
Britânicos e italianos mostram como democracia deve parar delírios autoritários
Líderes populistas não gostam de conviver com instituições democráticas por uma razão simples: elas servem como anteparo à concentração de poderes nas mãos desses indivíduos. Num só dia, a Europa deu duas lições de como a saúde da política é crucial para evitar alguns delírios de autoritarismo.
A manobra de Boris Johnson para atar as mãos do Parlamento e forçar a saída do Reino Unido da União Europeia foi recebida com protestos nas ruas e até no partido do primeiro-ministro. A decisão de suspender parte do Legislativo por cinco semanas foi chamada de "profundamente antidemocrática" pelo ex-ministro conservador Phillip Hammond.
Eleito em julho, Johnson assumiu a missão de aplicar o brexit a qualquer custo. A interrupção do trabalho do Parlamento, sob pretexto de ganhar tempo para elaborar uma nova agenda para o país, é vista como uma virada de mesa violenta.
A ruptura com a União Europeia foi aprovada em plebiscito por um placar de 52% a 48%, mas não houve acordo entre os políticos sobre os parâmetros dessa saída. O primeiro-ministro argumenta que o Parlamento impediu os últimos governos de levarem a cabo a vontade popular.
Alguns políticos britânicos chamaram o movimento de Johnson de "tentativa de golpe". Agora, eles ameaçam aplicar um voto de desconfiança para derrubá-lo.
Também nesta quarta (28), a Itália deu uma resposta aos avanços de Matteo Salvini. O político de extrema-direita dissolveu uma aliança com o governo e pediu novas eleições para que a população lhe desse "plenos poderes". Dois partidos rivais fizeram um acordo, até então considerado improvável, para barrá-lo.
Muitos líderes tentam se vender como os únicos e mais fervorosos defensores do povo, escreveu o cientista político Yascha Mounk sobre o caso britânico. Eles agem para deslegitimar instituições que podem limitar seus poderes. "É por isso que populistas se voltam tantas vezes contra tradições democráticas duradouras", completou.
Bruno Boghossian: Bolsonaro usa fogo como cavalo de troia para pauta antiambiental
Presidente explora Amazônia em campanha contra áreas protegidas e terras indígenas
Jair Bolsonaro deve ter apagado da memória o texto que leu no teleprompter há cinco dias. O pronunciamento do presidente na TV, no auge da tensão em torno das queimadas da Amazônia, falava com orgulho da conservação da vegetação nativa do Brasil e elogiava a "lei ambiental moderna" do país. Agora, ele acha que isso é um problema.
O presidente chamou governadores da região a Brasília para discutir a devastação das florestas. Se algum deles esperava dinheiro ou projetos de preservação, teve que se contentar com o papel de figurante na cruzada antiambiental do Planalto.
O encontro foi motivado pelas queimadas, mas Bolsonaro preferiu fazer um ato para vender sua agenda contra a cooperação internacional e a favor de mudanças na legislação das unidades de conservação. Com apoio de alguns governadores, ele reforçou suas críticas à demarcação de terras indígenas e lançou a ideia de rever reservas ambientais.
O fogo na Amazônia virou um cavalo de troia para a pauta do presidente, nas palavras de um participante da reunião. Bolsonaro explorou um nacionalismo mal-acabado para fazer propaganda de suas obsessões contra áreas protegidas.
Para quem buscava medidas concretas contra o desmatamento, Bolsonaro era um personagem inconveniente na sala. Lá pela segunda hora da reunião, ele interrompeu uma explicação técnica sobre o Fundo Amazônia para reclamar pela sétima vez de áreas indígenas e quilombolas, que "inviabilizam" o agronegócio.
O debate sobre a atividade econômica nessas regiões pode até interessar às comunidades, mas o presidente já deixou claro que está mais empenhado em favorecer ruralistas e mineradoras americanas.
Bolsonaro mostrou também que não aprendeu nada com os últimos episódios. Ele continua desprezando dados oficiais. Na reunião, militares mostraram imagens de satélite para comprovar o resultado do combate às queimadas. Mais tarde, o presidente insistiu que a situação foi "potencializada" pela imprensa.
Elio Gaspari: De E.Geisel@edu para Bolsonaro
Como diz o Médici, esfrie a cabeça, a Viúva de Caxias nos paga para aturar sacripantas e engolir sapos
Capitão,
O senhor pode detestar o Emmanuel Macron, mas seus sentimentos em relação a ele são suaves se comparados à malquerença que eu tinha pelo presidente americano Jimmy Carter. Ele assumiu em 1977 e eu sabia que teríamos encrenca.
No telegrama de felicitações que o Itamaraty redigiu para sua posse, puseram que ele assumiria um “honroso encargo”. Mandei cortar o “honroso”.
Quando ele se meteu nos nossos assuntos com um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, denunciei o acordo militar que tínhamos com os Estados Unidos. Os diplomatas americanos paparicavam políticos oposicionistas e ele chegou ao ponto de dar asilo ao Leonel Brizola, que havia sido expulso do Uruguai.
O que me envenenou foi o Carter mandar a mulher dele ao Brasil para uma espécie de viagem de inspeção. A dona Rosalynn tinha um caderno de notas e sentava-se comigo fazendo perguntas.
Num jantar do Alvorada ela foi impertinente e a conversa ia azedando, a ponto da mulher do embaixador ter feito um sinal para que as duas fossem ao banheiro. Que direito ele tinha de mandá-la tratar comigo? Ela não havia sido eleita coisa alguma.
Eu nunca disse uma palavra sobre Jimmy Carter, nem deixei que meus ministros falassem mal dele em público. Se nós não fazemos isso, os bajuladores radicalizam as posições para nos agradar.
O senhor deve saber que alguns ministros gostam de papaguear o que ouvem dos presidentes, mesmo quando dizemos bobagens.
Papagueiam, são criticados e acreditam que ganham prestígio conosco. Às vezes ganham, mas bobagens continuam sendo bobagens. Eu, por exemplo, proibi um programa de televisão com um vídeo do balé Bolshoi. Os papagaios justificavam a decisão com argumentos malucos.
Quando Carter visitou o Brasil oficialmente, recebi-o com toda cordialidade. Fizemos um programa austero, mas ele acabou armando um encontro com o cardeal Paulo Evaristo Arns, que eu considerava um sacripanta. Imagine que ele gostaria de vê-lo eleito papa.
A Viúva de Caxias nos paga salários para aturar situações horríveis. Lidar com o Carter foi uma delas, andar de carruagem em Londres com uma cartola apertando-me a cabeça foi outra.
Sei que o Carter me achou um velho militar, franco, frio e direto. Mesmo assim, disse que gostou de mim. Pois eu nunca gostei dele.
Anos depois, quando ambos havíamos deixado os governos, ele visitou o Brasil e manifestou o desejo de me ver. Não aceitei o encontro. Ele achou que poderia falar comigo por telefone e ligou para Teresópolis. Não o atendi. Pode-se achar que fui grosseiro, mas eu não estava mais na folha de pagamento da Viúva e podia fazer o que achasse melhor.
Outro dia almocei com dois barões. O Rio Branco me disse que não se defende soberania com bate-boca. Ele expandiu as nossas fronteiras, inclusive na Amazônia, sem discussões públicas. Estava também o barão de Penedo, que enfrentou os ingleses ao tempo em que eles queriam acabar com o nosso tráfico de escravos. Penedo não batia boca com os abolicionistas.
Repito-lhe o conselho que o presidente Médici deu aos oficiais que queriam me depor quando tirei o general Sylvio Frota do Ministério do Exército: “Põe água na cabeça. Põe água para esfriar a cabeça”.
Cordialmente,
Ernesto Geisel
Gaudêncio Torquato: Riscos e tensões no horizonte
Governo não tem vértice, e sinal amarelo pisca forte
Quando os governantes se deixam levar pelas circunstâncias, perdem a noção do conjunto e acabam trocando o essencial pelo superficial. E quando o ator principal, por sua extravagância e desprovido de bom senso, continua a frequentar o palanque, a identidade do governo perde o eixo e deixa a sociedade perplexa sobre o rumo do país.
Esta percepção sobre o governo Bolsonaro se alastra. Nos quase oito meses da administração, tensões se expandem em função das posições do presidente, entre as quais se destacam: alinhamento automático com os EUA; ameaça da União Europeia de desfazer o acordo com o Brasil em virtude da questão ambiental, com foco no desmatamento da Amazônia e a exploração de minérios na região; a ameaça de perda de parcela do mercado argentino, com a eventual vitória do kirchnerismoem outubro; substituição da tradicional diplomacia brasileira por uma política ancorada na extrema-direita; extensão do apartheid social, sob o cultivo da base bolsonarista e tiros nos adversários; e esgarçamento da base governista, insatisfeita com o estilo bolsonarista.
O governo não tem um vértice. Bolsonaro pode até desfraldar a bandeira brasileira e cantar “Pátria Amada”, mas seu governo será um fracasso sem as reformas acalentadas pela sociedade, como a tributária/fiscal, a administrativa e até a dos padrões da política.
Avalia-se o desempenho de uma administração pela somatória de quatro campos de viabilidade: o político, o econômico, o social e o organizativo. O equilíbrio entre eles é responsável por sua fortaleza ou fragilidade. Vale dizer que o governo acumulou força des¬comunal com a vitória, mas até agora não soube transformá-la em ferramenta de eficácia da gestão. Deixa escapar, aos poucos, a condição de usar o poder como “capacidade de fazer com que as coisas aconteçam”, como ensina Bertrand Russel. Basta analisar os furos exagerados em três dos quatro cinturões. A área política é semeada de tensões e pressões, o que leva à instabilidade. Não fosse Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, a reforma da Previdência estaria emperrada.
A base governista, de cujo apoio o governo tanto necessita, constitui um aglomerado heterogêneo. Até o PSL, partido do presidente, se envolve em querelas. O ponto central: o governo não se assenta no conceito de coalizão e, assim, não tem compromissos com os parlamentares, o que torna frouxos os elos com as estruturas partidárias. Não há pacto de apoio; os acordos provisórios ficam sujeitos às circunstâncias, com a indicação de nomes por parlamentares importantes —o que lembra a velha política.
O território social está devastado pela improvisação. O povo espera mais uma graninha no bolso. Medidas paliativas, como a suspensão de radares móveis nas estradas, não esticarão o colchão social.
A segurança pública pode até melhorar com o pacote anticrime do ministro Sergio Moro (Justiça). Mas o próprio passa por vexames e até certo afastamento do coração do presidente. A desconfiança entre eles começa a brotar. A saúde carece de um choque de gestão, a começar pela rede hospitalar sucateada.Há investimentos para equacionar o déficit do programa Minha Casa, Minha Vida? E a rede de esgotos com apenas 47% dos domicílios brasileiros, dentre os quais apenas 20% dispõem de tratamento?
A administração tem furos. O governo prometeu enxugar a máquina e vê que é tarefa complexa. A burocracia ainda trava, apesar da Lei da Liberdade Econômica. Que eficiência se pode esperar de um ministério do tipo colcha de retalhos e com ministros sob suspeita?
Já o cinturão econômico conta com equipe brilhante. Porém, o ministro Paulo Guedes tem dúvidas sobre a aprovação de seus projetos. O desemprego continua acima dos 12 milhões. O arrocho tributário vai às alturas. A reforma tão falada vai aliviar a carga de pessoas físicas e jurídicas? Com tantas dúvidas, o sinal amarelo pisca forte, prenunciando o prolongamento da recessão.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Leandro Colon || A força de Moro
Ex-juiz pode não ser um superministro de fato, mas parte das ruas o trata assim
Será que Sergio Moro se arrependeu de ter abandonado a magistratura para ser ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro?
Publicamente, ele não vai admitir que tenha errado ao largar a Lava Jato para sentar em uma cadeira na Esplanada. Mas parece não haver dúvidas de que, oito meses depois, o Moro de Curitiba era muito mais forte do que o Moro de Brasília.
O superjuiz que botou figurões da política na cadeia sonhava em ser um superministro de Bolsonaro. Até agora, só acumulou reveses no ministério e passou a ter a lealdade e a capacidade de gestão questionados pela equipe que comanda.
Integrantes da Polícia Federal não vão se esquecer tão cedo da omissão pública do ministro no episódio em que Bolsonaro tripudiou da permanência de Mauricio Valeixo na diretoria-geral da PF. Moro silenciou.
Faz água o pacote anticrime, bandeira principal de sua gestão, em discussão na Câmara. O escolhido do ex-juiz para dirigir o Coaf foi jogado para fora de campo do governo.
O ministro ainda teve de recuar da indicação de uma suplente de conselho ligado à pasta e não conseguiu emplacar um nome preferido para vaga no Cade. Moro não levou uma.
Agora, a aposta nos bastidores é a de que ele pode reverter o jogo político se convencer o presidente Bolsonaro a vetar, da maneira que o ministro deseja, o projeto de abuso de autoridade aprovado no Congresso.
Flagrado em mensagens privadas atropelando a liturgia e as prerrogativas da cadeira de juiz, Moro alega que o texto votado pelos parlamentares pode causar um "temor excessivo" em órgãos de investigação, como polícia e Ministério Público.
Moro continua sendo uma figura muito popular. Tem sido recebido com homenagens e euforia em regiões onde o bolsonarismo deu uma surra no petismo nas eleições. Pode até não ser um superministro de fato, mas parte das ruas o trata assim.
Por isso, Bolsonaro emite sinais trocados: não precisa se livrar dele, mas tenta reduzir a força e a influência do ministro no seu governo.
Marina Silva || Sem fundo
Governo Bolsonaro está rifando o futuro da Amazônia
Com seu desprezo pela contribuição dos principais doadores, o governo de Bolsonaro está simplesmente decretando a falência do Fundo Amazônia. E mais, está mostrando que, na prática, realiza sua intenção de retirar o Brasil do Acordo de Paris. Será impossível honrar o compromisso de diminuição das emissões de gases do efeito estufa, que estão ligadas à redução de 80% da taxa de desmatamento da Amazônia.
No ano passado, o desmatamento atingiu a marca de 7.900 km2. Neste ano de 2019, as projeções são de crescimento significativo. Como manter o limite de 3.925 km2 em 2020, conforme o compromisso firmado em 2009 pelo governo brasileiro?
Alguns dias antes de sediar a Semana do Clima, que terminou na sexta-feira (23), em Salvador, o governo brasileiro anunciou com gestos e atos: o Brasil não pretende mais cumprir os compromissos assumidos no âmbito da Convenção de Mudanças Climáticas. Consegue assim, em tempo recorde, fazer uma potência ambiental como o Brasil se transformar em “pária ambiental”. O que era exemplo virou escândalo.
Sentiremos na prática, ainda nesta estação seca: deixarão de existir os recursos do Fundo Amazônia, que são fundamentais para viabilizar o trabalho do Ibama de fiscalização do desmatamento, da prevenção ao fogo e de combate às práticas criminosas de grilagem de terra. Quem vive na Amazônia já está sufocado pela fumaça resultante dessa política antiambiental.
A pretexto de acabar com a “indústria da multa”, o governo acaba com as legalidades e incentiva o crime. Entre 2016 e 2018, os recursos do Fundo Amazônia financiaram 466 vistorias que geraram aplicação de mais de R$ 2,5 bilhões em multas. Parece muito? O prejuízo causado pelos crimes ambientais, pela devastação e perda do patrimônio natural, assim como o lucro fácil que alguns conseguiram com esses crimes é muito maior.
Prejuízos grandes teremos também em outras áreas, sobretudo nas relações diplomáticas e econômicas com outros países, a exemplo do agronegócio. O presidente ataca Noruega, França e Alemanha. E o ministro da Economia já adianta que, se houver mudança de governo na Argentina, o Brasil poderá sair do Mercosul. Isso só reforça a condição de subserviência e dependência do Brasil em relação aos EUA —que, se confirmada a indicação do filho do presidente como embaixador, deixará de ser entre países soberanos para se transformar em uma relação doméstica e familiar nitidamente desfavorável aos interesses do país.
O caso do Inpe torna explícita essa relação de subserviência. Temos uma instituição científica que presta um serviço público de reconhecimento internacional, mas o governo prefere gastar milhões para contratar uma empresa norte-americana, a Planet, para monitorar a Amazônia brasileira. Não são os outros países que querem “comprar a Amazônia à prestação” (aqueles que o presidente menciona fizeram doações republicanas, respeitando e fortalecendo as instituições brasileiras). É o governo Bolsonaro que está rifando o futuro da Amazônia.
É muito grave tudo isso que está acontecendo no Brasil. São violações que terão um custo muito elevado para o país. A sociedade brasileira não pode ficar refém desses inúmeros abusos de poder. E não é abuso de autoridade, porque autoridade é algo que falta ao presidente e a vários outros representantes do seu governo.
Bolsonaro não assume oficialmente que abandonou o Acordo de Paris, é claro, porque teme as consequências comerciais e diplomáticas. Talvez pense que a ONU e a comunidade internacional não percebam o que está fazendo. A linguagem escatológica mostra que, na verdade, o presidente não dá a mínima importância para o meio ambiente. É triste. E será trágico.
*Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008, gestão Lula), ex-senadora (1995-2011) e candidata à Presidência da República pela Rede em 2018, pelo PSB em 2014 e pelo PV em 2010
Demétrio Magnoli || Guerra entre os 'homens de bem'
Só há lugar para um único Putin; eis a causa da guerra em curso
Quem vai ser Putin?
Os “homens de bem”, implacáveis moralistas, heroicos cavaleiros andantes da luta contra a corrupção, salvadores de uma pátria afundada na lama, estão em guerra civil. O choque fratricida envolve duas facções principais, além de milícias periféricas, que se digladiam pelo controle dos órgãos de Estado capazes de incriminar inimigos, marcando em suas testas a palavra “corrupto”. Eles guerreiam pela conquista de quatro bastiões: Ministério Público, Polícia Federal, Receita e Coaf.
Há pouco, formavam um exército unificado. O cisma abriu-se com a eclosão do caso Queiroz/Flávio Bolsonaro, um divisor de águas. Jair Bolsonaro quer ser Putin: “Se é para ser um banana, tô fora! Fui eleito para interferir mesmo.” A declaração de guerra tem duplo alvo. De um lado, ameaça destruir a autonomia legal dos quatro órgãos. De outro, rompe a aliança entre o presidente e a Lava Jato, selada pela entrega do Ministério da Justiça a Sergio Moro. Sangue virtual já escorre nas redes sociais, que operam como tropas de infantaria. Há um caminho, ainda não trilhado, até o derramamento de sangue de verdade.
Não é um raio no céu límpido. A politização dos órgão de investigação judicial e supervisão financeira acelerou-se pela ação dos jacobinos da Lava Jato. A Vaza Jato ilumina a inversão promovida pelo Partido dos Procuradores: no Estado de Direito, evidências de crimes conduzem a indivíduos suspeitos; no Estado policial, suspeitos previamente selecionados conduzem à produção das evidências. Moro e seu fiel escudeiro, Deltan Dallagnol, sonharam ser Putin bem antes do triunfo de Bolsonaro. Só há lugar para um único Putin —eis a causa da guerra em curso.
“Minha família acima de todos”. Sob seu novo estandarte, o presidente que não é “um banana” tenta romper as muralhas destinadas a separar o Estado do governo, nomeando fiéis serviçais para os postos-chave do Ministério Público, da PF e da Receita. Ouvem-se, ao fundo, clamores de indignação de procuradores, policiais e auditores. Neles, mistura-se a cínica revolta dos aliados traídos à resistência tardia dos justos. Os primeiros querem de volta uma “autonomia” que funcionou como sinônimo da perversão jacobina do combate à corrupção. Os segundos reaprendem as virtudes de uma autonomia que, entorpecidos pelo corporativismo, se recusaram a defender.
Os justos de hoje, onde estavam ontem? Os sinais do desvio fatal da Lava Jato surgiram nos manifestos políticos de Rodrigo Janot contra a “elite política”, no pacto espúrio do Ministério Público com Joesley Batista, na estratégia de vazamentos seletivos conduzida pela força-tarefa, na campanha de intimidação deflagrada contra ministros do STF. A Vaza Jato expõe uma história submersa de abusos e ilegalidades, mas seus picos emersos elevavam-se acima das brumas. Bolsonaro avança sobre baluartes degradados e guarnecidos por tropas desmoralizadas.
A Justiça, reino da formalidade, é terra estrangeira para os santos guerreiros da Lava Jato. Nas teias da informalidade que teceram, não se distingue o juiz do promotor nem o procurador do auditor fiscal. “Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal”: as revelações sobre o papel desempenhado pelo chefe de inteligência da Receita alargam uma paisagem de ruínas. O polvo estendeu seus tentáculos até o Leão e começava a colonizar o Coaf. Os justiceiros envenenaram a Justiça, convertendo a investigação em conspiração. Moro, Dallagnol, Leonel —as defesas dos corruptos têm, nesses nomes, os pretextos perfeitos para anular processos ilegais e condenações viciadas. Dez hurras para os garotos de ouro.
Quem vai ser Putin? Na Rússia, sob o “controle social da mídia”, todos são “corruptos” exceto os aliados do Kremlin. No Brasil, que não é a Rússia, a guerra para ser Putin terá desfecho diferente. Cuidado, “homens de bem”, vocês combatem à luz do dia!
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.