Folha de S. Paulo

Bruno Boghossian: Bolsonaro paga o preço da antipolítica com juros e correção

Governo tropeça na reta final da Previdência e perde controle da própria pauta

O governo achou que estava fazendo um baita negócio ao terceirizar para o Congresso a aprovação da reforma da Previdência. Abriu mão de fazer articulações e conquistar votos, mas conseguiu fazer avançar uma matéria difícil, mesmo assim. Agora, a fatura da omissão chegou.

O Planalto paga um preço alto por sua retórica antipolítica, com juros e correção monetária. Decidido a não montar uma base de partidos aliados, Jair Bolsonaro decidiu negociar emendas no varejo para abastecer deputados e senadores em troca de votos. Num período de sufoco orçamentário, a conta ficou salgada.

O presidente realmente cumpriu a promessa de campanha de acabar com o loteamento de ministérios para siglas governistas, mas não se envergonhou de abrir um balcão de cargos de segundo escalão. A partilha de poder, diga-se, é comum para formar coalizões no Congresso, mas Bolsonaro só aderiu ao método porque tenta mimar senadores dispostos a aprovar o filho Eduardo para a Embaixada do Brasil nos EUA.

O erro de cálculo fica claro na reta final da votação da reforma. Mesmo se valendo de expedientes que costuma criticar, o governo sofre tropeços que tendem a aumentar os custos de sua relação com o Congresso. Bolsonaro achou que poderia ceder protagonismo à Câmara e ao Senado sem correr riscos, mas agora se vê sem controle de sua própria pauta.

De última hora, os senadores mudaram uma regra que reduziu a economia prevista com o novo sistema de aposentadorias. Depois, ameaçaram adiar a conclusão das votações enquanto não houvesse acordo com a Câmara sobre a partilha do dinheiro do pré-sal. O Planalto ficou refém.

A reação do ministro Paulo Guedes reflete a vulnerabilidade do governo. Em retaliação aos senadores, ele disse que cortaria uma verba prometida a estados e municípios. Pouca gente se incomodou. Guedes é o sujeito que, em março, ameaçou deixar o cargo se a poupança com a reforma ficasse abaixo de R$ 1 trilhão. Agora, ele está nas mãos do Congresso para conseguir R$ 800 bilhões.


Hélio Schwartsman: Coisa de louco

Fantasiar com um crime e revelar essa fantasia não são crimes

Às vezes, um charuto é apenas um charuto. A declaração do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot de que quase disparou um tiro de pistola contra o ministro Gilmar Mendes durante sessão do STF é tão maluca e está tão fora da curva que não deve, a meu ver, ser tratada como sintoma de agravamento de uma suposta crise institucional.

O plano homicida de Janot envolve aspectos tão pessoais que não me parece plausível explicá-lo apenas como resultado de exacerbações políticas ou de uma polarização crescente entre o Ministério Público e o Judiciário. Não foi, afinal, uma tese jurídica que pôs o antigo chefe do parquet em rota de colisão com o magistrado, mas uma escalada de intrigas e falatórios que não poupou nem cônjuges e filhos.

Podemos no máximo especular sobre os motivos para a confissão tardia do ex-PGR. E eles vão de um esforço para promover seu livro de memórias até a preparação para disputar um cargo eletivo. O homem que quase matou Gilmar Mendes encontraria um eleitorado cativo. Não podemos nem mesmo descartar a possibilidade de que Janot tenha sido acometido por algum transtorno psiquiátrico, como a síndrome de Korsakoff, hipótese em que o fato narrado pode nem ter ocorrido.

Agora que Janot já teve sua arma apreendida, o que mais me preocupa é a mão pesada e pouco republicana com que o STF age contra todos aqueles que desafiam algum de seus membros, mesmo que dentro dos limites das liberdades constitucionais. Fantasiar com um crime, afinal, não é crime; revelar essa fantasia pode até ser coisa de doido, mas tampouco é um delito.

Quanto às instituições, elas decerto não vivem seu momento mais brilhante. Os abusos e caneladas vêm de todos os lados. Mas, para os que, como eu, pensam que o objetivo primordial das instituições democráticas é impedir que conflitos políticos degenerem em guerra civil, então elas estão dando conta do recado.


Leandro Colon: Aras precisa restaurar a respeitabilidade do Ministério Público

Janot, Dodge, Deltan, entre outros, mostram que órgão precisa de reflexão profunda

O desatino de Rodrigo Janot em declarar que por pouco não apertou o gatilho para matar Gilmar Mendes nas dependências do STF jogou ainda mais luz sobre o Ministério Público Federal, instituição que precisa de uma reflexão profunda.

Muita gente em Brasília não acredita na história de faroeste contada por Janot. Mas nada muda se o fato ocorreu ou se o ex-PGR está blefando para promover seu livro (recheado de incoerências, segundo reportagem publicada pela Folha).

Até que se prove o contrário, vale a versão confessada por um ex-chefe da Procuradoria de que levou uma pistola ao STF para matar Gilmar, mas (ainda bem) fraquejou na hora.

Janot deixou a PGR em setembro de 2017 com um gol contra no final: a delação desastrada da JBS, em que ele atropelou a liturgia das investigações para tentar derrubar um presidente da República (Michel Temer).

Há quem diga que, por trás dessa confusão da JBS, estava a intenção do grupo de Janot em impedir a nomeação de Raquel Dodge para sucedê-lo no comando da Procuradoria.

Temer escolheu Dodge. Em dois anos, ela teve o mérito de estancar o modus operandi policialesco instalado por Janot na PGR. No entanto, falhou na missão de aproveitar essa oportunidade para imprimir um ritmo intenso e sério na área criminal.

Dodge politizou o andamento de casos relevantes, como os que envolviam Temer, Léo Pinheiro e figuras importantes do Congresso. Na reta final de sua gestão, ela rezou a cartilha de Jair Bolsonaro. Um gesto em vão. O desejo de ser reconduzida foi desprezado pelo presidente.

O procurador Deltan Dallagnol está nas cordas em Curitiba após a divulgação das mensagens que revelaram um comportamento egoísta, inadequado e personalista por parte dele na coordenação da Lava Jato.

Escolhido por Bolsonaro, o novo chefe da PGR, Augusto Aras, disse ao repórter Reynaldo Turollo Jr, da Folha, que o desafio dele é “restaurar a unidade institucional” do órgão. Mais que a unidade, ele deveria restaurar a sua respeitabilidade.


Demétrio Magnoli: Com quantas Gretas?

Ambientalistas escolhem caminho do simplismo e se fecham num gueto sueco

Greta Thunberg, 16, sueca, filha de um ator e uma cantora de ópera, nunca passou fome, sempre tomou banho quente e conectou-se à internet antes de aprender a ler.

No seu discurso na ONU, ela acusou os governos do mundo inteiro de "roubar meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias" sobre as mudanças climáticas. Greta, porém, não representa a maior parte dos adolescentes do planeta, nem os adolescentes de tantas gerações anteriores que experimentaram carências vitais.

A história pessoal e familiar ajuda a decifrar o tom chantagista de seu discurso. Há quatro anos, movida por uma obsessão precoce pelo aquecimento global, Greta convenceu seus pais a se tornarem veganos e a renunciarem a viajar de avião, o que cortou a carreira internacional de sua mãe. Para a persuasão familiar, contribuiu o diagnóstico de que a pré-adolescente sofria de um transtorno do espectro do autismo. Da família para o mundo —no palco iluminado da ONU, Greta realiza um salto acrobático destinado a fracassar.

"Por mais de 30 anos, a ciência tem sido cristalinamente clara." Três décadas —a eternidade para quem tem 16 anos— são nada na escala do tempo geológico e um intervalo ínfimo na história humana. A tendência de aquecimento global inscreve-se tanto no ciclo natural do interglacial em curso, iniciado 15 mil anos atrás, quanto na emergência da economia industrial, em meados do século 19. O consenso científico diz que a contribuição humana é decisiva. As mesmas tecnologias e modos de produzir que alçaram a maior parte da humanidade acima do patamar da fome crônica provocaram a elevação das emissões de gases de estufa.

A história recente pode ser contada a partir de um gráfico de temperaturas globais. As devastações das duas guerras mundiais retardaram o aquecimento. A ausência de guerras gerais está na base da anomalia positiva de 0,17ºC por década registrada desde 1970. A ascensão da China é fator crucial para entender a dramática anomalia positiva de 0,43ºC verificada entre 2008 e 2017. A nova potência tornou-se o maior emissor absoluto de gases estufa --e, ao mesmo tempo, tirou centenas de milhões de crianças da miséria.

As Gretas chinesas, asiáticas, africanas, latino-americanas não têm motivos para dizer que seus sonhos e infâncias foram "roubados" pela economia de alto impacto climático.

A ECO-92, o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris são mais que "palavras vazias". O discurso de Greta flutua acima da história, ignorando os intercâmbios econômicos envolvidos na equação do desenvolvimento sustentável, e paira além da política, colocando no saco genérico de "traidores" os governos engajados em custosos programas de transição energética e os líderes que, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, se escondem nas profundezas do obscurantismo. O mundo deve se tornar vegano agora mesmo, adotando a meta de saldo zero de emissões em uma década, algo que só estaria ao alcance de uma ditadura totalitária global.

O movimento ambientalista escolheu dirigir-se ao mundo pela voz de Greta, numa tática que busca circundar um debate complexo entre adultos. "Como vocês ousam?", exclamou a jovem na ONU, quando a pergunta certa é: "Quem ousará contestar as palavras emanadas de uma adolescente pura que clama apenas pelo belo e pelo justo?". A fuga da política, contudo, convida a política a ressurgir, pela porta do populismo.

A ciência está certa ao alertar para a urgência das mudanças climáticas --e as principais vítimas do fenômeno serão as atuais crianças pobres dos países mais pobres. Mas, ao escolher o caminho do simplismo, do fundamentalismo climático, da utopia pré-política, o movimento ambientalista fecha-se num confortável gueto sueco, renunciando ao debate efetivo que se trava contra o "soberanismo" negacionista.

Com quantas Gretas se faz um Ricardo Salles?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Igor Gielow: Maior derrota da Lava Jato mudará configuração política do país

Se condenação de Lula acabar sendo revista, aliados veem vantagem para Bolsonaro

Ainda é preciso saber o tamanho do estrago que a decisão do Supremo Tribunal Federal fará na prática sobre condenações da Operação Lava Jato, algo que será definido na modulação do julgamento da tarde desta quinta (26).

Mas uma coisa parece inexorável: salvo uma excepcional reação nas ruas do país em favor da Lava Jato, algo que as últimas manifestações indicaram ser improvável, a ação judicial e policial que mudou a paisagem política do Brasil recebeu seu maior golpe e dificilmente recuperará o ímpeto original.

Isso não significa que não haverá novas fases, com camburões e cenas midiáticas a que os brasileiros se acostumaram desde 2014. Em outras ocasiões, os integrantes da Lava Jato se mostraram diligentes em mostrar força dado o apoio com que contavam no imaginário popular.

Mas o Supremo colocou um freio no voluntarismo, de resto já bastante esvaziado, da turma de procuradores, policiais e juízes curitibanos. Haverá choro e ranger de dentes, mas talvez só isso.

A partir daqui, ainda sob o impacto das revelações do modus operandi da força-tarefa pelos vazamentos do The Intercept, o escrutínio sobre todos os procedimentos tenderá a ser redobrado. Se outros julgamentos acabarem sendo anulados e refeitos pelo tecnicismo encontrado em Brasília acerca dos delatores, muita energia será gasta antes de a operação retomar um norte.

Aqui fica a ressalva feita no começo do texto. A tal modulação vem sendo discutida com muito interesse nos meios jurídicos e políticos em Brasília porque, obviamente, ela determinará se Luiz Inácio Lula da Silva poderá deixar sua cela e voltar ao debate público.

Para vários atores, inclusive os militares que antes viam na soltura de Lula algo inaceitável, o petista na rua ou em casa é algo já "precificado", usando aqui o jargão do mercado financeiro.

Entre alguns aliados de Jair Bolsonaro (PSL), a hipótese já é vista até como boa: manterá um clima de flá-flu ainda mais acirrado, e a radicalização que o presidente vem abraçando nos últimos meses pode inclusive indicar uma preparação para essa realidade.

Mas isso ainda é muito hipotético, e Lula enfrentará outros julgamentos à frente. O mais importante, no momento, é o impacto que a decisão pode ter na configuração política do país.

Desde que a Lava Jato emergiu, a devastação que suas revelações provocaram estabeleceu uma nova régua para os políticos, que foram divididos entre culpados e inocentes, sem direito a zonas cinzentas. Isso foi determinante para a aniquilação do PT na eleição municipal de 2016 e um dos fatores centrais para a ascensão do bolsonarismo.

Daí a ironia óbvia, a de que o enterro da Lava Jato ocorra sob os olhares do mesmo Bolsonaro que tanto se apegou a ela como peça de campanha. Sergio Moro, seu combalido ministro da Justiça e símbolo da operação, tenderá a seguir como totem oco de uma época passada.

Naturalmente, os ganhos permanentes da Lava Jato estão colocados, e políticos redobram seus cuidados quando caem em tentação. Mas o esvaziamento simbólico da operação abre uma dúvida razoável sobre o que virá a seguir em termos de demanda do eleitorado.

Se os fichas limpas não mais serão as estrelas e a dita velha política ainda se arrasta após o terremoto que a abateu, o embate de 2020 que antecede o pleito presidencial de 2022 poderá trazer algum novo híbrido ao palco.

A alternativa, não desprezível, é a consolidação de uma dicotomia entre PT/esquerda e o bolsonarismo, o que sugere um pesadelo para as siglas e lideranças centristas.


Bruno Boghossian: Travada, crise na Venezuela vira outdoor para políticos de direita

Governos mostram descrença sobre Guaidó, mas usam Maduro para criticar socialismo

Os países do consórcio diplomático que tenta pôr fim ao regime de Nicolás Maduro estão paralisados. Enquanto a crise política permanece sem solução à vista, alguns governantes só parecem preocupados em usar a Venezuela como outdoor em suas campanhas sobre os perigos do socialismo.

Presidentes que querem fustigar adversários de esquerda continuam dando atenção a Maduro. O pronunciamento de Donald Trump na ONU citou o caso venezuelano para dizer que o socialismo é um "destruidor de nações". Jair Bolsonaro prometeu lutar para que outros países "não experimentem esse nefasto regime".

Ficou por aí. Em 48 horas, três reuniões sobre o assunto em Nova York produziram somente um par de notas amenas e uma resolução com poucos avanços objetivos.

A boa notícia é que as discussões sobre uma ação militar estrangeira sumiram do mapa. Não se falou sobre isso nem quando Trump, que já disse que "todas as opções estão sobre a mesa", apareceu como convidado numa reunião do Grupo de Lima.

O lado ruim é que muitos países reconhecem, com franqueza crescente, que os canais de negociação com Maduro continuam obstruídos. Começaram a demonstrar também, nos bastidores, uma descrença cada vez maior com a capacidade de liderança do opositor Juan Guaidó.

Um integrante do primeiro escalão do governo Bolsonaro que estava na comitiva brasileira em Nova York tratava o presidente autoproclamado da Venezuela como um caso quase perdido. Afirmou, sob reserva, que agora torcia para que as tensões internas não voltassem a subir, provocando uma guerra civil.

O Brasil ainda tenta encontrar uma saída, mas o comportamento de Bolsonaro mostra que, por ora, seu governo está bem contente em tirar proveito político da crise. O presidente falou da Venezuela na ONU e evocou o fantasma do socialismo, mas seu chanceler faltou a uma reunião do Grupo de Lima. Ernesto Araújo preferiu assistir a um discurso de Trump sobre religião.


Igor Gielow: Populismo vive dia desastroso com Johnson, Bolsonaro e Trump sob fogo

Coalizão de Steve Bannon viveu pesadelo na terça; outros aliados estão em apuros

Steve Bannon se esforça bastante, mas a grande coalizão de líderes populistas cristãos que enfrentaria o monstro globalista marxista, arquitetada pelo ex-conselheiro de Donald Trump, parece estar fazendo água por seus próprios méritos.

Naturalmente, não é um movimento coordenado de desastre, mas há um ar de sincronicidade nas agruras que os expoentes da onda nacionalista que varreu o mundo no final dos anos 2010 enfrentam. O 24 de setembro de 2019 parece um desses dias fadados a ser lembrados nas linhas do tempo de historiadores futuros.

A terça começou com primeiro-ministro Boris Johnson sendo acusado pela Corte Suprema britânica de ter induzido a rainha Elizabeth 2ª a erro. A Justiça determinou o fim da suspensão do Parlamento, o golpe institucional mais vistoso já tentando pela atual leva de populistas no poder —descontando-se as estripulias autoritárias de Viktor Orbán na Hungria, mas o belo país às margens do Danúbio não é a mãe da democracia liberal.

Pode haver questionamentos sobre uma certa lava-jatização da Justiça britânica, dado que a prorrogação do recesso parlamentar é um ato real, mas o tom contrito de Johnson demonstra um fato consumado. Até por ser intelectualmente mais bem preparado do que seus colegas populistas, é de se esperar alguma reação, mas os tais freios e contrapesos britânicos parecem estar a pleno vapor.

Pouco tempo depois, o novato da turma, o brasileiro Jair Bolsonaro, fez seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU na condição de um presidente com altíssima rejeição e crescentes problemas políticos e econômicos.

Não cabe dar tanta bola à horrenda repercussão da reiteração das ideias do presidente fora do Brasil, porque essas falas costumam estar esquecidas em poucas horas ou dias, mas se havia uma chance de mudança de humor externo em relação ao Brasil, ela se esfarelou nos 32 minutos da emissão presidencial de uma visão de mundo paranoica e exótica.

Na semana passada, estive a convite do governo alemão em viagem com um grupo de jornalistas europeus. Não houve um que não expressasse reações que variavam do espanto ao nojo ante os episódios envolvendo Bolsonaro, alguns com precisão de datas, outros com mistificações de rede social.

Novamente, é preciso reparo: são todos progressistas de países ricos, uma espécie que adora vilanizar o que não é espelho e cuja compreensão de processo internos de terras estranhas é próximo do zero.

Isso dito, se algum deles se deu ao trabalho de assistir ao discurso do brasileiro, a chance de ter mudado de ideia é basicamente nula. E isso se multiplica, dado que é assim que se constrói imagem externa. Com mais de duas décadas de coberturas internacionais nas costas, nunca vi algo tão negativo formado.

Se algo dessa ojeriza vai virar na prática, como sanções, vetos comerciais ou a acordos em negociação, isso é a ver. A conta, se vier, poderá ser dividida com o séquito seguidor do guru Olavo de Carvalho: os filhos do presidente, Ernesto Araújo, Filipe Martins e, no mínimo por domínio do fato, o próprio Bolsonaro.

Por fim, a terça trouxe os democratas enfim sacando o revólver do impeachment contra o patrono da turma, Trump. Aqui é preciso esperar os desdobramentos com cautela.

Durante quase três anos o suposto conluio entre o republicano e o Kremlin de Vladimir Putin para ajudar sua eleição em 2016 esteve em pauta, só para ser torpedeado pela falta de provas. Falava-se em impeachment, mas nada foi feito.

Agora, ou os democratas têm certeza de que Trump pediu um servicinho ao ucraniano Volodimir Zelinski, o que ambos negam, ou estão blefando com algo que poderá ajudar na reeleição do presidente. Seja como for, é uma baita má notícia para um já sitiado Trump.

Sua sorte, até aqui, está depositada numa economia que vinha bem mas agora vê nuvens carregadas, e principalmente na ausência de alternativas competitivas no campo adversário. Isso pode mudar.

Por óbvio, incluir Bolsonaro na lista dos eventos da terça é algo da visão brasileira, já que o presidente é apenas uma nota de rodapé na história mundial —como, aliás e ao fim, todos seus antecessores. Outro ponto a ser levado em conta é o duvidoso sucesso midiático do bolsonarismo, que tem seu líder citado em várias publicações sérias como exemplo do mal que Trump fez ao mundo
.
Essa avaliação é algo reducionista, por individualizar um processo histórico. Goste-se ou não, a demanda por esse pessoal estava aí e, na maioria dos casos, as alternativas ainda não são visíveis. Basta ver o quadro atual brasileiro, em que um dos poucos políticos estruturados para a disputa de 2022, o governador João Doria (PSDB), estrategicamente recusa o papel de oposição aberta ao Planalto, enquanto bate dia sim, dia não, no presidente.

Fora do escopo do dia, o populismo associado ao bolsonarismo está em apuros mundo afora. Binyiamin Netanyahu, aliado de primeira hora do brasileiro, está preso numa armadilha política, sem conseguir formar governo para seguir no poder em Israel. Aqui cabe ressalvar que Bibi, como o premiê é conhecido, se alinha a Bolsonaro pela linha de Trump e da conexão religiosa de evangélicos da base do presidente com o Estado judeu.

Na Itália, o amigão de Eduardo Bolsonaro Matteo Salvini está em momentânea desgraça política, colocando em xeque o futuro dos fulgurantes populistas da terra de Benito Mussolini. Há ainda figuras menores na ativa e os grandes cardeais do iliberalismo, Putin e o turco Recep Tayyip Erdogan, estão consolidados. Cada um deles com seus problemas e, a bem da verdade, guardando pouca proximidade real com os populistas.

Nas terras de Angela Merkel, a declinante líder alemã e antípoda de Bolsonaro em questões ambientais, parece haver uma reação em curso à ascensão do partido Alternativa para a Alemanha. Apesar de ganhos recentes em alguns estados, notadamente no antigo leste comunista do país, há dúvidas sobre sua viabilidade no jogo para suceder a Merkel, que deixará o cargo no fim de 2021. O motivo: a inépcia política.

Por fim, há a França do maior adversário externo de Bolsonaro, Emmanuel Macron. Lá, o presidente tem dificuldades para manter sua popularidade, mas o longo ciclo de poder que o mandato de cinco anos renováveis permite garante margem de manobra ante a sempre presente Frente Nacional, de Marine Le Pen.

História não permite julgamentos em tempo real sem uma monstruosa margem de erro, mas há cheiro de marco neste 24 de setembro, e não exatamente um que será comemorado em lugares como Richmond, Virgínia.


Ruy Castro: País de mentira

Nenhum brasileiro reconheceu o Brasil que Bolsonaro descreveu na ONU

Eu gostaria de morar no país que Jair Bolsonaro descreveu em seu discurso na Assembleia Geral da ONU e que, segundo afirmou, se chama Brasil. Imagine, um país com 70% da sua mata original preservada, exceto por alguns metros em que foi preciso cortar umas árvores para os bois poderem passar. Um país sem queimadas, exceto a que os índios praticam, ainda mais agora que eles querem sair da idade da pedra cultivando soja. E um país que, se quiser destruir a Amazônia, é por nossa conta, digo, dele, e ninguém tem nada com isso.

Um país em que a vida é o maior dos direitos humanos, donde, para preservá-la, o controle de velocidade nas estradas é abolido, as armas são liberadas e quem passar na frente de uma bala é por sua conta e risco. Um país em que nenhum corrupto ficará impune, exceto nos casos de parentesco em primeiro grau, vínculo empregatício com estabilidade e cargo importante no governo. Governo este, aliás, estrelado por um antigo símbolo da luta contra a corrupção e ainda tão poderoso que, hoje, se sujeita aos papéis mais humilhantes sem prejuízo de sua aceitação popular.

E, que bom, um país sem ideologia, sem aparelhamento e sem doutrinação, exceto a praticada pelos atuais detentores do poder. Um país em constante vigília contra seus inimigos, como o cacique Raoni e a atriz Fernanda Montenegro --e, se você acha que eles são inofensivos por já estarem com 89 anos, é porque não leu o teórico comunista Gramsci, que sugeriu o uso de idosos na propaganda socialista. Um país governado sob a inspiração de Deus, embora este não tenha sido consultado.

Pois este é o país que Bolsonaro descreveu na ONU --e que seus habitantes não conseguem reconhecer.

O próprio Bolsonaro não parecia à vontade diante do teleprompter. Os olhos muito apertados podiam indicar miopia ou a suspeita de que nem ele acreditava em suas mentiras.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Bruno Boghossian: Bolsonaro consolida marcas e abraça fundamentalismo político

Na ONU, aprofunda movimento de ruptura e aposta em tratamento de críticos como vilões

Em nove meses de mandato, Jair Bolsonaro já havia mostrado que não faria concessões e ignoraria qualquer apelo por moderação. Agora, o presidente levou à ONU as credenciais de um governo que abraça de vez uma espécie de fundamentalismo político.

O discurso do brasileiro na Assembleia Geral foi uma vitória da ala ideológica do Palácio do Planalto e da Esplanada –uma prova praticamente definitiva de que esse grupo determina não apenas a essência, mas todo o corpo do bolsonarismo.

O presidente fez questão de deixar sua marca completa, mas deu peso especial a sua conhecida contraposição às ideias da esquerda. Com isso, mostrou mais uma vez que não aceita nada além de alinhamento absoluto e que seus críticos se tornam imediatamente adversários e vilões.

O pronunciamento foi, segundo os próprios auxiliares de Bolsonaro, uma tentativa de apresentar ao mundo e reforçar dentro de casa a linha mestra de um movimento de ruptura. Sob esse argumento, o presidente busca um salvo-conduto até para as medidas mais controversas tomadas por seu governo.

Num pot-pourri do repertório de campanha, o fantasma socialista apareceu com destaque, o governo foi apresentado como vítima da imprensa e as queimadas da Amazônia pareceram uma ilusão.

Apostando no enfrentamento, o presidente foi capaz de dizer, sem corar, que a floresta não está sendo devastada. Bolsonaro sabe que negar a realidade não encerrará as cobranças pela preservação da Amazônia, mas explora essa fantasia para reforçar sua disposição em afrouxar a política ambiental brasileira.

O presidente usa problemas verdadeiros, como a corrupção e a criminalidade, para tentar convencer o mundo de que seus adversários políticos podem ser ignorados e de que só ele tem as soluções. Deixa de dizer, entretanto, que sua gestão mal arranhou a superfície da segurança pública e que ele passou a ser criticado por sua base política ao interferir em órgãos de controle.


Ruy Castro: Maneiras de morrer

Em vez de agir para que se morra menos, nossos governantes propõem matar mais

Uma recente pesquisa internacional classificou o Brasil em 64º lugar, num universo de 67 países, quanto ao grau de adequação para um estrangeiro viver. Mais um pouco e nem estaríamos entre os países considerados. A enquete se refere a 2018 e foi feita com 14.272 expatriados de 174 nacionalidades, a maioria funcionários de multinacionais e seus familiares. O Brasil recebeu notas vergonhosas em saúde, educação, transportes, segurança pública, estabilidade política e criminalidade.

Uma pesquisa idêntica, apenas entre brasileiros residentes no país, não resultaria muito diferente. No fator criminalidade, por exemplo, os números podem dizer que, entre homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais fatais, o número de mortes violentas intencionais caiu de 64.021 em 2017 para 57.431 em 2018 --mas que país se orgulharia desses números? E as provocadas por intervenção policial subiram de 5,1 mil para 6,1 mil. Você dirá que, não sendo nem policial, nem bandido, essa estatística não o afeta. Só se esquece de que, pela frequência com que os confrontos ocorrem, há sempre a possibilidade de se estar no meio deles.

No Brasil, uma mulher é agredida a cada quatro minutos. As notificações cresceram de 139 mil em 2017 para 145 mil em 2018 e se referem apenas às mulheres que sobreviveram. Entre essas, houve 66 mil casos de violência sexual --180 casos por dia--, dos quais 54% cometidos contra menores de 13 anos. E como saber quantas não notificaram?

No Brasil, morre-se aos 8 anos com um tiro nas costas. Morre-se nas ruas escuras, nas chacinas urbanas, no genocídio rural, nas contendas por terras, por execução, racismo, homofobia e uma miríade de motivos. Em vez de tomar providências para que se morra menos, nossos governantes propõem matar mais.

Mas o brasileiro não tem, como eles, essa curiosa fixação por homens armados e de farda.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Leandro Colon: Tragédia de Ágatha poderia enterrar proposta de Moro que protege policiais

Deputados deveriam homenagear menina morta e jogar fora ideia sobre excludente de ilicitude

O presidente Jair Bolsonaro se calou, e o ministro Sergio Moro (Justiça) divulgou uma nota protocolar sobre o trágico assassinato da menina Ágatha Félix, de 8 anos, no Complexo do Alemão, no Rio.

Moro lamentou a morte e disse confiar que “os fatos serão completamente esclarecidos pelas autoridades”. “O governo federal tem trabalhado duro para reduzir a violência e as mortes no país, e para que fatos dessa espécie não se repitam”.

É de Moro a ideia em discussão na Câmara do excludente de ilicitude, uma espécie de imunidade para policiais e militares que matarem pessoas em serviço. Um “livre para matar”.

A proposta do ministro prevê que o juiz poderá reduzir pela metade ou deixar de aplicar a pena por morte cometida em legítima defesa se o “excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

A menina Ágatha foi baleada nas costas dentro de uma kombi, na companhia da mãe, quando estava a caminho de casa. Segundo parentes, ela foi alvo de disparo da polícia, que buscava atingir um motociclista.

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), desta vez não desceu de helicóptero dando murros no vento. Assim como Moro, ele optou por uma nota oficial, convencional, colocando a menina como mais uma vítima inocente de ação policial.

Se a proposta de Moro valesse hoje, o assassino de Ágatha, sendo mesmo um policial, poderia ter a pachorra de alegar que agiu por medo, surpresa ou quem sabe uma violenta emoção ao alvejar do nada uma kombi.

E, assim, um juiz, inspirado no colega que virou ministro de Bolsonaro ou no que agora é governador do Rio, livraria a pele desse agente.

Ao comentar a tragédia de Ágatha, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), defendeu uma “avaliação muito cuidadosa e criteriosa” sobre o excludente de ilicitude.

Deputados já esvaziaram boa parte do pacote anticrime de Moro. Fariam uma homenagem à menina Ágatha se enterrassem de vez essa proposta que, se um dia for aprovada, poderá proteger policiais assassinos.


Elio Gaspari: Juiz Bretas nega passaporte a Temer e retoma costume da ditadura

Juiz retoma costume da ditadura, que até 1975 fez a mesma coisa com Jango

No dia 12 de julho a Oxford Union, sociedade de debates criada em 1823 por estudantes daquela universidade, convidou o ex-presidente Michel Temer para uma palestra, agendada para 25 de outubro. No início de agosto Temer pediu ao juiz Marcelo Bretas que liberasse o seu passaporte por seis dias, para um bate-e-volta. A decisão demorou mais de dois meses e, no último dia 18, o doutor negou o pedido.

Negando passaporte a um ex-presidente, Bretas retomou o costume da ditadura que até 1975 fez a mesma coisa com João Goulart. (Ele viajava com um documento que lhe havia sido dado pelo presidente paraguaio Alfredo Stroessner). Jango, bem como todos os exilados a quem a ditadura negava passaportes, era adversário do regime e tinha atividade política no exterior.

Temer é um ex-presidente que deixou o palácio depois de entregar a faixa ao seu sucessor eleito democraticamente. Mesmo depois de banida pela República, a família imperial tinha documentos brasileiros e, em 1922, foi mimada com passaportes diplomáticos.

Já passaram pela tribuna da Oxford Union figuras como Winston Churchill, Elton John, Ronald Reagan, Madre Teresa de Calcutá, Albert Einstein e Marine Le Pen. Como toda sociedade de debates, ela estimula a controvérsia.

Negando a Temer o direito de viajar por poucos dias, o juiz Bretas arrisca entrar para a história da Oxford Union como um patrocinador de silêncio. Felizmente existe a possibilidade de um recurso.

O regime democrático brasileiro mostra seu vigor quando se vê que Lula, condenado em duas instâncias, cumpre sua pena em regime fechado, mas dá entrevistas periódicas a jornalistas.

Temer não foi condenado em qualquer instância. Bretas tornou-o réu em dois processos e chegou a prendê-lo numa decisão, revertida pelo Superior Tribunal de Justiça, que lhe delegou o controle do passaporte.

Durante os dias do espetáculo da prisão de Temer apareceram histórias segundo as quais poderia fugir do país. Ele nunca trocou de endereço.

No despacho em que negou o pedido, Bretas diz que “não fosse a decisão contrária de instância superior (...) o peticionante provavelmente ainda estaria preso preventivamente, pois os argumentos que aqui apresentou não foram capazes de alterar meu convencimento quanto à necessidade de sua custódia”.

Não fosse o segundo gol do Uruguai, o Brasil teria ganho a Copa de 1950. Ele prendeu Temer, e o STJ, instância superior, mandou soltá-lo, bola ao centro.

A vida da lei não está só na lógica, mas na experiência. A experiência mostra que negar passaportes (no caso, para uma palestra) faz mal à história de um país. Na direção contrária, faz bem àqueles que se afastam do absurdo disfarçado de lógica.

O chanceler Oswaldo Aranha mandou dar passaportes brasileiros aos comunistas que lutavam na guerra civil espanhola e refugiaram-se na França. O senador baiano Luís Viana ajudou a dobrar o SNI, que negava passaporte ao cineasta Glauber Rocha.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".