Folha de S. Paulo
Bruno Boghossian: Bolsonaro transforma briga no PSL em voto de desconfiança contra governo
Disputa mostra que operação política desvairada do presidente virou fumaça
A guerra no PSL é um retrato acabado da operação política desvairada de Jair Bolsonaro. O presidente usou o Planalto para tentar derrubar o líder do próprio partido --e fracassou; recebeu retaliação de aliados e foi gravado por um correligionário; depois, demitiu a líder do governo, a quem acusa de traição. Tudo isso em apenas 24 horas.
Ao mergulhar na disputa pelo comando da legenda, Bolsonaro lançou uma espécie de voto de desconfiança dentro de sua própria sigla. O presidente pediu um sinal de apoio a si mesmo quando apelou aos deputados para que destituíssem o líder do PSL. Para piorar, ofereceu o filho Eduardo como substituto e foi obrigado a ver parte da sigla reagir contra alguém com seu sobrenome.
A retirada de Joice Hasselmann da liderança do governo no Congresso é um sintoma claro de que a expressão política do bolsonarismo virou fumaça (se é que um dia existiu).
O presidente se livrou imediatamente da deputada, porque ela se recusou a assinar a lista que daria o comando do PSL na Câmara à facção alinhada ao Planalto, mas manteve no posto o líder do governo no Senado mesmo depois que ele foi alvo de uma operação da Polícia Federal.
Confrontado com o noticiário sobre as batalhas, Bolsonaro dizia que era tudo fofoca. A gravação em que ele pede apoio a deputados e o áudio em que o líder do PSL promete "implodir o presidente" mostram que o mexerico é dos grandes.
Deputados que foram ao Planalto relataram que a ordem de Bolsonaro seguia a linha: "assina, senão é meu inimigo". Foi o próprio presidente, portanto, quem incluiu seus impulsos personalistas incorrigíveis no embate pelo comando da sigla.
O capital eleitoral que levou Bolsonaro ao palácio e 53 deputados ao Congresso escorre pelo ralo numa enxurrada. Os sinais da desordem sempre estiveram aí --da absoluta incompetência do governo na articulação ao comportamento juvenil da bancada da selfie. A disputa só deixou mais visível o diploma de baixo clero pendurado na parede.
Bruno Boghossian: Debate sobre prisões no STF é marcado por distorção e terrorismo
Supremo precisa deixar dados enganosos de lado e interpretar a Constituição
Ao recorrerem da decisão de Marco Aurélio Mello que mandou soltar presos condenados em segunda instância, em 2018, procuradores alertaram que aquela medida provocaria "a soltura de 169 mil presos". O número impressionou, mas era falso. O Conselho Nacional de Justiça mostrou, agora, que 4.895 pessoas se encaixam nessa situação.
Dados enganosos desvirtuaram o debate sobre a execução de penas no país, que o STF retoma nesta quinta (17). Em vez de discutir a interpretação da lei, alguns atores optaram pelo terrorismo argumentativo.
Quando Dias Toffoli anunciou o julgamento da ação que pode rever o entendimento do Supremo sobre a prisão após condenação em segundo grau, o presidente da Associação Nacional do Ministério Público disse que o tribunal mandaria assassinos e estupradores para as ruas.
"A decisão vai alcançar todo mundo. Vamos ter que estender esse entendimento para todos os crimes", disse Victor Hugo Azevedo.
Como o promotor conhece a lei, é melhor acreditar que ele tenha adulterado os fatos para impressionar. O ministro Luís Roberto Barroso tentou trazer a discussão para o mundo real: "Os que são criminosos violentos, em muitos casos se justificará a manutenção da prisão preventiva".
Defensor da execução antecipada da pena, Barroso disse que o que está em jogo "são os criminosos de colarinho branco e os corruptos". Mesmo nessas situações, porém, há aqueles que ficam presos antes da condenação, como Eduardo Cunha.
O Supremo precisará deixar as distorções de lado e equilibrar a Constituição, que determina claramente a presunção de inocência até que todos os recursos tenham sido julgados, com seu desejo de fazer justiça.
Em 2009, quando o tribunal discutiu o assunto, Eros Grau defendeu a prisão apenas após o trânsito em julgado: "A prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição, melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar".
Elio Gaspari: O fator 'Lula Livre'
Bolsonaro criou agenda de antagonismos, mas não regularizou a quitanda do governo
Lula deixará a carceragem de Curitiba. Talvez seja logo, talvez demore algumas semanas ou poucos meses. Quando isso acontecer, alterará o medíocre cenário político que se instalou no país. Os problemas de Pindorama são bem maiores que a caixa do PSL e os bate-bocas do senador Major Olimpio chamando os filhos do presidente de "príncipes" e sendo chamado por um deles de "bobo da corte".
No final do mês completa-se um ano da vitória de Jair Bolsonaro e de uma espécie de amnésia em relação aos 47 milhões de votos (45%) obtidos pela chapa petista. Nem todo mundo que votou no capitão queria um governo como o que se instalou.
Livre ou, pelo menos, falando à vontade, Lula ocupará um espaço que há um ano seria impensável. Isso porque Bolsonaro conseguiu criar uma agenda de antagonismos incendiária e cosmopolita, porém incapaz de regularizar a venda de berinjelas pela quitanda do governo.
O capitão alimenta contrariedades, mas não enfrenta algo que se possa chamar de oposição. Sergio Moro e a Lava Jato não são mais o que foram e o discurso da lei e da ordem desembocou numa constrangedora necropolítica.
Num de seus telefonemas grampeados, falando com o então vice-presidente Michel Temer, Lula disse que o combate à corrupção, encarnado por Moro, "foi sempre um alimento para golpistas no mundo inteiro, e quem ganhou foi a negação da política".
Exagerava, mas horas depois Moro explodiu sua nomeação para a chefia da Casa Civil liberando impropriamente a gravação de um telefonema de Dilma Rousseff. (Moro determinara o fim do grampo às 11h12 daquele dia e o telefonema de Dilma ocorreu às 13h22. A conversa com Temer das 12h58 só foi revelada em setembro passado.)
Um braço da Lava Jato varejou o gabinete do líder do governo no Senado, doutor Fernando Bezerra Coelho. Ele foi ministro da Integração Nacional de Dilma e seu filho foi ministro de Minas e Energia de Temer. Bolsonaro manteve o senador na liderança de sua bancada. Como disse o príncipe de Salinas, do "Leopardo", as coisas mudam, para pior. Lula ajudou a criar essa piora, mas, do jeito que ela está, não faz parte dela.
O fator Lula Livre tem muito de imprevisível. Afinal, ele mesmo já se definiu como uma "metamorfose ambulante". Olhando-se para os 40 anos de sua atividade política, pode-se apenas especular que repita o jogo de espelhos em que usa um discurso radical e moralista para assustar os adversários, transformando-se em seguida num tolerante moderado capaz de pacificar suas próprias fileiras, apagando incêndios que ajudou a soprar.
Esse foi o dirigente sindical de grandes greves perdidas do ABC e esse foi o "sapo barbudo" do temido PT do final do século passado. Esse foi também o candidato a presidente que em 2002 assustou o andar de cima e adoçou-o com a "Carta aos Brasileiros" de Antonio Palocci. Ele viria a se transformar num petista milionário, quindim dos amedrontados.
Mesmo na carceragem de Curitiba, esse foi o cacique que bancou a permanência de Gleisi Hoffmann na presidência do partido, contendo articulações mais moderadas. A moderação, quando tiver que vir, se vier, virá dele.
Bruno Boghossian: Bolsonaro recebe os primeiros pingos da tempestade do PSL
Laranjal fabrica grupo de oposição dentro de casa e cria risco para o presidente
Os deputados da comissão que discute mudanças na aposentadoria de militares ficaram confusos. Nesta terça (15), o PSL se posicionou contra uma proposta do governo e se aliou ao PSOL para tentar ampliar benefícios de patentes mais baixas. "Como discípulo de Bolsonaro, eu venho avisar que o PSL vai se manifestar dessa forma", ironizou o líder da sigla, Delegado Waldir.
O presidente começou a receber os pingos da tempestade provocada pelo escândalo do laranjal do PSL. A disputa pelo controle da máquina partidária, turbinada pelo próprio Bolsonaro, fabricou um grupo de oposição dentro de sua própria casa.
A operação realizada contra o presidente do partido de Bolsonaro, suspeito de desviar dinheiro de candidaturas femininas, aprofundou uma divisão que já parecia irreversível.
Em 24 horas, a Polícia Federal pôs de pé uma operação na casa do deputado Luciano Bivar. Aliados dele acreditam que a ação foi feita sob medida para alimentar o discurso de Bolsonaro contra a cúpula da sigla e abrir a porta para a debandada de deputados do PSL rumo a outro partido. A PF investiga esse caso há meses, mas só agora obteve autorização judicial para buscar documentos. A teoria foi suficiente, entretanto, para dar início a uma guerra.
Bolsonaro só não calculou as possíveis retaliações. Além da questão dos militares, o líder do PSL também se alinhou à esquerda na votação de uma medida que reorganizou a estrutura dos ministérios do governo.
O presidente enxerga no laranjal uma maneira de enfraquecer Bivar. Ele conhece bem, no entanto, o risco fabricado pela interseção entre esses casos e sua própria candidatura.
Os responsáveis pelo esquema em Minas guardavam uma planilha com gastos de campanhas que beneficiaram também a chapa presidencial. O próprio Bivar já disse à Folha, numa entrevista em fevereiro: "Qual era o objetivo da nossa campanha? Era o presidente da República. Então qualquer candidato que distribuísse o número 17, que foi o grande marketing nacional, seria importante".
Alvaro Costa e Silva: A cruzada dos marombados
Dois deputados invadem o tradicional colégio Pedro 2º e recebem uma lição dos alunos
Na sexta-feira (11), dois deputados marombados —um estadual, outro federal— invadiram o colégio Pedro 2º, em São Cristóvão, com a desculpa de fazer uma vistoria. Segundo eles, tratava-se de “uma nova cruzada pela educação”. Como não tinham autorização para inspecionar o local, o reitor Oscar Halac tentou impedir a entrada dos dois na instituição fundada em 1837. Eles insistiram e, armados com celulares, fizeram imagens de crianças, também sem autorização.
No melhor estilo Festival de Besteiras que Assola o País, o marombado federal tentou se explicar: “Tiramos fotos de vários locais: de murais, de infiltrações, de salas de aula que tivessem livros ou qualquer coisa também. Nosso intuito não é ideologia. Contudo, se for visto ideologia, é evidente que também iremos catalogar e levar ao ministério para que eles também possam tomar medidas, caso haja medidas a serem tomadas”.
Pelo discurso incoerente e mal construído, o invasor faria melhor se voltasse aos bancos escolares. Mas preferiu parar em frente a um mural e questionar um cartaz com referência a mortes de crianças a tiro nas favelas. O diálogo travado a seguir foi puro Twitter. Reitor: “O número de mortes está imenso no Rio”. Marombado: “De bandido”. Reitor: “Mas tem criança de oito anos que não pode ser bandido”. Marombado: “Já fez a perícia?”. Reitor: “Pra saber se ela é bandida?”. Marombado: “Não, para saber se ela foi morta por policiais”.
Ambos foram expulsos pelos alunos, que improvisaram um coro: “Ô, Marielle, quero justiça, não aceitamos deputado da milícia”. Explica-se: os marombados são aqueles que, em setembro do ano passado, durante um comício, quebraram uma placa em homenagem à vereadora.
Se gostassem de ler e não de puxar ferro, eles conheceriam a obra de Nelson Rodrigues, para quem o aluno do Pedro 2º “é a única sanidade mental do Brasil”.
Ranier Bragon: Aproxima-se a hora do acerto de contas entre STF, Lula e a Lava Jato
Pêndulo da história se move, e a Mãos Limpas brasileira encara seu julgamento
Receba minhas condolências se você foi um dos que acreditaram na lorota do capitão que, 28 anos depois de chefiar um clã suspeito de abrigar funcionários fantasmas, rachadinhas, checões do Queiroz e outras mutretas, chegaria para acabar com toda essa safadeza aí.
Esse conto do vigário fica mais evidente quando se constata que é justamente no governo e sob o beneplácito de Jair Bolsonaro que o Supremo Tribunal Federal parece ter encontrado força política para o acerto de contas com a maior operação anticorrupção do país, a Lava Jato.
O pêndulo da história se moveu e, por uma série de fatores, ministros se veem agora seguros para confrontar a Mãos Limpas brasileira e seus evidentes abusos, cometidos sob a guarida de seus inegáveis méritos.
Bolsonaro queda-se mudo, feliz com a liminar do tribunal que barrou as investigações contra o filhote Flávio --e que afetou outras, por tabela, mas se o filé mignon da prole está garantido, que se dane o resto.
Nesta quinta (17), o STF inicia a sessão que pode rever a permissão de prisão após a segunda instância. O atual entendimento da corte é um marco contra a impunidade, mas essa não é uma mera questão legal.
Personagem de 9 a cada 10 frases de bolsonaristas e preso há 556 dias, o ex-presidente Lula pode se beneficiar tanto dessa reviravolta quanto do julgamento, em breve, da suspeição de Sergio Moro --ex-manda-chuva da Lava Jato e hoje bolsonarista-- na condução de seu caso.
Há fortes indicativos de que Lula recebeu favores imorais nos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. Como qualquer um, porém, merecia julgamento imparcial e punição condizente com o delito, caso provado. Os atos processuais e os indícios de conluio entre Moro e acusadores revelados pela Vaza Jato mostram cenário diverso e expõem ainda mais o exagero da pena aplicada pelo ex-juiz (9 anos e meio) e reajustada pelo lava-jatista TRF-4 (12 anos). Ao que tudo indica, aproxima-se a hora do acerto de contas entre o Supremo, Lula e a Lava Jato.
Ruy Castro: A nova normalidade
O populista pisa nos princípios políticos e parte do povo já não acha isso grave
Gérard Araud, ex-embaixador francês em Washington, foi o diplomata que, há tempos, respondeu à infeliz declaração de Jair Bolsonaro de que devia ser “insuportável viver em certos lugares da França”, por causa dos imigrantes. Araud disse apenas: “63.880 homicídios no Brasil em 2017; 825, na França. Sem comentários”. Observador da avalanche populista que gerou figuras como Bolsonaro e Donald Trump, ele deu uma pertinente entrevista a Fernando Eichenbergh, no Globo do dia 6 último. Eis alguns trechos.
“As pessoas de esquerda estão erradas em crer que um populista é um conservador como qualquer outro. Ele governa também contra os conservadores. O populista pisa sobre os próprios princípios da política. Na democracia, há o respeito, você não insulta, não ataca a vida privada. Mas os dirigentes populistas zombam totalmente dessas convicções. E se descobre que, no fim das contas, parte da população não considera isso grave. Torna-se uma nova normalidade.
“Me pergunto o que ocorrerá quando Bolsonaro e Trump desaparecerem da cena política. Tenho dúvida se as coisas voltarão a ser como antes. A primeira lição é a degradação do discurso político.
“O Brasil comete um erro pensando que obterá benefícios ao se alinhar a Trump. Quando Trump diz ‘America first’, significa ‘America alone’. [...] Ele não tem aliados, amigos ou inimigos. Que o filho de Bolsonaro seja embaixador nos EUA, não haverá nenhuma consequência para Trump. Dois continentes estão ausentes da sua política: a África e a América Latina. Nesta, só lhe interessa o México, por causa da imigração, e a Venezuela, pela crise política. Para o resto do continente, é a total indiferença.
“A palavra do especialista não existe mais. E há as mídias sociais. Antes, quatro bêbados em um bar falavam uma bobagem, mas aquilo ficava entre eles. Hoje, falam nas redes sociais e se tornam 4.000 imbecis”.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Leandro Colon: Brasil envergonhado
O país da casa sem banheiro de Antonete deveria priorizar o acesso ao saneamento básico
O Brasil precisa ter mais vergonha do Brasil. Vergonha dos governos federais e estaduais, do Poder Legislativo e dos lobbies público e privado que deram sua parcela de culpa para o cenário tenebroso do saneamento básico no país.
Desde a última quarta-feira (9), a Folha tem publicado uma série de reportagens sobre o tema. Os dados e as histórias contadas são o retrato de um Brasil esquecido, atrasado, elitista e abandonado pelo estado.
Cerca de 100 milhões de brasileiros, quase metade da população, não têm acesso a coleta e tratamento de esgoto. E 35 milhões vivem sem rede de abastecimento de água, item essencial para o mínimo de estrutura.
Os repórteres Natália Cancian e Pedro Ladeira encontraram Antonete de Castro Monteiro, 50, na periferia de Ananindeua, no Pará. A casa dela não tem pia, torneira, água potável, e o mais assustador: falta banheiro.
“À noite, faço as necessidades num saco, guardo, deixo amanhecer e levo lá”, contou. “Lá” é a mata atrás da casa de madeira. Sim, ela despeja tudo no mato. Antonete toma banho de balde no quintal, com água retirada de um poço raso do terreno.
Há milhões de Antonetes por aí, personagens de um descaso governamental de décadas. As perspectivas são desanimadoras. Se nada mudar no curto prazo (e sabemos que, provavelmente, nada vai mudar), o país atrasará em pelo menos 30 anos a meta de 100% de acesso a saneamento universal (água e esgoto tratados) prevista para o ano de 2033.
Como um país quer crescer e desenvolver em tantas frentes se não oferece condições mínimas de dignidade para a sua população? Não garante nem o “básico” do que é classificado como saneamento básico.
Um caminho é estimular os investimentos da iniciativa privada na área. Apoiada pelo governo Bolsonaro, a ideia patina no Congresso pelas razões de sempre: os lobbies de setores públicos (governadores e companhias estaduais) e particulares.
O Brasil de Ananindeua, da casa sem banheiro de Antonete, deveria ter pressa para sair desse abismo.
Elio Gaspari: A banca viciou-se nos juros altos
Bancos lucram tanto com quem paga que isso compensa calotes que tomam
O economista-chefe da Febraban, Rubens Sardenberg, fez uma estranha associação entre os juros altos da banca e a situação da economia: “O aumento da inadimplência, a queda lenta do desemprego e o baixo crescimento da renda criam alguma cautela do ponto de vista de quem está concedendo o crédito”.
A cautela poderia levar a uma menor oferta de crédito, não a uma subida nas taxas de alguns empréstimos. A Selic está em 5,5% ao ano, algumas taxas caíram, mas a mordida anual dos juros do cartão de crédito parcelado foi de 163,1% para 177,3%.
Indo-se ao livro “Uma Chance de Lutar”, a autobiografia da senadora Elizabeth Warren, candidata a presidente dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, vê-se a seguinte cena:
Pouco antes da crise de 2007 ela deu uma palestra para executivos do Citibank e disse que eles poderiam conter as inadimplências (e as bancarrotas familiares) parando de emprestar a quem estava em dificuldade.
Ao que um dos caciques presentes tomou a palavra: “Professora Warren, gostamos muito de sua exposição, mas não temos a intenção de parar de emprestar a essas pessoas. São eles quem garantem a maior parte de nossos lucros”.
Cobrando juros altos para quem parcela as dívidas do cartão de crédito a banca lucra tanto com quem paga que isso compensa os calotes que toma.
O Citi continuou apostando e nunca mais convidou a professora Warren. Em 2008 o banco foi às cordas, salvou-se com um socorro de US$ 20 bilhões da Viúva e hoje é uma sombra do que foi. Já a professora elegeu-se senadora e lidera (por pouco) algumas pesquisas de preferências entre os candidatos do Partido Democrata.
Vargas Llosa mente, mas pesquisa
Nobel de Literatura, escritor peruano acaba de publicar seu 19º romance
Mario Vargas Llosa acaba de publicar seu 19º romance, “Tiempos Recios”, (“Tempos Difíceis”). Conta os caminhos de Marta, a “Miss Guatemala”, uma bonita mulher que atravessa a história da América Latina na segunda metade do século passado.
Prêmio Nobel de Literatura em 2010 e candidato derrotado à Presidência do Peru em 1990, Vargas Llosa conhece a política e a escrita. Ele sustenta que seu livro “é um romance e não um livro de história, mas digamos que pesquiso para mentir com conhecimento de causa”.
Assim como fez com Canudos em “A Guerra do Fim do Mundo” e com a ditadura da República Dominicana do Generalíssimo Rafael Trujillo em “A Festa do Bode”, Vargas Llosa move seus personagens dentro de uma moldura histórica.
Ele sustenta que se o governo dos Estados Unidos não tivesse manipulado o fantasma do comunismo em 1954 para derrubar o presidente reformista Jacobo Arbenz, da Guatemala, Fidel Castro não teria sido o que foi. Por coincidência, quando Arbenz caiu, um jovem médico argentino estava na Cidade da Guatemala. Chamava-se Ernesto Guevara.
Vargas Llosa mente, mas pesquisa, pois identifica um homem da CIA, “El Invisible”, no golpe da Guatemala e quando vai-se ver, o cidadão passou pelo Brasil em 1970 e chefiou as operações clandestinas na América Latina até o golpe chileno de 1973.
“Miss Guatemala” havia sido amante do coronel que a Central Intelligence Agency empreitou para derrubar Arbenz. Passou-se para a vida do chefe da polícia de Trujillo e, em todos os casos, foge espetacularmente quando seus protetores são assassinados ou caem em desgraça. Nisso, sempre tem a ajuda da CIA. Na velhice, persistia na obsessão anticomunista.
À primeira vista, os “Tempos Difíceis” tomaram conta da segunda metade do século passado, mas, olhando-se bem, continuam. O anticomunismo era apenas o disfarce de algo mais velho, duradouro e profundo.
Bruno Boghossian: Governo ignora alertas e manipula debate sobre pacote de Moro
Ministro contaminou projeto de combate ao crime com lei mais frouxa para policiais
Sergio Moro disse que vai buscar “denominadores comuns” para aprovar seu pacote de projetos de combate ao crime. O anúncio conciliatório, depois de uma série de choques com a Câmara, foi seguido de um argumento traiçoeiro. O ministro afirmou que as propostas recebem críticas de pessoas que “se dão bem dentro desse sistema”.
O governo aposta na manipulação de uma sociedade polarizada para aplicar suas vontades. Ao insinuar que a resistência serve a corruptos e criminosos, Moro passa o recado de que a lei pode ignorar muita gente que vive o dia a dia da violência.
Na terça (8), Bruna Silva estendeu um uniforme escolar manchado de sangue na mesa do presidente da Câmara. Em junho do ano passado, Marcos Vinícius, de 14 anos, morreu com um tiro nas costas durante uma operação na favela da Maré, no Rio.
“Eu mandei meu filho impecável para a escola, e o Estado me devolveu ele assim”, disse a mãe. Ela diz que o disparo partiu da arma de um policial e pediu que os deputados não aprovem a proposta de imunidade para agentes que matam em serviço. “Vai ser muito sangue derramado.”
O projeto traz avanços que podem ajudar na elucidação de crimes, como a ampliação da coleta de DNA de criminosos, e que podem sufocar facções que controlam o tráfico de drogas, como o endurecimento de regimes de segurança máxima.
Moro, no entanto, abraçou uma obsessão de Jair Bolsonaro e contaminou o próprio pacote. Embora o ministro diga que não instituirá uma “licença para matar”, os itens que afrouxam punições nas mortes provocadas por policiais são um risco.
Na última semana, uma nota produzida pela Comissão Arns afirmou que esses tópicos deixam uma “porta aberta para que o agente, mesmo em legítima defesa, se exceda dolosamente”. Para o grupo de defesa dos direitos humanos, essas normas seriam uma ameaça para os cidadãos.
“Estamos diante de um arcabouço legislativo que, ao contrário de proteger a vida, estimula a sua destruição”, diz o texto.
Bruno Boghossian: Brasil precisa provar que não comprou pastel de vento de Trump
Apesar de declarar apoio, EUA não apresentam data e etapas para entrada na OCDE
A diplomacia brasileira vai ter trabalho para provar que não anda comprando pastéis de vento na banca de Donald Trump. O governo americano faz declarações públicas e inequívocas de apoio à entrada do Brasil na OCDE, mas agora dá sinais claros de que o país precisa esperar para conseguir o que quer.
Em março, Jair Bolsonaro deixou a Casa Branca com uma iguaria crocante e dourada nas mãos. O endosso público de Trump à candidatura brasileira à organização foi comemorado pela equipe econômica e pelo Itamaraty. O recheio ficou por lá.
O governo se apressou em recompensar os EUA. No ato, os brasileiros abriram mão do tratamento especial que é dado a países emergentes na Organização Mundial do Comércio, uma demanda de Trump. Lançaram, também, cotas generosas de importação de trigo e etanol, beneficiando os produtores americanos.
O Brasil ainda espera gestos mais concretos. Em agosto, os EUA enviaram à OCDE a indicação oficial da Argentina e da Romênia ao clube, segundo a agência Bloomberg. Nesta quinta (10), a chancelaria americana declarou apoio aos brasileiros, mas falou em "ritmo controlado" de adesão. Depois, emitiu nota para dizer que faria um "forte empenho" pela entrada do país na organização.
A candidatura brasileira continua de pé, e tudo indica que Trump permanece disposto a patrocinar o país. O que abala negociadores do Itamaraty e outros integrantes do governo é o silêncio americano em relação a prazos e etapas objetivas para o processo de adesão.
Bolsonaro aprende que esse é um jogo de interesses. Os americanos têm uma estratégia própria para a OCDE, que independe de seus compromissos com o Brasil: querem evitar o inchaço da organização e, por isso, reduzem a velocidade das novas entradas no grupo.
Os caminhos da diplomacia costumam ser longos. O governo brasileiro pagou um preço ao seguir a rota dos americanos, mas precisa estar ciente de que Trump não levará o país a atalhos ou passagens secretas.
Bruno Boghossian: Mistério de Bolsonaro sobre prêmio a Chico é ato de governo mesquinho
Presidente não consegue dissociar administração pública de suas paixões ideológicas
Em 30 de maio de 2010, Ferreira Gullar fez uma de suas críticas ácidas ao então presidente Lula durante uma entrevista à Folha. "O Lula é um farsante, não merece confiança", disparou. No dia seguinte, o escritor foi anunciado vencedor do Prêmio Camões, entregue pelos governos do Brasil e de Portugal.
O petista assinou o diploma que foi entregue a Gullar meses depois. O poeta recebeu um cheque de € 100 mil e continuou fazendo comentários sobre política. Declarou voto em José Serra e chamou Lula de "uma pessoa desonesta, um demagogo".
Jair Bolsonaro mostra que não consegue dissociar atos de governo de suas paixões ideológicas. Ao fazer mistério sobre a assinatura do certificado do Prêmio Camões concedido a Chico Buarque neste ano, ele submete o governo a suas vontades pessoais mais mesquinhas.
A ala radical do Planalto pressiona Bolsonaro a não incluir seu nome no documento, já que o músico fez campanha para Fernando Haddad e visitou Lula na prisão. Na terça (8), o presidente quis fazer piada: "Até 31 de dezembro de 2026 eu assino".
Chico respondeu nas redes sociais, em tom político. "A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prêmio Camões."
Em maio, quando Chico foi escolhido, o ministro Osmar Terra ficou furioso e quase demitiu o secretário de Cultura, Henrique Pires. Ele deixou o cargo em agosto, devido a outras interferências em sua área.
A cegueira política do governo neste caso é a mesma que faz com que Bolsonaro se cale diante da morte de João Gilberto, mas homenageie o artista MC Reaça, que apoiou sua campanha. Ele se suicidou em junho. Uma mulher diz que foi espancada por ele momentos antes.
Na cerimônia do Camões de 2016, o premiado Raduan Nassar disse que Michel Temer era "repressor" e havia praticado um golpe. Houve bate-boca entre o público e o ministro Roberto Freire, que pontuou: "Quem dá prêmio a adversário político não é ditadura". Bolsonaro gosta de dar sinais no sentido contrário.