Folha de S. Paulo

Demétrio Magnoli: Da revolução à revolta

Os governos nascem das urnas; as revoltas, das ruas

Vladimir Putin atribuiu a revolução ucraniana de 2014 a um complô americano. O governo chinês menciona a “mão negra” da Casa Branca quando fala das manifestações em Hong Kong. Segundo Filipe Martins, o sábio assessor internacional do Planalto, “os recentes movimentos de desestabilização de países sul-americanos” derivam de “uma estratégia definida pela ditadura cubana, por sua proxy venezuelana e pela rede de solidariedade que as sustenta”. Quando o temível Foro de São Paulo estala os dedos, milhares erguem barricadas em Quito e Santiago...

A razão conspiratória é o lar compartilhado por regimes ditatoriais e ideólogos primitivos. A agitação social não se restringe à América do Sul. No Líbano e no Iraque, protestos de massa coincidiram com as mobilizações chilenas. Bem antes do Equador, os “coletes amarelos” conflagraram as cidades francesas, motivados também por aumentos nos combustíveis. Há algo aí, além da coincidência temporal.

São histórias singulares, países diferentes, modelos distintos. Numa ponta, a França social-democrata, com desigualdades moderadas e taxas letárgicas de crescimento econômico. Na outra, o Chile liberal, com rápida expansão econômica e fortes contrastes sociais. Porém, em todos os casos, a centelha da revolta são cortes de subsídios de transportes, elevações de preços da gasolina, tributos sobre produtos ou serviços de consumo geral. No Líbano, a faísca foi uma taxa sobre ligações por WhatsApp.

A primeira década do século, um longo ciclo de expansão mundial, deixou um rastro de gastos públicos insustentáveis. Os ajustes em curso, que refletem a redução do crescimento global e se destinam a reequilibrar as contas públicas, são os alvos das manifestações. Não é pelos 20 centavos: o conflito organiza-se em torno de contratos sociais em mutação. Como repartir a conta da austeridade? A pergunta, cedo ou tarde, chegará ao Brasil, como uma mancha de óleo. Tomem nota, Bolsonaro e Guedes.

Os governos nascem das urnas, sob a lógica da dinâmica político-partidária. As revoltas nascem das ruas, na moldura da desintermediação política generalizada. Os partidos declinam, as redes sociais tomam o lugar que foi deles. Nas margens, minorias radicalizadas explodem coquetéis molotov, enfrentam a polícia, desafiam até mesmo soldados. O quebra-quebra carece de respaldo majoritário. Contudo, que ninguém se iluda: os manifestantes contam com extenso apoio popular.

Não são levantes “espontâneos”, algo inexistente no planeta da política. Nas ruas, destacam-se as bandeiras de sindicatos, entidades estudantis, grupos organizados. Mas a desintermediação tem um preço, expresso pela ausência de lideranças definidas e de agendas nítidas de reivindicações.

As redes sociais operam como máquinas de replicação. O recuo de Emmanuel Macron, que anulou o tributo sobre a gasolina, animou mobilizações em terras distantes. A retirada do equatoriano Lenin Moreno ajudou a acender o pavio em Santiago. No fim, sitiado, o chileno Sebastián Piñera desistiu do discurso da “guerra”, ofereceu desculpas ao povo e improvisou um pacote social. Sem um Pinochet (ou um Xi Jinping), o programa ultraliberal converte-se em utopia: uma ideia fora do tempo.

Derrubar o governo —a meta extrema emergiu em todos os lugares, logo depois da conquista inicial. Os “coletes amarelos” pedem nada menos que a renúncia de Macron. A mesma exigência surgiu no Equador e, nesses dias, ecoa no Chile. A revolução, venerável senhora, o maior dos mitos modernos, levantou-se da cadeira de balanço?

Revolução, só com intermediação política. Não basta clamar pela queda do governo: é preciso definir os contornos de um poder alternativo e o desenho de um novo contrato social. A era das redes sociais, esse outono dos partidos, assinala um retrocesso. A revolução política cede à revolta social.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Mundo político refaz as contas com possível libertação de Lula

Dirigentes partidários temem que discurso de centro seja engolido por radicalização

Os caminhos que se abrem no Supremo para uma possível libertação de Lula acordaram até os políticos mais céticos em relação ao retorno do petista às ruas. Eles sabem que o ex-presidente ainda depende de um conjunto de decisões judiciais para recuperar e manter o direito de ser candidato, mas é consenso que o jogo partidário e eleitoral mudará consideravelmente.

Ainda que não possa voltar às urnas, o petista terá papel de relevo numa esquerda combalida. Na ponta direita furiosa e no desmilinguido centro político, também já existe gente refazendo as contas.

Uma eventual vitória de Lula nos tribunais deve dar fôlego à turma do PT que sustentou a campanha obstinada por sua libertação. Liderada por Gleisi Hoffmann, presidente da sigla, essa ala manteve o discurso quase como bandeira única e, agora, está disposta a colher os frutos.

Os adeptos da doutrina Lula Livre guardam mágoa de aliados que não trataram a defesa do petista como prioridade. Se o ex-presidente estiver disposto a buscar protagonismo num campo de esquerda ainda esvaziado, pode reeditar o choque interno que acabou isolando personagens como Ciro Gomes em 2018.

Na outra ponta do espectro, a direita bolsonarista não consegue disfarçar a satisfação de ver Lula nas ruas novamente.

Encarcerado e tratado como uma ameaça, ele rendeu impulso a Jair Bolsonaro para chegar ao Planalto. De volta ao jogo político, ajudará a aglutinar o eleitorado antipetista de modo contínuo.

A expectativa de reedição dessa polarização causa pânico a grupos políticos que buscaram o centro na última campanha presidencial e fracassaram. Para eles, se Lula e Bolsonaro se encontrarem como antípodas, não sobrará mais espaço.

Quem aposta em Luciano Huck, por exemplo, acha que o global, com jeito de bom moço, pode ser engolido num ambiente radicalizado. Restaria a João Doria gritar bordões antipetistas com mais vigor que Bolsonaro --embora muitos dirigentes duvidem que isso seja possível.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaristas denunciam bolsonarismo

Novo caso Queiroz leva mais gente do PSL a sugerir que há podres no governismo

Desde que começou o furdunço no PSL, bolsonaristas engrossam a lista de denúncias contra o bolsonarismo. É constrangedor dizer tal obviedade. O assunto é do conhecimento de qualquer leitor de jornais, mas as elites fazem cara de paisagem diante do monte crescente de bodes mortos na sala.

Sendo sarcástica, a gente pode dizer que se trata de um tipo novo do crime de ocultação de cadáver. Em vez de desaparecer com o morto, as pessoas ensaiam uma cegueira quando veem a carcaça do bicho.

Vão desver também o novo caso Queiroz? Fabrício Queiroz foi flagrado a discutir nomeações no Congresso e os meios de ganhar “20 continho aí” com essa mumunha, como revelou o jornal O Globo.

Por enquanto, não é possível saber se Queiroz era só garganta ou se de fato traficava influência. Mas tem gente com conhecimento de causa. Ao saber da história dos “20 continho”, o deputado federal Delegado Waldir (PSL-GO) aproveitou a oportunidade para cumprir um tico da sua promessa de “implodir” Bolsonaro.

Waldir era líder do PSL na Câmara. Caiu em desgraça no bunker presidencial, foi frito por Bolsonaro e perdeu o filé mignon da liderança para Eduardo, o filho 03. Ao saber dos “20 continho” de Queiroz, o deputado observou:

1) “em nenhum momento, a rachadinha parou”; “Queiroz continua operando”;

2) “ao fingir que a corrupção não ocorre, é visível que ele [Bolsonaro] se afastou das propostas de campanha, e nossa ala [do PSL] não aceita isso, ao contrário da ala bolsonarista”.

Queiroz, como bem se sabe, foi assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio e amigão de Jair Bolsonaro por muitos anos. É acusado de gerenciar o esquema de rachadinhas no gabinete estadual do filho 01 e fazia um meio de campo da agora família presidencial com famílias milicianas.

Delegado Waldir prometeu “implodir” Bolsonaro quando explodiu o salseiro do PSL, que teve origem na série de reportagens desta Folha sobre o laranjal do partido na campanha de 2018. Por falar nisso,
a deputada federal Soraya Manato (PSL-ES) disse em plenário que o PSL teve candidatos laranja, como “em tudo que é partido”.

Ainda nessa refrega, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) também foi degolada. Em um arranca-rabo com os filhos do capitão pelas redes insociáveis, disse saber “o que eles fizeram no verão passado”, além de acusar a filhocracia de manter um esquema clandestino de propaganda e difamação digital, talvez no próprio Planalto.

Do outro lado do balcão pesselista, pró-Bolsonaros, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) escreveu a colegas do partido que teria “muita coisa” para “ferrar”, digamos, o Parlamento; que iria “bagunçar o coreto de todo mundo” e “sacudir o Brasil”. Silveira procurava assim se defender de uma ameaça de cassação por ter grampeado uma reunião de amotinados do PSL.

“Garanto que não estão acostumados com alguém como eu”, arrematou, com realismo autorreflexivo. Mas o que teria a dizer esse “alguém como eu”? Saberá Deus, mas Silveira fez campanha vilipendiando a memória de Marielle Franco. Do alto de um palanque, quebrou uma placa com o nome da vereadora assassinada, provavelmente por milicianos próximos daqueles amigos do Queiroz.

Com Queiroz o círculo parece se fechar, mas o circo de aberrações na verdade está com as portas abertas: “o espetáculo começa quando você chega”.

Polícia, procuradores, parlamentares, alguém vai?


Vinicius Torres Freire: Próximo conflito - servidores federais

Sem cortar despesa com funcionários, teto de gastos e governo estouram em 2 anos

Nas próximas semanas, o governo começa um conflito sério com servidores federais e com todos os defensores de gastos obrigatórios mínimos com saúde e educação. Caso seja derrotado, é razoável esperar que o funcionamento da máquina do governo se torne inviável na virada de 2021 para 2022, no mais tardar.

“Inviável” significa não ter dinheiro para pagar despesas como serviços de tecnologia da informação dos quais dependem o funcionamento da Receita e do INSS, por exemplo, o que parece, na prática, impossível.

A alternativa seria dar cabo do teto de gastos, um enorme revertério, vetado pelo menos pela equipe econômica de Jair Bolsonaro.

O talho, portanto, teria de ser aprovado até o ano que vem, ano de eleição: mais conflito.

“Conflito” significa criar uma regra extra de contenção de despesas que implica, de um modo ou de outro, o corte de salários do funcionalismo, o que em tese inclui militares, Polícia Federal e professores das universidades federais, para citar apenas categorias politicamente sensíveis. A depender da regra de contenção que venha a ser aprovada, o corte de despesas com o funcionalismo pode durar anos seguidos.

Além disso, pretende-se dar fim da obrigação constitucional de gastar um mínimo em saúde e educação.

No caso estadual e municipal, a norma talvez seja relaxada: seria garantido um mínimo para a soma de gastos em saúde e educação, cabendo a cada Assembleia ou Câmara de Vereadores decidir a prioridade, o que é racional. Algumas cidades são obrigadas a fazer gastos inúteis ou de fantasia em escolas que não precisam mais de verba, enquanto postos de saúde não têm ultrassom ou gaze. Mas passemos, pois esta é a parte suave do ajuste.

Já existe uma regra para limitar o gasto com servidores caso a despesa estoure o teto de gastos, norma no entanto complexa e que, de qualquer maneira, chove no molhado: não evita o colapso. Tanto governo como a liderança do Congresso pretendem, pois, estipular um teto dentro do teto de gastos.

De quanto seria esse limite? O pessoal do governo diz que ainda não fechou a conta. Assim que a despesa corrente (que exclui investimentos) atingir uma certa porcentagem da receita, os talhos seriam amplos, gerais e irrestritos.

Pretende-se que este limite permita o talho o quanto antes, com certeza para 2021. Quanto mais baixo for o valor deste teto dentro do teto, por mais tempo o governo teria autorização para enxugar a despesa com servidores. Na conta mais radical, a lipoaspiração prosseguiria a perder de vista.

No Congresso, há um projeto nesta linha. O governo pretende mandar um projeto complementar, na semana que vem, como se sabe. É uma guerra a menos de dez meses da campanha eleitoral de 2020; é improvável que a mudança seja votada antes do final deste ano.

Note-se também que a discussão da reforma Previdenciária não acabou, apesar de aprovadas mudanças propostas pelo governo federal. Tramita ainda emenda constitucional que pode facilitar a adoção da reforma por estados e municípios e até uma ou outra emenda na reforma já aprovada.

Há quem acredite que a reforma do funcionalismo vai passar, assim como passou quase sem resistência a trabalhista e, mais suavemente do que se previa, a da Previdência.

É, pode ser. Isso quereria então dizer que as corporações do funcionalismo vão ficar quietas e que o Congresso vai continuar a votar planos de sucesso para o governo sem levar nada em troca.


Mariliz Pereira Jorge: Implosão

Há novos questionamentos: qual dos aliados vai implodir o governo? Quando?

Implosão é "estouro para dentro"; "série de explosões que se combinam de tal modo que seus efeitos tendem a concentrar-se em um ponto central". Provável que o Delegado Waldir tenha escolhido ao acaso a palavra que melhor descreve o que acontece ao partido do presidente e que pode atingir em cheio o governo quando ameaçou "implodir" Jair Bolsonaro.

Em poucos dias, tivemos a ameaça do deputado que xinga o presidente de "vagabundo" e diz que mostrará "a gravação dele". Depois, o parlamentar que dedurou o delegado partir para cima de colegas que querem cassá-lo: "Tenho muita coisa para foder o Parlamento inteiro. Vamos alinhar ou vamos guerrear?", disse Daniel Silveira, aquele que quebrou a placa com o nome da vereadora Marielle e jogou no chão o celular do jornalista Guga Noblat.

Por fim, a deputada Joice Hasselmann, vítima do que ela mesma chamou de "milícias digitais", apontou o dedo para os filhos do presidente, acusando-os de estarem por trás de um esquema de disseminação de fake news, de perseguição e de assassinato de reputações.

Ao longo destes dez meses, ficou claro que os alicerces que escoram o governo Bolsonaro não são firmes para fazer as articulações políticas necessárias, vide a reforma da Previdência. Mas as pequenas implosões que passam por Bebianno e Santos Cruz e que se intensificaram na semana passada mostram que não se trata apenas de despreparo dessa turma. Interesses individuais, vaidades, destempero podem em algum momento detonar uma bomba fatal.

Para começar, Delegado Waldir deveria mostrar a gravação que diz ter, Joyce dizer "o que fizeram no verão passado" e Silveira contar o que tem para "foder" o Parlamento. A pergunta que se faz à boca pequena, "será que Bolsonaro chega ao fim do mandato?", começa a ceder lugar a outro questionamento. Qual dos aliados vai implodir o governo? E quando?


Bruno Boghossian: Supremo corre o risco assumir o papel de carcereiro

Tribunal não conseguirá escapar de responsabilidade final por punições no país

Ministros do STF costumam lamentar que o tribunal tenha se afastado aos poucos de seu papel de guardião da Constituição para se tornar uma corte criminal. Ao analisar pela terceira vez em dez anos os critérios da execução de penas de prisão, o tribunal se arrisca a acumular também a função de carcereiro.

As nuances do julgamento, que começou na semana passada e prossegue nesta quinta-feira (24), lançaram ao Supremo a missão de definir quem deve ficar atrás das grades e quem tem o direito de ficar na rua. Em certos momentos, o debate sobre as leis ficou em segundo plano.

"Quando você prende alguém, não é por prazer. É porque você está protegendo pessoas e instituições", disse Luís Roberto Barroso, que defende a prisão após condenação em segunda instância. "É mais bacana defender a liberdade que mandar prender, mas eu tenho que evitar o próximo estupro, o próximo homicídio."

As divisões internas e as artimanhas adotadas pelos ministros produziram a contaminação das tarefas do tribunal. A manipulação da pauta do STF para adiar o julgamento da questão, a vinculação irremediável dessas ações com o caso Lula e a desinformação levada para dentro do plenário rebaixaram a corte.

Esse é um dos efeitos do "populismo judicial" citado no voto de Alexandre de Moraes. "Prestar contas à sociedade é obrigação do STF e de todo o Judiciário. Mas isso não se faz covardemente", afirmou o ministro.

Prender quem deve estar preso e soltar quem deve estar solto, além de não ser tarefa simples, torna o STF depositário de injustiças. Seja qual for o resultado agora, o Supremo não conseguirá escapar da responsabilidade final nas punições aplicadas a criminosos no país.

Se o tribunal decidir que uma condenação em segundo grau é suficiente para levar alguém para a cadeia, precisará revisar em tempo justo as contestações a essas sentenças. Caso defina que a prisão vale apenas após o esgotamento de todos os recursos, terá a missão de concluir os casos com a mesma celeridade.


Nelson Jobim: O Supremo Tribunal e o ministro Toffoli

Presidente da corte sabe a importância do diálogo

Nesta quarta-feira (23), o ministro Dias Toffoli completou dez anos no Supremo Tribunal Federal.

Afirmou, em sua sabatina no Senado Federal, ter um único compromisso: a Constituição da República. Tem a história como fundamento de sua conduta. É um grande conciliador.

Em 2015, o STF definiu a natureza jurídica da colaboração premiada. O tribunal, por maioria, acompanhou a sua orientação.

Como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Toffoli conduziu com firmeza as acirradas eleições gerais de 2014.

Assumiu a presidência do Supremo em um momento difícil da história política do país. Enfrenta a alta exposição da corte, as divergências pessoais internas e a polarização extrema da sociedade.

Agora, o STF discute a prisão em segundo grau. O tema divide e apaixona. Fulaniza-se a controvérsia.

A solução será aquela fixada por sua maioria. Não pode adotar solução por conta de pressões de qualquer natureza. Em tudo, o ministro Toffoli age com prudência, autocontenção e respeito aos demais Poderes e colegas. Assume o diálogo com todos.
Sabe que interlocutor não se escolhe: é aquele que está aí. Não abre mão da defesa da Constituição Federal e do tribunal.

A Suprema Corte tem enfrentado questões próprias da seara política. Não por vontade própria. A iniciativa é dos demais Poderes, de partidos políticos ou de representações da sociedade.

Hoje, a radicalização e o ódio invadiram a política. O diálogo tolerante, forma de solver divergências, foi substituído pelo surdo monólogo do grito. Adversário é visto como inimigo. Na verdade, ataca-se para ser visto e ter espaço na mídia.

O conflito agudo e verborrágico passou a ser condição de notoriedade. O processo político perdeu a capacidade de solver suas divergências.

As divergências políticas são levadas ao tribunal. Provocado, o Supremo tem que decidir.

Mas os juízos de conveniência e de oportunidade —próprios da política— não se confundem com os juízos de legalidade e de constitucionalidade —próprios da jurisdição. Esta é a tensão existente e a disfuncionalidade.

Cobrar do Supremo que paute suas decisões em paradigma diverso da Constituição é um equívoco e um atentado ao Estado de Direito.

O STF não deve se curvar a ninguém. O STF não deve ter e não tem bandeira política. O STF aplica e defende a Constituição da República. Esse é o compromisso do tribunal.

O Judiciário trata do passado, de fatos que ocorreram. Não se constrói futuro com sentenças.

O ministro Toffoli sabe que o Judiciário julga o passado. Sabe que o Executivo cuida do presente, com a gestão das políticas públicas, e o Legislativo cuida do futuro, com a formulação das leis.

O tratamento jurídico dos fatos, no Estado democrático de Direito, é o resultado do embate das correntes políticas no Parlamento.

É na política que se encontra a vontade popular. Com todas as suas divergências, contradições e anomias.
O ministro Toffoli identifica, com nitidez, as funções constitucionais dos Poderes e os espaços de cada um.

É errado atribuir-se ao tribunal o poder de substituir o Legislativo sob o argumento de expandir a Constituição. Isso nada mais é do que retórica para justificar a usurpação.

Cada um em seu lugar. Cada qual com a sua função. Com diálogo permanente e harmonia. Todos comprometidos com o desenvolvimento do país. É isso que a República espera. Quem não faz seu papel na história não é nem bom nem mau. Pior —é inútil.

Nesses dez anos, o ministro Toffoli soube construir soluções e pontes. Tem ele claro que a democracia produz consensos com a administração política dos dissensos. É disso que o Brasil precisa.

Lembrem-se do jurista norte-americano Cass Sunstein: “Há risco quando é possível identificar os resultados e atribuir probabilidades a cada um deles. Há incerteza quando é possível identificar os resultados, porém não as probabilidades de ocorrências de tais resultados”.

Onde estamos hoje?

*Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (2004-06), ex-ministro da Defesa (2007-11; governos Lula e Dilma) e ex-ministro da Justiça (1995-97; governo FHC)


Ruy Castro: Visita ao rinoceronte

Bolsonaro nunca aproveitou seu circo matinal no Alvorada para dar uma declaração de estadista

Com a viagem de Bolsonaro ao Japão, China e adjacências, Brasília está privada de sua maior atração turística: a saída do presidente do Palácio da Alvorada, todas as manhãs, e os minutos que ele concede aos cerca de cem sujeitos que chegam de ônibus, vindos das mais remotas grotas, e se postam ali desde a madrugada à sua espera. Por volta das 10h, surge Bolsonaro e não os decepciona. Posa para selfies e, para gáudio geral, distribui agressões, afrontas e imprecações contra os inimigos e até contra os amigos. Como tudo é gravado por eles, não pode haver desmentidos.

Mas não há o que desmentir. Bolsonaro usa esse canal para mandar recados. Só não se sabe quem ele atacará, difamará ou fulminará naquele dia --um alvo importante é seu ministro de estimação, Sergio Moro, em cuja face ele aplica frequentes bofetadas verbais, para mantê-lo em seu lugar. O próprio Bolsonaro, em seu português de quinta, foi quem melhor se definiu nessa pantomima: "É o zoológico. Quando você vai no zoológico, você vai sempre na jaula do rinoceronte. Eu sou o rinoceronte da política". Mas logo se corrigiu: "O chifre é no nariz, hein, não é na testa, não!". A plateia teve frouxos de riso.

Bolsonaro nunca aproveitou esse circo matinal para fazer uma declaração digna de um estadista. Nunca disse uma palavra de estímulo sobre o trabalho de recuperação do Museu Nacional. Nunca demonstrou comoção pelos mortos de Brumadinho ou do Ninho do Urubu. Nunca lamentou a perda de símbolos nacionais, como Bibi Ferreira ou João Gilberto. O país não existe.

Reduziu a presidência à função de um vereador. Para ganhar a eleição, precisou do povo, mas, como governante, seu único mérito é o de estar unindo contra si todas as forças conscientes do país.

Em breve, só lhe restarão os filhos e os cem robotizados que o prestigiam no papel de, segundo ele próprio, rinoceronte do zoológico.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Bruno Boghossian: Eduardo Bolsonaro estreia na liderança com teoria da conspiração

Em trama internacional, deputado culpa esquerda por problemas que ainda nem existem

Antes de fugir da imprensa pelos corredores do Câmara, o deputado Eduardo Bolsonaro deu sua primeira contribuição como líder do PSL. O filho do presidente pegou o microfone e lançou no plenário uma teoria da conspiração. Misturou os protestos no Chile e no Equador com a Coreia do Norte e o vazamento de petróleo na costa brasileira.

Potencial ex-futuro embaixador, ele sentenciou que as manifestações em Santiago e Quito são uma maquinação da ditadura venezuelana para desestabilizar governos do continente. Repetiu, ainda, a tese de que o óleo que banha as praias nordestinas é fruto desse mesmo complô.

O bolsonarismo costuma buscar refúgio nas lentes ideológicas para mascarar suas frustrações. Desta vez, o filho do presidente foi longe: reproduziu uma teia de perseguições criada nas redes sociais e compartilhou um vídeo publicado pelo líder da extrema direita do Chile --deixando bem claras suas afinidades.

Ainda que os protestos nas ruas chilenas e equatorianas tenham óbvios contornos políticos, eles refletem mais uma crise de representatividade e um cansaço com os governantes de maneira geral do que um conluio global típico da Guerra Fria.

Os apuros enfrentados por Evo Morales após mudar a regra do jogo para disputar mais uma reeleição na Bolívia juntam as pontas. O resultado das urnas está sob contestação, e o esquerdista se tornou alvo de manifestantes que certamente não são financiados pelos socialistas.

A exaustão dos eleitores não é um fenômeno de 2019. O bolsonarismo, aliás, se alimentou desse sentimento, gestado por aqui desde a primeira metade desta década. Eduardo só descreve os episódios recentes pelo viés da ideologia porque pretende tirar proveito político desse delírio.

A ameaça da esquerda é o eixo principal dessa espiral de alucinações, que serve para disfarçar até os insucessos do governo. "Não fiquem surpresos se mais instabilidade vier por aí", disse Eduardo, jogando para inimigos externos a culpa por problemas que ainda nem existem.


Ranier Bragon: Bolsonarismo precisa evoluir muito para ser chamado de conservador

Grupo não quer preservar, mas sim retroagir a um passado hoje relegado ao pó da história

Dias depois de o presidente da República instalar a balbúrdia no PSL, o bolsonarismo realizou uma autoproclamada conferência conservadora em São Paulo. Crucifixos na vagina, chicote em opositores, entre outros temas, ali foram debatidos.

Houve chance até para um discípulo de Olavo de Carvalho filosofar que o país carece de um pensamento estruturado de direita e conservador.

Em parte, ele tem razão. A não ser nas profundezas do esgoto da internet, não há mesmo um alicerce teórico a socorrer o bolsonarismo raiz.

Autoritarismo, defesa de ditaduras, da tortura, do bangue-bangue como ação de segurança pública, truculência nas redes sociais, homofobia, opressão das minorias, das mulheres, discurso genérico anticorrupção (desde que da porta pra fora), depredação do meio ambiente, desprezo pela ciência, pelas artes e pelo saber em geral, religiosidade primitiva, gosto por patriotadas toscas, enfim, uma adesão cega e surda ao tiozismo barrigudo de churrasco como filosofia de vida.

Chamam essa gosma ideológica de conservadorismo. Ocorre que esses filósofos não querem preservar, mas sim resgatar no mercado de pulgas da história situações subjugadas por séculos de avanço da humanidade.

A direita brasileira ciosa dos valores democráticos, civilizatórios, acadêmicos, aquela que reconhece a redondeza da Terra, aderiu em parte ao capitão, na campanha. Enfrenta toda ela, agora, o flagelo de se ver enfiada dentro do balaio olavista.

Nem liberal na economia dá para classificar o bolsonarismo. O presidente nunca o foi nem irá chorar rios de sangue se tiver, a depender das circunstâncias, que dar um cavalo de pau no que tolerou até agora.

É temerário rotular coisas no momento em que elas acontecem, mas o bolsonarismo talvez possa ser classificado como Paulo Guedes na economia (enquanto ele resistir no cargo) e reacionário nos costumes --ou medieval, obscurantista, primitivo, bolorento. Para virar "direita", "conservador", algo assim, é preciso ainda subir muitos degraus civilizatórios.


Leandro Colon: Crise com PSL transforma governo Bolsonaro em um buraco de incertezas

O barril de pólvora que virou o partido tem potencial para causar danos irreparáveis ao Planalto

"Como o Bolsonaro já falou, nós estávamos noivos e hoje é o dia do casamento". A frase é de Luciano Bivar, no dia 7 de março de 2018, no ato de filiação ao PSL do então pré-candidato à Presidência.

Era um casamento de fachada, assim como de fachada eram as candidaturas de mulheres usadas como laranjas da sigla de Bivar e sua trupe.

O PSL nunca foi levado a sério em Brasília. Nada dos últimos dias surpreende. Bolsonaro topou ser "noivo" ciente da encrenca em que estava se metendo. Beneficiou-se dela, ganhou a eleição presidencial há um ano e agora tenta bancar o bom moço e cair fora da lama da legenda.

Bastava uma lida no prontuário de Bivar para Bolsonaro ter pensado duas vezes antes de entrar no PSL. Quem vive no mundo do futebol conhece as travessuras do deputado.

Cartola conhecido em Pernambuco, Bivar afirmou anos atrás que, no comando do Sport de Recife em 2001, pagou para emplacar um jogador na seleção brasileira. O dinheiro serviu, segundo ele, para garantir a convocação do volante Leomar pelo então treinador da CBF, Emerson Leão. Bivar nunca explicou direito a tramoia financeira - quem recebeu a suposta propina, por exemplo.

Leão, na época da história mal contada pelo deputado, negou ter levado qualquer comissão. A única certeza do caso é que Leomar não tinha futebol para jogar na seleção.

É com esse tipo de político que Bolsonaro se "casou" em março do ano passado, depois de leiloar sua candidatura entre várias legendas de aluguel. O inquilino viu o estado do imóvel e agora quer romper o contrato ou tomá-lo dos donos.

O problema de Bolsonaro é que o barril de pólvora que virou o PSL tem potencial para causar danos irreparáveis ao Planalto e ameaçar a governabilidade de quem ainda não tem uma base para chamar de sua.

O desmonte da única sigla que, em tese, estava até agora fechada com o presidente é um péssimo sinal para Bolsonaro. Ou ele reage e opera algum milagre ou o seu governo caminha para um buraco de incertezas.