Folha de S. Paulo

Ranier Bragon: Rap do privilégio negro

A semana marcada pela exposição vandalizada terminou ao som antirracista

Nos meus tempos de mocidade, nenhum fracasso era maior do que o sábado à noite à frente da TV. O tom azulado na face simbolizava toda a insignificância de não ter nenhuma vida para viver fora de casa.

Neste sábado (23), porém, o rapaz e a mocinha que talvez possam ter se sentido como eu tiveram um alento.

Durante muito tempo produziu-se humor esculhambando o "diferente" --o negro incluído, é claro. O Zorra Total (TV Globo) de sábado deu um exemplo de como o combate ao racismo, coisa muito séria, pode ser feito com humor de qualidade.

Isso na semana da Consciência Negra marcada pela encenação do deputado Coronel Qualquer-Coisa rasgando a charge sobre o morticínio de pretos e pobres pela polícia.

No humorístico da TV, dois brancos papeiam em um bar. "Se pudesse, eu nasceria negro. Hoje em dia tá moleza pros caras", diz um. "É cota, é Dia da Consciência Negra, quero saber quando é que vai ter o dia da consciência branca", responde o outro. Ocasião em que o garçom, negro, dá início ao Rap do Privilégio Negro.

Como o de não gastar com táxi --porque ele passa direto--, de se sentir protegido por ser monitorado nos shoppings pela segurança, de receber mesuras do guarda do banco já na porta giratória, de ser símbolo da "meritocracia" quando vira juiz ou médico, de não ser exatamente "bonita", mas "exótica", e de, por fim, ver o orgulho de brancos em "até ter um amigo como eu".

Os fofinhos do centro antipolarizante certamente verão só mais uma "polêmica" entre radicais e defenderão um meio-termo. E, infelizmente, não estarão fazendo piada.

A memorável conquista deste memorável Flamengo merece todas as honrarias, inclusive a paciência de Jó com o irritante sotaque (supostamente) carioca-descolado do cavalinho do Fantástico. Gabigol balançando as vergonhas para torcedores e atletas argentinos mostra, porém, como, às vezes, mais difícil do que saber perder é saber ganhar.


Leandro Colon: Após deixar PSL, Bolsonaro precisará, enfim, organizar sua articulação para 2020

Há dificuldades para garantir as medidas provisórias, que exigem apenas maioria simples para sua aprovação

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro brinca de inventar seu próprio partido político —o da bala e da Bíblia— o Congresso caminha a partir desta segunda (25) para o último mês de trabalho em 2019.

Ao fazer um balanço legislativo do primeiro ano de gestão, o governo Bolsonaro pode incluir na conta a bem-sucedida reforma da Previdência, que deixa positivo o saldo de qualquer análise que atrele a performance parlamentar aos interesses do Palácio do Planalto.

As mudanças na aposentadoria podem ser avaliadas como uma vitória palaciana, afinal esse governo conseguiu o que outros tentaram e fracassaram, atendendo a um ponto crucial da agenda de Paulo Guedes.

Até aí, haveria razões para otimismo e euforia política em 2020, se não fossem os sinais de fragilidade governista no Congresso. A Previdência, por exemplo, só passou porque os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), compraram a ideia. A ausência de uma base aliada não comprometeu a votação.

E mais: a proposta avançou em meio à guerra maluca do alaranjado PSL, que terminará o ano sem sua principal estrela, o presidente da República, no quadro de filiados.

Queira Bolsonaro ou não, o PSL jogou com ele até agora. Serviu como blindagem à falta de sustentação do governo para amealhar votos necessários a projetos menores. Há dificuldades para garantir as medidas provisórias, que exigem apenas maioria simples para sua aprovação.

Uma delas é a nova versão do Mais Médicos. A medida expira nesta semana, e o governo, diante da perspectiva de derrota, já trabalha para tentar fazer as alterações via projeto de lei, uma estrada mais longa.

Parte da reforma tributária será enviada este ano, e o restante seguirá no primeiro semestre de 2020. O tema, caro a todo o país, deve dominar a agenda parlamentar. Se quiser aprovar as novas regras, Bolsonaro, sem ter ainda um partido para chamar de seu, precisará, enfim, organizar a sua articulação política.


Celso Rocha de Barros: Luciano Huck também quer eleitores da centro-esquerda

PT precisa entender que, se não falar à centro-esquerda, vai ter quem fale

Tanto Luciano Huck quanto Joaquim Barbosa teriam vencido a eleição presidencial de 2018 se tivesse concorrido sem o outro na disputa.

Se tem algo que foi provado pela eleição de Bolsonaro é que o eleitorado queria um outsider, e, se valeu Bolsonaro, teria valido qualquer um. Barbosa e Huck eram incomparavelmente superiores a Bolsonaro.

Todo mundo é.

Aqui é bom contar uma parte da história de 2018 que é pelo menos tão importante quanto o antipetismo.

A rejeição ao PT foi importante no segundo turno, mas lembrem-se: Bolsonaro quase venceu no primeiro, quando havia uma ampla gama de candidatos disponíveis. Os analistas próximos ao PSDB precisam explicar por que Bolsonaro, e não Alckmin, Meirelles, Amoêdo ou Dias, se beneficiou do antipetismo.

O governo Temer foi uma tentativa de recomposição do sistema político diante dos ataques da Lava Jato. Toda a direita moderada apoiou isso. Para barrar os outsiders, os grandes partidos mudaram a regra de financiamento eleitoral, dificultando as pequenas candidaturas.

A centro-direita apostou tudo na hipótese de que 2018 seria uma eleição normal, em que estrutura partidária, dinheiro de campanha e tempo de TV seriam decisivos. Quando essa aposta se consolidou, a candidatura de Huck perdeu espaço.

Havia vozes dissidentes. O governador tucano do Espírito Santo, Paulo Hartung, dizia que Alckmin seria um ótimo presidente, mas não era o que o eleitorado de 2018 queria. Hartung foi um dos principais defensores da candidatura Huck. Tanto FHC quanto Arminio Fraga tiveram, em algum momento, entusiasmo pela ideia.

Hartung e os defensores de Huck perderam a disputa interna. É tentador comparar esse erro tucano com o erro petista de não acompanhar Haddad em direção ao centro no segundo turno.

Huck será candidato em 2022. Não sabemos se terá sucesso. Talvez o eleitorado queira algo muito diferente do que quis em 2018, quando o apresentador teria sido eleito. Talvez não.

Temos uma discussão em curso sobre a viabilidade de uma candidatura de centro. Há muito ruído nessa conversa, porque Bolsonaro voltou a desmoralizar o termo "direita", que havia sido reabilitado nos anos finais dos governos petistas.

João Doria, por exemplo, quer conquistar eleitores ao centro, mas busca sobretudo retomar o controle da direita pelos (comparativamente) moderados.

O perfil da candidatura de Huck deve ter várias semelhanças com o da candidatura Doria. Mas já é possível notar uma diferença: ao contrário do governador de São Paulo, que se elegeu em uma onda de antipetismo, Huck também quer eleitores da centro-esquerda.

Seus discursos sobre o combate à desigualdade e a importância de políticas sociais podem conquistar eleitores moderados do PT. Afinal, tem gente no partido que parece disposta a abdicar dos votos da centro-esquerda.

Seria bom se o eleitorado ex-tucano voltasse a se organizar sob a liderança de um moderado, mas confesso que meu interesse na candidatura Huck é outro: o PT precisa entender que, se ele não quiser falar à centro-esquerda, vai ter gente falando.

Pode ser Huck por um lado, ou o PSB pelo outro, pode ser Ciro, pode ser alguma outra coisa. Mas o espaço que venceu quatro eleições presidenciais seguidas não vai ficar vazio.

*Celso Rocha de Barros, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Gaudêncio Torquato: A torre de Babel

Experimentalismo de 2018 abriu longa temporada

Fato um: a era petista desfraldou no país a bandeira do apartheid social, cuja cor vermelha, com o lema “nós e eles”, composto por Lula ainda nos tempos do estádio da Vila Euclides, no ABC paulista, pode ser lido como “os bons e os maus”, “oprimidos e opressores”, “elite e massas trabalhadoras”.

Fato dois: o bolsonarismo, mesmo em seu início, luta para aprofundar a divisão social, batendo na mesma tecla, agora com o sinal invertido. Em um lado do muro estão “comunistas, esquerdistas, simpatizantes de Cuba e Venezuela” —e, no outro, radicais de extrema direita, militaristas, saudosistas dos tempos de chumbo.

Fato três: a polarização a que o país assiste, ao contrário da tendência de arrefecimento, previsível após a virulência eleitoral, se acirra a ponto de se ouvir do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, a pregação de “um novo AI-5” se a esquerda “radicalizar”. Esse ato institucional, recorde-se, abriu o período mais sombrio da ditadura, com perseguição e repressão, fechamento do Congresso Nacional, cassação de mandatos, confisco de bens privados, censura aos meios de comunicação, tortura, mortes.

Pode a temperatura social tornar-se amena nos próximos tempos? Não se aposta na hipótese. A índole do capitão governante e os sinais emitidos pelo seu entorno sinalizam endurecimento de posições. De um lado, se um posicionamento mais radical dá munição aos dois “exércitos”, expandindo os tiroteios recíprocos, de outro afastará segmentos até então simpatizantes das alas conflitantes. Assim, é possível divisar o adensamento dos espaços centrais. Núcleos que ainda atuam como puxadores do “cabo de guerra” tendem a arrefecer sua participação.

A maior parcela da nossa população não cultiva a velha luta de classes, teme os efeitos de acentuada animosidade social, preocupa-se com questões da micropolítica —escola perto de casa, transporte fácil e barato, maior segurança, hospitais com serviços de qualidade.

Somos um povo emotivo, que padece grandes carências, mas não perde a fé. E começamos a alargar a trilha da lógica, como mostrou a última eleição. Infelizmente, a troca de comando —inspirada pelo espírito de um novo tempo— tem se mostrado amarrada ao passado, incluindo o que esse tinha de pior, o culto à ditadura. O fato é que o universo social se divide hoje em três estratos: um terço dos brasileiros vivendo no chão bolsonarista, um terço habitando o território da esquerda e um terço ocupando o centro.

Traços de incerteza se espalham para cima, para baixo e para os lados. Não se sabe o que vai ou pode ocorrer. Pior, não têm aparecido líderes capazes de galvanizar as forças sociais. Quem emerge como líder de um projeto para o país? Quem acena com esperança? Bolsonaro, com seu espírito belicoso, terá longa vida?

Os novos quadros que começam a surgir não inspiram confiança. Alguns são populares e bem visíveis, como Luciano Huck, o apresentador da Rede Globo. Que veste o manto do entretenimento, podendo, até, encarnar a novidade. Seu figurino atrairia as massas. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, é acusado de oportunista. Mas sabe lidar com comunicação. João Amoedo, do Partido Novo, expressa renovação, mas tem origem na área dos ganhos financeiros, não muito bem vista. Faltaria lastro para entrar nas margens. Ciro Gomes (PDT)? Ora, o ex-governador do Ceará é peça velha no tabuleiro. E Lula ainda tem chance ou patrocinará alguém? O PT com a lama da Lava Jato pode voltar ao centro do poder?

É triste constatar que nem bem o governo completa um ano e as conversas já adentram o cenário de 2022. Uma torre de Babel se instala sob tiroteio expressivo do próprio presidente, que anuncia vontade de continuar no assento presidencial, antecipando momentos e instalando a balbúrdia. Apesar de avanços na trilha do civismo, a incultura ainda se faz presente nas margens, cuja tendência é a de buscar a novidade.

O experimentalismo de outubro de 2018 abriu longa temporada no país.

*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político


Jairo Nicolau: Burocráticos, partidos vivem à sombra do Estado e dificultam renovação

Nova sigla de Bolsonaro evidencia força de um modelo político que se sustenta de verbas públicas

A força da burocracia partidária no Brasil, fruto de modelo sustentado por verbas estatais, que favorece caciques e dificulta a renovação, ganha evidência com decisão de Bolsonaro de criar sigla e com punições a deputados que fugiram à orientação de seus partidos.

Um candidato à Presidência da República filia-se a um novo partido sete meses antes das eleições. Empossado no cargo, rompe com seus correligionários e anuncia a criação de uma nova sigla antes de completar seu primeiro ano de governo.

Excêntrica se examinada pela lupa de democracias mais consolidadas, essa história é bastante plausível para quem acompanha a inconstante trajetória das lideranças políticas nos partidos brasileiros. Levando-se em conta que o presidente é Jair Bolsonaro e tudo o que marcou sua campanha eleitoral, a história soa inusitada, para dizer o mínimo, mesmo para os padrões nacionais.

No bojo de sua vitória, Bolsonaro levou seu antigo partido, o PSL, a ser o mais votado nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2018, embora tenha eleito menos deputados que o PT. Além disso, a “onda Bolsonaro” contribuiu para a eleição de quatro senadores e dezenas de deputados estaduais.

Por que então Jair Bolsonaro, com todo seu capital político, abandonou o partido que ajudou a transformar em um dos maiores fenômenos da história das eleições no Brasil e anunciou a intenção de uma nova legenda, a Aliança pelo Brasil? Como um presidente da República se mostrou incapaz de retirar do controle de sua legenda um desafeto, o deputado federal Luciano Bivar, um parlamentar quase desconhecido em âmbito nacional?

Outros episódios recentes mostraram a força das direções partidárias no país. Os diretórios nacionais do PSB e do PDT puniram 17 deputados federais por terem votado a favor da reforma da Previdência apresentada pelo governo. O PDT suspendeu de suas atividades e abriu processo contra oito deputados. O PSB expulsou o deputado Átila Lira e também suspendeu outros oito de suas atividades.

Trata-se do maior número de punições por descumprimento de decisões partidárias na história da Câmara dos Deputados.

Em ambas as siglas, congressistas alegaram que teriam recebido sinal verde no momento da filiação para não seguir a orientação da liderança nas votações no Congresso.

Os casos do presidente da República e dos deputados punidos contrariam a visão tradicional de fragilidade dos partidos brasileiros. Nos dois episódios, chama a atenção a força das burocracias partidárias.

O que é um partido político? Na definição mais trivial, encontrada em antigos manuais de ciência política e direito constitucional, é uma organização composta por cidadãos que ambicionam chegar ao poder por intermédio do voto.

O partido teria essa dimensão híbrida, uma associação civil que ora ocupa o Estado, ora se encontra fora do Estado. Como uma associação, necessitaria de militantes para cuidar de sua estrutura, divulgar suas ideias e contribuir financeiramente para sua manutenção. Os partidos se distinguiriam ainda por professarem diferentes ideologias e diferentes propostas de políticas públicas.

Nada mais distante da prática recente do que essa definição. No Brasil, mais que uma associação de cidadãos que ocasionalmente chega ao poder, os partidos se assemelham a uma organização paraestatal, uma entidade fomentada pelo Estado mesmo que não faça parte da administração pública. Como é o caso, por exemplo, das organizações sociais (OSs), das entidades do Sistema S, como Sesi e Senac, e de organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip).

Desde a promulgação da Lei dos Partidos Políticos, em 1995, registrar uma nova legenda passou a ser tarefa dificílima. Não tenho notícia de outro país em que seja tão árdua. É necessário o apoio, por intermédio de assinaturas, de 492 mil eleitores. Cada assinatura é checada pelos cartórios eleitorais em um processo que pode demorar anos.

Desde que a lei entrou em vigor, apenas dez partidos foram criados. Nenhum foi registrado nos últimos quatro anos —o último deles, o Partido da Mulher Brasileira, surgiu em setembro de 2015. Será um milagre se Bolsonaro conseguir que seu novo partido dispute as eleições municipais do próximo ano, dadas as exigências da Justiça Eleitoral.

No Brasil, o Estado controla também a listagem de filiados às legendas. Estabelecer um vínculo formal com uma agremiação política vai muito além de apenas de criar laços com o grupo. A filiação oficial pressupõe o preenchimento de uma ficha de inscrição junto à Justiça Eleitoral. Só pode ser candidato quem se filiar a um partido no mínimo seis meses antes da eleição.

É no financiamento, contudo, que a dimensão paraestatal dos partidos brasileiros fica mais evidente. O volume de recursos recebido do Estado é bastante amplo. Não identifiquei até hoje nenhum caso similar no mundo. Além do fundo eleitoral e da propaganda veiculada em ano de eleição, os partidos passaram a receber generosos recursos para fazer campanha. O valor para a disputa em 2020 ainda não está definido, mas no pleito de 2018 foram gastos R$ 1,7 bilhão em pouco mais de 60 dias de campanha oficial.

Um último aspecto importante do controle da vida partidária: cabe à Justiça Eleitoral a decisão final sobre os casos em que políticos abandonam os partidos pelos quais foram eleitos. Centenas de eleitos perderam seus mandatos após tribunais eleitorais considerarem improcedente a troca de legenda.

Nesse quadro, a Justiça Eleitoral tornou-se uma grande máquina de regulação partidária. Tem o poder de aceitar o registro de novas legendas, controlar a filiação dos cidadãos, distribuir dinheiro para partidos e campanhas, fiscalizar os gastos e ainda julgar a procedência das trocas de legenda.

Os cientistas políticos Peter Mair e Richard Katz batizaram de partido de cartel esse novo modelo de agremiações políticas, cada vez mais regulado pelo Estado e, sobretudo, cada vez mais dependente da transferência dos recursos estatais. Com financiamento assegurado, os partidos dependem menos do trabalho voluntário de seus militantes. A revolução produzida pela internet e pelas redes sociais tornou essa necessidade ainda menor.

Hoje quase todos os partidos recebem recursos que lhes permitem manter uma sede em âmbito nacional, contratar funcionários e financiar a realização de eventos. Em anos eleitorais, ainda recebem verbas para as campanhas e tempo de difusão de propaganda no rádio e na TV.

Lembro que nos anos 1980 e 1990 um dos maiores desafios de fazer uma reunião partidária era pagar as passagens dos dirigentes. Na era do financiamento público, isso já não é problema para boa parte das legendas.

Neste cenário em que os partidos dependem cada vez mais do Estado para sua manutenção e criam uma burocracia para administrar esse novo status, o incentivo para renovação diminui. Para que atrair jovens para suas atividades? Qual é o estímulo para adotar mecanismos de consulta aos filiados ou instituir a participação via eleições primárias?

Levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou uma diminuição na proporção de jovens filiados nos últimos anos. Em 2008, havia 5,2% deles (de 16 a 24 anos) inscritos nas siglas do país; em 2019 o percentual caiu para 1,5%. Nos partidos mais tradicionais, o percentual de jovens é reduzido: 0,8% no PT, 1,4% no PSDB, 0,6 % no DEM e 0,8% no MDB. No total de eleitores, esse segmento representa 14%.

Mas nesta década, houve um maior interesse da juventude pela política em sentido mais geral. São exemplos as manifestações de 2013 e 2015, o engajamento no debate nas redes sociais, o envolvimento na campanha presidencial de 2018. Mesmo assim, esse fenômeno não se traduziu na filiação em massa de jovens. Pelo contrário, houve queda de 658 mil para 247 mil no número de cadastrados.

Há muitas causas para o afastamento dos jovens da atividade partidária e o consequente envelhecimento dos líderes. Creio que a mudança recente na natureza dos partidos é uma delas. As siglas transformaram-se em organizações pesadas, com muito pouco incentivo para desempenhar o tradicional papel de intermediárias entre sociedade e Estado. Colaram-se ao Estado, afastaram-se da sociedade. O alheamento juvenil é uma evidência desse distanciamento.

Simultaneamente a isso, surgiu no país um conjunto de associações que conseguiu atrair jovens para as suas fileiras. Entre as mais destacadas estão o RenovaBR, o Acredito, o Livres e o Agora, além do MBL. Embora tenham diferentes estratégias de atuação e doutrinas, movem-se por um propósito comum: oferecer uma formação política e estimular a juventude a entrar na vida partidária.

A proposta parece bem razoável. Já que os partidos não têm conseguido se renovar e formar quadros qualificados, as novas associações serviriam para ocupar esse lugar. Algumas delas resolveram agir mais ativamente, influenciando a atividade de seus representantes no Legislativo —seus deputados dão a impressão de que estão apenas abrigados nas siglas. A prioridade é defender a pauta desses movimentos, e não o programa do partido.

A carta-compromisso celebrada entre o Acredito e o PDT-SP em abril de 2018 é reveladora da independência ambicionada pelo movimento —e, o que é mais curioso, aceita pelo partido. Em um trecho, lê-se: “O PDT se compromete a respeitar a autonomia política e de funcionamento do Acredito, bem como a identidade do movimento e de seus representantes”.

É possível que alguns deputados estabeleçam uma nova forma de mandato, com grande autonomia em relação aos partidos, e inovem em diversos aspectos: contratação de assessores por concurso; audiência online para que os eleitores decidam onde investir os recursos das emendas parlamentares; consulta online para saber o que os eleitores pensam sobre determinado assunto. Um deputado estadual do Rio, representante de um desses movimentos, comparou seu mandato a uma empresa startup.

O problema é que esse tipo de mandato drena a energia renovadora desses movimentos para fora da política partidária e alimenta uma ilusão: a de que é possível prescindir dos partidos.

A quem alimenta essas fantasias, sugiro as seguintes reflexões: como as decisões seriam tomadas em um Congresso com 513 deputados empreendedores? Como o debate sobre politicas públicas seria feito sem a agregação dos diversos interesses da sociedade realizada em associações definidas? Ou como uma eleição seria realizada sem que os partidos selecionassem os nomes dos cidadãos aptos a concorrer?

O desencanto com os partidos políticos no Brasil estimulou alguns intelectuais e ativistas de movimentos sociais a defenderem a implementação da candidatura avulsa. A ideia é muito simples: cidadãos poderiam concorrer a um cargo eletivo sem estarem filiados a um partido.

A candidatura avulsa seria o outro lado da face do mandato gerencial defendido pelos movimentos de renovação. Se a norma estivesse em vigor, não haveria punição para os parlamentares que não seguiram a orientação partidária.

A deputada federal Tabata Amaral, uma das punidas pelo PDT, por exemplo, defenderia suas ideias, votaria a favor da reforma da Previdência e prestaria conta a seus eleitores. Nada de bancada, diretório nacional ou programa partidário.

Algumas democracias, sobretudo as que utilizam o sistema eleitoral majoritário-distrital, permitem que cidadãos não vinculados a partidos concorram. Assim, em um determinado distrito, candidatos independentes podem se apresentar. Poucos, contudo, conseguem se eleger para o Legislativo nacional. No Reino Unido, por exemplo, apenas dois independentes conseguiram uma vaga na Câmara dos Comuns nos últimos 20 anos.

No Brasil, a adoção da candidatura avulsa esbarra em dois problemas logísticos. O primeiro é que adotamos a representação proporcional, em que cada partido apresenta uma lista de candidatos. Os avulsos comporiam uma lista específica (ou seja, um partido de avulsos)? Teriam que ultrapassar o quociente eleitoral?

Outro obstáculo é o grande número de candidatos já existentes. Quem estaria apto a concorrer? Os independentes também receberiam recursos públicos para as suas campanhas? Como organizar o tempo de TV entre os milhares de candidatos que seriam inscritos? E a fiscalização das campanhas?

As histórias de um presidente da República que não controla o seu partido e dos deputados que acreditaram poder votar contra a orientação de suas legendas demonstram que a organização partidária é um aspecto essencial a ser considerado para entendermos o sistema representativo brasileiro.

Minha hipótese é que a força dos partidos brasileiros estaria associada ao processo pelo qual eles se transformaram em entidades paraestatais. Neste quadro, os dirigentes que controlam os recursos passam a ter um poder desproporcional em relação a outros segmentos da sigla. Com um mercado fechado (novos partidos não são criados facilmente) e com poucos incentivos para renovação, os partidos tornaram-se organizações pesadas e pouco atraentes para os jovens.

O leitor deve ter percebido que, a despeito de criticar o modelo de representação política em vigor no país, não antevejo uma forma de as democracias funcionarem sem os partidos. Eles precisam, todavia, de abertura, capturar a vitalidade do país e atrair uma parte dos cidadãos que passou a se interessar pela política nos últimos anos.

A pasmaceira da vida partidária brasileira será chacoalhada agora por Bolsonaro e sua Aliança pelo Brasil. Quase todos os analistas enfatizaram a estranheza do gesto: um político com largo vaivém partidário (esteve em oito siglas em 30 anos de carreira política) e evidente desinteresse pelo aperfeiçoamento do sistema resolve criar uma agremiação.

Para além das intenções e da inaptidão partidária do presidente, vale observar em que medida ele será capaz de agrupar em sua legenda parte dos milhões de seguidores que cultiva nas redes sociais.

Desde a redemocratização, pela primeira vez uma liderança popular de direita se envolverá na tentativa de organizar um partido. Fernando Collor transformou o Partido da Juventude (PJ) no Partido de Reconstrução Nacional (PRN) para viabilizar a sua candidatura à Presidência, mas não fez praticamente nenhum movimento para ampliar a sigla.

Há muitas experiências recentes que poderiam inspirar a renovação no Brasil. Na Espanha, na Itália e na França, novas legendas trouxeram milhares de cidadãos para a atividade partidária. Na Argentina e no Uruguai, os partidos utilizam as eleições primárias para escolher seus candidatos. Na Inglaterra, os militantes do Momentum, um movimento criado originalmente para persuadir os eleitores a comparecerem às urnas, se filiaram ao Partido Trabalhista e ajudaram a modernizá-lo.

Ainda é muito cedo para avaliar se a Aliança pelo Brasil se transformará em um partido relevante. Permitam-me, a despeito disso, uma dose de ceticismo em relação à sua capacidade de renovar a política brasileira. O PSL sofreu os males de ter, repentinamente, virado um grande destinatário de recursos estatais (dinheiro e tempo de TV em demasia) e está entrando em colapso. Por que seria diferente com a Aliança?

*Jairo Nicolau, cientista político, é pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV. Escreveu o livro “Representantes de Quem? Os Des(caminhos) do Seu Voto, da Urna à Câmara dos Deputados” (ed. Zahar, 2017).


Elio Gaspari: A 'Bosta Seca' de Palocci

Eros Grau mostrou que o ex-comissário mentiu ao tratar do contrato que assinou com Márcio Thomaz Bastos

Advogando para a família de Márcio Thomaz Bastos, morto em 2014, o ex-ministro Eros Grau expôs uma variante da Teoria da Bosta Seca, segundo a qual quando dois delatores contam histórias conflitantes, não se deve mexer no caso, para evitar a fedentina.

O ex-comissário Antonio Palocci foi capaz de conflitar consigo mesmo.

Em sua recente delação à Polícia Federal, ele disse que em 2009 foi contratado por Thomaz Bastos para ajudar no desmonte da Operação Castelo de Areia, na qual a empreiteira Camargo Corrêa estava enterrada até ao pescoço. Recebeu um capilé de R$ 1,5 milhão.

Como o escritório de consultoria de Palocci era capaz de tudo, sua palavra podia valer alguma coisa.

Grau mostrou, documentadamente, que o contrato de Thomaz Bastos com Palocci referia-se a serviços de assessoria nas negociações para a compra das Casas Bahia pelo Grupo Pão de Açúcar. Mais: o próprio Palocci deu essa explicação ao Ministério Público em 2011, que resultou no arquivamento de um processo.

Aquilo que em 2011 foi um serviço para o Pão de Açúcar, em 2018 virou uma propina da Camargo Corrêa.

A defesa de Palocci reconhece que ele contou duas histórias para o mesmo contrato e justificou-se para a repórter Mônica Bergamo dizendo que ele “não revelou às autoridades qual era o verdadeiro escopo do contrato porque não estava colaborando com a Justiça nem tinha o compromisso de dizer a verdade”. Conta outra.

Em tempo: as 86 páginas da delação de Palocci são um passeio pelas suas andanças no andar de cima durante o mandarinato petista. Recusada pelo Ministério Público, ela tem muito caldo e pouca carne. Um capítulo, contado em apenas uma página, conta o caso do mimo de US$ 1 milhão feito pelo ditador líbio Muammar Gaddafi durante a campanha de 2002.

Essa história circula há anos. Palocci contou que o dinheiro foi repassado ao PT usando-se uma conta do publicitário Duda Mendonça na Suíça. Os dois teriam combinado a transação no hotel WT Center, em São Paulo. Duda está à mão e o depósito pode ser rastreado.

Essa poderia ser mais uma lenda palocciana, mas em dezembro de 2003 Lula foi à Líbia e, durante o jantar que lhe foi oferecido pelo ditador que seria assassinado em 2011, disse o seguinte:

“Quero dizer ao presidente Gaddafi que, ao longo dessa trajetória política, assumi muitos compromissos políticos. Fizemos alguns adversários e muitos amigos. Hoje, como presidente da República do Brasil, jamais esqueci os amigos que eram meus amigos quando eu ainda não era presidente da República”.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Bruno Boghossian: Antes de propor proteção a militares, Bolsonaro discutiu reprimir protestos

Governo mostra estar propenso a tratar medidas de exceção como atos corriqueiros

No fim de outubro, Jair Bolsonaro disse que havia conversado com o ministro da Defesa sobre a possibilidade de convocar as Forças Armadas caso a onda de protestos vista no Chile se repetisse no Brasil. "A gente se prepara para usar o artigo 142, que é pela manutenção da lei e da ordem", afirmou o presidente.

Menos de um mês depois, o governo enviou ao Congresso um projeto de lei, elaborado pelo Ministério da Defesa, que pode isentar militares de punições por fatos que ocorram justamente em operações desse tipo.

A sucessão desses dois episódios mostra como o governo está propenso a tratar medidas que deveriam ser excepcionais como atos corriqueiros. Embora estabeleça regras aparentemente específicas, a proposta pode autorizar integrantes das Forças Armadas a usarem meios letais de modo quase rotineiro.

A ideia do governo é expandir as circunstâncias em que agentes podem atirar e até matar sem sofrer punição. Sob a alegação de legítima defesa, o militar só seria punido se ficasse provado que ele cometeu excessos de maneira intencional.

A medida é basicamente uma autorização indiscriminada para atirar sem calcular as consequências. No contexto apresentado por Bolsonaro, ela ainda põe em risco liberdades básicas dos cidadãos.

Como apontou Alberto Kopittke, diretor do Instituto Cidade Segura, em artigo publicado na Folha, o projeto lembra o decreto editado na Bolívia para conter os atos ocorridos após a derrubada de Evo Morales. Lá, ficam isentos de responsabilidade militares que atuem no "restabelecimento da ordem interna". Dezenas de pessoas já foram mortas na repressão aos protestos.

O texto do governo brasileiro é tão abrangente que permite as mais criativas interpretações. Além de não especificar que tipo de reação excessiva pode ser considerada intencional, abre a porta para que praticamente qualquer manifestante seja considerado perigoso, por ser "capaz de gerar lesão corporal". O Congresso faria bem se engavetasse esse plano.


Demétrio Magnoli: A alma inteira num tuíte

O problema de Weintraub não é Deodoro, mas a ruptura política que inaugurou a modernidade

Abraham Weintraub, o moleque malcriado da sexta série que ocupa a pasta da Educação, chamou a mãe de uma internauta de “égua sarnenta e desdentada”. Aqui e ali, pedem sua demissão, como se fosse possível, por essa via, lavar com sabão a boca do governo Bolsonaro. Esquece-se, no processo, a fonte da controvérsia e do insulto. O tuíte inicial do ministro, uma faísca de nonsense antirrepublicano, ilumina a alma inteira do novo partido de Bolsonaro.

A peça acusa o “traidor” Deodoro da Fonseca de, pela Proclamação da República, entregar o Brasil “às famílias oligarcas que, além do poderio econômico, queriam a supremacia política”. Junto, a imagem de Deodoro ao lado da montagem fotográfica de um Lula na farda, na barba e no bigode do marechal.

Na superfície, é “guerra cultural” barata: uma operação de descontextualização histórica destinada a atacar a elite política (“famílias oligarcas”), associando-a ao lulismo, para promover a ideia de um poder superior capaz de personificar a unidade da nação (Bolsonaro).

No fundo, é a exposição mais completa que um seguidor inculto de Olavo de Carvalho conseguiu produzir do ralo mingau filosófico do mestre. Trata-se, portanto, de uma imagem radiográfica das ideias que circulam no núcleo do bolsonarismo.

O contexto evita enganos. Lula, um dia, elogiou o “planejamento de longo prazo” do governo Geisel; Bolsonaro, todo dia, elogia a tortura do regime militar. Nenhum deles faz da ditadura militar sua referência política. O primeiro identifica-se com o nacionalismo estatista; o segundo exalta a violência e a aversão à democracia. O tuíte de Weintraub diz tudo. O inimigo ideológico de Bolsonaro é a República —não, precisamente, a república brasileira de 1889, mas o próprio conceito de República.

As repúblicas podem ser democráticas, oligárquicas, caudilhescas, autoritárias ou totalitárias. Mas no cerne do conceito está a ideia de soberania popular. A semente remota, cravada na fronteira entre história e mito, encontra-se no estabelecimento da República Romana (510 a.C.). As repúblicas contemporâneas nasceram nos EUA (1776) e na França (1792). A lei geral, a igualdade perante a lei —eis o fundamento filosófico da República. É contra isso que se insurge a “filosofia” do Bruxo da Virgínia.

No rastro da Revolução Francesa, pensadores ultraconservadores deploraram o caráter “antinatural” da insurreição (Edmund Burke, 1791), a “abolição de todas as distinções e funções hereditárias” (Joseph De Maistre, 1796), a “degradação moral” derivada da “marcha combinada do ateísmo, do materialismo e do republicanismo” (Louis de Bonald, 1796).

A nostalgia das tradições antigas, das hierarquias petrificadas, da família patriarcal, de um mundo regido pela espada e pela cruz emergiu da turbulência revolucionária. O Bruxo da Virgínia goteja a água dessa poça nas línguas secas de seus alunos ignorantes.

Um artigo de Roberto Romano ajuda a entender as origens medievais da extrema direita. Nos delírios do núcleo bolsonarista, trata-se de restaurar uma ordem perdida, assentada numa escala de privilégios “naturais”, protegida pela palavra dos sacerdotes (bispos) e pelos exércitos privados dos nobres (milícias).

O problema de Weintraub não é Deodoro, mas a ruptura política que inaugurou a modernidade. A República, cidade sem Deus, conduz a Lula —eis o que o ministro da falta de educação aprendeu com o mestre charlatão.

Lá atrás, o charlatão lançou um alerta sobre os generais de Bolsonaro, mirando a cartilha de Comte e Constant: “o problema é que o positivismo abre as portas para o comunismo”. Hoje, desse lado, ele não tem motivos para se preocupar. Nos 130 anos da República, os militares da Esplanada seguem fiéis a um presidente antirrepublicano pois esqueceram o que aprenderam e queimaram o que adoraram.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Após criar distração ambiental, Bolsonaro lava as mãos para desmatamento

Diversionismo parece ser o único método de um presidente que escolhe não agir

O presidente fabricou a própria crise na área ambiental: pôs em dúvida dados oficiais, demitiu o responsável pelo órgão de monitoramento do setor e comprou briga com países que ajudavam o Brasil a conter a derrubada das florestas. Agora, os números mostraram um recorde na devastação da Amazônia. Jair Bolsonaro não está nem aí.

Quando foram divulgadas as estatísticas, no início da semana, o presidente fingiu que não tinha nada a ver com o assunto. "Não pergunte para mim, não", disse, na terça (19).

No dia seguinte, instado mais uma vez a comentar a destruição de uma área equivalente a seis vezes o território da cidade de São Paulo, agiu como se fosse melhor deixar as coisas como estão. "Você não vai acabar com o desmatamento, nem com as queimadas. É cultural", afirmou.

O diversionismo parece ser o único método de Bolsonaro. O presidente procura os holofotes para inventar teorias conspiratórias, acusar ONGs de envolvimento na devastação e demitir o diretor do Inpe que divulgou números que antecipavam o tamanho do desastre. Na hora de enfrentar o problema, no entanto, só parece disposto a lavar as mãos.

Para escapar, o presidente voltou a usar a velha tática do retrovisor. "Marina Silva foi ministra, vocês viram? Foi recorde o desmatamento", declarou. Ele se referia ao ano de 2004, quando a área desmatada na Amazônia foi a maior dos últimos 23 anos, quase o triplo da taxa atual.

Se estivesse interessado em achar soluções, Bolsonaro saberia que a resposta do governo na ocasião foi o lançamento de um plano rigoroso de fiscalização e ordenamento territorial, que ajudou a reduzir o índice. Ambientalistas dizem que, hoje, esse trabalho está praticamente parado.

Um deputado estadual paulista eleito pelo PSL propôs uma homenagem a Augusto Pinochet, ditador sanguinário e corrupto do Chile. Certamente queria chamar atenção pela sordidez --e conseguiu. Mas, neste espaço, nem sequer será nominado.


Elio Gaspari: O mistério do convite a Moro

Houve um certo sincronismo entre os vazamentos da delação de Palocci e a campanha

Gustavo Bebianno, ex-secretário-geral da Presidência e copiloto da campanha de Jair Bolsonaro quando ela cabia numa Kombi, contou ao repórter Fábio Pannunzio que o juiz Sergio Moro já estava convidado para o Ministério da Justiça antes que as urnas do segundo turno começassem a ser apuradas. Mais: naquela tarde de 28 de outubro, o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes revelou-lhe que havia conversado com o juiz “cinco ou seis vezes”.

Talvez o mistério da conexão de Moro com a campanha de Jair Bolsonaro pudesse ser desvendado se os envolvidos ralassem nos métodos da Lava-Jato: condução coercitiva, prisão preventiva interminável e oferta de delação premiada. Não é o caso.

Diversas mensagens trocadas por procuradores da Lava-Jato indicam que eles torciam pela derrota de Fernando Haddad na eleição. Uma doutora escreveu: “Ando muito preocupada com uma possível volta do PT, mas tenho rezado muito para Deus iluminar nossa população para que um milagre nos salve.”

Num lance inexplicável, seis dias antes do primeiro turno de 7 de outubro, Moro divulgou um dos anexos da colaboração do ex-ministro petista Antonio Palocci. Era um pastel de vento, com acusações vagas que até hoje deram em nada. A oferta de delação de Palocci já tinha sido recusada pelo Ministério Público, e o próprio Moro havia duvidado de sua consistência. Segundo o procurador Carlos Fernando de Souza: “Não tinha provas suficientes. Não tinha bons caminhos investigativos”.

Houve um certo sincronismo entre os vazamentos da delação de Palocci e a campanha eleitoral. Moro determinou prisão de Lula no início de maio, e semanas depois as confissões do ex-ministro começaram a pipocar.

Doze dias depois do primeiro turno e 11 dias antes do segundo, a revista eletrônica Crusoé informou: “Sergio Moro aceitou ser ministro do governo Jair Bolsonaro”. No dia seguinte circulou a notícia de que Moro aceitaria ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal. Mais tarde, o doutor revelaria que no dia 23 de outubro (cinco dias antes do segundo turno) foi sondado por Paulo Guedes para entrar no governo.

No dia do segundo turno, Guedes revelou a Bebianno que Moro havia sido convidado. No dia seguinte, Bolsonaro fez que não sabia de nada: “Pretendo conversar com ele para ver há interesse da parte dele. Se eu tivesse falado isso antes soaria como oportunismo.”

Bolsonaro não falou com Moro durante a campanha, mas Guedes falou. Moro, por sua vez, informou que “caso efetivado oportunamente o convite, será objeto de ponderada discussão e reflexão.” Parolagem, o convite já havia sido feito.

Nessa conversa fiada, a única voz sincera foi a do general Hamilton Mourão: “Isso já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”. Esse contato teria acontecido semanas antes.

Quantas semanas? Se foram duas, as conversas se deram entre os dois turnos. Se foram três, podem ter acontecido antes do primeiro turno. Aquilo que Bebianno chamou de “conversas” não podem ser tomadas como convites. Foram sondagens bem-sucedidas. Como teriam sido cinco ou seis, a alma da manobra está na data da primeira.

Tudo seria o jogo jogado se Moro não tivesse soltado o anexo da delação de Palocci quatro dias antes do primeiro turno.


Ranier Bragon: A revolução liberal no lombo dos trabalhadores

Taxar desempregados é a última dos que só querem botar mais pão na sua mesa

“Um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo.” A lapidar frase do ministro Paulo Guedes, dada em entrevista à Folha, certamente merece estampar a fachada do memorial que ainda há de ser erguido em homenagem a esses bravos homens que paulatinamente desentulham a legislação trabalhista brasileira com o único intuito de colocar mais pão na mesa do trabalhador.

Há três anos e meio, desde que o centro-esquerdista —segundo Guedes— Michel Temer (MDB) assumiu, empresários têm obtido seguidas vitórias, todas embaladas pelo discurso de que, livres das amarras da caquética CLT, ampliarão investimentos e contratarão a torto e a direito.

A reforma trabalhista de Temer foi anunciada como o bilhete de entrada no éden. Curiosamente —fenômeno semelhante se deu com a atual reforma da Previdência—, algum tempo depois os bravos lembraram-se de dizer que a coisa, por si só, não faria milagre. Se nada ocorreu como o anunciado é que não se fez tudo aquilo que deveria ter sido feito.

Agora o louvado time de Guedes propõe taxar desempregados. Tudo, claro, em defesa dos próprios desempregados, que só não são mais de 12,5 milhões de pessoas porque a informalidade bate recorde.
Gente como Julio Cezar Reis, ouvido pelo jornal Agora, em julho, cuja rotina, incluindo fins de semana, consistia em carregar a bicicleta de 15 kg por 80 degraus, pedalar por 12 km até a avenida Paulista para entregar comida pelo Uber Eats, Rappi e iFood. A tarefa, sem direitos trabalhistas, lhe renderia algo próximo ao salário mínimo ao mês. Tivesse ele a sorte de ter Guedes em sua infância, talvez já fosse, como os ricos, um sábio gestor de seus bastos recursos.

Carteira Verde e Amarela, política de extermínio de sindicatos, de achatamento do salário mínimo, a revolução liberal no lombo dos trabalhadores segue encantando aqueles para quem nosso progresso depende apenas da evolução do Ibovespa.