Folha de S. Paulo
Hélio Schwartsman: Bolsonaro apequena a Presidência
Defeito primordial do mandatário é a falta de comprometimento com a democracia
Discordo da avaliação do secretário de Comunicação Social da Presidência, Fábio Wajngarten, expressa em artigo publicado na segunda (2). O editorial da Folha “Fantasia de imperador” não desrespeitou a figura institucional do presidente da República; é Jair Bolsonaro quem apequena o posto.
Seu defeito primordial é a falta de comprometimento com a democracia, que fez questão de expressar antes, durante e depois da campanha que o sagrou presidente. É meio assustador que os brasileiros tenham escolhido para liderá-los um sujeito que defendeu a tortura e o fuzilamento de adversários, mas esse é um efeito adverso possível da soberania popular. Temos de viver com isso.
Ao defeito primordial somam-se vários outros. Bolsonaro parece incapaz de distinguir entre o público e o privado, comportando-se como se a Presidência fosse uma extensão de sua casa e não um Poder da República, limitado por outros Poderes, por princípios constitucionais e por leis. Embora não chegue a ser surpreendente, é chocante a forma como ele instrumentaliza o cargo para desferir ataques a desafetos políticos e à imprensa.
Bolsonaro não passa nem no teste da urbanidade mínima. Presidentes já fizeram e disseram coisas grosseiras ao longo de nossa história republicana, mas nenhum havia divulgado imagens escatológicas nem insultado pública e gratuitamente outros chefes de Estado e até uma primeira-dama.
Mais grave, Jair Bolsonaro não demonstra nenhum apego à verdade factual. Ele não hesita em difundir mentiras, desde que sirvam a suas confabulações ideológicas, como vimos em quase tudo o que disse sobre a Amazônia.
Respeito se conquista. Bolsonaro não o conquistou. Ao contrário, a forma como se comporta na condição de primeiro mandatário do país resulta, ao menos para mim, numa certa vergonha de ser brasileiro. O consolo é que ele, a exemplo de outros que o antecederam, passará.
Leandro Colon: Wal do Açaí, o fantasma que ainda perturba Bolsonaro
Presidente tenta impor uma versão distorcida da revelação de que teve assessora fantasma
O medo de fantasmas fez o ex-presidente Michel Temer rejeitar o Palácio da Alvorada e preferir morar na residência do Jaburu.
Jair Bolsonaro ainda não reclamou de almas estranhas perambulando pela casa presidencial, mas tem um fantasma que perturba o presidente desde o ano passado. Seu nome é Wal do Açaí, ex-assessora do gabinete dele dos tempos de Câmara.
Na sexta-feira (29), Bolsonaro voltou a tocar no assunto em meio a mais uma ameaça que fez à Folha. Ao comentar a decisão autoritária de excluir o jornal da lista de veículos de imprensa de uma licitação da Presidência, citou o episódio da Wal e distorceu novamente a história.
Ele insiste na versão de que ela não era fantasma, afinal estava de férias em janeiro de 2018, quando a Folha investigava se a servidora prestava de fato serviços ao gabinete político.
"Tiveram a reputação dessa senhora casada destruída. Vítima de chacota na região. A Folha fez isso com essa mulher. A prova estava dada para vocês. Estava de férias", disse.
Bolsonaro espalha informação falsa ou tenta enganar as pessoas. Talvez por não engolir ter sido colocado na vala dos deputados que sempre usaram verba pública para contratar assessores que nunca trabalharam.
Em janeiro de 2018, moradores vizinhos à casa de praia de Bolsonaro, a 50 km de Angra dos Reis, contaram, em conversas gravadas, que Walderice Santos da Conceição, dona da lojinha "Wal Açaí", vendia açaí e o seu marido era o caseiro da residência do hoje presidente. Não havia nenhuma atividade parlamentar.
Em agosto do mesmo ano, a Folha comprou das mãos de Walderice um açaí e um cupuaçu, durante o horário de expediente dela na Câmara. Encurralado, Bolsonaro então a demitiu e contou essa lorota: "Tem dois cachorros lá [na casa], e pra não morrer, de vez em quando ela [Wal] dá água pros cachorros lá, só isso".
Quase dois anos depois da revelação do caso, o presidente quer impor uma narrativa. A verdade é que ele pagou com dinheiro público da Câmara uma funcionária fantasma.
Celso Rocha de Barros: Guedes
Quem vender a democracia brasileira em troca de liberalismo econômico vai acabar sem os dois
O único lado racional do governo Bolsonaro é o lado de fora. Ninguém que se propôs moderar o bolsonarismo por dentro teve, até agora, qualquer sucesso. Pelo contrário, foram todos rebaixados ao nível do chefe.
O ministro da Economia disse que entende por que os bolsonaristas pedem um novo AI-5. Segundo Guedes, os apelos por fascismo se justificam porque Lula pode convocar protestos que, inspirados em Leonardo Di Caprio, taquem fogo em tudo. A mera ameaça de algo assim já teria, ainda segundo o ministro, derrubado a reforma do serviço público.
No meio da conversa, Guedes pediu que todos aceitassem o resultado da eleição.
Na verdade, Bolsonaro abortou a reforma porque nunca quis fazê-la. Guedes fingiu que acreditou que a culpa fosse de Lula porque também precisava de uma desculpa: nunca conseguiu aprovar reforma que Rodrigo Maia não lhe tenha entregado pronta.
Não há protestos, violentos ou pacíficos, acontecendo no Brasil. Se houvesse, a democracia lidaria com eles como lidou com 2013, com 2015 e com a greve dos caminhoneiros de 2018.
Quanto a aceitar o resultado da eleição, ministro, faz só um ano, não deu tempo para esquecer: durante a campanha do ano passado, Bolsonaro disse repetidas vezes que não aceitaria o resultado em caso de derrota.
Em uma entrevista a José Luís Datena no hospital, Bolsonaro disse: “eu não posso falar pelos comandantes militares, respeito todos eles, mas pelo que eu vejo nas ruas, eu não aceito resultado diferente do que a minha eleição”.
Ministro, o senhor tem qualquer interpretação desta frase que não implique que seu chefe teria tentado um golpe de estado contra o presidente Fernando Haddad, com ou sem o apoio logístico do astro de “Titanic”?
Na verdade, Bolsonaro não é mais um “risco” para a democracia brasileira. A escalada autoritária já está em curso. A desmontagem da democracia brasileira está acontecendo agora, diante de nossos olhos.
A guerra à imprensa livre não tem igual na história do Brasil democrático. O governo Bolsonaro está tentando estrangular financeiramente todos os órgãos de imprensa que denunciem seus crimes. A Folha foi excluída de uma licitação, e a distribuição de verbas publicitárias para a TV foi alterada para punir a Rede Globo. É a mesma estratégia usada na Hungria pelo governo Orbán. Eduardo Bolsonaro, lembrem-se, voltou de Budapeste no começo do ano dizendo que havia aprendido como lidar com a imprensa.
E o aparato repressivo está sendo montado. Excludente de ilicitude na repressão a protestos é pouco sutil mesmo para Bolsonaro.
Na primeira versão desse texto eu terminava pedindo que o empresariado, os militares e a turma de Sergio Moro se pronunciassem oficialmente, em voz alta, em público, contra o autoritarismo bolsonarista. Eu sei, pode rir, eu também comecei a rir alto enquanto escrevia, por isso apaguei.
De qualquer maneira, deixo uma dica para os ricos brasileiros, uma dica que eles não merecem.
Como mostrou o artigo de Laura Carvalho na Ilustríssima de ontem, nenhum outro populismo de direita da onda Orbán é liberal em economia como Guedes lhes prometeu que Bolsonaro seria.
Quanto mais os bolsonaristas se consolidarem no poder, menos vão precisar do apoio de vocês. Quem vender a democracia brasileira em troca de liberalismo econômico vai acabar sem os dois. Como da última vez.
*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Elio Gaspari: Uma patrulha selvagem contra a Bishop
As críticas à escolha de Elizabeth Bishop evitaram a discussão de sua poesia
O sujeito soube que a poeta americana Elizabeth Bishop seria homenageada pela Flip do ano que vem e temeu pelo início de mais um debate indigente. Festejar uma lésbica e alcoólatra seria um prato feito para o ministro Abraham Weintraub. Eis que o pedagogo bolsonarista ficou calado e a escolha de Elizabeth Bishop foi condenada com outras críticas selvagens. Como um bolsonarismo de sinal trocado, essa intransigência malversa a história, tentando mudar o resultado de um jogo no replay.
As críticas à escolha de Bishop evitaram a discussão de sua poesia e centraram-se em três pontos. Ela viveu no Brasil por mais de dez anos, mas olhava para a terra de forma condescendente, menosprezando seus literatos (falou mal de Manuel Bandeira). No pior dos pecados, em 1964 apoiou a deposição do presidente João Goulart.
Bishop não olhou para o Brasil como o francês Claude Lévi-Strauss, que passou por aqui nos anos 1930. Ela era poeta e ele, antropólogo. As opiniões de Bishop foram expostas em cartas, enquanto Lévi-Strauss ponderou suas ideias no livro "Tristes Trópicos". Ela disse que toda a poesia latino-americana cabia num poema de Dylan Thomas. Exagerou, mas Lévi-Strauss traçou um retrato fiel e devastador da elite cultural brasileira. Livrou Euclides da Cunha e Heitor Villa-Lobos.
O caroço das críticas a Elizabeth Bishop esteve no seu apoio à deposição de Goulart: "Foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva —tudo terminado em menos de 48 horas." Bonita não foi, mas naqueles dois dias morreram sete brasileiros. (Neste ano a polícia do Rio matou 1.546 pessoas.)
Bishop era uma americana elitista e liberal. No Brasil, era também amiga de Carlos Lacerda. Em 1964, ele governava o Rio e era um feroz adversário de Goulart. Lacerda foi o melhor administrador que a cidade teve, nada a ver com o político acuado e decadente de seus últimos anos. A poeta era companheira de Lota de Macedo Soares, amiga do "Corvo" e criadora da maravilha do aterro do Flamengo.
Em 1963, liberais como Arthur Schlesinger Jr. e Richard Goodwin, assessores do presidente John Kennedy, defendiam a alternativa de um golpe contra Goulart. Um ano depois, quando ele foi derrubado, The New York Times disse, num editorial, que não lamentava a queda de um governante "tão incompetente e irresponsável". (Muito provavelmente essa peça foi escrita por Herbert Matthews, o jornalista que ajudou a criar o mito do guerrilheiro Fidel Castro.)
Em Pindorama também havia liberais contra Jango. Para ficar num só exemplo, o advogado Sobral Pinto, que tanto fez pela liberdade do brasileiros, disse, em janeiro de 1964, que "começou ontem, sob proteção abusiva e violenta de tropas do Exército (...) a revolução bolchevique brasileira (...) Não existe mais, nesta hora, no país, nem lei nem autoridade pública". (Ele condenava a proteção dada pelos militares a estudantes que haviam invadido uma faculdade, hostilizando Lacerda.)
A onda de intransigência mistificadora envenena até festas. Em 2006 a Flip homenageou Jorge Amado, ganhador do Prêmio Stálin em 1951, com o Guia Genial dos Povos ainda vivo. Em 2007 festejou-se Nelson Rodrigues, o supremo panfletário da ditadura. Nos dois casos esses aspectos biográficos foram desprezados, celebrando-se a boa literatura.
Elizabeth Bishop foi criticada porque menosprezou a poesia de Manuel Bandeira, que em abril de 1964 almoçou com o presidente Castello Branco, a quem admirava. A mesma Bishop elogiava João Cabral de Melo Neto como pessoa e como poeta. Logo João Cabral, que havia sido comunista.
A própria Bishop ensinou: "Nunca vi motivo para discussão sobre o nada".
Bruno Boghossian: Bolsonaro escancara abuso de poder para fins particulares
Governo não disfarça arbítrios para silenciar críticos e premiar quem é subserviente
Aconteceu na Hungria, na Turquia, na Rússia e em outros países. Aos poucos, as instituições públicas passaram a ser usadas pelos governantes para punir desafetos e atender a interesses particulares. A perseguição se tornou método, a ponto de não ser mais possível chamar essas nações de democracias.
No Brasil, o presidente se apossa do Estado de maneira cada vez mais descarada. A decisão do governo de promover um ataque direcionado à Folha, excluindo o veículo de uma licitação para assinatura de jornais, é um exemplo flagrante desse abuso de poder para fins individuais.
As críticas à imprensa sempre foram armas retóricas de Jair Bolsonaro. A medida tomada na última semana, no entanto, não representa apenas uma escalada nessa área. O governo já explora abertamente sua autoridade e o orçamento público como ferramentas para tentar intimidar e estrangular quem não estiver alinhado a suas vontades.
O presidente tratou a decisão de excluir um único veículo da licitação como mero capricho. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto final. E nenhum ministro meu”, disse, na sexta-feira (29), como se suas preferências pessoais servissem como balizas para o interesse público.
Bolsonaro já havia editado uma medida para suspender a publicação de balanços empresariais em mídia impressa. Citou explicitamente como alvo o jornal Valor Econômico e disse que não havia gostado de uma entrevista publicada pelo veículo.
Depois ameaçou cassar a concessão da TV Globo para se vingar do canal que divulgou o depoimento do porteiro de seu condomínio no caso Marielle. Também passou a destinar mais verba de publicidade a emissoras que têm menos audiência, mas que defendem sua agenda.
O governo nem disfarça quando recorre a atos arbitrários para tentar silenciar críticos e premiar quem é subserviente, desprezando critérios técnicos e os próprios limites do poder. Hoje a imprensa está na mira de Bolsonaro. Amanhã pode ser qualquer um que o contrariar.
Vinicius Torres Freire: Calúnia raivosa é o método político de Bolsonaro no carnaval das redes sociais
Livro tenta explicar a raiva carnavalesca da política das redes insociáveis
O bolsonarismo recorre com frequência à calúnia pusilânime a fim de atiçar milicianos virtuais contra “inimigos do povo”. Depois de introduzir um assunto com um “parece”, um “há suspeita”, Jair Bolsonaro costuma avançar para uma acusação, que por sua vez seria prova de alguma conspiração contra ele e o Brasil. Logo esquece que levantava apenas uma hipótese.
Bolsonaro pode ter escorregado para a calúnia estrita em seu programa semanal ao vivo, na quinta passada. Afora difamações, acusou ativistas ambientais e sociais do Pará de incendiarem a floresta. Sem evidência de crime dos militantes, Bolsonaro terá cometido crime de calúnia.
“Estava circulando uma foto dos quatro ongueiros, vi agora pouco aqui, parece que é verdadeiro, não tenho certeza, né, os caras vivendo em uma luxúria de fazer inveja para qualquer trilionário que anda pelo mundo. Ganhando a vida como? Tacando fogo na Amazônia!”, disse Bolsonaro.
Bolsonaristas repetiram a acusação temerária com desassombro sociopata. Não se trata de engano ou explosão de raiva ocasionais. É a vida como ela é um mundo em que a tentativa de argumentar com fatos é atropelada pela raiva.
Os “engenheiros do caos” exploram uma raiva de base a fim de provocar ondas de fúria, a distração permanente da lacração colérica e derrisória de “hashtags” e posts agressivos, a substância da nova política.
“Engenheiros do Caos” é o livro (em francês) do italiano Giuliano da Empoli, ensaísta pop esperto que analisa estrategistas e cientistas que assessoraram a ascensão dos principais demagogos autoritários do planeta.
Esses engenheiros utilizam massas de dados das redes (“big data”) a fim de provocar emoções extremas em grupos diversos, com mensagens quase individualizadas. O conteúdo de base dessa raiva não importa muito: abandono social, desesperança, desgosto com governos corruptos e tecnocráticos, com elites econômicas e intelectuais e inimigos do povo, reais ou imaginários. O demagogo autoritário não tem o plano de agregar cidadãos em torno de um programa de superação do mal-estar.
Os engenheiros do caos e seus algoritmos, escreve Empoli, levam as pessoas a “defender qualquer posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que tenha a ver com as aspirações e os medos (principalmente os medos) dos eleitores”. O objetivo é provocar fúria e caos permanente, temperados por vaga promessa abstrata de “quebrar o sistema” que produz sofrimento.
As mídias sociais são um ambiente propício para a demagogia. A ideologia das redes, que tem seu elemento de verdade, é igualitária (parece que todos podem ganhar likes e serem ouvidos) e a da “democracia direta”, sem intermediação. A divulgação simpática da incapacidade intelectual, das gafes e da incompetência comuns a tantos demagogos autoritários reitera que o “líder” não faz parte da elite tradicional; as “fake news” e as grosserias demonstrariam autenticidade e independência, “sem frescura”.
O caos das redes, diz Empoli, tem um lado “festivo e libertário” como a confusão do Carnaval. Por lá, o ressentimento narcisista da gente comum e a quem não é dada importância, reconhecimento, explode na também carnavalesca quebra de hierarquias e na trolagem escarninha que zomba do poder, do especialista, do intelectual, do cientista, dos pedantes, protesto que ganha pela primeira vez voz individual, publicidade em massa, por causa das redes sociais.
O que fazer?
Demétrio Magnoli: Um só governo?
Os liberais brasileiros estão dispostos a seguir a trilha de Bolsonaro?
“O governo é um só. Essa divisão que se faz de que o Bolsonaro é um louco e o Paulo Guedes toca uma agenda racional não existe.”
A frase do deputado Rui Falcão, ex-presidente do PT, foi cunhada para a disputa política, mas concentra uma tese. Ele está dizendo que o programa econômico liberal é inseparável do autoritarismo político. Guedes, que tirou o AI-5 para dançar, confere verossimilhança à acusação. O governo é, realmente, um só?
Marilena Chauí inscreve a tese de Falcão numa narrativa histórica. Dirigindo-se, em agosto, à plateia de um debate preparatório ao 7º Congresso do PT, estabeleceu um nexo ousado: “O neoliberalismo não é apenas uma mutação histórica do capitalismo. Ele é a nova forma do totalitarismo. Nós estamos acostumados a encarar o totalitarismo na figura de um líder de massas, o autocrata. Eles desapareceram.
O discurso do ódio agora está sob controle do próprio sistema que rege esses governos. A eficácia desse novo totalitarismo é a sua invisibilidade”.
Revisitadas hoje, depois da adesão de Guedes às invocações autoritárias do núcleo bolsonarista, suas palavras fazem sentido?
Desconte-se a ligeireza conceitual. Traduza-se “neoliberalismo”, um tropo ritual da esquerda, por políticas liberais. Para não queimar no fogo da paixão ideológica os textos clássicos de Arendt e Lefort (este, mentor de Chauí), substitua-se “totalitarismo” por “autoritarismo”. Será verdade que, para ser liberal, o capitalismo precisa suprimir a democracia?
Minha resposta é irrelevante. O que importa é a resposta dos próprios liberais. No rescaldo da polêmica sobre o AI-5, Guedes tentou consertar o estrago propondo que se pratique uma “democracia responsável”.
Ficou pior. A adjetivação da democracia remete a uma tradição autoritária que se estende de Salazar (“democracia orgânica”) a Orbán (“democracia iliberal”), passando por Erdogan (“democracia conservadora”) e Putin (“democracia soberana”). A questão não é acadêmica: os liberais brasileiros estão dispostos a seguir a trilha de Bolsonaro?
Na doutrina liberal, a liberdade política é inseparável da liberdade econômica. Mas os ícones do liberalismo do século 20 flertaram com a cisão. Na sua segunda visita ao Chile de Pinochet, em 1981, Friedrich Hayek afirmou preferir uma “ditadura liberal” a um “governo democrático desprovido de liberalismo”. Disse, ainda, que “uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período de transição”.
Milton Friedman também assessorou Pinochet —e, mais tarde, defendendo-se das críticas, sugeriu que, graças ao programa liberal adotado pelo regime, o Chile acabou se reencontrando com a democracia.
Friedman visitou a China em 1980, entre uma e outra passagem pelo Chile, e voltou em 1988, oferecendo conselhos a Deng Xiaoping e Zhao Ziang. Como Hayek, ele imaginava que a liberdade nasce nos bastidores da economia, difundindo-se eventualmente (naturalmente?) para o palco da política.
Nessa cisão conceitual encontra-se a fresta para a defesa da “ditadura transitória” —e, talvez, de uma perene democracia adjetivada. Guedes bebe nas fontes de um liberalismo inseguro sobre o valor da liberdade política.
A sequência começou antes —repito: antes!— de Lula deixar a cadeia. Partiu de um comando de Olavo de Carvalho, que clamou pelo “fechamento” dos “partidos ligados ao Foro de São Paulo”.
Daí, Jair Bolsonaro mencionou as manifestações chilenas como motivo para convocar os militares às ruas e publicou o célebre vídeo das hienas. Finalmente, Eduardo Bolsonaro implorou por um “novo AI-5”. O núcleo do governo não teme o espectro de protestos mas, pelo contrário, torce por sua materialização, gerando o álibi para uma aventura subversiva.
É nessa encruzilhada que se encontram os liberais brasileiros. Guedes sonha com uma “ditadura transitória”? O governo é mesmo um só?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Vinicius Torres Freire: Bife à moda de AI-5
Desde a Previdência, governo parece não ter rumo além de fazer propaganda autoritária
Alguém aí ainda se lembra do pacotão das medidas fiscais de emergência? Foi visto pela última vez faz três semanas, quando chegou ao Congresso, mas seu paradeiro é ignorado, assim como anda desaparecida a arenga reformista.
Entende-se. O governo andou ocupado promovendo a Aliança pelo AI-5, a licença para matar manifestantes de rua e gente sem luz e lustro para postos de relevo na Cultura.
Além do Flamengo, os assuntos são o dólar caro, o preço do bife e um novo surto de ameaças de morte do governo contra cidadãos oposicionistas e instituições da democracia.
O pacotão era um calhamaço de reformas constitucionais para cortar salário de servidor etc., início de uma campanha urgente a fim de evitar que as contas do governo mergulhem no vinagre na virada de 2020 para 2021. Era o começo da segunda onda de reformas, que contaria também com um pacote de emprego, que praticamente foi abortado.
Desde então, o governo e o governismo parecem ter mudado de estação, parece mais surtado com o transe nas ruas sul-americanas, caído depois do relativo vexame do leilão do petróleo e ainda mais desorientado na política partidária.
O governo não parece se abalar com a sequência de derrotas no Congresso —vetos que caem, projetos que caducam. Parece, sim, ainda mais disparatado, como na política e declarações sobre câmbio ou com essa atitude de tabela juros bancários por decreto.
Apela ao realismo político de segunda quando engavetou sine die a reforma administrativa, aparentemente por temer “Lula Livre” (aliás sumido e algo desorientado também) e a chapa quente dos “terroristas” nas ruas da América do Sul.
No entanto, o ano parlamentar de 2019 está para terminar e o de 2020 será curto, por causa da eleição municipal, acabando por volta de junho ou julho, no mais tardar.
Deputados e senadores, de resto, estarão menos propensos a aprovar reformas ou “reformas”, aquelas que arrancam o resto do couro do povo. Há o risco de o bolsonarismo passar vexame nas urnas.
Qual é então o plano do governo, se algum?
Espera que uma dose de reforma da Previdência e juros baixos tire a economia da estagnação, o bastante para evitar que o prestígio de Jair Bolsonaro vá abaixo de um terço do país? O bastante para dar impulso para a mudança de patamar da pregação autoritária, como se vê com essa história de “excedente de ilicitude” para tropas pretorianas que atirem no povo nas ruas?
Talvez tenha de se preocupar com problemas novos, ao vai da valsa.
O Supremo acaba de desengavetar, na prática, as investigações sobre as rachunchos de Flavio Bolsonaro, derrotando de resto o aliado acidental de Bolsonaro na Corte, Dias Toffolli, aquele do “pacto entre os Poderes (dele com o presidente da República)”.
O preço do bife por ora ainda é meme irado de rede insociável, mas não convém desprezar os desprazeres da carne —a arroba do boi gordo subiu mais de 50% em um ano.
Alguém aí se lembra da inflação do tomate, no início de 2013? A combinação de escassez de carne no mercado mundial com a alta do dólar pode não dar em aumento sistemático de preços, talvez nem dos preços da comida, mas convém prestar atenção.
Inflação de alimentos emagrece o prestígio dos governantes. Aumentos pontuais de preços da vidinha diária, carne, gasolina e pão, são suficientemente irritantes, mesmo sem inflação de fato.
O governo não parece ligar muito.
Bruno Boghossian: Paraguai ensina uma lição ao expulsar senador extremista
Caso mostra que não se deve tratar com leniência políticos que usam marketing do ódio
Quando senadores paraguaios abriram o primeiro processo contra Payo Cubas, em abril, um parlamentar fez um alerta. Ele disse que o colega tinha as características do fascismo, do autoritarismo e da intolerância. Acrescentou que, se nenhuma medida fosse tomada, aquele “monstrinho” cresceria.
Cubas foi suspenso do Senado por dois meses. Ele recebeu a punição por ter xingado outros legisladores e por ter atirado copos d’água no chefe da Polícia Nacional e no ministro do Interior durante uma reunião.
Depois das férias forçadas, sem receber salário, a criatura voltou ainda mais abominável. Nesta quinta (28), ele foi cassado por ter defendido o assassinato de “pelo menos 100 mil brasileiros” que vivem no país e por ter dado um tapa num policial.
Os paraguaios ensinam uma lição. Cubas é o típico agitador que explora o marketing do ódio como ferramenta política. Os senadores preferiram expulsá-lo do Parlamento a permitir que abusasse do cargo para chafurdar nos próprios desatinos.
No Brasil, políticos boquirrotos fazem fama até chegar ao topo do poder. Deputados com discursos racistas ficam protegidos pelo recurso à imunidade parlamentar.
O caso mostra que não se deve aplicar leniência a agentes públicos que, a distância, podem parecer meros polemistas. O senador já havia tentado chamar a atenção quando ameaçou jogar uma banana num colega ou quando atirou água de uma garrafa noutro. Agora lançou uma propaganda nitidamente extremista.
Cubas é membro do Movimento Cruzada Nacional. O repórter Fábio Zanini, que contou a história da cassação, destaca que uma das bandeiras do partido é o combate à presença estrangeira no Paraguai. Nessa onda, Cubas disse que brasileiros deveriam ser mandados ao “paredão”.
O senador cassado ainda tentou surfar no episódio. Escreveu que deixava o “Parlamento sombrio” rumo ao “país que todos merecemos”. Alguns paraguaios lhe deram apoio. Caberá aos eleitores evitar o crescimento de outros monstrinhos.
Bruno Boghossian: Governo dá mais um passo na destruição de políticas públicas
Novo presidente de fundação ligada ao movimento negro quer o fim do movimento negro
Depois de ter nomeado um ruralista para o serviço de proteção de florestas, uma antifeminista para elaborar programas para as mulheres e um professor que detesta universidades públicas para cuidar da educação, o governo Jair Bolsonaro deu mais um passo em seu projeto de destruição de políticas públicas.
Novo chefe da Secretaria de Cultura, o dramaturgo Roberto Alvim começou a aparelhar sua pasta com nomes que parecem se esforçar apenas para dilapidar as ações dedicadas à área. Ele escalou militantes ultraideológicos para uma cruzada ressentida contra o setor.
A escolha do time parece até zombaria. A secretária de Audiovisual nunca trabalhou na área e acha que o setor deve trabalhar pelo resgate dos "bons costumes". Já o presidente da fundação que promove a cultura afro-brasileira afirma que a escravidão foi "benéfica para os descendentes" dos africanos.
A frase foi publicada em agosto pelo jornalista Sérgio Nascimento de Camargo, que agora comanda a Fundação Nacional Palmares. O órgão foi criado em 1988 para preservar os valores e a influência negra na sociedade brasileira.
Sérgio Nascimento de Camargo, novo presidente da Fundação Palmares - Reprodução da internet
O instituto passou a ser chefiado, nesta quarta (27), por alguém que acredita que o movimento negro deveria ser "extinto". O jornal O Globo noticiou que Camargo já escreveu numa rede social que tem "vergonha e asco da negrada militante".
Se depender dele, o trabalho da fundação deve seguir essa linha. Numa nota publicada por uma amiga, o novo dirigente declarou que vai implementar "grandes e necessárias mudanças" e que sua atuação será norteada pelos princípios "que conduzem o governo Bolsonaro".
A nomeação segue à risca os planos do secretário do setor. Em vez de cuidar dos programas da área, Alvim se dizia mais interessado em "criar uma máquina de guerra cultural".
Depois do primeiro turno da eleição de 2018, Bolsonaro afirmou que queria dar "um ponto final em todos os ativismos do Brasil". Ele continua disposto a cumprir essa promessa.
Elio Gaspari: A Presidente Vargas de 1984 a 2019
O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo
A avenida foi a mesma. Em abril de 1984 ali aconteceu o grande comício das Diretas. Noticiou-se que a multidão passava do milhão de pessoas. Nem chegava a isso, mas deixa pra lá. A festa durou cerca de sete horas, sem um só incidente. No último domingo (24), mais de 1 milhão de cariocas festejaram o Flamengo. A festa terminou com uma pancadaria e 23 feridos nas proximidades do monumento ao Zumbi dos Palmares.
Não se sabe como começou a confusão, mas é elementar que a Polícia Militar não precisava ameaçar o povo com fuzis ou apontando-lhe revólveres. A primeira bomba de gás contra uma multidão parada pode ter sido um exagero. As demais, truculência, sobretudo sabendo-se que na festa havia crianças.
O veículo da Guarda Municipal também não precisava dar marcha a ré em alta velocidade numa pista livre. Acabou atropelando um guarda. Assim como Gabigol fez a alegria dos brasileiros com dois gols em três minutos num final de jogo, a PM do Rio manchou a celebração no fim da festa.
O medo faz mal à alma. O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo. Em 2013, quando o papa Francisco chegou ao Rio, estava protegido por um dispositivo teatral, com soldados e até cães farejadores.
Na Presidente Vargas o carro do papa ficou preso no trânsito e centenas de pessoas cercaram-no, assustando muita gente que via a cena pela televisão. Só Francisco não se assustou e manteve o vidro aberto. Os agentes da Polícia Federal que escoltavam o veículo a pé mantiveram a calma, sem agredir ninguém. Também não se assustaram as pessoas que queriam vê-lo, pois não é todo dia que há um papa na Presidente Vargas.
O Rio é governado por um bufão que estimula a violência policial na construção de sua própria teatralidade. No gramado do estádio de Lima, ajoelhou-se diante de Gabigol, recebendo um olhar seco, digno dos melhores monarcas da casa de Windsor.
No dia seguinte à pancadaria do fim da festa do Flamengo, o repórter Rafael Soares revelou o áudio de um PM que revelou sua contrariedade diante de um episódio no qual um sargento matou a tiros dois jovens que estavam numa motocicleta.
O caso aconteceu em 2015, soldados da patrulha haviam dito ao sargento para não atirar, mas “ele estava trabalhando com ódio, ficava falando que ia matar, matar”. O sargento matou porque achou que a furadeira carregada por um dos jovens era uma arma.
Já houve casos em que um cidadão foi morto porque carregava um guarda-chuva e outro, uma esquadria de alumínio. O PM que matou o homem do guarda-chuva foi absolvido e o outro caso ainda está sendo investigado. O sargento que ficava falando em matar ainda não foi julgado.
Na tarde de domingo, depois da confusão da Presidente Vargas, uma mulher se referiu aos PMs como “esses milicianos”. É verdade que o pessoal das milícias está em alta, mas nenhuma cidade terá segurança se a sua polícia se comportar de forma a permitir tamanha confusão.
A PM é uma corporação militar que deve trabalhar com normas profissionais e, sobretudo, de forma disciplinada, cumprindo protocolos. O que aconteceu na Presidente Vargas não seguiu protocolo algum. Quanto à disciplina, quem sabe?
Em março do ano passado, durante a intervenção federal na segurança do Rio, um general foi inspecionar o quartel do 18º Batalhão da PM e viu-se diante de uma tropa formada por 20 homens.
À voz do comando, alguns deles não lhe deram continência. Foi preciso que o coronel repetisse: “Todo mundo”. Só então foi obedecido.
Bruno Boghossian: Fala de Guedes traduz governo que se abastece de sonhos autoritários
Bolsonaro busca pretexto para repressão e fica confortável em ameaças à democracia
O desembaraço com que Paulo Guedes menciona o risco de um novo AI-5 é a tradução fiel de um projeto que se abastece diariamente de sonhos autoritários. Em busca de pretextos para aplicar uma agenda de repressão, o governo vai ficando cada vez mais confortável para ameaçar os princípios da democracia.
O ministro da Economia seguiu a moda lançada por Jair Bolsonaro e passou a trabalhar com protestos hipotéticos e vândalos presumidos. Em viagem aos EUA, ele disse que não seria surpresa se houvesse cobrança por medidas de arbitrário em caso de manifestações contra o governo.
“Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez?”, declarou.
A indignação de Guedes tinha endereço certo. O governo freou parte de sua agenda de reformas econômicas depois que o ex-presidente Lula deixou a prisão e passou a atacar essa pauta para mobilizar suas bases políticas. O petista não exortou militantes a agirem com violência, mas citou manifestações no Chile como exemplos de que o povo deve defender seus interesses.
O ministro sugeriu que as falas sobre um novo AI-5, inauguradas por Eduardo Bolsonaro, eram uma resposta ao tom usado por Lula depois de sair da prisão. Só se o filho do presidente fosse vidente: o petista foi solto oito dias depois da declaração de Eduardo sobre o assunto.
O governo rasga, a cada hora, um novo pedaço de uma fantasia já retalhada. Está inscrito na pele desse grupo o desejo de recorrer a medidas autoritárias para responder a qualquer obstáculo do jogo democrático.
Há alguns dias, Delfim Netto, ministro da ditadura militar, disse ao jornal O Estado de S. Paulo que o governo tem um lado sombrio e outro iluminado. O segundo seria a equipe econômica. Quem quiser fechar os olhos para os abusos do governo em nome da agenda de Guedes agora sabe que a escuridão é o ambiente predominante por ali.
Bolsonaro insiste na ideia de dar superpoderes às Forças Armadas para reprimir protestos. Quando era candidato, ele chegou a apoiar as manifestações de caminhoneiros que pararam o país em 2018. Alguns pregavam um golpe de Estado e bloqueavam estradas. Houve casos de violência entre motoristas.
Os militares foram chamados, mas não para atirar. Serviram de choferes de luxo e só manobraram as carretas que impediam o trânsito.