Folha de S. Paulo

Leandro Colon: Datafolha reforça quais devem ser as prioridades de Bolsonaro

Guedes deveria aproveitar para falar menos e entender que deve focar na economia

Os brasileiros desconfiam das declarações de Jair Bolsonaro, mas estão otimistas com a economia. E os ministros Sergio Moro e Paulo Guedes lideram como os mais conhecidos na Esplanada ao término do primeiro ano de governo.

Bolsonaro entrará em 2020 sem o benefício de poder cometer erros comuns de um começo de gestão. Ademais, o presidente precisará controlar seus desejos de conduzir impulsiva e desmedidamente temas de relevância interna e externa.

O Datafolha mostra que os brasileiros estão preocupados com o desemprego, a melhoria da saúde e da educação, o desempenho da economia e o crescimento do país e fiam-se nas expectativas em torno dos ministros da Economia e da Justiça.

No caso de Moro, menos pela performance na pasta e mais pelo rescaldo de popularidade que o ex-juiz da Lava Jato levou para Brasília. A dificuldade em aprovar no Congresso suas bandeiras do pacote anticrime e o vazamento de mensagens trocadas com integrantes da operação não abalaram a imagem de Moro.

Ao mesmo tempo, o ministro parece ter superado os estranhamentos políticos com Bolsonaro, sendo inclusive cotado para uma eventual vaga de vice na chapa para 2022.

Segundo o Datafolha, 43% dos brasileiros acham que a economia vai melhorar no curto prazo. A taxa de aprovação do trabalho da equipe de Paulo Guedes subiu de 20% para 25%.
Guedes deveria aproveitar os dados da pesquisa para entender que seu trabalho é tentar tirar o país do atoleiro, avançar nas reformas, e não sair por aí falando barbaridades autoritárias, como a da volta do AI-5.

Assim como Bolsonaro poderia refletir (se é que costuma fazê-lo) sobre o índice de 80% da população que diz desconfiar de suas declarações.

Não à toa, 28% avaliam que seu comportamento nunca é condizente com o cargo de presidente —e 25% acham que ele se comporta adequadamente apenas algumas vezes.

O Datafolha reforça as prioridades urgentes do país e a necessidade de Bolsonaro cuidar somente delas.

*Leandro Colon, Diretor da Sucursal de Brasília da Folha de S. Paulo.


Vinicius Mota: Esquerda versus esquerda

Velha e jovem guarda disputam o significado histórico da escravidão nos EUA

O debate do significado e dos efeitos sociais do longo período de escravidão negra nas Américas ganhou neste ano a contribuição do projeto 1619, do jornal The New York Times. O nome alude ao ano em que aportou na Virgínia o primeiro navio com cativos africanos.

No texto que abre a coleção, a jornalista Nikole Hannah-Jones estabelece uma das marcas distintivas da iniciativa. A Independência dos EUA, de 1776, não teria passado de contrarrevolução da elite para preservar a escravidão então ameaçada pelos colonizadores britânicos.

Que a provocação não seria tolerada pela direita neocon já se antevia.

Mas a reação mais interessante surge agora da esquerda trotskista americana, que publicou num site da Quarta Internacional Socialista uma série de entrevistas com historiadores de alta reputação acadêmica que, embora ignorados na investigação do Times, formulam críticas substantivas a postulados do trabalho.

Resumindo grosseiramente o que dizem nomes como Gordon Wood e James McPherson, a coisa era bem mais complicada e contraditória do que leva a crer a narrativa do jornal.

É impossível sublimar o fato de o abolicionismo, novidade na trajetória milenar do escravismo, ter realizado a primeira reunião da história na Filadélfia, em 1775. A escravidão foi proibida em territórios do meio-oeste em 1787; a importação, em 1807. No norte, a abolição legal estava encaminhada em 1804.

Não se coloca numa Declaração de Independência a ideia revolucionária de que todos nascemos iguais e livres sem produzir, como consequência, um embaraço enorme para os interesses escravistas e racistas.

Da crítica da velha guarda de historiadores à mais jovem fica a impressão de que a esquerda abandona a boa tradição marxista de considerar as ambivalências, as incertezas e as contradições da sociedade em seus esquemas interpretativos.

O contexto, as nuances e as lacunas de informação vão sendo atropelados e trocados por mensagens de combate que cabem num tuíte.

*Vinicius Mota, Secretário de Redação da Folha


Elio Gaspari: Um jabuti gigante olhando para Bolsonaro

Licitação de R$ 3 bi da Educação foi cancelada por irregularidades

O repórter Aguirre Talento botou aos pés de Jair Bolsonaro um caso que lhe permitirá mostrar a extensão de seu compromisso com a defesa da bolsa da Viúva.

No dia 21 de agosto o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, FNDE, anunciou que realizaria um pregão eletrônico (13/2019) para a compra de “equipamentos de tecnologia educacional para a rede pública de ensino”.

Os educatecas queriam comprar 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops. Até aí seria coisa de Primeiro Mundo, com a Boa Senhora gastando R$ 3 bilhões.

Alguém sentiu cheiro de queimado. O presidente do FNDE, nomeado em fevereiro, foi dispensado e seu sucessor, Rodrigo Dias, assumiu no dia 30 de agosto. Em 4 de setembro revogou preventivamente o edital.

Entre agosto e as duas primeiras semanas de setembro a Controladoria-Geral da União apontou “inconsistências” no edital. Põe inconsistência nisso.

Noves fora que o Ministério da Economia não foi consultado para uma licitação de R$ 3 bilhões, ficando-se só em dois pontos apontados pela CGU, via-se que:

Os 255 alunos da Escola Municipal Laura Queiroz, de Itabirito (MG), receberiam 30 mil laptops (118 para cada um). Poderia ter sido um erro de digitação, mas a CGU mostrou que 355 escolas receberiam mais de um laptop por aluno, e 46 delas, mais de dois. Cada jovem da Chiquita Mendes, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG) receberia cinco.

Na outra ponta do negócio, o das empresas que ofereciam equipamentos, a CGU achou duas, a Daruma (de Taubaté) e a Movplan (de Ribeirão Preto). Ambas mandaram cartas de cinco linhas, com o mesmo fraseado e o mesmo erro de português: “Sem mais, para o momento, colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessária”.

A Movplan fica em Ribeirão Preto, mas datou sua carta de Taubaté, onde mora a Daruma.

As “inconsistências” apontadas pela CGU foram rebatidas pelo FNDE num documento de 20 páginas. A autorização do Ministério da Economia não seria necessária, não se tratou da coincidência gramatical das duas cartas e a remessa para as escolas de um número de laptops superior ao de alunos seria corrigida.

O FNDE alegrou-se, informando que só na escola Laura Queiroz, a Viúva economizaria R$ 54,7 milhões.

O edital foi finalmente revogado pelo FNDE no dia 9 de outubro, data da conclusão do Relatório de Avaliação da CGU. Final feliz, graças à vigilância de competência de um órgão controlador da administração pública.

O que pode parecer um desfecho deveria funcionar para Bolsonaro como um começo: Como é que esse edital apareceu? Uma despesa de R$ 3 bilhões não é um jabuti qualquer. A burocracia do FNDE blindou-se diante das advertências da CGU. Blindada continuou depois da posse do novo presidente e da revogação preventiva do edital.

Cada ato administrativo praticado nessa novela tem um responsável, ou vários. O mesmo se pode dizer das empresas que foram atraídas (ou fizeram-se atrair) pela bonança do negócio. Os auditores da CGU defenderam a bolsa da Viúva, mas se o caso terminar com a simples revogação do edital e zero a zero, bola ao centro, sem a exposição dos responsáveis, eles estarão enxugando gelo.

Serviço: O relatório da CGU, a réplica do FNDE e a tréplica dos auditores estão na rede, no seguinte endereço: https://auditoria.cgu.gov.br/download/13562.pdf.

São 66 páginas de textos com algum juridiquês e muito computês, mas alegrarão quem acredita que há uma banda competente e vigilante no serviço público.


Bruno Boghossian: Expectativa positiva cai, e Bolsonaro enfrenta país mais inquieto

Governo queima parte do crédito e passa a depender de efeito da recuperação econômica

Logo antes da posse, 65% dos brasileiros diziam que a gestão de Jair Bolsonaro seria ótima ou boa. O índice era o menor entre todos os presidentes desde a redemocratização, mas dava algum fôlego para o recém-eleito. Em pouco mais de 11 meses de mandato, o novo governo queimou parte desse crédito.

A última pesquisa Datafolha mostra que o índice de expectativas positivas em relação a Bolsonaro caiu para 43%. Isso significa que, de cada três eleitores que acreditavam que ele faria um governo ótimo ou bom, um mudou de ideia.

A população não tem bola de cristal, mas a deterioração indica que o presidente deve enfrentar um país mais inquieto nos próximos anos. Sua conduta irresponsável pode ter ajudado a consolidar uma base fiel e segurar um índice de aprovação de 30%, mas também contribuiu para a erodir a confiança em seu trabalho.

Dos entrevistados neste levantamento, 43% disseram que não creem nas declarações de Bolsonaro. Além disso, metade das pessoas ouvidas respondeu que ele não se comporta como um presidente deveria se comportar —na maioria das vezes ou em nenhuma situação.

O estilo presidencial atrapalha, mas é o menor dos problemas. A conversão das expectativas em aprovação ou reprovação a partir do ano que vem dependerá muito mais dos números da economia do que da quantidade de vídeos escatológicos postados nas redes sociais.

Entre as áreas de atuação do governo, o combate ao desemprego e a redução da miséria lideram a lista de avaliações negativas: 59% acham que Bolsonaro faz um trabalho ruim ou péssimo nesses setores.

A atividade econômica deve dar sinais melhores nos próximos anos, mas esse giro pode demorar a chegar ao emprego e à população mais pobre. O segmento de baixa renda, aliás, é o que mais reprova o governo.

Em 2019, Bolsonaro ainda conseguiu utilizar como desculpa a herança da gestão desastrada de Dilma Rousseff na economia. Em 2020, esse crédito pode se esgotar.


Hélio Schwartsman: Reivindicando o fracasso

O país fracassa quando 43% dos alunos não aprendem aquilo que se define como o mínimo necessário

Saíram os resultados de mais um Pisa, o exame internacional a que são submetidos alunos de 15 anos de 79 países ou regiões. O Brasil interrompeu os tímidos avanços que vinha obtendo e estabilizou-se entre os últimos colocados. Em matemática, prova em que teve seu pior desempenho, ficou em 58º lugar.

A melhor forma de humilhar um futurologista é pedir-lhe que descreva com algum detalhamento como será o mundo dentro de 20 ou 30 anos. Aí, é só esperar o tempo passar e confrontar as previsões com a realidade. A taxa de acertos costuma ser irrisória.

Tal constatação não deve nos impedir de arriscar palpites. É da natureza humana imaginar o porvir. Se formos prudentes e nos limitarmos a apontar tendências muito gerais, há até uma chance de acertarmos.

Um prognóstico que me parece razoavelmente seguro é o de que a prosperidade de uma nação dependerá cada vez mais do nível de conhecimento e das inovações que ela será capaz de produzir.

Se a dinâmica já tem sido essa desde que os primeiros hominídeos começaram a criar as primeiras ferramentas, o movimento deve intensificar-se quanto mais avançarmos na automação e na utilização da inteligência artificial —tendência que já me parece difícil de interromper.

Nesse mundo, terão sucesso os países que conseguirem formar cidadãos aptos não apenas a utilizar as novas tecnologias como também a criar em cima delas, para o que é indispensável um sistema educacional eficiente, que proporcione a todos os conhecimentos básicos que serão instrumentais para existir no futuro.

O Brasil está ficando para trás nessa corrida. Do jeito que caminhamos, vamos nos consolidar como um país café com leite. Até nos beneficiaremos de tecnologias criadas lá fora, mas seremos menos do que figurantes no jogo principal.

Quando 43% dos alunos não aprendem aquilo que se define como o mínimo necessário, o país já pode reivindicar o fracasso.


Demétrio Magnoli: Aconteceu no Canadá

Sentença que inocentou jovem e condenou policial precisa ser lida por Doria e comandantes da PM paulista

Bela Kosoian reside em Laval, na Grande Montréal, não em Paraisópolis. Dias atrás, a Corte Suprema do Canadá mandou que lhe paguem C$ 20 mil (cerca de R$ 63 mil), cotizados entre a prefeitura da cidade, a empresa de transporte e um policial arbitrário. A sentença precisa ser lida por João Doria e os comandantes da PM paulista.

O caso ocorreu em 2009. Bela foi multada, algemada e presa numa estação de metrô por não obedecer à ordem de um policial de segurar o corrimão da escada rolante e, em seguida, recusar-se a exibir um documento de identidade. Dois tribunais rejeitaram sua ação por danos morais. Ela apelou à instância superior e triunfou. A decisão é um marco civilizatório.

Os réus se defenderam mostrando fotos da placa que estimula o uso do corrimão. Explicaram, ainda, o treinamento oferecido aos policiais, no qual passa-se a impressão de que a advertência de segurança tem força legal. Não colou. Os juízes escreveram que “um policial sensato” não interpretaria a desobediência como uma violação da lei e sustentaram o direito de Bela de desobedecer a uma “ordem ilegal”. O trecho crucial da sentença deveria ser emoldurado e pendurado nas delegacias e quartéis das polícias brasileiras:

“Para conduzir sua missão de proteger a paz, a ordem e a segurança pública, policiais são chamados a limitar os direitos e liberdades dos cidadãos usando o poder coercitivo do Estado. Porque é inegável o risco de abusos, é importante que sempre exista um fundamento legal para as ações adotadas pelos policiais; na ausência de tal justificativa, as condutas deles são ilegais e não podem ser toleradas”.

A criminosa ofensiva policial no baile funk de Paraisópolis deve ser avaliada sobre o pano de fundo do episódio do metrô de Laval. As investigações talvez contem a história inteira. Mas, antes delas, qualquer pessoa cuja alma não tenha sido destroçada pelo preconceito sabe que “policiais sensatos” renunciariam a uma perseguição em meio à multidão reunida na rua.

Doria não aguardou as investigações para defender a ação em Paraisópolis. Das suas palavras sórdidas já se extrai a conclusão de que a missão da PM era, de fato, reprimir o baile —e que isso “vai continuar”. No Canadá, o policial pagou apenas um terço da indenização de Bela.

As perguntas precisam subir a ladeira que conduz ao comando da PM e ao governador. Que tipo de treinamento recebe a PM paulista? Qual é a bússola política que mostra o rumo aos responsáveis pela segurança pública? Qual é a diferença —prática, não retórica— entre Doria e Witzel?

O governador lamentou as mortes, etc. e tal, mas prometeu “manter o protocolo”. No primeiro semestre, a polícia foi responsável por um terço das mortes violentas no estado. Diante desse número, Doria declarou que não existe obrigatoriedade para a redução de vítimas em intervenções policiais. O “protocolo” é matar à vontade —com a condição de que os alvos não incluam frequentadores do Iguatemi. O “protocolo”, além de tudo, afronta os “policiais sensatos”, rebaixando a polícia ao estatuto de milícia.

“As condutas deles são ilegais e não podem ser toleradas”. Os juízes canadenses referiram-se aos policiais insensatos. Por aqui, a frase aplica-se aos “homens de bem” —moralistas, profundamente religiosos, defensores da família— sentados nos palácios do Planalto, dos Bandeirantes e da Guanabara. O programa deles não é a redução da letalidade. É o “excludente de ilicitude” de Moro, um verniz legal para a “lei do abate”.

Acima, dei de barato que ocorreu mesmo a perseguição alegada pela PM. As testemunhas dizem coisa diferente. Moradores da favela contam histórias incontáveis de ações policiais imotivadas e violentas. A canadense Bela não mora em Paraisópolis. Lá, o que seria dela se não obedecesse a uma ordem ilegal ou recusasse identificar-se a um policial?

*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Vinicius Torres Freire: PIB do Brasil ainda dança na noite dos desesperados

2020 deve ser melhor, mas país zumbi vive de bolo de pote e aplicativo de comida

É um erro perguntar se o Brasil vai viver outra década perdida na economia. Já viveu. Ao final deste ano, a renda per capita ainda será menor que a de 2010.

E daí?

Estatísticas históricas não pagam dívidas. Agora seria o caso de “enterrar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos” (ou abrir?), como teria dito um marquês ao rei de Portugal sobre o que fazer depois do terremoto de Lisboa, em 1750. Mais difícil é o que fazer diante de tantos mortos-vivos da miséria de 2020, mas o marquês desconhecia o apocalipse zumbi.

A história da renda per capita serve para nos lembrar do buraco em que ainda estamos, fossa esquecida nestes dias de discussões sobre ninharias decimais e outros ruídos estatísticos do PIB, festejado com bajulação, quando não com mentiras em TV nacional. A economia vai crescer 1,1% ou 1,3%? É “néris e reles e nem nada de nada” (cortesia de Haroldo de Campos, o poeta).

É verdade que, desde 2014, não havia perspectiva mais fundamentada de algum crescimento como agora. O ano de 2020 pode ser melhor, dados os desempenhos do segundo e do terceiro trimestres de 2019, o estímulo artificial da demanda (“voilà”) de FGTS e afins, juros baixos e certa arrumação da casa fiscal.

O que será esse PIB depois da gripe? Segue um exemplo, de relatório do Credit Suisse:

“Os números mais favoráveis da população empregada e a implementação de medidas para tornar o mercado de trabalho mais flexível no Brasil devem mudar a composição da massa salarial nos próximos anos. Esperamos que a massa salarial continue a apresentar expansão moderada em 2020-2021. O principal motor desta aceleração deve ser a expansão da população empregada, com crescimento do salário real mais modesto do que em anos anteriores”.

Isto é, a soma de rendimentos do trabalho vai crescer porque deve haver mais gentes empregadas, não por que vão ganhar mais, também por causa da reforma trabalhista. O salário médio ora cresce ao ritmo anual de 0,6%.

Sim, estão dadas algumas condições necessárias, quando não típicas, de saída de recessões, como juros baixos e salários reais deprimidos. Mas o fato é que o impulso para crescer será pequeno, embora seja difícil prever parte da reação de empresas às condições econômicas e financeiras.

Não haverá grande investimento privado, não haverá obras concedidas à iniciativa privada e o investimento público ainda vai minguar, o que tem sido até comemorado por muito analista Pangloss jeca, um mercadismo do mais vulgar. No mais, vai devagar a limpeza de entulhos regulatórios e distorções de mercado que tornam a economia essa ineficiência cartorial demente.

Muito importante, não se sabe até quando vai funcionar esta nossa geringonça de direita, o “parlamentarismo branco” que governa o país na economia e no mais contém tentativas de atrocidade maior do governo.

Jair Bolsonaro continua firme no seu propósito de “quebrar o sistema” político-partidário e democrático. Note-se que tumulto político anual tem sido a norma desde 2013, o que muito contribuiu para destroçar a economia.

Ainda atravessamos a “noite dos desesperados”, aquele filme sobre os concursos sinistros de dança sem fim da Grande Depressão nos Estados Unidos: os dançarinos que não morressem de exaustão levavam um troco para casa.

No concurso de 2020, ganha quem não morrer depois de uma maratona 24/7 de entrega de bolo de pote para um aplicativo de restaurante.


Bruno Boghossian: Bolsonaro paga o preço da antipolítica com juros e correção

Ampliação para R$ 3,8 bilhões amplia poder de caciques e reforça distorções

O cobertor anda curto, mas os parlamentares encontraram um jeito. O relator do Orçamento apertou os números e conseguiu aumentar para R$ 3,8 bilhões o valor proposto para o fundo de financiamento das eleições municipais do ano que vem. Para cumprir as regras fiscais, foi preciso tirar dinheiro de obras, da educação e até do programa que dá remédios para os mais pobres.

A ampliação da verba é tratada como prioridade por políticos de todos os lados. Do PT ao PSL, 13 partidos apoiaram a canalização de mais recursos para a eleição. Parlamentares e dirigentes dessas siglas alegam que o valor previsto antes, de R$ 2 bilhões, era pouco para custear a disputa em mais de 5.500 municípios.

Além de soar como desaforo num momento de crise econômica prolongada, a manobra dá fôlego exagerado a um modelo de financiamento de campanhas que é caro, desigual e ainda pouco transparente.

A decisão do Supremo que proibiu doações de pessoas jurídicas nas eleições reduziu a influência econômica das empresas na principal porta de entrada da atividade política, mas criou um problema óbvio, já que não havia alternativa inteligente para pagar a conta do processo.

O financiamento público é um caminho razoável, mas precisa de um debate profundo sobre redução dos custos das campanhas, regras de distribuição do dinheiro entre candidatos e modelos de prestação de contas. A fartura que os políticos concederam a si mesmos certamente não vai estimular essa discussão.

Os caciques partidários continuam concentrando o poder de decidir quem vai receber cada fatia do fundo eleitoral. Em geral, saem beneficiados políticos que já têm mandato, aliados e parentes, além dos próprios dirigentes. Aumentar o volume de dinheiro ainda vai reforçar as distorções da partilha.

As dificuldades de financiamento poderiam ser uma boa oportunidade para corrigir essas deformidades. Atirar mais dinheiro no problema pode ser fácil, mas não melhora a qualidade da democracia.


Hélio Schwartsman: Revolução judicial

Parlamentares se dividem nas tentativas para retomar prisão em segunda instância

Parlamentares lava-jatistas se dividem entre a via rápida e a mais lenta para tentar restaurar a prisão após a condenação em segunda instância. O grupo dos apressados, que se concentra no Senado, acredita que pode chegar a seu objetivo através de uma modificação no Código de Processo Penal (CPP). Como se trata de legislação ordinária, a mudança pode ser aprovada por maioria simples.

É possível, porém, que essa estratégia produza mais fumaça do que fogo. A medida seria questionada na Justiça, e não é improvável que o STF, que acaba de determinar que a prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado, isto é, até que não haja mais possibilidade de recorrer, considere inconstitucional a alteração no CPP.

O outro caminho, mais difícil, é aprovar uma emenda constitucional (PEC) que transformaria os recursos especial (ao STJ) e extraordinário (ao STF) em ações rescisórias. PECs exigem maioria de 2/3 em duas votações para virar norma, mas são bem mais robustas do que uma lei ordinária.

No caso específico, a PEC, sugerida originalmente em 2011 pelo então ministro do STF Cezar Peluso, é duplamente sutil. Como ela altera a própria definição de "trânsito em julgado" --não haveria mais a possibilidade de "recurso" após a segunda instância, só de revisão--, resistiria bem até ao argumento da cláusula pétrea.

O verdadeiro pulo do gato, porém, está no alcance da medida. Em princípio, a PEC afetaria não só ações penais mas também as de outros ramos da Justiça, como o cível e o tributário. Se ela for aprovada, as decisões das instâncias iniciais se tornariam mais efetivas e seria eliminado o incentivo perverso a recursos com fim meramente protelatório, de olho na prescrição. O sistema ficaria mais parecido com o de outros países, onde o grosso dos casos se resolve nas instâncias iniciais.

Seria uma revolução no Judiciário --e uma de que o Brasil precisa.


Bruno Boghossian: Infratores ambientais encontraram um caminho para o poder

Governo Bolsonaro oferece proteção generosa a grileiros acusados de devastação

Em 2013, o grileiro Rodrigo Santos foi multado por devastar uma área protegida no Acre. Furioso, ameaçou o fiscal que havia aplicado a punição: "Cadeia, a gente entra e a gente sai. Caixão não. Só tem entrada, não tem saída".

No ano seguinte, ele mudou de estratégia e tentou entrar na política para blindar suas atividades ilegais. "Se o governo quer me expulsar, eu me torno governo para ver se eles me expulsam", afirmou Santos. Ele concorreu a deputado estadual. Recebeu 594 votos e não foi eleito.

O grileiro fracassou nas urnas, mas parece ter encontrado um caminho para o poder. O repórter Fabiano Maisonnave conta que Santos integrava um grupo de infratores ambientais que foi ao gabinete do ministro Ricardo Salles, em novembro, para reclamar da fiscalização na reserva extrativista Chico Mendes.

Um dos participantes relatou à Folha que, no encontro, o chefe do instituto de conservação anunciou a suspensão de operações naquela área "devido ao abuso de autoridade" dos agentes do órgão.

O governo Jair Bolsonaro insiste que há excessos no controle ambiental no país. Em vez de discutir mudanças e analisar casos específicos, oferece uma proteção generosa a quem se beneficia de ações que ferem abertamente as regras de preservação das matas e florestas.

Só neste ano, o desmatamento naquela área cresceu mais de 200%. Produtores negociam terras ilegalmente e praticam atividades econômicas incompatíveis com a reserva.

O time do lobby que foi ao gabinete de Salles incluía um ex-procurador-geral do Acre denunciado por devastação ilegal de um pedaço de terra para abrir uma estrada. Outra integrante da equipe cria gado numa região que deveria atender apenas aos seringueiros.

O grupo foi ciceroneado por parlamentares do estado que elaboram um projeto de lei para legalizar as áreas ocupadas irregularmente pela pecuária. O texto favorece perfeitamente grileiros como Santos. Ele finalmente se tornou governo.


Elio Gaspari: O mundo irreal de Doria e Guedes

Até agora, quem apareceu quebrando os outros foram policiais

Exatamente uma semana depois de a PM de Wilson Witzel ter sujado a festa do Flamengo, o governador João Doria disse no domingo que “São Paulo tem uma polícia preparada, equipada e bem informada.” Naquela hora, os corpos de nove jovens estavam no necrotério, pisoteados depois de uma entrada truculenta de sua PM num pancadão de Paraisópolis. Nas bancas e na rede, nesse mesmo domingo, estava também a entrevista do ministro Paulo Guedes à repórter Ana Clara Costa, na qual ele explicava o “timing” de suas reformas:

“Você dá pretexto para os outros fazerem bagunça. (...) Chamar pra rua manifestação ordeira e pacífica, como a que fazem quase todo fim de semana, problema nenhum. Agora, chamar para a rua para fazer igual no Chile e quebrar tudo foi uma insanidade, irresponsabilidade.”

Há algumas semanas, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, acompanhando uma ameaça vinda de um filho do presidente, havia cantado a pedra do perigo chileno como justificativa para um surto ditatorial: “Acho que, se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem de fazer alguma coisa para conter.”

É irresponsabilidade (ou desejo) trazer o espantalho chileno para a situação brasileira, e a tragédia de Paraisópolis, bem como a pancadaria da festa do Flamengo, mostra que nos dois casos a insanidade saiu da PM. Não é de hoje que isso acontece.

Em outubro do ano passado, durante a gestão do governador Márcio França, a PM entrou num pancadão de Guarulhos, e três pessoas morreram em situação semelhante à de Paraisópolis. Doutor Doria poderia examinar a investigação do episódio de Guarulhos. Com uma polícia “preparada, equipada e bem informada”, deu em nada.

Um morador de Paraisópolis contou que a PM “chegou jogando bombas de efeito moral”. Pode ser que não tenha sido assim, mas na noite de 13 de junho de 2013, a PM paulista bloqueou uma passeata que protestava contra o reajuste dos ônibus na esquina da Rua da Consolação com a Maria Antônia. Quem estava lá viu que uns 20 policiais vieram do nada, jogando bombas de efeito moral. Aquela passeata era ordeira, convocada pelo Movimento Passe Livre e povoada por gente de tênis baratos e camisetas.

Começavam as jornadas de 2013. Anos depois, as manifestações transmutaram-se, e a presidente Dilma Rousseff foi deposta. (Vale lembrar que o governador tucano Geraldo Alckmin e o prefeito petista Fernando Haddad, do PT, que haviam reajustado as tarifas, estavam num evento em Paris, onde cantaram “Trem das onze” durante um jantar.)

Guedes teme que apareça gente “quebrando tudo”, mas, até agora, quem apareceu quebrando os outros foram policiais, em São Paulo e no Rio. Esse comportamento persiste pela garantia da impunidade.

Nas divagações chilenas de Guedes e do general Heleno insinuam-se paralelos de incitação política. Já que é assim, pode-se temer também que a incitação política venha de outro lado. Em 1968, ela vinha de um maluco chamado Aladino Félix. Antes que terroristas de esquerda começassem a assaltar bancos e a matar gente (naquele ano), ele roubava dinamite e armas. Assaltou pelo menos um banco, explodiu uma bomba na Bolsa e outra num oleoduto. Como era doido, não se pode acreditar na sua palavra quando dizia que estava ligado a um general da reserva que, por sua vez, teria conexões com o governo. Uma coisa é certa: no seu grupo estavam 14 soldados e sargentos da Força Pública de São Paulo, mais tarde transformada numa Polícia Militar.

Naqueles dias o governador de São Paulo, Abreu Sodré, denunciava uma conspiração nos “subúrbios do poder”.


Bruno Boghossian: Indiferença de governantes patrocina brutalidade de Paraisópolis

Papo 'linha dura' na segurança vem casado com apatia em relação a vítimas inocentes

A Polícia Militar foi a Paraisópolis para impedir a realização de um baile funk. Um dos agentes ficou escondido atrás de uma parede e, entre uma risada e outra, agredia com um pedaço de madeira os frequentadores, que saíam do pancadão com as mãos para cima.

Um vídeo com essas imagens apareceu depois que nove jovens morreram durante uma operação na favela paulista, no domingo (1º). A PM correu para divulgar a informação de que a cena nada tinha a ver com a tragédia do fim de semana. A gravação havia sido feita no dia 19 de outubro, na mesma região.

A ideia era rebater parte das críticas à atuação dos policiais que encurralaram milhares de pessoas no episódio mais recente, fazendo com que vítimas fossem pisoteadas nas vielas. Mas a resposta foi esclarecedora por outro motivo. Comprovou que a truculência policial é um método mais do que recorrente por ali.

Depois da morte dos nove jovens, o governador João Doria convocou uma entrevista, lamentou o caso e afirmou que o estado “tem o melhor sistema de segurança preventiva”.

O que se viu no domingo, porém, não tinha nada de preventivo. Policiais disseram que perseguiam dois suspeitos. Atiraram bombas de efeito moral numa área onde estavam mais de 5.000 pessoas. Cercaram os frequentadores e bateram com cassetetes em quem já estava no chão.

Doria declarou que o baile funk nem deveria ter ocorrido e que as mortes não foram provocadas pela polícia. Acrescentou que “a política de segurança pública do estado de São Paulo não vai mudar”.

Um desavisado poderia imaginar que o tucano se vangloriava de uma estratégia sofisticada de inteligência, com planos requintados para desarticular grupos criminosos. Estava apenas atrás dos dividendos de um discurso cada vez mais perigoso.

O paulista não é o único. O papo do “tiro na cabecinha” vem acoplado a uma indiferença corriqueira em relação a vítimas inocentes. É essa apatia dos governantes que patrocina a brutalidade vista em Paraisópolis.