Folha de S. Paulo
Elio Gaspari: Última morada de JK pede socorro no entorno de Brasília
'Fazendinha' só está intacta graças ao altruísmo de uma família modesta
Colhendo material para uma biografia de Juscelino Kubitschek, o repórter Lucas Figueiredo bateu em sua última morada, a “Fazendinha”, uma propriedade de 310 alqueires a 85 km de Brasília. Lá está a casa onde viveu o maior presidente da segunda metade do século. Intacta, graças ao altruísmo e sentido de história de uma família modesta, ela precisa que alguém ajude a preservar esse patrimônio.
É Lucas quem conta:
“No início da década de 1970, já de volta do exílio, JK comprou um pedaço de terra em Luziânia, interior de Goiás.
Começando do nada, construiu uma casa confortável (projeto de Oscar Niemeyer, com quatro suítes, pintada por fora de azul del rey para lembrar Diamantina), mas simples (o maior luxo era uma saleta que servia de sala de jogos e discoteca). Criou gado e produziu milho, trigo e café.
À noite, JK se punha na varanda a olhar as luzes de Brasília. Quando ele morreu, um admirador do ex-presidente, Lázaro Servo, comprou a fazenda, de porteira fechada.
Hoje, um dos filhos de Lázaro, Antônio Henrique Belizário Servo, mora na fazenda com a mulher, Rosana, e os filhos. Acordam cedo e trabalham muito para manter a fazenda produtiva.
A casa está hoje como se JK tivesse saído dela ontem. Os atuais moradores não usam a sala de estar, por exemplo. É proibido sentar nos sofás de vime e nas cadeiras estofadas de veludo alemão de cor laranja, todos originais. O carpete verde é original. A cozinha ainda guarda o fogão e as panelas da família. Nos armários, cristais, louças, prataria e roupa de cama dos Kubitschek.
Na garagem, está a Mercedes-Benz preta, ano 1963 (seis cilindros, banco em couro, volante em marfim), com a qual o ex-presidente um dia planejou fazer um leilão para angariar recursos para a campanha JK-65.
Em cima de um aparador, fica uma bela maleta que guarda fichas e baralhos, na qual, no dia 20 de novembro de 1971, JK anotou a caneta, no forro de feltro verde, ter feito um royal de copas.
A joia do conjunto é a biblioteca com cerca de 1.800 livros. Lá estão livros de medicina de JK da década de 1920 (ele era médico), o livro do bebê de sua filha Márcia no qual, em outubro de 1943, ele anotou que a menina dera o primeiro sorriso depois de mamar. Há volumes autografados por Pedro Nava, Oscar Niemeyer, José Sarney e pelo embaixador americano Lincoln Gordon.
Os visitantes não podem tocar nos livros. Os poucos pesquisadores que puderam fazê-lo tiveram de usar luvas de látex, por exigência de Rosana Servo.
Muito longe de serem ricos, os proprietários mantêm a fazenda-museu com grande dificuldade; o dinheiro só sai, não entra. Recentemente, tiveram de fechar os registros dos banheiros por semanas porque um vazamento ameaçava o carpete original. Há anos, eles reivindicam no Iphan o tombamento da fazenda, sem sucesso.
Acreditam que, com o tombamento, conseguirão ao menos garantir que a propriedade e seu acervo não irão se perder. Apesar de todas as dificuldades, estão dispostos a continuar botando dinheiro do próprio bolso para preservar um patrimônio nacional e a viver numa casa em que utilizam menos de metade do espaço”.
As casas do marechal Deodoro, de Prudente de Moraes e de Getúlio Vargas foram preservadas. A casa do sítio de João Goulart em Jacarepaguá foi demolida.
O que a família Servo faz pela memória de JK não tem precedente na história do Brasil.
Não ficou bem para Moro se meter na defesa de senadora cassada
O ministro Sergio Moro não leu os autos do processo que resultou na cassação do mandato da senadora Selma Arruda (Podemos-MT). Se tivesse lido não teria conversado com ministros do Tribunal Superior Eleitoral defendendo a salvação da senhora.
Não devia ter conversado porque não fica bem o ministro da Justiça se meter em casos desse tipo. E também porque nos autos lia-se que a doutora, como juíza, reuniu-se com marqueteiros de campanhas eleitorais. Ela se inscreveu no PSL antes da homologação de seu pedido de aposentadoria. Isso tudo e mais um empréstimo de R$ 1,5 milhão tomado ao seu suplente endinheirado. A senhora era chamada de “Moro de saia” e a cassação foi mantida por seis votos contra um.
Quem conhece direito e o funcionamento do Judiciário fulmina: “Se uma autoridade do Executivo fosse ao gabinete do juiz Moro em Curitiba para uma conversa dessas, arriscava receber voz de prisão”.
Sonho petista
Nas articulações de chapas para as eleições municipais do ano que vem, muitos petistas acreditam que serão favorecidos porque atrairão os votos de quem não quer “o que está aí”.
Sonhar é grátis, mas Jair Bolsonaro está no Planalto exatamente porque boa parte do eleitorado fez esse raciocínio, ao contrário. Queiram qualquer um, menos o do PT.
Outro povo
Em 1985, quando o ex-presidente Jânio Quadros derrotou Fernando Henrique Cardoso na disputa pela Prefeitura de São Paulo, o professor Delfim Netto riu dos bem pensantes da época: “Vão precisar trocar de povo”.
Essa advertência reaparece quando o Datafolha revela que Damares Alves é a vice-campeã de popularidade entre os ministros, com 43% de avaliações entre o ótimo e o bom.
Vinicius Torres Freire: Derrota de lavada da esquerda britânica tem algo a ensinar para o Brasil
PIB e situação social do Reino Unido vão mal, mas conservadores ganham de lavada
Bem-estar social e economia não parecem ter sido os motivos da lavada do Partido Conservador na eleição britânica. “Economia”, de resto, é conceito amplo demais para servir de motivo de explicação, entre outros problemas.
Seja como for, explicar escolhas políticas tem andado mais difícil do que de costume nesta década de revoltas e reviravoltas. O nosso Junho de 2013 é um caso exemplar; o Reino Unido dá o que pensar para o Brasil de 2019 e para os Estados Unidos e sua crucial eleição de 2020.
Desde 2010, início da sequência de governos conservadores, a economia do Reino Unido cresceu à metade do ritmo registrado sob os governos trabalhistas deste século. A desigualdade de renda aumentou ligeiramente, mais visível na perda de renda dos 20% mais pobres e no aumento da renda dos 10% mais ricos.
Sob os conservadores, o gasto per capita em saúde pública cresceu 0,6% ao ano desde 2010, ante 3,3% da média desde o fim da Segunda Guerra. O gasto por estudante da escola fundamental caiu 8% desde 2010 e ainda mais no ensino médio. São dados oficiais compilados pela “Health Foundation” e pelo “Institute of Fiscal Studies”.
A situação obviamente não está boa e os britânicos estão revoltados, em especial trabalhadores de renda baixa, muitos agora ex-eleitores dos trabalhistas. Essa revolta, porém, se transforma em voto pelo brexit, contra imigrantes, em adesão a ideias autoritárias, em desconfiança de elites tecnocráticas, intelectuais e políticas. É um cenário conhecido e reconhecível em muitos países do mundo ocidental.
Voltaram as “guerras culturais”, o debate de costumes, nacionalismos e outros mitos mais ou menos monstruosos que pareciam ao menos contidos desde a catástrofe da Segunda Guerra. Quase sempre os partidos à esquerda são derrotados quando as batalhas são disputadas nesses campos. Mas não parecem tão óbvios o motivo da preferência pela direita, da importância revivida das “guerras culturais” e da desimportância da discussão político-econômica.
É preciso lembrar que:
a) o aumento da produtividade nas economias avançadas está sendo capturado pelos mais ricos, nas últimas três ou quatro décadas, com quase estagnação no salário mediano real, com aumento de desigualdades e desesperança social;
b) os partidos da centro-esquerda em geral foram perdendo a identidade desde o começo dos anos 1990, virando sensaborias políticas e elitismos tecnocráticos: lembrem-se das Terceiras Vias, a versão zumbi da social-democracia.
Ou seja, as “guerras culturais” ocupam o espaço esvaziado de programas de esquerda, em particular daqueles que cheirem a naftalina dos anos 1970. Os guerreiros culturais oferecem explicações ou conforto para o ressentimento dos desvalidos e largados da economia do século 21, quando não criam diversionismos loucos e autoritários.
A esquerda não tem o que dizer ao povo miúdo nas guerras culturais ou econômicas. O que a isolada esquerda no Brasil tem a dizer ao crescente precariado, a outras massas de trabalhadores sem organização e aos “autônomos” em geral?
Essas pessoas desconfiam do Estado, que cobra imposto, azucrina ou impede o pequeno negócio ou bico, confisca mercadorias, leva propina, espanca, mata ou deixa que o traficante ou miliciano matem e roubem. Estado que, apesar desse policiamento fiscal ou terminal, não oferece escola ou hospital decentes.
A esquerda perdeu o trem ou o Uber do recomeço da história.
Bruno Boghossian: Ao desmentir suas próprias frases, Bolsonaro dá aula de manipulação
Ao desmentir suas próprias frases, Bolsonaro dá aula de manipulação
Não surpreende ninguém que Jair Bolsonaro esteja em conflito com a verdade e os fatos, mas ele se superou na última semana. O presidente alcançou a proeza de atacar e chamar de falsa uma informação que ele mesmo dera 24 horas antes.
Ao voltar para o Palácio da Alvorada depois de uma passagem pelo hospital, na quarta (11), ele disse: "Tem possível câncer de pele. Fizeram uma checagem em mim". A imprensa noticiou o fato, é claro. "Após exames, Bolsonaro diz que há possibilidade de ter câncer de pele" foi o título do texto publicado pela Folha.
Na noite seguinte, o presidente encarnou um ator canastrão numa transmissão ao vivo pelas redes sociais. "Teve uma fake news também que eu estava com câncer", reclamou. "É mentira em cima de mentira!"
Poderia até parecer que, finalmente, Bolsonaro confessava ser um fabricante de notícias falsas. Mas era só o exemplo mais nítido de seu método de manipulação. O presidente da República adultera fatos e frauda todo tipo de informação sem corar.
Se Bolsonaro diz A pela manhã e o oposto de A no fim do dia, ele espera que uma parte da população acredite cegamente na última versão. A última pesquisa do Datafolha mostrou que 43% dos brasileiros nunca acreditam em suas declarações, mas apontou também que 19% sempre confiam no que ele fala.
É por isso que ele tenta desqualificar seus críticos e desacreditar o trabalho da imprensa profissional. A ideia é que só exista uma história a ser contada, aquela que o favoreça.
Para construir a realidade paralela, vale tanto atacar versões que incomodam o governo como dar declarações absurdas e acusar Leonardo DiCaprio de "tacar fogo na Amazônia", só para tumultuar o debate.
Bolsonaro costuma citar o versículo bíblico João 8:32: "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". O trecho fala da libertação daqueles que aceitam a palavra divina, mas o presidente distorce até as Escrituras para explorá-las em sua guerra contra os fatos. Como se vê, o governo não busca apoio, mas veneração.
Julianna Sofia: Reforma no serpentário
Bolsonaro deve promover minirreforma no serpentário
Parlamentares de influência na Esplanada consideram favas contadas alterações no gabinete ministerial de Jair Bolsonaro em janeiro. Apesar das negativas palacianas, a expectativa é que o presidente promova uma minirreforma, revendo a posição de três ou quatro peças do primeiro escalão da República até o início do próximo ano legislativo.
O espaço ocupado pelo DEM no ministério (três pastas de peso) não condiz com o volátil apoio parlamentar outorgado ao governo em votações importantes no Congresso. O incômodo não é de agora, mas recente movimentação de caciques da legenda na direção de presidenciáveis rivais irritaram Bolsonaro. Por esse motivo, tornou-se alvo preferencial na relação das mudanças o ministro demista Onyx Lorenzoni (Casa Civil), espécime ilustre no serpentário presidencial.
Abraham Weintraub é outro a pegar o beco. O titular da Educação goza de simpatia de Bolsonaro e filhos por sua fidelidade ideológica canina, mas empilha incompetência, verborragia, ativismo virtual agressivo, tretas mil e zero de resultados na gestão. Pressões pela troca crescem em progressão geométrica, e Weintraub se enfraquece em parceria com o padrinho --foi pelas mãos de Onyx que chegou ao ministério.
O ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia) também aparece entre os alvos da reforminha, assim como todo o segundo escalão da pasta. Parlamentares reclamam da falta de interlocução com o ministro; a equipe econômica já se indispôs com o militar sobre a abertura do mercado de gás; e o time palaciano está descontente com a demora de Bento na solução de temas caros ao presidente (garimpos).
As prováveis trocas não atingem, porém, o núcleo enrolado do governo. Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), denunciado pelo Ministério Público no escândalo das candidatas-laranjas do PSL, e Ricardo Salles, investigado por enriquecimento ilícito na gestão de Geraldo Alckmin em São Paulo, seguem intocados.
Por ora, distantes do pau de arara.
Hélio Schwartsman: O pulo no fosso
Quando a maioria dos eleitores decide marchar para o precipício, o país cai no abismo
Um dos problemas da democracia é que, quando a maioria dos eleitores decide marchar para o precipício, o país cai no abismo. É o que acontece no Reino Unido com a maiúscula vitória do premiê Boris Johnson.
A principal consequência da votação é que Johnson conseguiu carta branca para efetivar o divórcio entre os britânicos e a União Europeia, que agora deve ocorrer antes do final de janeiro. E é o brexit que pode ser objetivamente descrito como um pulo no fosso.
Embora muitos britânicos achem que a separação representará a retomada dos tempos gloriosos, nos quais o povo decidia seu próprio futuro sem a interferência de estrangeiros e em que os bons empregos não eram roubados por estrangeiros, ela significa, em termos mais concretos, a renúncia ao acesso privilegiado a um mercado de mais de 500 milhões de pessoas e a inutilização da melhor ferramenta para lidar com o problema da estagnação demográfica, que é a imigração.
Se é tão claro assim que o brexit é objetivamente ruim, por que tantos eleitores o apoiaram? Aí é que está o pulo do gato. A ideia de um Reino Unido glorioso e independente circula como meme e está ao alcance fácil de qualquer um que se disponha a apanhá-la. A constatação dos prejuízos, porém, exige a montagem de cenários contrafactuais mais difíceis de visualizar, que não raro envolvem muita estatística: como ficaria a economia se o Reino Unido continuasse na UE?
Um estudo do próprio governo britânico que vazou em 2018 estimou que, com o brexit, até 2034, o PIB ficará entre dois e oito pontos percentuais menor do que seria em caso de permanência. Com a saída nos termos pretendidos por Johnson, o prejuízo seria de 6,7 pontos percentuais.
O diabo é que as lideranças populistas estão cada vez mais hábeis em fazer com que os eleitores se enamorem dos memes fáceis e ignorem os cenários só um tiquinho mais complexos.
Demétrio Magnoli: Inimigos da polícia
Policiais bandidos sempre existirão, mas a polícia bandida é fruto de seus superiores
Há, e são muitos, policiais profissionais que cumprem a sua missão de proteger a ordem pública e a segurança dos cidadãos respeitando estritamente a lei. Existem, e não poucos, policiais que vão muito além de seu dever. Eles apartam brigas de casais, assumem riscos pessoais excessivos para salvar indivíduos em perigo, fazem partos em situações de emergência, amparam famílias durante os dias traumáticos do sequestro de um dos seus. Por culpa dos inimigos da polícia, geralmente esquecemos disso.
Um inimigo da polícia é o policial que usa sua arma como ferramenta para violar a lei. Aquele que chantageia pessoas vulneráveis para obter propina, cobra tributos informais de atividades irregulares, engaja-se na intermediação de negócios ilegais, associa-se a máfias políticas ou empresariais. Ou, ainda, aquele que pratica pequenos gestos cotidianos de arbítrio, recorre à brutalidade gratuita, envolve-se em operações de vingança homicida, forma milícias. Esse tipo de policial degrada sua profissão: a substância pegajosa que dele emana suja o uniforme de seus colegas honestos e mancha até mesmo os distintivos dos colegas heroicos.
O policial contaminado pelo preconceito é um inimigo da polícia. Ele enxerga o bairro de periferia ou a favela como terra estrangeira —e seus habitantes, especialmente quando jovens e negros, como delinquentes naturais. Sob a lente de seus óculos, o baile funk dos pobres é orgia criminosa. Nesse olhar fraturado começa o trajeto que se conclui em tragédias como a de Paraisópolis, em São Paulo. Entretanto, quase invariavelmente, a consumação da barbárie depende de uma palavra que vem de cima.
A polícia é o que seus comandos querem que seja. A cultura policial nasce nos escalões superiores —isto é, nos comandantes e nas autoridades políticas que os selecionam. Policiais bandidos sempre existirão, mas a polícia bandida é o fruto do presidente que elogia o arbítrio e a truculência, do filho do presidente que homenageia milicianos, do governador que pede tiros “bem na cabecinha” ou do que nada vê de condenável na alta letalidade das operações de sua polícia. Os principais inimigos da polícia têm nome e sobrenome: chamam-se Jair Bolsonaro, Wilson Witzel, João Doria.
O policial profissional sabe que o policial bandido é seu inimigo —e, por isso, espera que sistemas de controle o identifiquem e excluam da corporação. Entre os maiores inimigos da polícia encontra-se Sergio Moro, o ministro que, por meio de seu “excludente de ilicitude”, almeja impedir a punição de criminosos uniformizados. O dispositivo, se aprovado, representaria o triunfo jurídico da polícia bandida —ou, dito de outro modo, o enterro definitivo da polícia profissional. Atrás da proposta legislativa, espreita a sombra do esquadrão da morte.
A Lei de Drogas, envelope jurídico do preconceito social, é o pátio de encontro dos inimigos da polícia. Seus holofotes comprimem, numa tábua única, a alta criminalidade do narcotráfico, o pequeno crime da “mula” ou do “aviãozinho” e o consumo de entorpecentes no pancadão da periferia (esqueça a rave de Pratigi, na Bahia: nas festas da classe média não circulam drogas!). Os adolescentes mortos em Paraisópolis são “danos colaterais” da Lei de Drogas, como o são as crianças alvejadas no Rio e a multidão de presos sem nome das penitenciárias convertidas em escolas do crime.
Os inimigos da polícia fazem com que, no lugar de respeito, a polícia se torne objeto de temor, aversão e ódio. Não há nada mais perigoso do que isso para os policiais. Eles têm que cumprir sua missão em territórios hostis, entre pessoas que os enxergam como as ameaças mais letais. Devem, portanto, operar em comunidades que preferem o silêncio à cooperação ou, em casos extremos, escolhem cooperar com os criminosos. O partido do “excludente de ilicitude” também mata policiais.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Elio Gaspari: Paul Volcker, um servidor público
Ele mandou na economia americana e quebrou o Terceiro Mundo. Vestia-se mal e morava numa quitinete
No final do século passado, Paul Volcker estava num coquetel na Universidade de Princeton, uma daquelas confraternizações nas quais os americanos tomam vinho branco em copos de plástico. Um curioso aproximou-se da sua imponente figura (2m01cm) e, no meio da conversa, arriscou:
— O seu livro publicado em parceria com o ex-presidente do Banco do Japão deixa a impressão de que em 1982 o senhor quebrou o Terceiro Mundo para salvar os bancos americanos.
Volcker assumiu o Federal Reserve Bank em 1979, com a inflação americana acima de dois dígitos. Como presidente do banco central mais poderoso do mundo, paulatinamente jogou os juros para cima, e eles chegaram a 21% ao ano. Com isso, num cenário de alta do petróleo e baixa de outras matérias-primas, as dívidas dos países do Terceiro Mundo atreladas às taxas americanas explodiram. Em 1982, o México não conseguiu pagar suas contas. Meses depois, foi a vez do Brasil, e em alguns meses, só na América Latina, 16 países estavam quebrados. Deu-se a esse período o nome de “Crise da Dívida do Terceiro Mundo”.
Volcker respondeu ao curioso:
— Esse era o meu serviço (“That was my job.”), e a conversa migrou para amenidades.
Em 1982 não houve a tal “Crise da Dívida do Terceiro Mundo”, houve uma crise da banca internacional que emprestou dinheiro a quem não devia, mas os credores, com a ajuda dos governos caloteiros e do Fundo Monetário Internacional, inverteram o jogo. (Em 2007, quando a banca atolou-se, ninguém disse que havia uma crise dos devedores americanos inadimplentes.)
Anos depois, William Rhodes, chefe do cartel dos bancos, condecorado pelo governo brasileiro com a Ordem do Cruzeiro do Sul, escreveria:
“A crise da dívida latino-americana não foi apenas uma punição a excessos de endividamento. Foi também uma crise bancária.”
Volcker salvou a banca porque os servidores públicos americanos defendem os interesses de seu país. Ele era um economista do Federal Reserve de Nova York e aceitou a presidência do banco central sabendo que perderia metade do salário. Mudou-se para uma quitinete de estudante em Washington, e sua mulher alugou um dos quartos de seu apartamento em Manhattan. Fumava charutos baratos, comia congelados de mercearias e, certa vez, o presidente Jimmy Carter mandou-lhe um recado: ou comprava um terno novo, ou não o receberia na Casa Branca. (Há uns 20 anos, o milionário presidente da Goldman Sachs chegou em casa com um sobretudo novo, de uma loja caríssima. A mulher mandou que o devolvesse, pois já tinha abrigo para o inverno.)
Volcker tinha dois caminhos: quebrava os endividados do Terceiro Mundo ou quebrava os grandes bancos americanos. Seu serviço, como presidente do Fed, era defender o sistema financeiro dos Estados Unidos. Pouco importava se o presidente da estatal petrolífera da Indonésia havia fechado um empréstimo de 25 milhões de dólares assinando numa caixa fósforos de boate.
A grande proeza dele, da banca e do FMI foi conseguirem que todos os governos devedores contassem aos seus povos que a crise era deles.
Depois de sair do Fed, Volcker foi para a banca privada e contava que lá, num só dia, ganhou mais dinheiro do que em 30 anos de serviço público. Ele morreu na segunda-feira.
Bruno Boghossian: Pirraça presidencial
Brasileiro demorou a adotar pragmatismo e preferiu investir em implicância ideológica
A agenda oficial não tinha nenhum compromisso extraordinário. Não apareceu nem mesmo um corte de cabelo emergencial, como o que impediu seu encontro com o chanceler da França, em julho.
Jair Bolsonaro passou boa parte da manhã e o início da tarde desta terça (10) em reuniões corriqueiras, mas não foi à posse do novo governo argentino, que acontecia naquele horário. Mandou apenas o vice Hamilton Mourão e protagonizou mais um episódio de pirraça presidencial.
O episódio mostra que Bolsonaro não consegue resistir à tentação de uma implicância ideológica, mesmo que isso possa causar prejuízos ao país. Quando Alberto Fernández e Cristina Kirchner já eram mais do que favoritos na eleição do país vizinho, o brasileiro fez questão de dizer que torcia contra a vitória da dupla.
Num evento no Rio Grande do Sul, em agosto, ele disse ao público que, se "essa esquerdalha" voltasse ao poder na Argentina, haveria o nascimento de uma nova Venezuela, com pobreza e migração em massa.
O presidente criou constrangimento com o principal parceiro do Brasil na região só para satisfazer sua cruzada política. O objetivo era evidente: manter vivos os fantasmas do retorno da esquerda e mobilizar sua própria base eleitoral, às custas das relações diplomáticas do país.
A autossabotagem continuou mesmo depois da eleição da chapa kirchnerista. O fato já estava consumado, mas Bolsonaro disse publicamente que lamentava o resultado e que os vizinhos haviam escolhido mal. Depois, afirmou que não queria se indispor com o novo governo, mas que não cumprimentaria o eleito.
Para completar, o presidente avisou que não iria à posse e escalou para a função o ministro da Cidadania. Depois, mudou de ideia e disse que não mandaria ninguém. Só no fim, foi convencido a enviar Mourão.
Bolsonaro demorou a sorrir amarelo e adotar o pragmatismo necessário em situações como essa. O comportamento errático deve inaugurar uma relação de desconfiança com o novo governo vizinho.
Hélio Schwartsman: Viés de ranqueamento
O IDH não é uma corrida
A mídia foi mais ou menos unânime em anunciar os resultados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2018 destacando o fato de que o Brasil perdeu uma posição. Passou do 78º para o 79º lugar entre os 189 países e territórios avaliados pela ONU.
Isso é um fato e eu não sou do governo para brigar com fatos. Receio, contudo, que tenhamos aqui sido vítimas do viés de ranqueamento, que é a propensão humana a colocar em formato de ranking tudo aquilo que tem expressão quantitativa.
Não estou dizendo que rankings nunca façam sentido. Eles são uma exigência lógica em muitas situações. O problema com o IDH é que ele não é uma corrida. Se algum país que estava abaixo do Brasil melhorou mais que nós, só nos resta parabenizá-lo —e sinceramente, já que sua conquista em nada nos prejudica.
O procedimento mais correto com o IDH seria apresentar a evolução do indicador de cada país ao longo do tempo. Nessa métrica, o índice do Brasil de 2018 foi de 0,761, um crescimento de 0,001 em relação a 2017. Houve, portanto, melhora. O que preocupa é que nossos avanços têm sido homeopáticos, quando precisaríamos que fossem muito maiores.
A introdução do IDH, nos anos 90, foi importante para reduzir o peso excessivo que se dava à economia —o principal indicador que se usava então era o PIB per capita— e incluir outras dimensões. O IDH leva em conta, além do PIB, expectativa de vida e educação.
Ao legitimar o uso de outras dimensões, porém, o IDH abriu uma caixa de Pandora. Por que se limitar a economia, saúde e educação? O próprio IDH tem uma variante que considera a desigualdade. Críticos lamentam que ele ignore outros itens relevantes, como ambiente e felicidade.
Se ampliarmos demais a lista das coisas que valeria a pena medir num índice, logo chegaríamos ao paradoxo borgiano do mapa tão perfeito que tinha o tamanho exato do império e coincidia com ele ponto por ponto.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro, a geringonça da extrema-direita
Apesar de tumultos, há um arranjo político até aqui estável na política e na economia
Pode parecer doido quem diga que houve alguma estabilidade neste quase primeiro ano de Jair Bolsonaro. Mas há um arranjo político que dura desde março, que evitou o desgoverno total, o desarranjo geral no Congresso e os piores arreganhos autoritários ou disparates jurídico-administrativos.
Além do mais, não houve choque político da dimensão vista neste país pelo menos desde 2013, a cada ano. Mesmo a avaliação de Bolsonaro mantém-se praticamente estável desde abril, embora tenham se deteriorado as expectativas de sucesso de seu governo.
As altercações e os ultrajes quase diários dão a impressão de movimento caótico. Avanços e recuos em medidas e leis demonstram que o governo carece de coordenação político-administrativa, pelo menos segundo o padrão geralmente aceito de planejamento racional.
Caíram dois ministros palacianos que pareciam do núcleo íntimo permanente de Bolsonaro (Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz). O “núcleo militar”, que daria estrutura e funcionalidade ao governo, como se especulava bobamente (aqui inclusive), foi desfeito em menos de seis meses; vai encolher ainda mais até março, com mais substituições de ministros oficiais-generais.
Bolsonaro cumpriu até aqui e de certo modo a promessa de não montar um governo baseado em coalizão parlamentar. Isto é, não trocou cargos por bancadas aliadas no Congresso; a ideia tola de governar com “bancadas temáticas” (bala, boi, Bíblia) era isso mesmo, sem fundamento e se esfumaçou.
O presidente de resto hostiliza, hoje um pouco menos, o responsável por aprovar reformas sem as quais a economia do país e seu governo estariam em convulsão, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara.
Seu governo bate recordes de derrotas em votações parlamentares. Seu partido se dissolveu em menos de nove meses de governo, em meio a uma chacrinha sórdida, com o que Bolsonaro não se incomodou muito, se tanto, diga-se de passagem.
De que estabilidade se trata, então?
A elite política e econômica acomodou Bolsonaro. O que parecia uma extravagância passageira no início do ano, o “parlamentarismo branco”, firmou-se até aqui, embora sabe-se lá o que será desse arranjo até março, quando o Congresso voltar das férias de verão, depois de consultar as “bases”, quando talvez já se tenha alguma ideia de se a recuperação econômica “agora, vai”.
Mas o governo do premiê acidental Maia funciona regularmente. Discute e organiza os projetos da Economia. Contém os avanços autoritários de decretos e projetos de Bolsonaro. As lideranças do centrão, Maia inclusive, arrumaram um jeito de acalmar parlamentares, com o pagamento de emendas e nomeações para cargos de terceiro escalão ainda rendosos em termos políticos.
Nesse parlamentarismo branco ou encardido, o presidente mantém certos poderes, como em alguns de seus similares formais. Por exemplo, o poder de fazer guerra cultural (na educação, na cultura), o de aparelhar a máquina com esbirros ideológicos alucinados, de intervir aos poucos nos órgãos de controle (Procuradoria-Geral) e de tocar a política externa.
Difícil dizer que não se trata de arranjo funcional, que contribuiu para estabilizar a economia ou evitar recaídas ou desastres. Essa geringonça de extrema-direita, de resto, cria uma base estável para Jair Bolsonaro tocar o seu principal projeto, que é “quebrar o sistema” político e as instituições de controle democrático.
Ranier Bragon: O 2019 do religiosismo primitivo também é o do Jesus gay
Ano 1 de Bolsonaro realça o obscurantismo carola, mas também a reação contrária
Como informou meu colega Fábio Zanini, grupos religiosos iniciaram uma campanha de boicote à Netflix em decorrência do especial de Natal do grupo Porta dos Fundos, "A Primeira Tentação de Cristo".
Jair Bolsonaro representa o empoderamento de denominações evangélicas com legitimidade e notáveis méritos, mas que ainda insistem em empunhar bandeiras medievais e anti-humanistas, como a homofóbica.
Assim como no especial de Natal de 2018 —"Se Beber, não Ceie", que levou o Emmy internacional de melhor comédia do ano—, o atual filme do grupo humorístico é de uma iconoclastia sem dó nem piedade.
Deus é um grande tiozão f.d.p., José, um marceneiro atrapalhado, um dos três reis magos leva uma puta para o aniversário de 30 anos de Jesus, que, em linhas gerais, age como um adolescente de 15 e volta dos 40 dias no deserto tendo se descoberto gay.
É uma obra engraçadíssima, que remete ao genial e precursor "A Vida de Brian" (1979), dos ingleses do Monty Python, e satiriza também outras divindades, como Buda.
A Coalizão pelo Evangelho postou em seu site "dez princípios sobre a relação dos cristãos perante os episódios de Natal da Netflix e Porta dos Fundos". O de número 3 diz que devemos exaltar a bondade e a beleza em nossa cultura, mas odiar o que é mal. "O verdadeiro amor odeia." Logo após, o 4 prega haver "diferentes tipos de maldades e graduações de pecados", sendo a homossexualidade um dos "mais abomináveis".
Existindo céu e inferno, rogo a Deus a gentileza de, na hora derradeira, me encaixar no lugar exatamente oposto ao reservado para os que comungam de tais concepções.
Há 33 anos —a idade de Cristo, olhe só—, e por muito menos, José Sarney atendeu a uma pressão da Igreja Católica e proibiu a exibição de "Je Vous Salue, Marie", de Jean-Luc Godard. Foi o último filme censurado no Brasil até a atual onda conservadora. O ano 1 de Bolsonaro ressuscitou o fantasma. O Jesus gay e outros exemplos, porém, mostram que a reação tem sido à altura.
Hélio Schwartsman: Bolsonaro, a verdade liberta
Datafolha traz más notícias para quem quer Bolsonaro longe do Planalto o quanto antes
O último Datafolha traz más notícias para a turma que quer ver Bolsonaro longe do Planalto o quanto antes. A reprovação ao governo parou de aumentar, estabilizando-se em torno dos 36%. É um índice muito ruim para quem está no primeiro ano do primeiro mandato --nessa mesma altura, FHC e Lula marcaram 15% de avaliações negativas; Dilma 6%--, mas o capitão reformado segue com o apoio de 30% do eleitorado.
O mais provável é que a polarização tenha acelerado um movimento de desgaste que, em condições normais, se distribuiria pelos quatro anos de mandato. Os eleitores que não são fãs ardorosos do presidente não esperaram para rejeitá-lo. A contrapartida disso é que o núcleo de apoiadores declarados também tende a ser mais sólido que o costumeiro numa avaliação de um ano de mandato.
O que deve tirar o sono dos antibolsonaristas é o fato de que a economia dá sinais de recuperação. Os 30% de apoio decidido, mais um crescimento moderado, mais a vantagem natural de quem disputa uma reeleição, que é da ordem de 80%, tornariam Bolsonaro um candidato bastante competitivo em 2022.
E, como eu já disse aqui, o prejuízo às instituições que Bolsonaro causaria com oito anos de governo é maior do que o dobro do que ele é capaz de impor em quatro. É que a resiliência dos agentes em condições de resistir às investidas autoritárias do governo diminui aceleradamente com a passagem do tempo. Os quadros da burocracia estável do Estado não são hoje bolsonaristas; serão um pouco mais dentro de quatro anos; e, em oito, poderemos até ter repartições com maioria terraplanista.
Para não terminar numa nota muito pessimista, a pesquisa revela fragilidades na imagem do governo que podem ser exploradas. Uma delas é a corrupção. Se as investigações no entorno familiar prosseguirem, poderão revelar a verdade sobre as rachadinhas --e, como Bolsonaro gosta de dizer, a verdade liberta.