Folha de S. Paulo

Demétrio Magnoli: A esquerda que elege a direita

Não por acaso, Trump acalenta o mesmo sonho dos ativistas americanos de esquerda

Boris Johnson obteve maioria absoluta no Parlamento britânico, mas a votação dos conservadores aumentou em apenas 1,2 ponto percentual. Na raiz do triunfo, encontra-se o colapso da oposição trabalhista, que perdeu 7,8 pontos percentuais. A abstenção saltou de 22%, em 2017, para 33%, agora. Os eleitores descontentes ficaram em casa, para não votar em Jeremy Corbyn. A esquerda elegeu a direita.

Há pouco, participei de uma conferência internacional no Marrocos. Num dos painéis, dedicado à crise das democracias, uma jovem expositora, líder de uma ONG indiana, foi indagada sobre as iniciativas do governo de Narendra Modi. Ela circundou a pergunta, optando por um discurso ensaiado. Mencionou estatísticas acerca das carências da população jovem do mundo e, quase aos gritos, proferiu sucessivas exigências iniciadas sempre pela frase “Nós temos o direito” —a isso, aquilo e aquilo outro.

O “nós” da expositora significava “nós, jovens do mundo todo”. Ninguém a elegeu como representante, mas ela pratica o discurso identitário, esporte da moda. A reivindicação de direitos pertence à tradição democrática moderna, responsável pela progressiva ampliação dos direitos políticos e sociais.

Contudo, sua autoproclamada representatividade pertence a uma gramática autoritária pós-moderna. Justamente por exibir-se como porta-voz de uma vasta e heterogênea parcela da humanidade, a jovem não aceita inscrever suas reivindicações no campo das complexas transações políticas da democracia. Os berros da esquerda elegem a direita.

A revista Time nomeou Greta Thunberg personalidade do ano. A adolescente sueca acredita na ciência, ao contrário dos negacionistas que governam os EUA e o Brasil. Porém, como a jovem indiana, despreza a política, classificando tudo que fique aquém das exigências máximas do movimento ambientalista como “palavras vazias”.

Nos EUA, Trump aposta sua reeleição no “país profundo” do carvão e do petróleo. Na França, Macron tentou estabelecer uma taxa verde sobre os combustíveis fósseis, mas teve que recuar diante da pressão dos coletes amarelos. Na COP-25, não se obteve nem um acordo sobre o mercado de carbono. Greta fala só para convertidos.

Corbyn anunciou a “Revolução Industrial Verde” do Partido Trabalhista num encontro com Greta. O líder britânico joga em diversas posições. Anos atrás, enaltecia Hugo Chávez e flertava com a versão esquerdista do antissemitismo. Seu manifesto eleitoral radical, junto com suas ambiguidades sobre o brexit, provocou a maior derrota trabalhista desde 1935.

Os trabalhistas ganharam a adesão entusiasta da juventude urbana de classe média, mas romperam o diálogo com a massa de eleitores que rejeitam a velha fórmula econômica estatizante. A esquerda dura e pura elegeu um governo nacionalista, xenófobo e antieuropeu.

A esquerda americana inspira-se nos conceitos de Corbyn e no método discursivo de Greta. Os pretendentes democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren recusam a ideia de reforma imigratória, em nome da descriminalização da imigração ilegal e da abolição da agência nacional imigratória.

Também querem educação superior gratuita para todos e a anulação universal das dívidas de créditos estudantis. A deputada Ocasio-Cortez, ícone da ala esquerdista, rotulou a proposta de expansão dos subsídios educacionais apenas para os menos ricos, formulada pelos pré-candidatos moderados, como “conversa fiada republicana”.

A catástrofe trabalhista britânica não abalou os ativistas americanos. Presos às bolhas das suas redes sociais, eles engajaram-se na missão de torpedear os candidatos democratas capazes de conversar com os eleitores do Cinturão da Ferrugem que derrotaram Hillary Clinton em 2016. Sua chapa dos sonhos é Sanders/Warren, os heróis tribais dos campi universitários. Trump, não por acaso, acalenta o mesmo sonho.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Vinicius Torres Freire: Clã Bolsonaro, risco para o PIB 2020

Notícias de escândalos rebaixam sinais de melhora modesta, mas firme, na economia

No mundo do dinheiro grosso e da política, não se deu muita atenção ao descalabro de Flávio Bolsonaro, de sua loja de chocolates, seu castelo de fantasmas e seu muquifo de milicianos.

A finança está animada, o Congresso saiu de férias, a esquerda foi à praia e nem explorou o sururu na casa do governo. Quem andou colocando o governo na linha, de novo, foi Rodrigo Maia, do DEM, o premiê acidental.

O vexame sórdido, porém, tirou das manchetes outras notícias de indícios de recuperação da economia, como os números ainda modestos, mas animadores, do emprego formal e da arrecadação de impostos.

Foi ainda mais um lembrete de que a política é um risco maior para o PIB do ano que vem, dada a perspectiva de fins deste 2019. No mais, as condições para algum crescimento de curto prazo são as melhores desde 2013. Por política entenda-se aqui o complexo Bolsonaro, de escândalos à desarticulação no Congresso, passando pela administração caótica.

O ritmo de criação de empregos com carteira assinada parece acelerar, mas ainda lentamente, apesar da euforia de economistas de banco, consultorias e simpatizantes. Nos últimos 12 meses, até novembro, o número de empregos formais aumentou em cerca de 606 mil; no ano passado, foram 548 mil.

É um incremento que não chega ainda a 60 mil —note-se que há cerca de 39,4 milhões de empregos com CLT no país. É animador ver a construção civil começando a sair do fundo do buraco, mas o emprego na indústria permanece estagnado desde outubro do ano passado.

O salário de admissão ainda cresce muito menos do que o dos demitidos. Enfim, mais de 13% do saldo de empregos de novembro está na categoria tempo parcial e intermitente, novidades da reforma trabalhista. Sim, alguém pode dizer que é melhor algum emprego do que nenhum. Mas é preciso levar em conta tais diferenças nas comparações com verões passados.

Isto posto, o ano deve ser o melhor desde 2013, em criação de empregos, crescimento da economia e perspectivas. Por ora, espera-se que o PIB avance de 2% a 2,5% em 2020, o que significa a manutenção do ritmo de crescimento em que temos andado desde o fim do primeiro trimestre.

Há riscos na indústria, que não convalesce. A confiança do empresário industrial não se recupera. A FGV, que faz a sondagem do ânimo dos empresários, descobriu que esse desânimo se deve ao crescimento lento (para 66,5% das empresas consultadas) e à incerteza política (para 35,5%), entre os motivos principais. Pois é.

Há o salário médio que não cresce. Está praticamente estagnado desde o primeiro terço do ano. Além do mais, segundo as contas do Ipea com base em dados do IBGE, 22,2% dos domicílios não têm rendimento do trabalho (ante 19,2% de 2014). Os domicílios com renda "muito baixa" (menor que R$ 1.643,78) são 29,6% do país. Os indivíduos com renda muito baixa ainda ganham em média menos do que em 2012.

O ritmo de andamento de mudanças institucionais na economia caiu depois da aprovação da reforma da Previdência. Jair Bolsonaro e seu entorno dão mais palpites sobre o assunto, e o governo é errático mesmo nesses temas cruciais para sua sobrevivência. O Ministério da Economia reaparece com ideias que azedam até o caldo reformista, como CPMF e variantes.

Sim, há sinais e condições de melhora. Sim, falta criar 2 milhões de empregos formais para voltarmos ao nível de 2014. Sim, a política dos Bolsonaro ameaça tudo isso.


Hélio Schwartsman: Mais impeachments

No Brasil, já nos livramos de dois presidentes por essa via

Processos de impeachment presidencial costumam envolver fortes emoções, como testemunhamos nos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. Nos EUA, porém, a coisa é um pouco mais anticlimática, pois já sabemos de antemão que Trump, apesar de ter perdido na Câmara, deverá vencer no Senado.

Pela regra americana, é necessária uma maioria de 50% na Câmara para formalizar as denúncias contra o presidente, mas são precisos 2/3 dos senadores para condená-lo e afastá-lo do cargo. Como os EUA têm um sistema bipartidário razoavelmente equilibrado, maiorias de 2/3 são raríssimas. Não é uma coincidência que nunca tenham concluído uma deposição presidencial por impeachment.

No Brasil, onde já nos livramos de dois presidentes por essa via, a coisa flui muito melhor, pois nosso Parlamento conta com quase três dezenas de partidos com baixa coerência ideológica e nenhuma fidelidade política. É interessante constatar que o mundo é complexo o bastante para engendrar situações em que até graves defeitos se tornam virtudes.

Tom Ginzburg e Aziz Huq, autores de “How to Save Constitutional Democracy” (como salvar a democracia constitucional), defendem que o impeachment, especialmente nos dias de hoje, tenha seu escopo ampliado para abarcar não só as definições mais usuais de crime de responsabilidade (“high crimes and misdemeanors”) mas também tentativas do mandatário de minar por dentro instituições democráticas.

A ideia é que o impeachment sirva para corrigir um dos principais problemas dos regimes presidencialistas, que é a rigidez excessiva. Não se deve, porém, cair no extremo oposto e convertê-lo num análogo do voto de desconfiança no parlamentarismo. O segredo da democracia está no equilíbrio entre rigidez e flexibilidade, entre mudança e preservação de consensos. É justamente esse equilíbrio que populistas buscam romper, propondo soluções tão mirabolante quanto falsas.


Bruno Boghossian: Laço com miliciano reflete grupo que chegou ao poder com Bolsonaro

No pacote completo do governo, estão Jair, Flávio, Moro, Guedes, Queiroz, Adriano...

Flávio Bolsonaro fez sua primeira homenagem a Adriano da Nóbrega em 2003. Dois anos depois, mandou entregar uma medalha ao policial, que estava preso por assassinato. Na mesma época, Jair fez um discurso na Câmara em sua defesa.

As conexões entre o clã e o PM, hoje acusado de chefiar uma milícia, são conhecidas há mais de uma década. A mulher de Adriano foi contratada para trabalhar no gabinete de Flávio em 2007. Anos mais tarde, a mãe também conseguiu uma vaga.

Se alguém ainda conseguia acreditar que era tudo coincidência, as informações levantadas pelo Ministério Público estão aí para mostrar que esses vínculos fazem parte da operação política da família. Quando Bolsonaro se elegeu presidente, foi esse o grupo que chegou ao poder.

O suspeito de comandar uma milícia sanguinária no Rio era praticamente um dos sócios da rachadinha que funcionava no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa. Os promotores descobriram que uma parte do dinheiro devolvido ao assessor Fabrício Queiroz, operador do esquema, passou por uma conta bancária controlada por Adriano.

A mulher do ex-policial reconheceu a amigas que era funcionária fantasma e repassou parte do salário a Queiroz. Numa troca de mensagens, Adriano também indicou que recebia parte desse dinheiro público.

Danielle da Nóbrega ficou no gabinete de Flávio por 11 anos. O clã não pode dizer que não sabia quem era o casal. Quando Bolsonaro preparava sua última campanha, Queiroz procurou a mulher para dizer que ela poderia perder o cargo. Contou que a família não queria correr riscos, dada sua relação com o ex-policial.

O verniz anticorrupção de Sergio Moro ou o encanto liberal de Paulo Guedes não ocultam esses laços. Outrora implacável, o ministro da Justiça permanece apático, enquanto os fãs da equipe econômica preferem fingir que só os números importam.

Mas é impossível fechar os olhos para o pacote completo. Só há um governo. Nele, existem Jair, Flávio, Moro, Guedes, Queiroz, Adriano...


Bruno Boghossian: Caso contra Flávio deve causar mais estragos no clã Bolsonaro

Investigação pode revelar essência política e relações da família no topo do poder

Poucos conhecem a essência do clã Bolsonaro como Fabrício Queiroz. Amigo do presidente há 35 anos, o ex-policial desabafou quando viu que as investigações sobre os gabinetes da família avançavam. Em julho, numa gravação, ele dizia que o Ministério Público tinha “uma pica do tamanho de um cometa” contra o grupo. Pois o cometa chegou.

A operação desta quarta (18) contra alvos ligados a Flávio Bolsonaro mostra o tamanho do estrago que o caso ainda pode provocar. Promotores já encontraram indícios de desvio de salários de assessores e conexões do clã com parentes de milicianos.

Suspeito de executar a “rachadinha”, o famoso Queiroz recebeu R$ 2 milhões de 13 assessores lotados no gabinete do filho do presidente na Assembleia do Rio, segundo a revista Crusoé. O Ministério Público identificou 483 depósitos desses funcionários na conta do ex-policial.

Parte do dinheiro foi enviada pela mulher e pela filha de Adriano da Nóbrega, acusado de chefiar uma das maiores milícias do estado. Quando trabalhavam para Flávio, as duas repassaram R$ 203 mil para Queiroz e sacaram mais R$ 202 mil em espécie.

Transferências fracionadas e pagamentos em dinheiro vivo são típicos do esquema em que servidores são obrigados a devolver parte dos salários para políticos ou operadores.

Flávio disse várias vezes que não participava de atividades suspeitas, mas os promotores estão decididos a ir mais fundo. Eles acham que o filho do presidente pode ter usado transações de imóveis e uma loja de chocolates para lavar dinheiro.

A família acreditava que as investigações perderiam força com o sumiço de Queiroz e pensavam que o STF mataria o caso no peito, mas as apurações ainda devem ganhar força. Além da quebra de sigilos bancários, foram apreendidos celulares de dezenas de pessoas ligadas ao clã.

A investigação já mostrou que o gabinete de Flávio funcionava como um caixa eletrônico. Agora, ainda pode revelar as engrenagens políticas e as relações nada inofensivas do grupo que chegou ao topo do poder.


Mariliz Pereira Jorge: A falácia da maioria

Ao dizer que governa para a maioria, Bolsonaro varre os números para debaixo do tapete

Jair Bolsonaro não entendeu, e tudo indica que isso jamais acontecerá, que foi eleito para cuidar de todos os brasileiros e não apenas daqueles que o elegeram. E, volta e meia, vem com a ladainha de que governa para a maioria. Difícil saber se ele acredita nisso ou é só caô para ver se cola. Do jeito que fala, parece um democrata interessado no que o povo, a maioria mesmo, quer.

Com a falácia de defender os interesses da maior parte das pessoas, ele apenas varre os números para baixo do tapete, mas vamos relembrar. Jair teve 39,24% dos votos, quase 58 milhões de eleitores, o que ele adora exaltar, num universo de 147 milhões. Juntando Fernando Haddad, brancos, nulos e abstenções temos cerca de 89,5 milhões de brasileiros que não se sentem representados. Somem-se a isso os decepcionados e os arrependidos. Quem mesmo é minoria?

Antes da eleição, Bolsonaro já dizia que elas, as minorias, teriam que se curvar às maiorias, em alusão às pautas relacionadas a grupos em desvantagens sociais. Desde então ficou claro que minoria para o presidente é todo mundo que não votou nele ou não apoia suas decisões.

Na semana passada, ele voltou a bater na tecla da "maioria" em dois episódios. Ao dizer que "cultura tem que estar de acordo com a maioria da população", sem apontar qualquer dado que mostre o que essa tal "maioria" quer. O presidente também foi ao Twitter (oi?) perguntar se os seus seguidores concordavam com a volta dos radares móveis nas rodovias. Sua lógica é a de que, se a "maioria" não quer, o que importam os números que apontam aumento de mortes e feridos?

Bolsonaro ignora estatísticas, pesquisas e tendências e termina o primeiro ano de governo parecendo desdenhar do que grande parte dos brasileiros pensa, precisa e quer, apenas para satisfazer uma minoria fanática que endossa sua estupidez. Isso talvez explique parte de sua baixa popularidade.


Vinicius Torres Freire: PIB dá sinais de vida, mas economia pós-ruína é uma desconhecida

Faz seis anos, conjuntura não era tão favorável para retomada; política é risco

Aumentou a “probabilidade de aceleração” do crescimento nos próximos meses, sugere uma medida combinada de indicadores financeiros, de produção industrial, do comércio exterior e de expectativas empresariais e do consumidor.

Vai, racha ou ainda se arrasta? Uma aceleração pode ter também consequências políticas mesmo em meados de 2020, ainda mais dada a conformação gelatinosa dos pedaços da política brasileira recente.

“O cenário do Copom supõe que essa recuperação seguirá em ritmo gradual”, escreveu a diretoria do Banco Central na exposição de motivos da decisão de baixar a Selic na semana passada, no entanto (na Ata do Copom). Isso parece significar que o crescimento do PIB deve passar aos poucos do ritmo de crescimento de 1% ao ano para 2%. Mantido o ritmo do segundo e terceiro trimestres até o final de 2020, a economia cresceria 2,2%, por exemplo.

Ainda assim, o pessoal do BC escreveu também na Ata que a economia pode acelerar além da conta atual, dadas certas e novas condições da economia: taxa básica de juros historicamente baixa, nova e crescente fonte de financiamento da economia (mercado de capitais), menos crédito público subsidiado, por exemplo. É uma hipótese, lá está claro, pois se desconhece como funciona a economia neste novo regime (e, não está lá escrito, depois de meia dúzia de anos de recessão e estagnação).

A medida que sugere a “probabilidade de aceleração nos próximos meses” é o Indicador Antecedente Composto da Economia Brasileira (IACE), publicado em parceria entre a FGV-Ibre e The Conference Board. É uma combinação ponderada de taxa básica de juros no mercado para um ano, do desempenho do Ibovespa, de expectativas de empresas da indústria e de serviços, de confiança do consumidor, da produção de bens de consumo duráveis e de preços relativos (termos de troca) e de quantidade de exportações brasileiras.

Pelos números recentes e a julgar pelo resultado passado do efeito conjunto de tais indicadores, a economia parece estar no caminho da aceleração. Mas a gente não tem como prever que os efeitos continuem os mesmos, como de costume. Para dificultar a estimativa, temos esses fatos muito novos, como a taxa básica real de juro em torno de 0,6% ao ano, ressalte-se, e a configuração da economia depois de anos de ruína.

Para o Banco Central, traços de respostas para essas questões vão indicar se a taxa de juros (Selic) vai cair de novo em fevereiro de 2020 (próxima reunião para decidir sobre juros). Caso a economia cresça o previsto ou até acelere, o clima político deve mudar, caso o governo de Jair Bolsonaro não cause mais tumulto ou dê mais tiros no pé ou na orelha.

Não vai ser o “milagre do crescimento”. O desemprego continuará muito alto. A distribuição do crescimento não deve ser favorável para os mais pobres; não há dinheiro para fazer redistribuição, ao contrário. Mas haverá beneficiados, mais gente vivendo algo melhor do que agora e menos gente vivendo pior. Pode aparecer alguma percepção “pop” de que reformas e despiora da economia têm algo a ver.

Seria uma situação que levaria um governo normal a atrair aliados e fazer composições político-partidárias mais amplas. No caso de Bolsonaro, difícil dizer, até porque em termos políticos o governo vive voluntária ou involuntariamente no caos e do caos. Mas haveria condições para o clima político mudar. Na direção de formação de alianças ou de ênfase em “quebrar o sistema”?


Bruno Boghossian: De olho na reeleição, Bolsonaro toma gosto por palpites na economia

Presidente fica mais sensível a pressões de nichos eleitorais e desvia do liberalismo

Para alguém que transformou em bordão o fato de não entender "nada de economia", Jair Bolsonaro parece ter tomado gosto por dar palpites na área. Lançado precocemente à reeleição, o presidente mostra que, em muitos casos, seus interesses políticos se sobrepõem à cartilha liberal do governo.

A agenda permanente de campanha e o DNA populista tornam Bolsonaro cada vez mais sensível às pressões de certos nichos do eleitorado.

O apoio do presidente a um ajuste generoso nas carreiras militares, suas intromissões recorrentes no debate sobre os preços dos combustíveis e a hesitação diante de reformas propostas pela equipe econômica alimentam desconfianças sobre os rumos dessa agenda.

Sempre foi evidente que Bolsonaro era um liberal de ocasião. Sem pauta própria na economia, ele aceitou terceirizar esse setor para Paulo Guedes e alimentou uma contraposição com o estilo intervencionista de Dilma Rousseff. Conseguiu, assim, surfar ainda mais no antipetismo que se tornou marca de sua campanha.

Guedes recebeu carta branca para desenvolver um plano de redução de privilégios e de enxugamento do Estado, mas os pitacos do presidente se avolumaram no caminho.

Em abril, Bolsonaro demoliu a promessa de barrar interferências políticas na Petrobras. Pressionado por caminhoneiros, o presidente mandou a empresa congelar o custo do diesel. Nesta semana, voltou ao assunto e disse que faria "o possível para baratear o preço do combustível".

O presidente também refugou dias antes da apresentação da reforma administrativa, em novembro, por temer a revolta de servidores contra regras duras para suas carreiras. Guedes quer mudanças profundas, mas o chefe já avisou que a proposta seria "a mais suave possível".

Decidido a tentar um segundo mandato, Bolsonaro desvia com mais frequência dos manuais do liberalismo para não pisar nos calos de seus potenciais eleitores. Sem a reforma da Previdência pela frente, as tentações políticas tendem a prevalecer.


Elio Gaspari: Jari, a Fordlândia 2.0

Hoje o BNDES está com um mico de R$ 790 milhões

A repórter Stella Fontes informa: “endividada, a Jari agoniza”. Deve R$ 1,75 bilhão. Sua recuperação judicial foi suspensa e não tem como pagar aos 750 empregados de sua fábrica de celulose, encravada na Floresta Amazônica. Pode parecer mais uma história de fracasso numa época de crise. É muito mais, verdadeira aula sobre algo que poderia ter dado certo, deu errado e, ao longo de 30 anos, foi dando mais errado.

O Projeto Jari foi a primeira joia da Coroa da ditadura. Coisa de sonho: Nos anos 60, Daniel Ludwig, um dos homens mais ricos do mundo, comprou 160 mil quilômetros quadrados (um Líbano e meio) na divisa do Pará com o Amapá. Trouxe do Japão, por mar, uma fábrica de celulose e uma termelétrica. Construiu uma cidade, plantou gmelinas, arroz e queria explorar bauxita. Septuagenário sem herdeiros, avarento e misantropo, tomava leite com vodca. Deu tudo errado. Crucificado no lenho do nacionalismo xenófobo que envolve a Amazônia, Ludwig fez as malas e foi embora.

Quem ouve falar do Jari tende a compará-lo à Fordlândia, sonho de outro magnata misantropo. Em 1928 Henry Ford comprou dez mil quilômetros quadrados (um Líbano), onde pretendia plantar dois milhões de seringueiras e também planejou uma cidade. Deu tudo errado e, em 1945, a propriedade foi vendida por 1% do seu valor. Nenhum negócio de Henry Ford ou de Daniel Ludwig deu tão errado.

As semelhanças terminam aí. Ludwig não saiu como Ford. Em 1982 ele perdeu algo como US$ 1 bilhão, mas deixou o projeto no colo da Viúva, e o governo organizou um consórcio de empresários para ficar com a Jari. À frente, entrou o magnata Augusto Trajano de Azevedo Antunes, um dos maiores empreendedores do seu tempo. Numa carta de 20 de janeiro de 1982 ao presidente João Figueiredo, ele foi claro:

“Entendo que recebi uma missão do governo. (...) Ao se incumbir alguém de uma missão, cumpre propiciar-lhe também os meios indispensáveis para bem executá-la.”

Queria investimentos públicos, uma hidrelétrica e, sobretudo, simpatia para o “cumprimento de missão de alta relevância nacional.”

Um mês depois, o Banco do Brasil entrou no projeto e ficou com 12% das ações da holding.

Coisa da ditadura? Nem tanto, em 1994, depois de visitar o projeto, o candidato Lula informava: “O Ludwig foi um sonhador. Passei 20 anos da minha vida esculhambando o Jari, mas hoje o Brasil tem novos empresários”. Referia-se aos netos de Antunes que tocavam o projeto. Lula perdeu a eleição para Fernando Henrique Cardoso. Em 1996, FHC sabia que o BNDES estava metido com 20% de participação na Jari e que era “grave a situação”. Meses depois a empresa entrou em concordata branca e metade da dívida estava com a Viúva. Em 2000 a Jari foi vendida ao grupo Orsa, sob aplauso dos credores (a Viúva tinha um terço desse espeto). Por algum tempo conseguiu respirar, até que se afogou, e hoje o BNDES está com um mico de R$ 790 milhões.

Em 2019 o professor americano Greg Grandin publicou no Brasil seu livro “Fordlândia — Ascensão e queda da cidade de Henry Ford na selva”. Contou a história de um empresário que fez um mau negócio e foi em frente. Algum dia alguém contará a história do Jari, um mau negócio no qual o governo entrou, juntando-se a empresários e banqueiros amigos, sempre dispostos a cumprir uma “missão de alta relevância nacional”.


Ranier Bragon: A demagogia que cerca o fundão eleitoral

Financiar campanhas com dinheiro público não é imoral; modelo é que tem que ser revisto

Congresso e governo definem nos próximos dias quanto será sacado dos cofres públicos para financiar candidatos a prefeito e vereador em outubro do ano que vem.

Trama-se o escândalo nacional de tirar mais de R$ 2 bilhões da merenda das criancinhas para colocar na mão de uma súcia de vigaristas. Esse é o enredo contado e repetido, o que indica que bilionário também é o palavrório fiado em torno do tema.

A não ser que concordemos que a "transformação que o Brasil quer" não se dará pelas vias democráticas, é preciso saber que a democracia tem um custo, e ele não é pequeno.

Sinto desapontar o patriota da camisa verde e amarela, mas, mesmo que não houvesse fundão, esses R$ 2 bilhões possivelmente não iriam para a merenda das criancinhas. Poderiam ir pra qualquer coisa –incluindo o custeio da logística para Jair Bolsonaro acompanhar in loco as rodadas do Brasileirão– ou apenas para a redução do déficit fiscal.

Parece impossível a algumas mentes aparvalhadas entender que a correta aplicação de R$ 2 bilhões no financiamento das eleições –repito, a correta aplicação– trará muito mais benefícios às criancinhas. Uma democracia consolidada e inquestionável é melhor do que qualquer ideia surgida da parolagem autoritária e simplória do anti-tudo-isso-aí.

Registre-se que alguns execram o fundão, mas omitem malandramente o fato de que a carteira recheada e o autofinanciamento sem limite lhes darão léguas de vantagem. O dinheiro empresarial, proibido, irrigou a corrupção. As doações de pessoas físicas ainda são uma quimera.

É preciso, certamente, alterar a absurda regra de distribuição do fundo eleitoral. Não é admissível que dirigentes partidários controlem qual candidato será beneficiado e com quanto. Isso não pode mais ser alterado para 2020. Que o Congresso crie vergonha e aprove um modelo realmente democrático para 2022 –caso contrário, continuará jogando lenha na fogueira dos que veem a democracia e a política como a causa de todos os nossos problemas.


Leandro Colon: Weintraub não deixará saudades se deixar o MEC

Apenas 32% dos brasileiros sabem quem é o chefe da pasta da Educação do governo Bolsonaro

Tudo indica que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, é peça a ser em breve descartada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Weintraub foi chamado para estancar uma crise interna com o primeiro escolhido para a pasta, o até então desconhecido Ricardo Vélez.

O que era para ser uma solução virou um problema. Weintraub revelou-se um caos administrativo, com um comportamento fora dos padrões adequados para um ministro de Estado e da liturgia que o cargo exige. É constrangedora sua presença no primeiro escalão da Esplanada.

Ele acredita que a postura agressiva e errática na bolha das redes sociais é uma fórmula de sucesso com a população. A mais recente pesquisa do Datafolha mostra que o ministro precisa repensar seus conceitos.

Oito meses depois de assumir o comando do MEC, Weintraub é ignorado por dois terços das pessoas.

Apenas 32% dos entrevistados afirmaram saber quem é o chefe da pasta da Educação do governo Bolsonaro. O patamar cai para 23% entre aqueles que ganham até dois salários mínimos. Ou seja, os mais pobres, que necessitam, entre tantas coisas, de uma educação pública e de qualidade, desconhecem o responsável por isso na esfera federal.

Apenas 25% dos jovens entre 16 e 25 anos responderam conhecer o ministro. É justamente a faixa etária dos que têm entre suas prioridades o ingresso no ensino superior.

E somente 17% dessa parcela da população, ciente da existência de Weintraub, avalia como ótima ou boa a performance no MEC. Para 38%, a gestão dele é ruim ou péssima.

O ministro falastrão de Bolsonaro é mais conhecido entre os brasileiros com ensino superior. Segundo a pesquisa, 56% sabem quem é ele, mas 42% desses consideram o desempenho dele ruim ou péssimo, percentual acima dos que que só fizeram ensino médio ou fundamental.

A provável saída de Weintraub do ministério pode ser um sinal positivo para que a área enfim decole no governo Bolsonaro. A população certamente não sentirá saudades dele.


Celso Rocha de Barros: A queda de Corbyn

Brexit pode ser terrível para o Reino Unido, mas é espetacular como forma de vencer os trabalhistas

O Partido Trabalhista britânico teve na semana passada sua maior derrota eleitoral desde 1935. O conservador Boris Johnson passou a ter maioria na Câmara dos Comuns para tocar o brexit como achar melhor, dentro dos termos impostos pela Europa.

Os tories venceram em distritos que eram trabalhistas desde a Segunda Guerra Mundial, como as áreas industriais do norte da Inglaterra. Poucas décadas atrás, essas regiões estavam conflagradas contra Margaret Thatcher.

Nos meios de esquerda, a discussão passou a ser quanto do desastre pode ser atribuído à virada à esquerda liderada pelo líder trabalhista Jeremy Corbyn nos últimos anos.

Essa seria uma hora para o centro-esquerdista aqui marcar pontos, mas sugiro cautela.

Corbyn tinha propostas radicais de nacionalização e elevação do gasto público; várias dessas propostas, inclusive algumas com as quais não concordo, são populares. Mas o líder trabalhista também tem uma bagagem pessoal pesada, que inclui gestos a favor de membros do IRA e de um clérigo muçulmano acusado de antissemitismo (Raed Salah). Em uma eleição sobre identidade britânica, nada disso ajudou.

Corbyn tornou-se muito menos popular do que os líderes de oposição britânicos recentes.

Corbyn era fraco, radical demais e tem que deixar a liderança. Mas o problema principal não foi esse. As cartas que Corbyn tinha na mão eram muito ruins. O brexit pode ser terrível para o Reino Unido, mas é espetacular como forma de vencer os trabalhistas.

Na última convenção trabalhista, grande parte da militância queria adotar uma posição fortemente antibrexit. Mas os sindicatos, que fundaram e mantiveram o Labour por mais de cem anos, forçaram a adoção de uma posição complexa, que o eleitorado considerou vacilante.

A oscilação se explica facilmente. Os trabalhadores das antigas cidades industriais apoiaram o brexit. O motivo desse apoio é controverso: talvez identifiquem a União Europeia com a globalização que lhes tirou os empregos, talvez considerem importante reafirmar a solidariedade nacional em uma época de crise.

Qualquer que seja o motivo, a divergência com os jovens trabalhistas das grandes cidades é real. Nenhum líder, por melhor que fosse, teria uma solução fácil para essa divisão em sua base.

Alguns analistas acreditam que os tories podem manter seu novo eleitorado, com alterações na identidade do partido. Junto com Corbyn, o brexit também enterraria Thatcher e criaria um partido conservador nos costumes e mais intervencionista na economia.

Permaneço cético. Acho que Boris Johnson herdou o cobertor curto que era de Corbyn. Os tories agora vão ter que conciliar quem defende o brexit para tornar o Reino Unido mais “americano” com quem sonha com uma versão dos “good old days” que é, basicamente, a Europa dos anos 1950: industrial, social-democrata e com sindicatos fortes.

Se for possível, será uma tremenda obra de engenharia política. Mas pode ter sido só um estelionato. E, se fracassar, a esquerda britânica não estará mais limitada pelo Tratado de Maastricht, que impôs a moderação macroeconômica a governos de esquerda europeus por quase 30 anos.

De qualquer forma, como notou Laura Carvalho, o Brasil vai se isolando como único caso de populismo de direita economicamente liberal. Vejamos por quanto tempo.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).