Folha de S. Paulo

Maria Hermínia Tavares: Por que Moro é popular

Ex-juiz tem respostas simples, e erradas, para a corrupção política e a segurança dos cidadãos

O ministro da Justiça, Sergio Moro, é a mais bem avaliada figura pública entre aquelas que a pesquisa XP-Ipespe acompanha periodicamente. Numa escala de 0 a 10, os entrevistados lhe atribuíram nota média 6,2, superior a de seu chefe Jair Bolsonaro, com 5,4, e do principal inimigo de ambos, Luiz Inácio Lula da Silva, com 4,9.

Seu prestígio resistiu às devastadoras revelações do site The Intercept sobre o facciosismo com que agiu, não raro na contramão da lei, como juiz da Operação Lava Jato. Resistiu também à sua apagada atuação como ministro submisso aos devaneios autoritários do presidente, e à derrota que lhe impôs o Congresso, ao desmanchar boa parte de seu pacote anticrime.

A popularidade de Moro resulta das suas respostas simples —e erradas— a dois problemas que tocam fundo os brasileiros comuns e para aos quais nem os passados governos progressistas nem as forças de centro e esquerda deram atenção devida, incapazes de formular discursos críveis e soluções compatíveis com o respeito mínimo aos direitos individuais. Tais problemas, como se sabe, são a corrupção política e a segurança dos cidadãos.

No primeiro caso, PT, PSDB e respectivos aliados, em conluio com grandes empresas privadas, usaram sem pudor recursos públicos para financiar as suas máquinas eleitorais, fechando os olhos quando, vez por outra, as sobras escorregavam para os bolsos de dirigentes e operadores. Continuaram a fazê-lo mesmo depois da irrupção de grandes escândalos, como o mensalão, indiferentes, além do mais, às pesquisas que revelavam ampla rejeição às práticas corruptas.

Deixaram, por outro lado, que o crime organizado expandisse seus negócios nefastos, lado a lado com a criminalidade comum. Isso legitimou perversamente a violência mal administrada da polícia, que se abate sem distinção sobre suspeitos e inocentes.

Os pobres que são assaltados de madrugada nos pontos de ônibus, que temem por seus filhos atraídos pelo tráfico ou recrutados pelas facções que dominam as prisões superlotadas, ou ainda atingidos por balas perdidas, anseiam por ordem e segurança. Trata-se de uma aspiração inquestionável. O mesmo querem os mais bem aquinhoados, quando alcançados pela violência que vem debaixo.

Eis as bases do prestígio de Sergio Moro: a espetacularização do combate aos corruptos, o sinal verde para a violência policial, o aumento das detenções e o endurecimento das condições carcerárias.

Seu prestígio persistirá enquanto as lideranças políticas progressistas não forem capazes de chegar ao povo com palavras e propostas novas.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Elio Gaspari: O Natal do papa Francisco

O padre que criou os Legionários de Cristo agia como um miliciano

Num dos mistérios do Natal, a ordem mexicana dos Legionários de Cristo penitenciou-se pelos crimes de pedofilia cometidos por seu fundador e por outros 32 padres de seu culto.

Um dia antes, o papa Francisco obteve a renúncia do cardeal Angelo Sodano da posição de decano do Sacro Colégio. Aos 92 anos, ele já não votava no conclave que elege os papas. Durante os pontificados de João Paulo 2º e de Bento 16, Sodano foi um dos homens mais poderosos de Roma, secretário de Estado do Vaticano durante 14 anos.

Sua vida foi de diplomata, ex-núncio em Santiago, teve boas relações com o general Augusto Pinochet. Em 2005, quando o cardeal Ratzinger foi eleito, Sodano teve quatro votos no primeiro escrutínio. Pouca gente soube, mas um argentino chamado Jorge Bergoglio foi o segundo mais votado em todos os quatro escrutínios.

O pontificado de Ratzinger durou sete anos, Bergoglio virou Francisco e no mesmo fim de ano em que a Netflix apresenta o filme "Dois Papas", de Fernando Meirelles, ele congelou Sodano e desentulhou o lixo do padre Marcial Maciel, fundador e dono da ordem dos Legionários de Cristo.

("Dois Papas" é um lindo filme e mostra longas conversas de Bergoglio com Bento 16. Elas não aconteceram. Se as falas do cardeal argentino soam reais, as do papa alemão ficaram aquém da qualificação intelectual de Ratzinger. Jonathan Pryce é um Bergoglio perfeito e Anthony Hopkins tornou-se um Ratzinger simpático, coisa que ele nunca foi.)

Quindim da plutocracia mexicana, o padre Maciel foi um miliciano da Santa Madre. Inigualável arrecadador de fundos (tanto no caixa um como no caixa dois), drogava-se, seviciava jovens e teve pelo menos seis filhos, um deles com uma menor de idade.

A proteção de João Paulo 2º preservou-o, mas Bento 16 afastou-o do sacerdócio, sem que Roma expiasse na sua amplitude os crimes que havia cometido. Sodano chamava as denúncias de pedofilia do clero de "fofoca vazia".

Para o andar de cima do México e para uma parte da elite do catolicismo conservador americano, onde ele também militava, Maciel, que era chamado de "Nuestro Padre", foi uma espécie de dom Hélder Câmara dos ricos. Enquanto a elite carioca produziu um "bispo dos pobres" austero, militante e reto, os mexicanos e seus amigos encantaram-se com um Lúcifer.

Em 1992, pediu aos seus fiéis que não começassem seu processo de canonização antes que se completassem 30 anos de sua morte. Ele morreu em 2008 e em 2038 será difícil achar um conservador católico disposto a lembrar-se de sua figura. O cardeal chileno Silva Henriques chamava os Legionários de Maciel de "os milionários de Cristo".

João Paulo 2º e Sodano blindaram Maciel, e Bento 16 afastou-o, mas Francisco mostrou que está disposto a livrar a Igreja Católica da sua banda de promíscuo e onipotente regalismo. Os malfeitos de Marcial Maciel e de alguns de seus legionários têm a ver com as suas condutas.

O acobertamento teve a ver com o autoritarismo de uma parte do clero católico. A denúncia de que ele se drogava surgiu em 1956. Ele havia sido expulso de dois seminários e em 1997 foi acusado de abusos sexuais por seis homens. Seu filho mais velho tem 33 anos.


Hélio Schwartsman: Assassinos estatísticos

É possível salvar muitas vidas estatísticas e alcançar índices europeus de mortes no trânsito

Se você tem a chance de salvar uma vida sem colocar-se em grande risco, fazê-lo é uma obrigação moral? Grande parte dos filósofos morais sustentará que salvar uma pessoa é um dever, desde que fazê-lo não exija um esforço sobre-humano e que você não tenha boas razões para querer ver esse indivíduo morto —é louvável, mas não obrigatório salvar a vida do assassino que o perseguia e sofreu um acidente.

Bem, a maioria dos prefeitos do Brasil e várias outras autoridades têm a possibilidade de salvar não uma, mas dezenas, às vezes centenas, de vidas estatísticas, apenas assinando um pedaço de papel, mas optam por não fazê-lo.

A receita é simples. Basta baixar os limites máximos de velocidade em que os veículos podem trafegar e mandar fiscalizar. Isso já deu certo em vários lugares do mundo e até mesmo do Brasil. Chamou-me a atenção o caso de Salvador. Autoridades soteropolitanas não tiveram medo de reduzir a velocidade máxima para 30 ou 40 km/h em vários bairros e aumentaram a presença de radares em 70%. Como consequência, as multas quase triplicaram entre 2012 e 2016.

Os responsáveis pelo trânsito na cidade devem ter ouvido um bocado, mas fizeram com que as mortes no trânsito caíssem 55% entre 2011 e 2018. Hoje, Salvador ostenta uma taxa de 3,99 óbitos por 100 mil habitantes —a menor entre as capitais brasileiras e igual à da Dinamarca (não é muito católico comparar cidades, que não costumam ter muitas autoestradas de tráfego rápido em seu perímetro, com países, que as têm em maior número, mas deixemos esse detalhe de lado).

O caso de Salvador mostra que é perfeitamente possível, mesmo para uma localidade de Terceiro Mundo, salvar muitas vidas estatísticas e alcançar índices europeus de mortes no trânsito. A pergunta que fica é: diante do exemplo soteropolitano, autoridades que não adotam as mesmas medidas podem ser chamadas de assassinas estatísticas?


Ranier Bragon: É hora de acordar para o descalabro no Ministério da Educação

Pasta tem que ser tratada como prioridade, não playground de terraplanistas irresponsáveis

Um ano se passou. É preciso ir direto ao ponto: até quando as pessoas responsáveis deste país e aquelas com voz de comando continuarão a fechar os olhos ou a bater palmas para o circo macabro de terraplanistas desvairados que tomou conta do Ministério da Educação?

Isso não é assunto de véspera de Natal, me desculpe, mas há coisas tão absurdas sendo feitas que não dá para ficar discutindo as uvas-passas.

A educação no Brasil —em situação crítica e com resultados lastimáveis, apesar de alguns avanços— foi dominada neste ano, no plano federal, por uma caravana de alucinados seguidores de um charlatão de filme B, tendo como resultado o que não poderia ser outra coisa. Como bem mostrou o repórter Paulo Saldaña, nesta Folha, caos administrativo, paralisia, baixa aplicação de recursos, falta de rumo, tudo embalado no discurso biruta de que estamos, pelo menos, livrando as criancinhas da ameaça gayzista e comunista.

Aliados aos lunáticos, os espertalhões de sempre aproveitam para ganhar ou ampliar boquinhas com a abertura das portas para o lobby do setor privado. Uma balbúrdia só.

Jair Bolsonaro mantém, ao que parece, a aposta na irresponsabilidade ao classificar de "excelente" a gestão de Abraham Weintraub, que goza atualmente as mais imerecidas férias de que se tem notícia e que se alguma coisa de excelente fez foi estimular vergonha alheia na internet.

Na transição, em 2018, insinuou-se um surto de bom senso quando foram cogitadas pessoas que, pelo menos, tinham algum conhecimento ou afinidade com o setor. Venceu, porém, a insensatez. Especula-se que Weintraub talvez perca o cargo na volta das férias —seria o segundo a sofrer a degola nesta gestão--, mas apenas para ceder a vaga para médico veterinário Onyx Lorenzoni, que deixaria a Casa Civil.

Tratar a educação como refugo de quem não tem mais o que fazer —governos anteriores também agiram assim— ou como abrigo de napoleões de hospício é brincar com coisa muito séria. É hora de acordar.


 Leandro Colon: Alcolumbre apoia manobra casuística para ficar no poder

Seria saudável se mudança na Constituição fosse feita com o compromisso de que só valerá para os próximos presidentes

Eleito presidente do Senado em fevereiro, ao derrotar Renan Calheiros (MDB-AL), David Alcolumbre (DEM-AP) assumiu com a promessa de mudar os ares da Casa.

Em seu primeiro discurso, falou em "construção de um novo Senado". Na última sexta-feira (20), Alcolumbre demonstrou que velhas práticas da política nunca saíram de cena.

O senador confirmou o movimento para mudar a Constituição e permitir que ele, Alcolumbre, dispute a reeleição em fevereiro de 2021 para continuar à frente da Casa. "Se alguém quiser trabalhar, a gente não pode atrapalhar as pessoas", disse.

Ele continuou: "Se Deus continuar me dando saúde e eu continuar tendo uma postura compatível com o que a maioria compreende que é o certo, se alguém levantar esta possibilidade, vou estar à disposição".

A Constituição proíbe hoje a reeleição para as presidências da Câmara e do Senado dentro da mesma legislatura. Alcolumbre diz que estará à disposição se "alguém quiser trabalhar" para mexer na regra.

Ou seja, ele quer que a Constituição seja alterada para favorecê-lo. Nada mais casuístico. E a tentativa de manobra não é nova. Em 2004, os então presidentes da Câmara, João Paulo Cunha (PT), e do Senado, José Sarney (MDB), tentaram aprovar uma emenda à Constituição para serem reeleitos no ano seguinte.

A mudança tinha o apoio do então presidente Lula, e articulação de José Dirceu, que chefiava a Casa Civil. Ambos queriam os aliados Cunha e Sarney na direção do Congresso.

Faltaram apenas cinco votos de deputados para a proposta passar. A emenda foi rejeitada em maio de 2004. Renan assumiu o Senado e a zebra Severino Cavalcanti venceu a dura disputa pela Câmara em 2005.

Mais de 15 anos depois, o cheiro de nova manobra percorre os corredores do Congresso. Seria saudável se a discussão fosse feita com o compromisso de que só valerá para os próximos presidentes, sem beneficiar Alcolumbre e muito menos Rodrigo Maia, que pode ir para seu quarto mandato no comando da Câmara.


Antonio Risério: Lugar de fala é instrumento para fascismo identitário

Conceito traz consigo a ânsia autoritária de calar a diferença

Minha intenção, aqui, é colocar o tal do lugar de fala no seu devido lugar. Mas, antes disso, me sinto na obrigação de fazer umas observações preliminares.

De uns tempos para cá, temos visto uma onda de violência se encorpando assustadoramente em todo o país. São calúnias, linchamentos verbais, agressões físicas. Partindo tanto do segmento atualmente mais barulhento da esquerda, cristalizado nos movimentos identitários e suas milícias (eufemisticamente tratadas como “coletivos”), quanto da extrema direita, com sua ponta de lança na boçalidade bolsonarista.

Recentemente, intelectuais de esquerda, a exemplo de Renato Janine Ribeiro, vêm falando sobre o assunto. Denunciando, por exemplo, ações para impedir que críticos do atual governo se manifestem em festas ou feiras literárias que, como a de Paraty, se converteram em arraiais juninos do identitarismo. Mas a crítica esquerdista a uma ascensão do fascismo entre nós tem sido feita de maneira estranha e sintomaticamente seletiva.

O que vemos são ataques ao fascismo de direita —e silêncio sobre o fascismo de esquerda. Como no dito popular, os macacos se negam a olhar o próprio rabo. E isso embora, em nossa conjuntura recente, o fascismo de esquerda tenha saltado na frente, como vimos em 2013, numa feira literária em Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, quando extremistas identitários impediram o geógrafo Demétrio Magnoli de falar e praticamente o expulsaram da cidade.

Antes que algum esquerdista proteste, aviso que uso a palavra “fascismo” a propósito de qualquer iniciativa que vise a exercer controle ditatorial sobre postura e pensamento dos outros, a fim de impedir que estes questionem dogmas de determinado grupo que se considera portador da verdade e do destino histórico da coletividade.

Digo isso porque, muito curiosamente, ainda existe quem pense que a esquerda —apesar das atrocidades protagonizadas por Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro etc.— é imune ao fascismo.

Bem, o fascismo identitário corre solto, com sua pitoresca mescla de revolucionarismo fraseológico e conservadorismo ideológico (afinal, ninguém mais fala em transformação global da sociedade e instauração de um novo mundo; antes, luta-se por maior participação e mais oportunidades no interior da sociedade que aí está— batalha por empregos, salários etc., com todos ansiando fazer parte do “mainstream”, o que não tem nada de errado, mas também nada tem a ver com subversão e muito menos com socialismo) e seu típico pessimismo programático com relação às sociedades ocidentais modernas, mas com o neofeminismo fechando os olhos para a opressão masculina entre muçulmanos e o racialismo neonegro fingindo não ver a exploração do negro pelo negro em Angola ou na Nigéria, por exemplo.

E aqui, finalmente, chego ao ponto que anunciei. É o tal do lugar de fala, que defino como expediente fascista típico do identitarismo, em sua ânsia de calar a diferença, silenciar a outridade. Mas, como tem gente que acha que esse lugar de fala é fundamental, avanço então para dar a minha visão (mesmo resumida) de tal procedimento supostamente democrático, mas, na realidade, perversamente ditatorial e excludente.

Sim: “lugar de fala” é uma perversão ideológica doentia de um antigo truísmo sociológico. No caso, a banalidade sociológica foi distorcida em guilhotina ideológica, destinada a cortar cabeças genital ou cromaticamente diferentes ou política e ideologicamente discordantes. Um instrumento ou mecanismo fascista feito sob medida para eliminar dissidências.

Aprendemos há muito, com a sociologia, a fazer a leitura de qualquer discurso em conexão com a “posição de classe”, com o lugar do discursante na estrutura da sociedade e em sua hierarquia sociocultural. É o beabá da sociologia, embora sua aplicação nem sempre seja fácil e imediata (pode ser altamente complexa, se tomarmos como objeto de análise, por exemplo, o discurso de Karl Marx ou o do nosso Joaquim Nabuco), a menos que cedamos à tentação emburrecedora do chamado marxismo vulgar, que acaba não dizendo nada sobre nada.

Mas vejamos em plano geral. O que a filosofia e a sociologia ensinam, pelo menos da passagem do século 18 para o 19 e até aos dias de hoje, é que as ideias (os discursos, na gíria mais moderna) têm sua origem em alguma base fundamental, ou em algum espaço basilar, que é exterior ao mundo das próprias ideias. Vale dizer: as ideias se configuram num espaço, base ou recanto extraideacional.

Já se pensava assim quando Destutt de Tracy publicou seus “Eléments d’Idéologie” em 1801. O sociólogo berlinense Reinhard Bendix sintetiza: “As ideias derivam exclusivamente de percepções sensoriais, acreditava ele. A inteligência humana é um aspecto da vida animal e ‘ideologia’ [na acepção de ciência das ideias] é, portanto, parte da zoologia. Tracy e seus colegas achavam que, através dessa análise reducionista, no sentido de atividades mentais serem atribuídas a causas fisiológicas subjacentes, haviam chegado à verdade científica”.

Já o marxismo clássico reza que cada classe social gera uma certa consciência da vida e do mundo. De Destutt de Tracy a Marx, no entanto, o pressuposto é o mesmo: o significado último das ideias deve ser buscado não nelas mesmas, mas no que está por trás delas, sejam constrangimentos físicos, sejam condicionamentos sociais.

Aí estão balizamentos teóricos do lugar de fala, na tradição do conhecimento filosófico e social. O que diferencia esse lugar de fala do lugar de fala do identitarismo? Simples. Mas antes façamos uma observação necessária. O lugar de fala identitário não deixa de ser um retrocesso a Destutt de Tracy, no sentido de que volta a tomar a realidade ou a situação física da pessoa (não se pensa mais em classe social, claro) como base e explicação de tudo.

O identitarismo representa assim um retorno epistemológico à configuração física do indivíduo. Especificamente, à organização genital da pessoa (não no sentido complexo da “Teoria Psicanalítica da Libido” de Karl Abraham, é claro, mas no do simplismo neofeminista, corpo marcado pela presença do célebre “penis erectus”, ou com a fenda subclitoridiana e seus lábios se abrindo sob pelos pubianos) ou à pigmentação da pele (a melanina da bioquímica) ou mesmo à negação metafísica da bipartição sexual objetiva da espécie humana (e não me lembro quem escreveu que toda negação se contém no espaço daquilo que nega). Ou seja: estamos nos reinos da vagina e da melanina.

Mas há uma diferença imensa, escandalosa mesmo, entre a disposição sociológica e a predisposição identitária. Para a sociologia, o que está em tela é uma constrição relativa à “posição de classe” do indivíduo. Um condicionamento (e não um determinante, por sinal) desenhado pelo lugar do indivíduo, do grupo ou da classe na estruturação hierárquica da sociedade.

Para a perversão identitária, a conversa é outra: essa posição na estrutura da sociedade, antes que ser tomada como realidade a ser imparcialmente reconhecida e examinada, assume um significado moral: é razão de condenação inapelável (se o sujeito se achar na posição de “opressor”) ou de celebração irrestrita, de canonização como fonte de legitimidade discursiva (se o sujeito se achar na posição de “oprimido”).

Vale dizer: para a sociologia, trata-se de compreender o fenômeno —para o identitarismo, trata-se de julgar. E quem por acaso se encontrar no lugar do “opressor” deve ter a voz cassada, deve ser calado, mesmo que à força, na base do grito e da porrada. Daí que, regra geral mesmo, tudo que o identitarismo define como “inclusivo”, a exemplo do seu “lugar de fala”, é coisa que circunscreve um agrupamento e implica a exclusão dos demais. E assim o que vemos, à nossa frente, é o paradoxo da inclusividade excludente.

Mas vamos finalizar. Não me lembro agora quem fez a distinção política precisa. Nestes últimos anos, a liberdade de expressão e o pensamento independente sofrem pressões e ameaças vindas de duas direções poderosas. No espaço geral da sociedade, elas vêm basicamente da extrema direita. No espaço mais restrito do campo universitário e do mundo artístico-intelectual, vêm basicamente da esquerda identitária.

Plantado com clareza no campo da esquerda democrática, penso que temos de combater esses dois fascismos, na base do vigor, do rigor, da criatividade e da coragem. Combater “ambos os dois” —como diria o velho Luiz de Camões. Hoje, a liberdade, juntamente com a necessidade de redução das distâncias sociais, é questão essencial da vida brasileira.

*Antonio Risério, poeta, romancista e antropólogo, autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (ed. 34) e "Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária" (Topbooks)


Vinicius Torres Freire: Com grande apoio da elite e apatia geral, Bolsonaro só deve temer a si mesmo

Difícil imaginar que escândalos levem elite econômica a abandonar o presidente

Os capitães da indústria gostam da administração do capitão da extrema direita, Jair Bolsonaro, também presidente da República e da filhocracia. Para 60% dos empresários industriais, o governo é “ótimo/bom”; para 7%, “ruim/péssimo”.

É o que diz levantamento da CNI (Confederação Nacional da Indústria) com 1.914 empresas do ramo, feito em dezembro. Para a população em geral, o governo é “ótimo/bom” para 29% dos entrevistados pelo Ibope, em pesquisa também encomendada pela CNI. Para 38%, o governo Bolsonaro é “ruim/péssimo”.

As pesquisas foram feitas antes de Flávio Bolsonaro ter sido acusado de comandar uma organização criminosa. Segundo a Promotoria, a gangue contratava funcionários fantasmas e desviava dinheiro da Assembleia Legislativa do Rio em benefício do filho 01, que lavava ou compartilhava o tutu de chocolate com milicianos, foragidos da Justiça, assassinos e agregados.

Um desses apaniguados era Fabrício Queiroz, durante décadas amigo e faz-tudo de Bolsonaro pai, como se sabe. As acusações também eram bem sabidas fazia mais de ano, embora faltasse o colorido sórdido do caleidoscópio das investigações. Os desmandos e as tentativas de mandonismo do presidente, entre outras extravagâncias autoritárias, também são mui bem sabidas, faz muito mais tempo.

No entanto e a propósito, como se dizia, o governo Bolsonaro é tido como “ótimo/bom” por 60% dos empresários industriais. No mercado financeiro, levava a nota “ótimo/bom” de 45% dos “gestores, traders e economistas de fundos de investimentos e instituições financeiras” entrevistados em modesta pesquisa da XP Investimentos, de outubro.

A opinião do pessoal da finança é volátil como o preço de uma ação cheia de mumunhas, de empresa quase falida ou à beira de privatização. Em janeiro, Bolsonaro levava 86% de “ótimo/bom” e 1% de “ruim/péssimo”. Em maio, quando o PIB parecia derreter, esses porta-vozes de “o mercado” davam 43% de “ruim/péssimo” e 14% de “ótimo/bom”. Ainda assim, os financistas e seus empregados mais compram do que vendem Bolsonaro.

De acordo com a conveniência, o Congresso pode se servir do bolo de rolos dos Bolsonaro para dar-lhe uma prensa. Mas os parlamentares são caçadores conscientes. Só matam em caso de necessidade estrita.

É verdade que outros miasmas podem emanar da fossa destampada de 01 e Queiroz. Sabe-se lá se o presidente pode sair comprovadamente empesteado do caso. De qualquer modo, vai fazer diferença, ao menos na opinião do “bloco no poder”?

Os donos do dinheiro parecem contentes mesmo com a economia ainda crescendo a 1% ao ano. Em particular, estão felizes de não pagar mais impostos, com o gasto contido do governo, com reformas trabalhistas e com a perspectiva de mais alguma outra mudança. Em geral, estão felizes com o abatimento da esquerda, real, imaginária ou potencial, nas ruas ou nos partidos.

Caso a economia cresça 2% e estrangeiros voltem para a Bolsa, para mais algumas aquisições e fusões ou qualquer outro choro de dinheiro, por que ficariam menos felizes? Caso estejam satisfeitos, por que o Congresso faria movimentos mais bruscos em relação a Bolsonaro?

Não faria, a não ser que o povo em massa estivesse irado. Não está. É improvável que fique mais irado em 2020, dada a perspectiva de melhora suave na economia e, de quebra, de inexistência de oposição e projeto alternativo.

Por enquanto, Bolsonaro nada tem a temer a não ser a si mesmo.


Ruy Castro: Frutos podres

Deus e o Brasil não demoram a pedir demissão do slogan de Bolsonaro

Cristo falava por parábolas. Bolsonaro fala por slogans. Uma parábola é um relato alegórico, destinado a fazer pensar e extrair de sua narrativa uma moral. É um instrumento que se dirige, ao mesmo tempo, à fé e à razão. Já um slogan é uma afirmação categórica, acachapante, disparada para ser aceita pelo receptor sem passar necessariamente por seu cérebro. É uma arma dos publicitários, dos políticos e dos autoritários.

Uma das grandes parábolas de Cristo está em Mateus 7:15-20: "Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelha, mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se porventura uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Toda árvore boa dá bons frutos, mas a árvore má dá maus frutos. Uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar bons frutos. Toda árvore que não dá bons frutos deve ser cortada e queimada".

Por falar em frutos, digo, bolsonaros, digo, slogans, o slogan favorito de Bolsonaro é o martelado "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos". O "Brasil acima de tudo" cheira ao slogan nazista "Deutschland über alles" —"A Alemanha acima de tudo"—, mas isso não lhe provoca desconforto. Com slogans não se discute.

O Brasil de que fala Bolsonaro deve ser o nosso, que ele reduziu a seu condomínio. Mas a que Deus Bolsonaro se refere? Ao Deus dos católicos, o velhinho bonachão, de barbas e camisolão, síndico do Céu? Ou ao Deus protestante, incorpóreo, rigoroso, fiscal de nossos malfeitos aqui na Terra? A pergunta procede, porque Bolsonaro se diz católico, embora nunca seja visto com padres ou em seus rituais. Ao contrário, seu território são os templos evangélicos e seus aliados, os "bispos" de televisão. Bolsonaro servirá a dois senhores?

Pelos frutos que estão começando a despencar da árvore, Deus e o Brasil não demoram a pedir dispensa do tal slogan.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Bruno Boghossian: Bolsonaro sugere pacote do perdão para policiais, grileiros e motoristas

Rigoroso no discurso, presidente propõe libera-geral para agradar bases políticas

Se Jair Bolsonaro conseguiu transmitir na campanha a impressão de que faria um governo linha-dura, deve ter sido um engano. No poder, o presidente se mostrou disposto a implantar um libera-geral para agradar suas bases políticas.

Nos últimos dias, Bolsonaro anunciou o desejo de lançar um pacote para perdoar policiais que matam em serviço, grileiros e motoristas infratores. Um observador desatento poderia achar que a generosidade do espírito natalino invadiu o Palácio do Planalto, mas é só demagogia.

O presidente confirmou, na última semana, que vai incluir no indulto de fim de ano agentes de segurança presos por crimes cometidos durante o serviço. Ele argumenta que é injusto manter na cadeia "policiais que fazem um excelente trabalho".

A proposta é um convite à impunidade. A extensão do indulto deve beneficiar agentes que participaram de confrontos com criminosos, mas seus critérios também podem ajudar esquadrões da morte e policiais que cometeram excessos graves.

Antes de assumir o cargo, em novembro de 2018, Bolsonaro disse que não assinaria nenhum decreto de indulto em seu governo. O rigor desapareceu quando ele decidiu usar a caneta para favorecer certos grupos.

A bondade vale para outro reduto eleitoral do presidente. Ele foi buscar um parecer jurídico para perdoar multas aplicadas a quem ocupou áreas de mata atlântica até 2008. Também editou uma medida de regularização de terras que, segundo especialistas, favorece invasores de áreas públicas da Amazônia.

Na maratona absolutória de fim de ano, Bolsonaro chegou a dizer que os radares que voltariam às estradas por decisão da Justiça só fariam "fotografias educativas", sem punir quem ultrapassasse o limite de velocidade. A imprudência foi desmentida pelo advogado-geral da União.

A compaixão se aplica, é claro, ao filho Flávio. Bolsonaro xingou repórteres que perguntavam sobre as suspeitas de rachadinha no gabinete do 01 e chamou as acusações dos promotores de "pequenos problemas".


Elio Gaspari: Chicago, quem diria, quer uma CPMF.net

Guedes sabe que o governo não tem um projeto de reforma tributária

Ganha um fim de semana em Santiago quem souber de onde o ministro Paulo Guedes tirou a ideia da criação de sua “CPMF digital”, como disse Merval Pereira.

Ele sabe que o governo não tem um projeto de reforma tributária. Sabe também que Bolsonaro não quer a volta da CPMF. Se isso fosse pouco, Rodrigo Maia já avisou que esse ectoplasma não passa no Congresso.

Ainda assim, Guedes disse uma frase que deve levar os sacerdotes do papelório a pensar onde se meteram. Disse o doutor: “Tem transações digitais. Você precisa de algum imposto, tem que ter um imposto que tribute essa transação digital.”

A ideia segundo a qual existindo uma atividade, “tem que ter um imposto”, é paleolítica. Se o sujeito transfere uma quantia pelo seu celular, “você precisa de algum imposto”. E se ele faz o depósito indo ao banco de ônibus, não precisa? Nessa maravilhosa construção tributária, a tunga viria do uso de um novo meio, o digital.

Isso nem jabuticaba é. Trata-se de um fruto que só existe no pomar do doutor Guedes, um ex-aluno de Chicago, universidade onde pontificou o economista Milton Friedman (1912-2006).

Pois Friedman tinha horror à intervenção do Estado e viveu o suficiente para perceber a importância da internet. Ele previu: “Eu acho que a internet será um dos grandes fatores para a redução do papel dos governos.”

Acertou na mosca, mas nunca poderia supor que um de seus discípulos viesse a defender um imposto para quem fizesse transações pela rede. (Pela CPMF.net de Guedes, se a operação for conduzida por telefone fixo, aquele do século 19, ela não seria tributada.)

Guedes disse que há uma discussão mundial em torno da taxação de operações eletrônicas. Há, mas ela nada tem a ver com uma CPMF.net. Discute-se a criação de um imposto para operações como, por exemplo, a compra de um chinelo produzido num país e vendido pela rede em outro. Nessa transação produziu-se um chinelo. Pela CPMF.net o sujeito seria mordido porque depositou a mesada do filho usando o celular. Pela ideia de Guedes o fato gerador do novo imposto do governo será o uso da internet.

Os fiscais da corrupção enxugam gelo

Falta examinar os jabutis de casos como o dos computadores do FNDE

Imagine-se o juiz Sergio Moro no gabinete de Curitiba recebendo a informação de que o governo petista fez um chamamento de preços para aluguel de um imóvel de 4.490 m² em Brasília listando entre os requisitos “desejáveis” do prédio dois auditórios com no mínimo 100 lugares, sistema de reuso de água, de elevadores com sistemas de antecipação de chamadas e selos de eficiência energética.

O juiz desconfiaria. Esse chamamento de preços partiu em outubro passado do Departamento Penitenciário Nacional, subordinado ao ministro Sergio Moro. A ONG Contas Abertas sentiu cheiro de queimado e mostrou ao Tribunal de Contas que em Brasília existe só um imóvel capaz de obter a pontuação máxima no julgamento de futuras propostas, o Centro Corporativo Portinari.

Dado o alarme, o Ministério da Justiça prorrogou o prazo de recebimento das propostas.

Lá, informam que o adiamento nada teve a ver com a entrada do TCU no caso. Fica combinado assim.

Pouco custava dizer que a postergação tinha a ver com as críticas. Os prédios onde trabalham a rainha Elizabeth, Jair Bolsonaro e Sergio Moro não atendem aos desejos listados pelo Depen. (Logo ele, que cuida de penitenciárias.) Em março passado o TCU pediu à Agência Nacional de Transportes Aquaviários que renegociasse o valor do aluguel que pretendia pagar no mesmo Centro Portinari.

Graças do TCU o chamamento de preços do Ministério da Justiça foi prorrogado. Graças à Controladoria Geral da União, desde dezembro do ano passado, 22 licitações foram suspensas. Entre elas, a do megajabuti do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando 1,3 milhão de computadores e notebooks para escolas da rede pública. Os auditores descobriram que 355 colégios receberiam mais de um equipamento para cada aluno, sendo que numa escola mineira, cada estudante ganharia 118 laptops.

Os órgãos de controle não estão aí para enxugar gelo. No caso do aluguel para o Fundo Penitenciário, pode ter havido exageros, ou mesmo um direcionamento. No do FNDE havia coisa muito mais grossa. Não basta suspender os chamamentos de preços e as licitações, falta examinar os jabutis.

Em 2003, quando nomeou três parentes para seu gabinete, o vice-presidente José Alencar, disse que dava “a mão a palmatória”, demitiu-os e ensinou: “Há topadas que ajudam a caminhar”.

Na mesma época, a prefeitura de Ribeirão Preto concluiu pela lisura de um licitação escalafobética de “molho de tomate refogado e peneirado, com ervilhas” em 40.500 cestas básicas, feita ao tempo em que o comissário Antonio Palocci governava a cidade. Deu no que deu e continua dando.


Juliana Sayuri: Legado de Stálin volta a inflamar debates na esquerda

Enquanto uma ala defende méritos do líder soviético, outra vê a negação de seus crimes como terraplanismo

O clichê, inspirado na célebre frase de abertura do “Manifesto Comunista” (1848), tem razão de ser: Josef Stálin (1878-1953), que faria aniversário na quarta (18), volta a ter seu legado discutido e reabilitado nas redes sociais, tanto no Brasil como em outros países.

Nos dias 26 e 27 de novembro, a editora NovaCultura.Info, da URC (União Reconstrução Comunista), promoveu o evento “140 anos do camarada Josef Stálin” na FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), a fim de celebrar o aniversário do revolucionário comunista —cerca de 70 pessoas participaram da atividade.

Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarionovitch Djugashvíli adotou o famoso pseudônimo em 1913 —em russo, “Stálin” remete a “feito de aço”. Após a morte de Vladimir Lênin (1870-1924), ele governou a URSS de meados da década de 1920 até a sua morte, 33 anos depois.

jovem stalin
Nascido em Gori, na Geórgia, Josef Vissarionovitch Djugashvíli adotou o famoso pseudônimo em 1913 - Reprodução
O selo Edições Nova Cultura, da URC, vem se dedicando a resgatar a história do líder soviético, com a publicação de livros como “Anarquismo ou Socialismo?” e “Sobre os Fundamentos do Leninismo”, de sua autoria. Segundo Lucas Medina, 32, da NovaCultura.Info, a última tentativa de editar livros de Stálin no Brasil foi interrompida na década de 1950. Após edições esparsas, nada expressivo foi às livrarias desde a década de 1980.

“Stálin foi importantíssimo para os povos progressistas do mundo que lutam pela sua libertação, pois cumpriu um papel fundamental na construção do socialismo na URSS, a primeira experiência da história. Deu o exemplo a todos os povos de que a construção de uma nova sociedade não era somente um sonho, um ideal, mas uma possibilidade concreta, que se seguiu pela árdua luta na Ásia, África e América Latina. Por isso reivindicamos Stálin, como herança da luta pelo socialismo, que ainda é o destino da humanidade para o qual devemos trabalhar diariamente”, diz Medina.

O recente revival levanta discussões acaloradas, pois essa visão positiva do líder bolchevique está longe de ser consensual.

Organizações como o Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo) criticaram a celebração do aniversário.

“Stálin entrou para a história com a vergonhosa marca de ser um dos maiores assassinos de revolucionários na história mundial. [...] Por tudo isso, expressamos nosso repúdio à homenagem a Stálin, que não é um ‘camarada’ de nenhum trabalhador que lute por justiça, mas um criminoso coveiro de revoluções que contribuiu imensamente para adiar a tão necessária revolução social mundial”, diz a nota.

Historiadores organizaram outro evento, no dia 29 de novembro, pró-marxismo e crítico ao stalinismo, também na FFLCH-USP. Participaram docentes como Daniela Mussi, Henrique Carneiro, Osvaldo Coggiola, Ruy Braga e Sean Purdy.

“O stalinismo é parte do marxismo, na mesma medida que se considere um câncer como parte de um organismo”, definiu Carneiro no Facebook. A discussão, diz Purdy à Folha, é atual pois “uma parcela pequena, mas desproporcionalmente influente, de jovens militantes da esquerda” está desenterrando o stalinismo como alternativa política.

Purdy, 53, protagonizou outro episódio em que o espectro stalinista foi invocado. A edição de estreia da revista socialista Jacobin Brasil, publicada pela Autonomia Literária em meados de novembro, incluiu um artigo do historiador pernambucano Jones Manoel, militante do PCB.

“Um enorme equívoco publicar um stalinista orgulhoso na Jacobin Brasil”, criticou Purdy no Twitter. Álvaro Bianchi, diretor do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas da Unicamp, que também escreveu um artigo na primeira edição da revista, tuitou: “Deveriam ter avisado antes [que Jones também estaria no expediente]”.

Embora os comentários tenham se resumido a poucos caracteres, o caso tomou outra dimensão na internet. Enquanto uns acirraram o tom contra Jones (acusando-o de “neo-stalinista” por já ter ponderado, por exemplo, que “qualquer menção a Stálin que não seja a mais apressada condenação é lida como adesão ao totalitarismo”, em artigo na revista Opera), outros trataram as críticas a Jones como censura e acusaram os acadêmicos de elitismo e racismo.

Procurado pela reportagem, Bianchi não quis comentar o caso. Purdy, por sua vez, declarou: “Não vejo como uma crítica à linha editorial de uma revista possa ser considerada censura. Critiquei a inclusão de um artigo de um autor, que acredito defender concepções de orientação stalinista, ou talvez seja melhor dizer neostalinista”.

Canadense radicado no Brasil há 20 anos, marxista e militante do PSOL, Purdy considera o stalinismo como uma “política de terror” na URSS.

“É uma mancha na tradição marxista e socialista. O marxismo é um método crítico que estuda o capitalismo para superá-lo através de uma revolução feita pela classe trabalhadora e da construção de uma sociedade socialista. Democracia e socialismo são conceitos indissociáveis na tradição marxista e do socialismo revolucionário. Não há socialismo sem democracia e vice-versa”, argumenta o historiador.
A esquerda rachou nas redes sociais: de um lado, martelou-se que, em pleno 2019, não dá pra defender Stálin; de outro, interpretou-se que o caso não diz respeito ao stalinismo, mas à liberdade de expressão. “O que foi feito é algo desleal: uma acusação ‘ad hominem’. Jones não poderia ser publicado por ser stalinista!”, criticou Gilberto Maringoni, 61, professor de relações internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC) no Facebook.

“O debate acalorado e aberto faz parte da história da esquerda, muito mais do que no âmbito da direita, que exibe um viés autoritário vários degraus acima. A internet acrescentou a tais debates o imediatismo e deselitizou a participação. Muito mais gente entra na conversa, com graus variados de conhecimentos. Ao mesmo tempo em que há debates em alto nível —o que não significa em baixa voltagem—, há a algaravia das redes. A acusação de ‘stalinismo’ não busca o diálogo. Busca o estigma e o fim da conversa”, diz Maringoni à reportagem.

Jones, 29, já perdeu as contas de quantas vezes foi tratado como “stalinista” ou “neostalinista”, um rótulo que, segundo ele, seria um tipo de chave mágica para fechar o debate. “Depois da morte de Stálin e do fim da URSS [1991], não faz sentido falar em stalinismo nos dias atuais. De tal sorte que o rótulo é injusto, porque se considera stalinismo toda leitura discordante do balanço histórico [predominante] do século 20”, diz.

A socióloga Marilia Moschkovich, 33, que faz parte do conselho editorial da Jacobin Brasil, interpretou as tensões dentro da esquerda como uma disputa por legitimidade entre acadêmicos marxistas de currículos “Lattes estrelados” e jovens intelectuais influentes na internet, todos de esquerda. Um gap de gerações.

“Se antes intelectuais da esquerda marxista se concentravam nas universidades, professores concursados e de carreira consolidada, o que acontece agora é diferente: jovens acadêmicos, marxistas ou não, nos deparamos com uma mudança de estrutura dessa carreira, que se tornou muito mais competitiva, mais custosa, mais difícil. Essa precarização é um fator importante para intelectuais como Jones Manoel, Sabrina Fernandes e eu, inclusive, para produzir conteúdo para internet, como alternativa para exercer o trabalho intelectual”, analisa.
Além da diferença geracional, a discussão ilustra a disputa entre diferentes correntes marxistas.

Para Jones, nas universidades predominava um certo prestígio para trotskistas formados nas décadas de 1980 e 90. Entretanto, segundo o diagnóstico do historiador, a influência trotskista agora está em declínio, enquanto se desenvolve uma vertente do marxismo produzida fora das estruturas universitárias.

“Organizações marxistas fora da chave trotskista vêm crescendo, enquanto organizações trotskistas vêm minguando. Então, esse frisson, a histeria sobre esse suposto revival de Stálin é uma tática de disputa política”, diz Jones, que condena uma visão dualista que considere “Trótski como a essência de todo o bem e Stálin como a encarnação de todo o mal”.

Leon Trótski (1879-1940) foi um intelectual marxista e um dos líderes da Revolução Russa de 1917, que depois culminaria na URSS. Preterido na disputa para assumir o Kremlin após a morte de Lênin, foi expulso da URSS e exilou-se na Europa e depois no México, onde foi assassinado por ordem de Stálin.

“O lugar que Stálin ocupa na história mede-se pelo tamanho da vitória soviética sobre os invasores nazifascistas e ao êxito dos planos quinquenais que fizeram da URSS a segunda potência mundial. Até o início da Guerra Fria, ele era tratado com respeito e confiança pelos círculos dirigentes dos Estados Unidos. Depois, foi tratado como um ditador sanguinário. Nenhum desses retratos falados é ‘o’ verdadeiro; todos devem ser problematizados”, diz o historiador João Quartim de Moraes, 78, professor da Unicamp e autor de “História do Marxismo no Brasil”.

No entanto, de acordo com Quartim, intelectual integrante do PC do B, a satanização do soviético leva a falsas equivalências, que nivelam comunismo a nazismo (e Stálin a Hitler) como “regimes totalitários”.

Em meio às discussões recentes, o PCB emitiu nota no dia 21 de novembro, posicionando-se contra revisões históricas para reabilitar o stalinismo. Na linha de Quartim, o partido ponderou: “Contudo, não aceitamos que a crítica a esse período guarde qualquer relação e identidade com a narrativa anticomunista que hoje busca colocar o comunismo no mesmo patamar do nazismo, em termos de crimes de lesa-humanidade, para justificar a proibição da existência de partidos comunistas.”

“Stálin foi um dos principais dirigentes do movimento comunista durante mais de 30 anos. É parte da história”, diz Jones. “Enquanto comunista e historiador, tenho diversas críticas, tenho balanços negativos à sua liderança e também tenho avaliações positivas, como a derrota do nazifascismo, o fim da fome,
combate ao racismo, combate ao colonialismo, desenvolvimento científico, desenvolvimento cultural. [Mas] não há onda stalinista no Brasil. É um delírio.”
O cientista político Luis Felipe Miguel, 52, professor da UnB (Universidade de Brasília), discorda. “Há um revival global do stalinismo, que está chegando ao Brasil agora. Aparece em alguns grupos políticos organizados, mas sobretudo na internet. Por dois motivos principais: um brutal desconhecimento histórico e o avanço da extrema direita”, analisa, referindo-se a um contexto maior, e não ao episódio da Jacobin Brasil.

O desconhecimento histórico levaria a idealizações e à recusa de fatos —por exemplo, o assassinato de opositores e a existência dos gulags, os campos de prisioneiros soviéticos.

“É como o terraplanismo, numa versão à esquerda: todos os historiadores estão a serviço da CIA, todos os documentos são forjados, não existe como desafiar a crença com qualquer evidência. Isso permite que o stalinismo seja entendido como destemido, como o ‘braço forte contra o fascismo’ —e, portanto, apareça como resposta ao avanço da extrema direita”, critica.

Para Miguel, é possível estar à esquerda e recusar o stalinismo ao mesmo tempo. “Não só é possível, é necessário. A sociedade que Marx sonhava era marcada sobretudo pela máxima liberdade de todos os seus integrantes. É necessário enfatizar que o stalinismo é uma distorção do ideal comunista. E que o melhor projeto da esquerda anticapitalista deve ser radicalmente democrático.”

*Juliana Sayuri é jornalista e historiadora, autora de “Diplô: Paris – Porto Alegre” (2016) e “Paris – Buenos Aires” (2018).


Roberto Simon: A América Latina em 2020

Quatro perguntas sobre os (des)caminhos da região no próximo ano

Em janeiro de 2019, a América Latina parecia outro planeta.

Mauricio Macri prometia zerar o déficit primário e retomar o crescimento argentino, com donos do dinheiro a apostar na sua reeleição. Veio Alberto Fernández.

Juan Guaidó virou “presidente interino” da Venezuela e proclamou que “o tempo de Maduro (estava) se esgotando”. Hoje, nem a oposição venezuelana acredita que a queda do ditador é iminente.

O FMI projetava um crescimento de 2,5% do Brasil, e Paulo Guedes falava em “3,5% no curto prazo”. Com reforma da Previdência e tudo, deu menos da metade da projeção do fundo.

A lista continua: Equador em convulsão, Evo Morales em fuga, Chile nas ruas rumo a uma nova Constituição, protestos na Colômbia. As bolas de cristal dos analistas —as quais, diga-se, nunca funcionaram muito bem— trincaram de vez.

Melhor, então, olhar adiante de outra forma. Em vez de projeções ambiciosas (e provavelmente erradas), podemos pensar em quatro perguntas para guiar interessados na nossa região.

1) Como a “segunda década perdida” continuará a se traduzir em instabilidade política?

À raiz da turbulência regional, está o fracasso econômico. Segundo a Cepal, o período 2014-2020 será o de menor crescimento da América Latina em 70 anos. O PIB per capita latino-americano caiu 4% em seis anos. Do México à Patagônia, a ideia de que inevitavelmente nos tornaríamos sociedades de classe média perdeu força.

Hoje, prevalece a percepção oposta —um nada-realmente-mudou-e-nunca-mudará—, com consequências políticas extremas: ondas de protesto, colapso do establishment político, ascensão de outsiders.

Esse ciclo não terminou e continuará a definir a evolução política na região em 2020.

2) O que virá nas eleições de 2020?

Não faltarão oportunidades para o mal-estar político se manifestar por meio do voto. Em janeiro, o Peru elegerá um Congresso para substituir a legislatura que o presidente Martín Vizcarra destituíra. Em março ou abril, a Bolívia refará suas eleições presidenciais, com um risco real de o resultado ser novamente contestado.

Chilenos terão um plebiscito constitucional e, a depender do resultado, escolherão uma assembleia constituinte em outubro. No mesmo mês, brasileiros terão eleições municipais —descobriremos se o bolsonarismo, com sua Aliança pelo Brasil, criará raízes no nível local. Se Maduro inviabilizar as eleições legislativas venezuelanas, marcadas para dezembro, Guaidó cairá num limbo político-jurídico (seu mandato termina no mês seguinte).

Mas a mais importante eleição para o futuro da região é a dos EUA, onde estão em jogo visões radicalmente distintas sobre o papel dos EUA no mundo.

3) O Brasil seguirá na trilha do isolamento internacional?

Imagine o seguinte cenário: a crise na Amazônia se intensifica, com investidores afugentados, uma campanha internacional de boicote e europeus discutindo sanções ao Brasil. Cresce a hostilidade entre Bolsonaro e Fernández, com graves consequências ao Mercosul. Derrotado, Trump dá lugar a um democrata progressista.

Existe um caminho claro que levará o Brasil ao isolamento. Trilhá-lo será uma escolha do governo, a depender, sobretudo, do poder que terá a ala “antiglobalista” daqui para frente.

4) Como o jogo geopolítico global afetará a região?

O ano terminou com o pré-acordo comercial entre Pequim e Washington, cujas quotas podem custar caro a economias latino-americanas (algo como US$ 10 bilhões ao Brasil, segundo o Insper).

Mas o confronto EUA-China se ampliou a duas outras frentes, além do comércio. A primeira é a tecnológica, sobretudo no campo do 5G. O Brasil considera postergar seu leilão, mas eventualmente terá de se decidir sobre a participação da China. A segunda é a financeira. Sanções contra chineses, ou restrições à plataforma Swift de comunicação interbancária, arriscarão balcanizar o sistema financeiro.

As três disputas definirão o desenvolvimento latino-americano na nova economia global.

Essa lista está longe de ser exaustiva —é apenas um começo. O mais importante: com menos certezas preconcebidas, será mais fácil entender uma América Latina em rápida transformação.

*Roberto Simon, é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.