Folha de S. Paulo
Cristina Serra: Feliz Ano-Novo?
Gostaria de desejar votos aos leitores com convicção, mas tenho dificuldade diante do que nos aguarda
A convite da Folha, coube-me publicar este artigo no primeiro dia do ano. Gostaria de desejar Feliz Ano-Novo aos leitores com convicção. Mas tenho dificuldade de fazê-lo ao refletir sobre o ano que passou e o que nos aguarda.
Falo especialmente da área ambiental. Em seu primeiro ano, o governo Bolsonaro asfixiou os órgãos de proteção do meio ambiente e a Funai; nomeou gente despreparada para essas funções e aniquilou o papel de liderança mundial do Brasil neste tema, construção histórica iniciada na Rio-92 e que passou por todos os governos desde então.
A política mais cruel do atual governo, porém, é o discurso contra o ambiente e seus defensores e que tem se mostrado mais eficaz que qualquer mudança na legislação ou nos mecanismos de gestão. Bolsonaro faz campanha permanente e insidiosa contra florestas e povos indígenas. Seu discurso acirra conflitos, desata ódios adormecidos, estimula o crime e a violência. Seus seguidores se encarregam de sujar as mãos.
O “Dia do Fogo” na Amazônia (com recorde de desmatamento em 11 anos) e a matança de lideranças Guajajara, no Maranhão são exemplos eloquentes dos efeitos do discurso presidencial. Lembremos do que disse Adama Dieng, conselheiro da ONU para prevenção do genocídio, sobre os discursos de ódio que estimularam chacinas em diferentes épocas e lugares: “As palavras matam tanto quanto as balas”.
O ano que acabou foi o mais letal para as lideranças indígenas no Brasil nos últimos 11 anos e tudo indica agravamento desse cenário, com a promessa de Bolsonaro de permitir mineração e pecuária nesses territórios. É o governo do “correntão” em sua acelerada marcha da insensatez.
O mais grave é que nada disso tira o sono dos entusiastas da reforma da Previdência e da suposta recuperação econômica do país, tampouco dos que garantem que “as instituições estão funcionando normalmente”. A esses pouco importa o quanto ainda iremos recuar aos confins da escala civilizatória. Feliz Ano-Novo???
*Cristina Serra é paraense, jornalista e escritora. Trabalhou nas redações dos jornais Resistência, Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, revista Veja e Rede Globo. Foi correspondente em Nova York e comentarista de política do quadro “Meninas do JÔ”, no “Programa do Jô”. É autora dos livros “Tragédia em Mariana - a história do maior desastre ambiental do Brasil” e “A Mata Atlântica e o Mico-Leão-Dourado - uma história de conservação”.
Hélio Schwartsman: Democracia, ser ou não ser?
Não há garantias em um regime, por isso nos resta manter marcação cerrada para autoritarismos
Nicolás Maduro é um ditador? Houve golpe na Bolívia? Gostamos de travar esse tipo de discussão em termos binários e essencialistas, mas a verdade é que a democracia é muito mais uma questão de grau do que de ser ou não ser. Não é uma coincidência que tenham se multiplicado nos últimos anos iniciativas, como Freedom House, Polity e V-DEM, para qualificar e mensurar o estado da democracia em cada país.
Nesse contexto, apenas ter uma figura como Jair Bolsonaro na Presidência já representa uma nódoa. Um país cujo chefe de Estado faz pessoalmente bullying contra jornalistas e opera para esvaziar órgãos de controle perde pontos nos quesitos liberdade de expressão e freios e contrapesos. Mas daí não decorre que a erosão democrática esteja ocorrendo em todas as dimensões e muito menos que o Brasil esteja fadado a tornar-se uma tirania.
Vale lembrar, a título de comparação, que os dirigentes que presidiram aos casos mais salientes de esfacelamento democrático, como Viktor Órban e Hugo Chávez, tiveram força para aprovar novas constituições, desenhadas especificamente para favorecê-los. Bolsonaro, neste primeiro ano de mandato, não chegou nem perto de algo assim. Pelo contrário, teve um número surpreendentemente grande de iniciativas barradas tanto no Legislativo como no Judiciário. Nunca antes um presidente viu tantas medidas provisórias caducarem nem tantos vetos serem derrubados.
Isso não é garantia de que a nossa democracia esteja segura. Quanto mais tempo Bolsonaro permanecer no poder e quanto mais apoio popular ele tiver, maior será o desgaste que ele terá condições de impor. Mas o Brasil já ultrapassou o patamar de renda e de anos de vivência democrática em que reversões completas são comuns. O que nos resta é manter a marcação cerrada para evitar que os autoritarismos do presidente se solidifiquem na legislação. Até aqui nós estamos conseguindo.
Ranier Bragon: O que de bom Bolsonaro produziu em seu 1º ano de governo?
Bem mais do que ações, as reações são a principal boa-nova deste 2019
Então, é 2020! Quer dizer, quase, o que nos permite uma última olhada neste impagável 2019.
O ano 1 do mandato de Jair Messias Bolsonaro irá merecidamente entrar para a história como um dos mais lastimáveis que já vivemos. Os ataques a pilares da democracia, à ciência, à história, à diversidade, à civilização e ao bom senso em geral encontraram um terreno fértil na idiotia das redes sociais e nos gabinetes do Executivo, em Brasília.
Como isso não é novidade pra ninguém, permito-me neste último dia de 2019 praticar exercício reverso, o de tentar vislumbrar o que de bom o bolsonarismo produziu no ano.
Seria muito mais divertido, é verdade, ficar apenas na lista precedida da advertência “contém ironia”.
Ou não foi espetacular a sonhada e esperada abertura da caixa preta do BNDES que qualquer um já podia acessar pela internet? Ou a pedagógica discussão nacional-carnavalesca sobre o golden shower? Ou a descoberta, pelo menos da minha parte, e aqui quase ironia não há, de como há mais sensatez do que podia imaginar em figuras como Alexandre Frota, Janaina Paschoal e o general Mourão? Ou, termino por aqui, a lista é interminável, a celebrável constatação de que, devido ao que passamos a saber, jamais poderemos voltar a usar, sem a advertência “contém ironia”, o termo “filósofo” associado a Olavo de Carvalho.
O que de bom o bolsonarismo produziu até aqui está, sem ironia, na reação provocada. Artistas, cientistas, educadores e tantos e tantos outros não se curvaram (tudo bem, alguns, sim). A homofobia virou, enfim, crime. O Judiciário e o Congresso, com todas as suas mazelas, barraram até o momento a institucionalização do retrocesso civilizatório —no caso de Câmara e Senado, conduziram inclusive coisas que o governo mais atrapalhou que ajudou, como a reforma da Previdência.
Coquetéis molotov foram e continuarão sendo jogados pelos talibãs da nova ordem. Resistir será a prova definitiva da solidez da nossa democracia e das nossas instituições.
Leandro Colon: Por que aprovar ou não o STF?
Diferentemente de outros poderes, o Judiciário não cumpre mandato oriundo das urnas
Pesquisa do Datafolha mostrou que 39% dos brasileiros reprovam o STF (Supremo Tribunal Federal). Para essa parte da população, a atuação da corte é ruim ou péssima.
Foi a primeira vez que o instituto fez essa pesquisa, o que impede a comparação da evolução da satisfação nacional com o Supremo.
Diferentemente dos Poderes Legislativo e Executivo, o Judiciário não cumpre um mandato oriundo dos votos das urnas. Segundo o Datafolha, 45% reprovam o Congresso e 36%, o presidente Jair Bolsonaro.
Um cidadão tem o direito de cobrar o deputado e o senador que recebeu sua confiança na eleição, assim como um presidente, um governador ou um prefeito de sua cidade.
O que faz alguém aprovar ou rejeitar o STF? O desejo de que vote de acordo com suas convicções pessoais? O Supremo deveria julgar levando em conta anseios populares?
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, tratou deste assunto em entrevista concedida no estúdio da Folha e do UOL em Brasília. A conversa, publicada no fim de semana, ocorreu antes da divulgação do Datafolha.
Para Barroso, embora o papel da corte seja, sobretudo, interpretar a Constituição, não há como fazê-lo, segundo suas palavras, num “vácuo”.
“A Constituição deve ser interpretada de acordo com os interesses da sociedade. Isso é diferente de opinião pública, que é passional. Uma vez filtrado o sentimento social pela Constituição, se passar, o Supremo fará muito bem em atendê-lo”, disse.
Ministros divergem de Barroso, entre eles Marco Aurélio Mello, que já criticou movimentos do tribunal decorrentes de pressões vindas de fora.
Em entrevista a este jornal, Sergio Moro (ministro da Justiça) culpou o STF pela percepção ruim das ruas sobre o combate à corrupção pelo governo. Para ele, a decisão contra a prisão de condenados em segunda instância foi crucial para isso.
Fato é que desde o julgamento do mensalão, em 2012, o STF tem se aproximado mais dos brasileiros. Mas nenhum dos lados ainda entendeu direito o papel do outro.
Carlos Melo: O olhar para o futuro e o futuro do centro
Não tardará a ser esmagado pela ansiedade do país
O desenvolvimento tecnológico atropelou tudo a que a humanidade estava acostumada; o conhecimento multiplica-se e rompe paradigmas na economia, na sociedade. Desta vez, não se trata de realocar mão de obra; também comércio e serviços se reinventam numa alucinante sequência de cliques transmitidos do sofá da sala. A obsolescência está posta, e mesmo o Uber —último refúgio de desesperados— será substituído pelo carro autônomo. A precarização retira renda e orgulho. Não sem motivos, medo e ressentimento transbordam para a política.
Em 2019, foi necessário decantar a última eleição, recuperar-se do baque da vitória de Jair Bolsonaro. Mas o leão do tempo ruge e a demora para a apresentação de respostas e alternativa ao que está acima tem colaborado para o aguçamento da polarização. De naturezas opostas, Bolsonaro e Lula estão plenos no palco; no cenário, nada de novo ou diferente. O fato é que o declamado centro não se colocou. Faltam-lhe ainda o sentido, o discurso e o rosto. Incapaz de responder a questões vitais, não tardará a ser esmagado pela ansiedade do país.
Como se apresenta hoje, o centro é um campo que sofre por indefinição; que, antes, se define pelo que não é, incapaz de expressar o que, afinal, pretende ser. É linha borrada, situada em lugar impreciso entre o bolsonarismo e o petismo. Tem fixação por refutar as teses do PT, enfatizar erros —reais, no entanto, mais que conhecidos. Omite-se, porém, quanto ao atraso bolsonarista, atado que parece estar à armadilha da adesão mecânica à agenda fiscal. Sem resvalar em questões mais substantivas, outra vez, não chegará longe.
Não porque o equilíbrio fiscal seja irrelevante. Ele não é. Mas é impossível apresentar-se como alternativa apenas com a bandeira do sacrifício, sem revelar os desafios colocados pela história e propor como superá-los. Se a situação do país, de estados e municípios é dramática e o remédio amargo, qual prognóstico para o doente? Mais que a prescrição de terapia, como será a sobrevida? Sem demagogia ou irresponsabilidade, é necessário, sim, expressar alguma esperança.
As pessoas compreendem o país na encruzilhada. A reforma da Previdência pouco foi combatida nas ruas porque as corporações foram poupadas, mas também porque, mais sábio que quem o quer governar, pragmaticamente, o povo absorveu a inevitabilidade do ajuste; se a saída será trabalhar mais, bola para frente. O centro, no entanto, permanece estacionado no governo de Michel Temer (MDB), no óbvio já ululante da mesmice do ajuste, repetida desde 2014.
É necessário avançar, voltar-se à questão fundamental: ainda que o presente exija ajustes, política se faz com o futuro, não pelo passado. Olhar para o amanhã, demonstrar que a saída do labirinto não é retroceder à Idade Média ou reinaugurar a Guerra Fria; que a desesperança é pernicioso terreno para o populismo e o autoritarismo.
Os efeitos da transformação exigem preparar o futuro dos jovens, a educação do amanhã. Combater o crime que se organiza, se espalha e ameaça instituições; despolitizar a Justiça, que perde o indispensável papel de árbitro dos conflitos; salvar o meio ambiente, que é questão para ontem; e, sem perder o sentido geral da política, assimilar novos perfis identitários que se colocam com força inédita. Que fazer?
Evidente que os recursos não brotam do chão e nem se trata de mera “vontade política”, mas a retórica exclusiva do ajuste espanta o desejo e a esperança. Cortar não é difícil. Difícil é a unir a sociedade —não dividi-la— em torno da utopia de um mundo melhor, juntar vontades.
Respostas demandam esforços para os quais os principais atores têm se mostrado incapazes. Desnecessário repetir que nada se fará sem ajustes, mas esse deixou de ser o núcleo do discurso. É preciso sinalizar o porquê e para quê fazê-lo, o que esperar do futuro. Premido por grandes blocos que emulam emoção, limitar-se à tecnocracia será a perdição, a doença infantil desse centro sem coordenadas. Ajustes são inevitáveis, desde Aristóteles, mas a busca da felicidade é a prova dos nove.
*Carlos Melo, cientista político e professor do Insper
Demétrio Magnoli: Milhões de brasileiros passarão o Ano-Novo no mar dos Coliformes Fecais
Que se proíba o controle de balneabilidade, essa coisa de comunista
A Austrália tem um mar de Coral, pura poesia. Os atlas argentinos nomeiam o Atlântico Sul como mar Argentino, pura imaginação geopolítica. Numa derivação conceitual equivocada, os militares deram de chamar nosso mar territorial “Amazônia Azul”. Sugiro o realismo: mar dos Coliformes Fecais.
A Folha reuniu as informações, praia por praia. De norte a sul, os 7.367 km do litoral brasileiro formam a mais extensa faixa de poluição oceânica por águas de esgoto do mundo. É como se os Bolsonaros —o pai, os filhos e o espírito santo, que mora na Virgínia— tivessem discursado sequencialmente, do Oiapoque ao Chuí, envenenando um mar sem fim. Mas, de fato, a culpa (ainda) não é deles: o estado de nossas praias reflete os valores da política nacional.
As praias queridas da minha infância (Gonzaguinha, em São Vicente, Perequê-Mirim, em Ubatuba) estão imundas, assim como as dos meus 20 anos (Trindade, em Paraty, Farol da Barra, em Salvador, Lagoa da Conceição, em Florianópolis). As dos meus 40 (Porto de Galinhas, em Pernambuco, Morro de São Paulo, na Bahia) já rumam ao mesmo destino.
No Brasil, apenas 45% dos efluentes coletados são tratados. Grande parte do restante segue, pelos rios, até o mar. O cenário deprimente deteriora-se cada vez mais. No conjunto do litoral, em 2019, 35% das praias são classificadas como ruins ou péssimas e 27% como regulares.
Nos 31 municípios definidos como prioritários pelo Ministério do Turismo, aqueles com maior visitação, 42% das praias estão ruins ou péssimas. Boas, 28%. O retrato decorre de um padrão de urbanização costeira linear e predatória com o despejo generalizado de esgotos nos cursos d’água.
As atenções, nos últimos meses, concentraram-se no “inimigo externo”: as manchas visíveis, pretas, do óleo misterioso derramado em alto mar. Ricardo Salles acusou os “comunistas” (ONGs, Venezuela) pelo ataque bioquímico.
Nesse passo, esquecemos do “inimigo interno”: os invisíveis microrganismos patogênicos que contaminam águas azuis como o círculo interno da bandeira nacional. Limpamos as manchas, pintamos a fachada.
Duas quadras atrás da Boa Viagem, águas de esgoto correm numa vala fedorenta a céu aberto. Quase inexistem praias limpas em Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, as maiores metrópoles costeiras. Mas os coliformes espalham-se também no entorno litorâneo de cidades médias e povoados, especialmente junto à foz dos rios e córregos.
Os efluentes avançam por Ilhabela, pela Costa do Descobrimento, pela Restinga da Marambaia. Que tal, na bandeira, trocarmos as estrelas pelos desenhos da Escherichia coli, da Enterobacter cloacae, da Klebsiella pneumoniae?
Segundo a Constituição, o saneamento básico é responsabilidade compartilhada da União, dos estados e municípios. A lei 11.445, de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais de saneamento básico, prevê a obrigação de fornecimento universal de esgotamento sanitário. É letra morta, afogada nas fezes.
No longo ciclo de expansão, do início do século a 2014, sob a euforia do pré-sal e dos preparativos da Copa, o esgoto correu solto para os rios, em condomínios litorâneos dos ricos e periferias pobres que se alastravam. Pela esquerda e pela direita.
Há algo aí que vai muito além do meio ambiente. Nosso Estado organiza o conflito pela distribuição de benesses, privilégios, subsídios e rendas privadas, mas não cuida dos bens e direitos públicos. A degradação das praias acompanha o roteiro da apropriação particular de várzeas, mangues e morros, à sombra da lei da guerra de todos contra todos, no nosso perene faroeste caboclo. Brasil acima de tudo: que se proíba o controle de balneabilidade, essa coisa de comunista.
Milhões de brasileiros passarão o Ano-Novo no mar dos Coliformes Fecais. A erisipela, a diarreia, a disenteria, a cólera e a febre tifoide vêm depois.
*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Hélio Schwartsman: Uma defesa da censura
A sociedade, para funcionar bem, precisa que as pessoas exerçam algum grau de autocensura
Abaixo a censura, certo? Não tão rápido. Há um tipo de censura que, se exercida com discernimento, tende a ser pró-social. Falo da autocensura. É com satisfação, portanto, que leio a pesquisa Datafolha que informa que 51% dos brasileiros desistiram de fazer algum comentário ou compartilhar algum conteúdo para evitar brigas.
A internet teve efeito disruptivo não apenas sobre negócios mas também sobre relacionamentos sociais. Hoje, com mais de 3,5 bilhões de usuários da rede, é muito fácil encontrar quem pense igual a você, pouco importando quão idiossincráticas, exóticas ou mesmo malucas sejam as suas ideias.
O lado positivo disso é que ninguém mais precisa ser solitário. Por mais raro que seja o seu fetiche, sexual ou intelectual, são grandes as chances de que você tope com alguém que o complemente. Pode ser o início de um lindo romance ou de uma bela colaboração intelectual. A sociedade pode sair ganhando, se daí surgir alguma inovação relevante.
Há, é claro, o lado negativo. A internet, ao proporcionar a todos ambientes onde serão aplaudidos qualquer que seja a tese que defendam, reduz substancialmente o medo de ser ridicularizado, que sempre foi um dos principais instrumentos pelos quais a sociedade reprime as más ideias antes de elas se popularizarem. Existe aí um elemento tirânico, mas, verdade seja dita, a maioria das ideias ridículas é só ridícula e não genial.
Um bom exemplo é o terraplanismo. Até alguns anos atrás, as pessoas que contestam a esfericidade da Terra guardavam essa ideia para si, por medo de virar alvo de chacota. Depois que os computadores permitiram que elas se encontrassem virtualmente, a zombaria perdeu efetividade como filtro epistêmico —e o terraplanismo encontrou condições para prosperar.
Para funcionar bem, a sociedade precisa que as pessoas exerçam algum grau de autocensura, também conhecida como vergonha na cara.
Rodrigo Maia: O saldo de 2019 é positivo para o Brasil? SIM
Sociedade se organizou para corrigir ímpetos muito particulares
A quem está na vida pública não é dado o direito de ser pessimista ou a chance de deixar-se acomodar resignado ante os obstáculos. O ano de 2019 foi muito difícil para o Brasil; 2020 será ainda mais desafiador. Mas há um legado a ser celebrado no período que fica para trás.
Com alguma surpresa, o país descobriu a diferença entre governo e governança. Abriu os olhos também para a necessidade de fazer da ação política um catalisador permanente das forças da sociedade, e não apenas um elixir para animar períodos de campanha eleitoral. Por meio do Parlamento e contando com a moderação sempre bem-vinda do Judiciário, a sociedade se organizou para melhorar, corrigir e às vezes dar novos rumos aos ímpetos reformistas de quem tentou ler o resultado das urnas de 2018 com lentes muito particulares e sob prismas unipessoais.
A Câmara dos Deputados e o Senado Federal encontraram caminhos para melhorar a reforma da Previdência e aprovar um conjunto de mudanças que renovará o ânimo de empresas e de empreendedores ansiosos por investir aqui. Também driblamos os antagonismos daqueles resistentes a um novo marco legal para estimular obras e entregas na área do saneamento básico, ponto nevrálgico de carências para os brasileiros. A partir do próximo ano deveremos comemorar avanços reais na coleta e tratamento de esgotos e no abastecimento de água potável —isso se converterá em redução da mortalidade infantil e de doenças endêmicas nos municípios de todo o território nacional.
Ao desempenhar o papel de moderador do ativismo legal de um governo que nem sempre escutou de forma ampla as diferentes vozes da sociedade num Brasil que é mosaico de culturas, de religiões, de credos, de etnias e de gêneros, o Congresso Nacional congelou (e também refreou) a tensão provocada por uma pauta conservadora na área dos costumes.
A coragem dos líderes no Parlamento, que tomaram a frente da resistência a um processo fadado a destruir pontes de diálogo historicamente construídas por organizações e entidades da sociedade civil, tem de ser enxergada como legado positivo de 2019.
Se fomos duros na pauta de costumes para conservar a vocação pluralista do nosso povo, soubemos ser proativos na fiscalização e no combate à degeneração dos indicadores de conservação da natureza e de preservação do meio ambiente. O governo tem falhado no desempenho de seu papel de uso da força para coagir agressores do patrimônio mundial que são a Amazônia e o Pantanal —e também as nações indígenas, que compartilham conosco o território nacional. Nós, congressistas, estabelecemos conexão direta com entidades e organismos internacionais cujo mister é justamente fiscalizar e denunciar agressões a fim de reprimir agressores. Usamos instrumentos legitimados pela diplomacia e pelas relações econômicas.
Perseverar nesse aprendizado e usar as mesmas ferramentas para conter retrocessos na área da cultura é nossa missão em 2020.
A atual legislatura foi a que mais rejeitou medidas provisórias baixadas pelo Poder Executivo. Assistir ao Parlamento impor limites a governantes é, sem dúvida, um aspecto a ser saudado. Diferentemente do reducionismo analítico a que muitos cederam, lendo a insurgência de um “parlamentarismo branco”, temos na verdade um Legislativo desempenhando suas atribuições constitucionais.
O aprendizado adquirido nesses embates não deixa dúvidas: o saldo de 2019 é positivo. Avançamos, aos trancos e barrancos —como lá atrás Darcy Ribeiro diagnosticara que faríamos.
*Rodrigo Maia, deputado federal (DEM-RJ), é presidente da Câmara dos Deputados
Hélio Schwartsman: Populismo universitário
Atual processo de escolha de reitores em universidades federais favorece o corporativismo
O modo beligerante, autoritário e açodado pelo qual atua o governo Bolsonaro faz com que ele perca a razão até quando seu caso tem “fumus boni iuris” (fumaça de bom direito). Foi o que aconteceu com a medida provisória que altera o processo de escolha de reitores em universidades federais.
A atual sistemática não é boa. Embora existam regulamentos que em tese disciplinam a matéria, grande parte das instituições os ignora e promove uma eleição informal, na qual os votos de professores, alunos e servidores têm o mesmo peso. O resultado dessa consulta costuma ser chancelado automaticamente pelos conselhos universitários, convertendo-se na lista tríplice de nomes que é encaminhada ao Executivo para escolha pelo presidente. Em governos anteriores, a praxe era nomear sem questionamentos o mais votado.
O problema desse desenho é que ele favorece o corporativismo e o populismo. Num exemplo extremo, um candidato que acena com generosas vantagens na carreira e promete facilitar a vida dos estudantes tem maior chance de ir para o alto da lista do que um que fale em dispensar professores com baixa produção acadêmica e em cobrar melhor desempenho do corpo discente. É bastante provável, porém, que a plataforma do segundo candidato esteja mais de acordo com o interesse público, que, nesse processo, fica de escanteio.
Faz sentido tentar dar maior peso, senão ao benefício social, que é difícil de aferir, ao menos aos interesses de longo prazo da universidade. A MP visa a esse objetivo, ao tentar fazer com que o voto dos professores, que têm um vínculo mais profundo e duradouro com a instituição do que alunos e funcionários, tenha de fato maior peso na eleição —70% contra 15% e 15%. Mas, ao agir por Diktat em vez de negociar com os atores relevantes e com o Congresso, o governo dá um tiro n’água. Não será uma surpresa se também essa MP caducar.
Bruno Boghossian: Apesar de rejeição, Lula indica revival de marcas petistas
Acenos a Marta e Benedita são sinais de que petista tenta recuperar imagem da sigla
Nas últimas eleições municipais, o PT perdeu mais de metade de suas prefeituras. Dos 638 postos de 2012, o partido ficou com 254 em 2016. O fracasso foi, em parte, um efeito da onda que derrubou Dilma Rousseff. No ano que vem, a temperatura do antipetismo, que marcou o cenário político desde o impeachment, será testada novamente.
O cenário permanece nebuloso, com o poder de decisão concentrado nas mãos de Lula. O ex-presidente, aliás, tem dado sinais contraditórios. Já apontou que deve apoiar candidatos de outras legendas em cidades estratégicas para oxigenar os quadros da esquerda, mas também passou a estimular veteranos do PT, associados a esses nomes.
Apesar de ter dado palanque para a ascensão de nomes como Fernando Haddad e o governador baiano Rui Costa, o partido tropeçou em seus planos de renovação interna. Basta ver a dificuldade dos petistas em encontrar um candidato óbvio para a Prefeitura de São Paulo.
Diante da hesitação do próprio Haddad, derrotado com apenas 17% dos votos na última disputa, Lula fez acenos à ex-prefeita Marta Suplicy —que deixou o PT em 2015, concorreu à prefeitura no ano seguinte e ficou em quarto lugar, com 10% dos votos.
O movimento combina com a estratégia de polarização que o ex-presidente adotou desde que saiu da cadeia, em novembro. Marta pode ser candidata ou se filiar a outra sigla para ser vice de Haddad. Sua entrada na corrida seria o revival de uma personagem ainda identificada com o PT e com a base social da legenda.
Uma indicação semelhante pode ser vista no Rio, segunda maior cidade do país. Marcelo Freixo (PSOL) espera o apoio dos petistas, mas Lula disse a aliados que o partido reforçaria sua marca se lançasse um nome próprio. A candidata seria Benedita da Silva, quadro histórico da sigla.
A rejeição ao petismo marcou as duas últimas eleições, mas Lula parece interessado em explorar marcas do partido em algumas cidades para recuperar seu capital político, mesmo que não vença essas disputas.
Bruno Boghossian: Sob Bolsonaro, crescimento e desigualdade estarão no centro do debate
Retomada do PIB e distribuição de renda agem como vetores diferentes sobre eleitor
Steve Werner já votou no Partido Democrata, mas fez campanha para Donald Trump em 2016. Ele era um dos trabalhadores que, diante de dificuldades econômicas, entraram em greve numa fábrica de caminhões da Pensilvânia, em outubro.
Sem ligar para os dados que indicavam um aumento da desigualdade nos EUA, o operário estava convencido de que era preciso dar mais quatro anos para o presidente americano. Ele disse aos repórteres Marina Dias e Lalo de Almeida que, num segundo mandato de Trump, todos os americanos começariam a sentir os benefícios da melhora da economia.
Personagens da série “Os Americanos”, da Folha, mostram que o crescimento econômico e a distribuição de renda agem como vetores diferentes em determinados grupos do eleitorado. Num Brasil em recuperação, esses elementos também estarão no centro do debate político.
A oposição fez sua aposta. Lula e outros líderes de esquerda sabem que Jair Bolsonaro deve ser favorecido pela melhora gradual no PIB. Eles investem, então, na ponta da distribuição desse crescimento.
Para os rivais de Bolsonaro, a retomada sob um regime de aperto fiscal deve ser marcada pelo achatamento de gastos sociais e pela geração de empregos de menor qualidade. Os efeitos da recuperação, portanto, seriam mais lentos para os mais pobres e para a classe média.
O próprio ministro Paulo Guedes se antecipou, em entrevista à GloboNews na semana passada: “Não olhe para nós procurando o fim da desigualdade social. Nos dê um tempinho. Nossa tentativa é diferente”.
Ainda assim, o presidente pode tirar proveito de uma sensação de bem-estar quando os ponteiros da economia se mexerem com mais vigor. A comparação com a fase recente de recessão é seu principal trunfo.
Bolsonaro aprendeu com seu ídolo americano que pode mobilizar o eleitorado com pautas simbólicas enquanto os efeitos da economia não chegam a todos. Essa é sua estratégia para que os brasileiros lhe deem mais quatro anos no poder.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro e a nova questão religiosa
Em um país com mais conflitos de religião, presidente leva assunto para o Planalto
A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não podem “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”, diz o artigo 19 da Constituição.
No seu pronunciamento de Natal, em cadeia de rádio e televisão, Jair Bolsonaro (sem partido) disse que acredita em Deus, afirmação em si inócua. Discursou ao lado da mulher, que usava uma camiseta com a inscrição “Jesus”. Michelle Bolsonaro não exerce função pública remunerada, mas preside o Conselho do Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado, o “Pátria Voluntária”, criado por decreto presidencial em julho deste ano e vinculado ao Ministério da Cidadania.
A Carta de 1988 não trata da relação da pessoa do presidente com religiões, nem está explícito se ou quais atos do presidente podem implicar “relações de dependência ou aliança” da União com cultos religiosos e igrejas.
É um problema jurídico difícil resolver se Bolsonaro ou tantos outros chefes e integrantes de Poderes atravessam fronteiras legais nesse assunto. Mas é fácil perceber que o presidente tornou essa divisa ainda mais nebulosa e levou a nova questão religiosa do Brasil a um patamar mais alto.
Uma semana antes do pronunciamento de Natal, Bolsonaro participara de um “Culto de Ação de Graças”, como dizia a agenda presidencial, no Palácio do Planalto. Estariam lá cerca de 600 evangélicos, no dizer de um pastor presente.
“Entendo também que, pelas mãos de vocês, hoje sou o chefe do Executivo” e “É motivo de honra e de orgulho e de satisfação vê-los publicamente aceitando Jesus nesta casa”, discursou então Bolsonaro, entre orações.
“Nesta casa que estava carente da sua [de Deus] palavra. O Brasil mudou”, disse ainda o presidente. No pronunciamento natalino: “O governo mudou. Hoje, temos um presidente que valoriza a família, respeita a vontade do seu povo, honra seus militares e acredita em Deus”.
Nos quatro discursos em cadeia de rádio e TV anteriores, Bolsonaro citara Deus uma vez, em um boa noite. Ao longo do ano e em momentos de crise, fez questão de demonstrar mais proximidade política e religiosa com evangélicos, como agora, em que seu filho Flávio é acusado de crimes graves.
Depois de 1964, a presença da religião nos assuntos políticos foi perdendo força, em parte devido ao declínio da influência política, social e religiosa da Igreja Católica. A tendência se reverteu com a ascensão geral dos evangélicos, em números de fiéis e na política partidária (a Frente Parlamentar Evangélica foi criada em 2003).
Passamos a ter notícias de conflitos públicos entre parte dos evangélicos e católicos (“chutou a santa”) e perseguição renovada dos crentes do candomblé e da umbanda. Até atentados contra humoristas temos. Blasfêmia e horror assustadores, faz mais de década se ouve falar de “traficantes evangélicos”.
Passou a haver uma nova questão religiosa no Brasil, muito além da disputa de fiéis. Envolve partidos, interesse econômico maior, conflito de mídia e, agora, embates pelo controle político da educação e da cultura.
De um modo ou de outro, de maneira inadvertida, demagógica ou manipuladora, levar tal conflito para o centro da vida partidária e para os Poderes é sujeitar o país ao risco de mais um desastre, o do conflito político-religioso, de história e presente funestos e amargamente conhecidos.