Folha de S. Paulo

Bruno Boghossian: Máquina de mentiras de Bolsonaro quer enganar seus próprios apoiadores

Com lorotas fajutas, presidente trata seguidores como se fossem ingênuos ou idiotas

A turma do governo se emplumou na virada do ano para fazer uma comparação que parecia impressionante. Auxiliares de Jair Bolsonaro divulgaram que o custo das viagens do presidente em seu primeiro ano havia sido de R$ 8 milhões, ao passo que Dilma Rousseff havia gastado R$ 483 milhões em 2014.

A intenção era louvar o chefe e sua capacidade de gestão, em contraste com a gastança desenfreada dos “esquerdopatas”. A ministra Damares Alves escreveu: “Vamos deixar o povo julgar”. Mas era tudo mentira.

Os governistas emparelharam coisas totalmente diferentes. A cifra de Dilma englobava os gastos com passagens de todos os servidores do governo, enquanto o número de Bolsonaro levava em conta só as viagens do presidente. No ano passado, na verdade, o valor total destinado a passagens foi de R$ 421 milhões, segundo o Portal da Transparência.

A máquina de propaganda do bolsonarismo se alimenta de mentiras, informações distorcidas, dados maquiados e comparações esdrúxulas. A função desse mecanismo não é só confundir o debate público, mas principalmente enganar os próprios apoiadores do governo.

Em certas situações, o presidente elabora mentiras sob medida para suas bases. Criticado por seguidores, ele inventou que sofreria um impeachment se vetasse a destinação de R$ 2 bilhões para o fundo eleitoral.

A desonestidade chega a níveis ridículos. Na sexta (10), Eduardo Bolsonaro reclamou que os incêndios florestais na Austrália não receberam do Instituto Chico Mendes a mesma atenção dada às queimadas na Amazônia. Não deveria ser preciso explicar que o órgão ambiental federal não tem nenhuma relação com desastres em outros países.

Bolsonaro e sua equipe não espalham absurdos para fazer com que seus críticos mudem de ideia. O objetivo é convencer simpatizantes de que o governo vai bem e fazer com que eles mesmos espalhem essas lorotas de baixa qualidade. O presidente, nesse caso, trata seus apoiadores como se fossem ingênuos ou idiotas.


Elio Gaspari: Nikola.Tesla@edu para Bolsonaro@gov

Se o senhor estimular a pesquisa de brasileiros, coisas boas acontecerão

Senhor presidente,
Talvez o senhor me conheça por causa do nome do carro elétrico. O dono dessa fábrica resolveu me homenagear, pois essa foi uma das muitas ideias que eu tive entre o final do século 19 e o início do 20. Meu nome é Nikola Tesla, e dei ao mundo coisas como o motor elétrico e as atuais redes de distribuição de energia. Previ que a humanidade poderia se comunicar instantaneamente, com objetos sem fio que caberiam no bolso, mas as pessoas já tinham me rebaixado da condição de gênio à de cientista louco e, mais tarde, apenas louco.

Outro dia o senhor disse o seguinte: "Em fevereiro vou estar nos Estados Unidos, vou lá visitar empresários, que são militares... Vão me apresentar transmissão de energia elétrica sem meios físicos. Se for real, de acordo com a distância, que maravilha! Vamos resolver o problema de energia elétrica de Roraima passando por cima da floresta".

Cuidado, presidente. O problema está no "de acordo com a distância", e foi nele que eu me danei. Transmitir eletricidade sem fios é coisa real, eu consegui, em maio de 1891. Em Nova York, acendi lâmpadas a meio metro de distância da fonte geradora.

Quem conversa muito comigo sobre esse assunto é um brasileiro que se chama Pedro de Alcântara. (Ele não gosta de ser chamado de imperador.) O Pedro foi uma das primeiras pessoas a usar o telefone e tem enorme curiosidade científica. Quando conversamos sobre sua fala, ele desaconselhou que lhe escrevesse, repetindo a frase que disse ao ser embarcado para o exílio: "Os senhores são uns doidos".

Pedro me contou que vocês tiveram um presidente capaz de dizer que Napoleão foi à China e hoje têm um ministro da Educação meio monarquista que não sabe português. Ele escreve "suspenção", "imprecionante" e "antessessores".

Como seu nome tem 13 letras, resolvi escrever-lhe para dizer que sua visita à empresa americana está na categoria dos espetáculos. Fiz muitas apresentações para visitantes ilustres e sei do que falo. Não estimule esse tipo de coisa. Energia elétrica passando por cima da floresta de Roraima não será coisa para seu tempo. Se, em vez de ir ver o que não entende, o senhor estimular a pesquisa de brasileiros, coisas boas acontecerão.

Eu tive a ideia de criar um motor elétrico enquanto andava com um amigo em Budapeste. Era um ninguém. O Brasil tem milhares de ninguéns. Em 1950, quando foi criado o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, os comunistas da China davam os primeiros passos em direção a uma das maiores fomes de todos os tempos. Hoje a China é o que é porque cuidou de seus cientistas. A Tesla acreditou no carro elétrico e seu valor de mercado ultrapassou o da General Motors e da Ford, somadas.
Respeitosamente,
Nikola Tesla


Folha de S. Paulo: Não inventamos Huck, ele já era agente político, diz Roberto Freire

Presidente do Cidadania, Roberto Freire afirma que apresentador compete com Lula e não é 'um Silvio Santos'

Joelmir Tavares, Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Ex-comunista, Roberto Freire, 77, diz não ver mais sentido em um projeto de sociedade que considera derrotado. Presidente nacional do Cidadania (antigo PPS), ele comanda um partido que ainda tem saudosos do comunismo, mas reúne também liberais, sociais-democratas e neófitos que buscam um lugar no espectro político.

É nesse caldeirão que Freire sonha em enfiar Luciano Huck, o apresentador de TV sem filiação partidária que poderá unir o chamado centro político na eleição presidencial de 2022.

"Ele tem mostrado muita capacidade política, de se relacionar, de dialogar. Está se revelando um bom articulador", diz Freire à Folha.

Em um aceno a Huck —que tem na sigla interlocutores próximos—, o Cidadania atualizou seu estatuto para incluir na direção da legenda representantes de movimentos que pregam renovação política.

O apresentador, que por ora despista publicamente sobre o plano de candidatura, repete que hoje atua no debate público por meio de "organizações cívicas" como Agora! e RenovaBR.

Como o sr. descreveria o atual momento do partido?  
Uma nova sociedade está surgindo, com a revolução científica e tecnológica e as novas relações sociais e de trabalho. Isto aqui [pega o smartphone] mudou o mundo. Não pode alguém imaginar que, com tudo isso, os partidos continuem sendo organizados como antes. A forma de representação política acompanhou essas transformações.

Por isso a decisão do Cidadania de incorporar os ditos movimentos de renovação?  
Partido é algo datado, é um conceito do fim do século 19. Movimentos como Agora!, Acredito e Livres são uma tentativa de organizar uma representação política futura. O mais importante é entender que essa é a nova forma de partido.

A abertura a esses grupos ocorre no momento em que outras siglas, como Novo e PDT, querem brecá-los.  
É porque elas veem os movimentos como se fossem seus adversários. No Cidadania, os movimentos ajudaram a construir o novo estatuto. Não tenho que entendê-los como algo estranho.
Antigamente, alguém se preocupava que você tivesse no partido um dirigente sindical? Não. Ele era ao mesmo tempo dirigente sindical e filiado. Queremos que os movimentos sejam parte integrante, que nós tenhamos presença onde a sociedade estiver organizada.

Existe quem veja nessa articulação uma tentativa de cooptação dos movimentos.  
Se eles participam de tudo, se não estão impedidos de debater, se queremos que se engajem nas discussões, não há por que falar em cooptação. Agora, o que não se pode perder de vista é que isso aqui não será um ajuntamento nem de pessoas nem de organizações. Precisamos de políticas e de propostas para o país.

Nesta nova fase, o sr. acha possível conciliar as visões conflitantes internas? Há membros históricos de orientação comunista, liberais, representantes de novos movimentos...  
Nós vamos ter posição. Nada vai deixar de acontecer porque alguém não gostou. O partido vai ter uma posição, mas vamos respeitar as opiniões divergentes.

O Cidadania quer se firmar, como se ventila externamente, como o principal partido de centro do país?  
Esse negócio de centro, isso não existe. Centro tem a ver com o momento. O significado de ser esquerda ou direita nessa nova sociedade terá que ter outra substância, outro conteúdo. Se você ficar preso ao passado, deixa de existir. Não vejo mais o PT como de esquerda. E não é de agora. Quando chegou ao governo [em 2003], era só retórica de esquerda, mas não mudou coisa nenhuma.

O partido não quer rótulos?  
Uso uma imagem que é a da transição. Estamos construindo uma formação política no Cidadania em que vêm os liberais, que entendem a economia nesta nova fase e respeitam a democracia e os direitos humanos, e ao mesmo tempo os sociais-democratas, que nós representamos na nossa origem, com a preocupação social, em uma sociedade que continua entre as mais injustas do mundo. Então, se for para considerar os paradigmas passados, somos de centro-esquerda.

A iniciativa do partido de atrair movimentos é um chamariz para a filiação de Luciano Huck?  
Não, não é um chamariz. Não é casuísmo. Luciano é talvez a liderança maior desses movimentos. E não é de agora. Ele nos procurou para conversar em 2017. A partir daí surgiu a possibilidade de ele ser candidato. Só que era uma coisa ainda muito embrionária. Ele tinha que decidir rapidamente. Não deu tempo para a gente organizar isso.

Como nós tínhamos essa ideia de integrar [os movimentos], foi a faca e o queijo, sopa no mel. Começamos a conversar. E aí veio a ideia da nova conformação.

Então, lá atrás, ele procurou o sr. para dialogar?  
No primeiro encontro que tivemos, estavam ele e pessoas do movimento Agora!. Não fomos nós que fomos inventar Luciano, ele já existia como um agente político, com essas organizações. De lá para cá, ele ampliou isso e passou a conversar com outros setores. Hoje tem relacionamento com vários agentes da política.

O sr. acha que Huck sobrevive ao escrutínio e à exposição até 2022? Não corre o risco de ficar desgastado?  
O escrutínio, para ele, só o beneficia. Como ele não tem nenhuma passagem na vida pública, não tem muito o que sofrer. É diferente de ter algum problema e o problema ser esclarecido, como, por exemplo, essa bobagem do negócio do avião [comprado com financiamento do BNDES], que é uma idiotice. Quanto mais se falar desse falso escândalo, mais facilmente isso vai cair, porque não tem nenhuma substância.

Quem comprou [o jatinho] foi a empresa dele, dentro da lei. Não acho que tenha havido problema. Qualquer candidato, qualquer pessoa, é passível de enfrentar esse tipo de coisa. Não há nada que vá conter sua popularidade ou impedi-lo de se estruturar politicamente. E ele está se revelando um bom articulador.

Quão viável é uma candidatura de Huck?  
O que é a grande vantagem de Huck? Segundo as pesquisas, ele é forte onde Lula é: nos setores mais populares. E, no outro setor, é uma construção. Ainda há um preconceito, como se ele fosse apenas um bom profissional apresentador de televisão. Ele não é só isso. Aí demanda desenvolvimento, processo.
Estamos ajudando. Eu não ia chamar um Silvio Santos —com todo o respeito ao grande apresentador de TV que foi, mas que é só isso. Fernando Henrique [Cardoso], eu e outros estamos chamando uma pessoa que tem conteúdo.

Com Lula livre, o cenário muda, não?  
Muda, mas essa é a grande vantagem dele [Huck]. Ele tem voto e disputa com Lula. Acho que Lula pode continuar tendo grande popularidade, mas nunca voltará a ser o líder de antes. Acabou. Embora o PT seja uma força a ser levada em consideração.

Houve um convite do Cidadania à deputada federal Tabata Amaral, que tenta deixar o PDT?  
Não um convite formal, em respeito a ela. Mas ela sabe que será muito honroso para nós se quiser vir.

Ainda existem conversas com a Rede visando a uma eventual fusão dos dois partidos?  
Não. Eles decidiram tentar ver se conseguirão superar a cláusula de desempenho. Se desejarem, estamos abertos. Alguém aqui brinca um pouco que, se Huck vier, vamos ter é que criar uma porteira [para barrar filiações].

RAIO-X
Roberto Freire, 77 Pernambucano, começou a militar na política em 1962. Estudante de direito, entrou no velho Partidão, como o PCB (Partido Comunista Brasileiro) era chamado. Foi também filiado ao MDB e ao PPS (que deu origem ao Cidadania). Ocupou mandatos de deputado estadual, deputado federal e senador. Assumiu o cargo de ministro da Cultura em 2016 (governo Temer) e pediu para sair após o escândalo JBS. Tentou reeleição para deputado federal por São Paulo em 2018 e teve 24 mil votos, mas não conseguiu vaga.


Demétrio Magnoli: O Estado que nos educa

Brasil confunde dever estatal de financiar a educação com moldar discurso dos professores

Quando o presidente decidiu pontificar sobre livros didáticos, formou-se um pequeno escândalo sobre o periférico. As opiniões de Bolsonaro, boçais como de costume (um “lixo”, “um montão de amontoado de muita coisa escrita”), não movem nenhum moinho.

Já o principal —a promessa de que, a partir de 2021, os livros escolares “serão feitos por nós”— passou como pretensão legítima. Acostumamo-nos com a ideia de que o Estado tem o direito de educar o povo.

Um quarto de século atrás, não era assim. Os livros didáticos postos no mercado pelas editoras eram submetidos à escolha dos professores. Tínhamos uma saudável diversidade de obras, de qualidade bastante desigual, que refletiam as diferentes abordagens teóricas e pedagógicas em voga nas universidades.

O sistema de mercado, porém, excluía a maioria das escolas públicas, cujos alunos não podiam pagar pelos livros. A solução encontrada —a compra pública federal e centralizada— abriu o caminho das salas de aula às ideologias estatais.

Nos EUA, os livros são patrimônio das escolas e passam de uma turma de alunos à seguinte, em longos ciclos. Por aqui, o Estado preferiu estabelecer ciclos curtos de renovação dos livros. De um lado, a cara opção gera óbvios dividendos eleitorais. De outro, prende a indústria editorial de didáticos à órbita do poder público.

O MEC converteu-se no comprador quase monopolista: o verdadeiro patrão das editoras. Nessa condição, adquiriu a prerrogativa de esculpir as narrativas pedagógicas.

Os governos do PT utilizaram esse poder para conduzir uma revolução em marcha lenta, revestida por uma fina película de saber acadêmico. As comissões de “especialistas” formadas nas universidades federais para selecionar obras “de qualidade” foram, regra geral, colonizadas por professores-ativistas.

As análises “técnicas” contaminaram-se de (pre)conceitos políticos. Aos poucos, num processo que jamais se completou, eliminaram-se inúmeras obras “desviantes”.

A revolução escolar atingiu livros de exatas e biológicas —mas, claro, teve impacto maior nos de humanas. Na era pós-Muro de Berlim, um marxismo outonal, diluído em caldos de anti-imperialismo, terceiro-mundismo e multiculturalismo, passou a impregnar a maior parte dos livros de história e geografia.

Siga o dinheiro: as editoras jamais reclamaram —antes, pelo contrário, assumiram o papel de correias de pressão sobre autores recalcitrantes.

As obras “de qualidade” deviam trafegar pelos circuitos do antiamericanismo ritual, da denúncia da “história ocidental”, da idealização romântica da África pré-colonial. A política identitária desceu como uma sombra sobre os textos escolares.

A escravidão moderna passou a ser explicada pela chave do racismo, não pela lógica do sistema mercantil colonial. A campanha abolicionista foi expulsa do palco iluminado da história brasileira. Zumbi dos Palmares transformou-se no ícone absoluto da luta antiescravista.

Confundimos o dever estatal de financiar a educação pública com o poder abusivo reivindicado pelo governo de invadir as salas de aula e moldar o discurso dos professores.

O Estado-Educador é, sempre e inevitavelmente, o Partido-Educador. Na proclamação presidencial de que os livros didáticos “serão feitos por nós”, o “nós” indica o núcleo ideológico que rodeia Bolsonaro.

A obra “suavizada” dos sonhos dessa turma é um manual nacionalista, autoritário e ultraconservador, anticientífico, de fortes colorações religiosas. Nele, evaporariam tanto a ditadura militar quanto as mudanças climáticas e o lugar do evolucionismo seria ocupado pelo criacionismo.

O projeto provavelmente fracassará, pois Bolsonaro carece das redes de legitimação acadêmica conferidas por brigadas universitárias de professores-ativistas. Mas o risco existe, num país que não aprendeu a separar o Estado da sala de aula.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Por que Bolsonaro fala tanto de impeachment?

Presidente usa perigo como válvula de escape e fabrica ideia de perseguição

Em seu quinto mês no cargo, Jair Bolsonaro pronunciou a palavra impeachment pela primeira vez. Quando estudantes protestaram contra o bloqueio de verbas da educação, em maio, o presidente disse que o congelamento era necessário para que ele não fosse derrubado.

"Quem decide corte não sou eu. Ou querem que eu responda a um processo de impeachment no ano que vem por ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal?", perguntou.

Não era bem assim. Bolsonaro sabia que o Orçamento era apertado quando resolveu se candidatar. Sabia também que sua assinatura determinaria as áreas afetadas pelos ajustes nas contas. O presidente, na verdade, quis explorar o risco de destituição como uma artimanha política.

O truque tem duas funções. Em geral, o perigo do impeachment é usado como válvula de escape para medidas amargas ou atos que contrariem a fatia mais barulhenta do eleitorado cativo de Bolsonaro.

Foi o que ocorreu na terça (7), quando o presidente afirmou que poderia sofrer impeachment se vetasse a destinação de R$ 2 bilhões para o fundo eleitoral. Ele argumentou que a lei define como crime de responsabilidade o uso do poder para impedir a execução da lei eleitoral.

Bolsonaro inventou a balela para sair de um enrosco criado por ele mesmo. O próprio governo estabeleceu aquele valor na lei orçamentária, mas passou a ser pressionado a vetar o trecho por sua base mais fiel.

Relutante em contratar esse desgaste com os parlamentares, Bolsonaro passou a espalhar a tese do crime --uma farsa, já que o presidente é livre para vetar projetos.

O segundo propósito da ameaça é pintar Bolsonaro como um personagem injustamente cercado por arapucas dos políticos tradicionais. O presidente reproduz, mais uma vez, a figura do candidato antissistema.

De quebra, também vulgariza o risco de impeachment para criar uma blindagem caso o risco surja, de fato, no futuro. Um processo desse tipo não está no radar, mas Bolsonaro insiste em testar os limites da lei.


Bruno Boghossian: Censura ao Porta dos Fundos premia os intolerantes de plantão

Decisão mostra que proteção das liberdades no país é tão frágil quanto parece

Bastaram dois coquetéis molotov e uma petição ao Tribunal de Justiça do Rio para que a censura fosse instalada. A decisão que ordenou a retirada do ar do especial natalino do Porta dos Fundos deu ganho de causa aos intolerantes e mostrou que a proteção das liberdades no país é tão frágil quanto parece.

O desembargador Benedicto Abicair fabricou uma inovação jurídica ao impedir a exibição da sátira que retrata um Jesus gay. Dezesseis dias depois que a sede da produtora foi alvo de um atentado, o magistrado afirmou que a proibição era necessária para "acalmar ânimos".

Na prática, o desembargador agiu como se a melhor maneira de reprimir a atividade de fanáticos criminosos fosse atender suas vontades. Para piorar, decidiu instituir uma figura absurda como a censura preventiva e tratou a liberdade de expressão como questão secundária.

Abicair escreveu que o Judiciário deve "evitar desdobramentos violentos, principalmente quando se vislumbra ânimos exaltados". Se os produtores do vídeo não explodiram coisa nenhuma, é curioso que a solução tenha sido tirar a peça do ar.

O processo que levou à censura do especial carrega uma sequência de distorções que afrontam o princípio da liberdade de expressão.

Primeiro, os autores do pedido argumentaram que o material agride a liberdade religiosa --como se a sátira impedisse alguém de professar sua fé. Depois, o Ministério Público alegou que houve um "abuso do direito de liberdade de expressão através do deboche". A promotora, ao que parece, ignorou o sentido da palavra "liberdade". Por fim, o desembargador afirmou que a censura era benéfica porque a sociedade brasileira é "majoritariamente cristã".

Quem se sente ofendido por qualquer manifestação tem o direito de requerer uma reparação ou cobrar a responsabilização de seus autores. Tratar a proibição como um artifício corriqueiro, além de criar mais um precedente perigoso, premia quem está disposto a usar um par de explosivos e chamar um advogado.


Fernando Schüler: Nova rebelião das massas desafia democracia digital

Homem comum dispõe hoje de poder muito maior de fazer barulho, e destino é incerto

Luiz Felipe Pondé escreveu uma coluna provocativa, dias atrás, e a certa altura se referiu a uma mulher com quem conversou em sua recente visita à China. Ela tem 30 anos e abriu um restaurante com o marido. Diz gostar de viver em um país seguro e estável, sem as confusões que enfrentam no dia a dia seus irmão de Hong Kong. Confusões típicas das democracias atuais.

“A ideia que trocamos facilmente liberdade por estabilidade é fato”, diz Pondé. A frase é de um intelectual sabidamente cético em relação à crença iluminista no progresso moral e na fidelidade humana aos valores universais da liberdade e da democracia.

Certo ou errado, ele tem um ponto. Se é verdade que a democracia liberal é um sistema vitorioso no mundo moderno, também é verdade que ela vive um momento de mal-estar. E que o sucesso chinês, prometendo uma sociedade aberta e de mercado, ainda que sem democracia, é de longe o maior desafio vivido em nossa época pelas democracia liberais.

O Brasil é exemplo disso. Uma pesquisa internacional coordenada pelo professor Dominique Reynié e divulgada recentemente mostrou que 73% dos brasileiros concordariam com a ideia de um pouco mais de ordem, mesmo que ao custo de menos liberdade. O segundo maior percentual entre 42 países pesquisados.

É evidente que não se sabe bem de que liberdades estamos falando. Os dados foram colhidos no momento em que o país vinha de uma enorme crise ética, radicalismo político, desemprego nas alturas e em meio à explosão da violência urbana. Parece plausível que exista uma demanda difusa por ordem.

David Brooks se referiu a um fenômeno parecido, na democracia americana, sugerindo que as pessoas estão “exaustas” da confusão e da guerra política. Brooks vê dois campos em guerra. Simplificando, são os eleitores de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, mais jovens e presos às soluções tradicionais da esquerda, e os entusiastas de tipos como Trump, desejosos de um líder forte que restaure valores e ponha ordem na casa.

Ambos alimentam uma leitura alarmista do mundo atual, tendem a apoiar programas irrealistas e possuem um vezo autoritário. Estão muito convencidos de que são os missionários do lado certo e esquecem que a democracia é basicamente um modo frágil de “resolver diferenças com pessoas de quem discordamos”.

O pulo do gato é a ideia de que esses dois campos radicalizados formam uma minoria na grande sociedade, mas são amplamente dominantes no debate público. Haveria uma imensa maioria relativamente silenciosa e exausta do bate-boca político e da sensação de permanente instabilidade e paralisia, que surge daí.

Há muitas evidências nessa direção. Se é verdade, como mostrou o Pew Research Center, que a distância entre as posições ideológicas dos grandes partidos americanos mais do que dobrou desde os anos 1990, também é verdade que se trata de um debate comandado por tribos entrincheiradas no universo das mídias sociais.

Para essas pessoas, a política se tornou um tipo de entretenimento. Pensava nisso quando relia Ortega y Gasset e sua tese cruelmente atual sobre a “rebelião das massas”. A inédita erupção da multidão na cena pública. O homem-massa avesso ao comedimento, dono de uma autoconfiança vulgar, que fala sobre tudo “cego e surdo como é, impondo as suas opiniões”.

Ortega y Gasset escreveu essas coisas nos anos 1920. Diria que vivemos hoje uma segunda rebelião das massas. A primeira levou, nos extremos, à barbárie. O destino da atual é incerto. O homem comum dispõe, agora, de um poder muito maior de fazer barulho. E novamente a democracia liberal se vê desafiada.

Diferentemente de Pondé, tendo a cultivar um sereno otimismo iluminista. O tempo e o senso do ridículo irão esvaziar a fúria inútil das tribos digitais e voltaremos logo adiante a prestar atenção ao que diz a jovem empreendedora chinesa que meu amigo encontrou em Pequim.

Ela ecoa, à distância, a maioria silenciosa imaginada por Brooks, que deseja apenas um pouco de ordem e previsibilidade para tocar a vida. Prestar atenção em sua exaustão é o melhor caminho para que muita gente não venha a se cansar, ali adiante, da própria democracia.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Ruy Castro: Esquerdireita

Lula e Bolsonaro fizeram de esquerda e direita uma coisa só

É uma sensação inédita, a de acordar em 2020 e descobrir que, por uma insólita química, esquerda e direita se tornaram uma coisa só. O símbolo dessa simbiose é Eduardo Fauzi Richard Cerquise, ativista integralista, correligionário de Jair Bolsonaro no PSL e terrorista que, há duas semanas, atirou a bomba na produtora do grupo Porta dos Fundos. Na ficha de Cerquise, consta ter sido preso como black bloc nas manifestações de 2013 e defendido pela infame Sininho, militante próxima do deputado Marcelo Freixo, do PSOL. E que, para escapar à nova prisão, fugiu para onde? Para a Rússia. Mudou o Natal ou mudaram Cerquise, Sininho, Freixo e a Rússia?

Essa redução ideológica tem raízes. Começou quando Lula conseguiu empurrar toda a esquerda brasileira que não ele para a direita, fazendo de si próprio um dogma político-religioso e eliminando até possíveis sucessores —ou alguém os enxerga nos boulos, dilmas e haddads? Bolsonaro faz agora o mesmo com a direita —empurra-a para a esquerda, de modo que só reste ele como opção em 2022. Para não haver dúvida, dedica-se, desde que se sentou na cadeira, a desmoralizar seu único aliado ainda ameaçador, o ex-sergiomoro Sergio Moro.

Lula e Bolsonaro temem os meios tons. A hipótese de matizes intermediários —socialistas, trabalhistas, social-democratas, conservadores esclarecidos e liberais em geral—, capazes de gerir o Brasil, é veneno para as aspirações deles. Para permanecer no jogo, precisam polarizar o país e reduzi-lo à mesquinhez dos personalismos que representam.

A ideia de que Lula e Bolsonaro se tornaram a mesma pessoa, só que com sinal trocado, ofende os partidários de um e de outro. Para os bolsonaristas, Lula fu com o país. Para os lulistas, é o que Bolsonaro está fazendo na sua vez.

Para os que não se enquadram em nenhuma das categorias, e que talvez sejam 60% da população, os dois lados têm razão.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Bruno Boghossian: Bolsonaro toma decisões sem base técnica e governa por improviso

Bagunça é produto de um grupo que não mede consequências de atos e declarações

Jair Bolsonaro reforçou sua vocação para o improviso na inauguração deste segundo ano de governo. Da crise do Irã ao debate sobre a energia solar, o presidente mostrou que sua especialidade é mesmo criar confusão e tomar decisões sem base técnica ou cálculo de riscos.

Bastou uma conversa de meia hora com um lobista para que o presidente passasse a atacar o plano de sua própria equipe econômica para reduzir subsídios na produção de energia solar. Bolsonaro ignorou dados do governo e passou três dias recitando apenas a cartilha repassada pelos empresários do setor.

Alguém poderia imaginar que o presidente havia sido acometido por um surto ambientalista na virada do ano, passando a advogar fervorosamente pela geração de energia limpa. Mas era só demagogia.

Bolsonaro desprezou os argumentos de que esses incentivos são pagos por todos os contribuintes e, em muitos casos, acabam beneficiando mais usuários ricos do que pobres. No fim, em vez de ouvir os conselheiros do governo, ameaçou demitir quem falar sobre o assunto.

Jogando para a plateia, o presidente também provou que não sabe o que fazer para amenizar pressões sobre os preços dos combustíveis. Bolsonaro lançou a ideia de reduzir impostos estaduais, mas nem sequer consultou os governadores, que se recusam a abrir mão de receitas em tempos de cofres vazios.

O time do presidente age como se fosse possível governar por tentativa e erro. O Itamaraty contratou um incômodo desnecessário com o Irã ao demonstrar toda a sua subserviência aos EUA no duelo entre os dois países. O tom da chancelaria brasileira irritou alguns militares, preocupados com os efeitos sobre o comércio exterior e a segurança nacional.

A balbúrdia é o produto de um governo que não mede as consequências de seus atos e declarações. Bolsonaro pode tentar mascarar essa incompetência com tinturas ideológicas ou apelos populistas, mas o presidente não é mais um novato. A bagunça cobrará seu preço.


Igor Gielow: Bolsonaro imita Tony Blair e insiste em ser o 'poodle de Trump'

No caso do Irã, alinhamento imediato ao americano é novamente alvo de resistência

Nos primeiros de seus dez anos como primeiro-ministro britânico, Tony Blair era o xodó da centro-esquerda mundial. Expoente da tal Terceira Via, personificava um novo político, gente boa, nem tão socialista, nem tão conservador.

Apesar do oba-oba e de sua inconsistência, no poder Blair deixou algum legado, como o acordo de paz na Irlanda do Norte. Em 2007, ao renunciar, carregava contudo o epíteto de poodle de George W. Bush.

A imagem de cachorrinho dócil do presidente americano decorria de seu apoio automático à guerra ilegal que derrubou o desprezível Saddam Hussein no Iraque, em 2003.

Tal subserviência foi o erro central de seu mandato, punido por um eleitorado que soube identificá-lo como tal.

Jair Bolsonaro tem se esforçado para macaquear Blair com seu amor, “hétero, claro”, por Donald Trump. Quando se considera que o atual líder republicano dos EUA faz a gestão Bush parecer racional, temos a noção do buraco em que o Brasil está metido na área.

Assim, não foi com surpresa que se viu o Itamaraty emitir uma nota endossando o assassinato do general Qassim Suleimani pelos americanos.

Qualquer um pode julgar o sangue nas mãos do militar iraniano, farto, mas isso precisa ser feito com mais responsabilidade se envolve relações internacionais que não dizem respeito a seus interesses diretos.

Na dúvida, vale a máxima do “Dicionário Oxford de Política”: “Aquele que é terrorista para um é guerreiro da liberdade para outro”. É hipócrita? Sim, mas faz parte do equilíbrio desejável na prática política.

A nota é exemplar do comportamento da hidra da área externa, que tem o chanceler, um filho do presidente e um assessor obscuro como cabeças coroadas por um fanático radicado numa fazenda.

A depender deles, o Brasil teria participado de uma intervenção militar na Venezuela, mudado a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém e aberto uma base americana por aqui.

Todas ideias que têm Trump como fiador. Em troca, nada de palpável e uma série de pequenas humilhações. Felizmente, em todos os casos houve instâncias racionais a sussurrar nos ouvidos presidenciais.

Aparentemente, o mesmo se dá agora, com a modulação retórica sugerida por militares que sabem o quão “soft” são os “targets” brasileiros e pelo agronegócio. O Irã é, afinal, o quarto maior comprador do setor que a cada dia se vê menos representado pelo presidente que ajudou a eleger.

Bolsonaro conta com a indiferença popular a temas externos para continuar sendo o poodle tropicalizado de Trump. O padrão terá mais três anos para ser testado, num mundo cada dia mais perigoso.


Ranier Bragon: Salomões de botequim

Há coisas que não permitem caminho ao centro, mas uma enfática tomada de posição

Cresce no Brasil o discurso fantasioso em defesa de um centro político ponderado, sereno, conciliador, como forma de aplacar a terrível polarização ideológica entre direita e esquerda.

Entrevistas, artigos e debates pululam aqui e ali em apelo à temperança na vida pública. Tudo muito lindo, salvo alguns inconvenientes.

O primeiro é que a ideia se estrutura sobre uma premissa falsa. Bolsonarismo e petismo são adversários políticos, não polos no campo ideológico tendo ao centro o tal espaço a ser ocupado pelos salomões de botequim. O bolsonarismo de sinal trocado pressupõe um movimento igualmente autoritário, mas estatizante, antirreligioso, operário, socializante. O PT tem muitos integrantes que pensam assim, mas, a não ser na idiotia olavista, não há notícia de que tenha patrocinado uma experiência bolchevique de 2003 a 2016.

Mesmo que a premissa fosse verdadeira, a cantilena conciliatória embute condescendência com o inaceitável. É uma analogia para lá de surrada, deve já haver leis que a proíbam, mas como não lembrar do receituário Chamberlain-Halifax para lidar com Adolf Hitler?

Há certo tipo de coisa que não permite caminho ao centro, mas, sim, uma enfática tomada de posição. Qual será o ponto de convergência para a defesa da ditadura, por exemplo? Fechar a Câmara ou o Senado? Para que duas casas legislativas, não é mesmo? E para a tortura? Espancamento humanizado? Homofobia pode ter um meio termo? Pastor pode disseminar ódio aos gays em nome da liberdade religiosa?

Outra característica do movimento coluna do meio é a extensa fauna e flora de velhos políticos que tenta se vestir de cordeirinho de centro como forma de sobrevivência política.

Muito mais do que um centro, de um emcimadomurismo, o país precisa é de um norte. E, qualquer que seja ele, com coragem para combater de forma incondicional ideias e ações antidemocráticas, anti-humanistas e obscurantistas.


Ruy Castro: A Bolha entre nós

Um organismo sem olhos, estômago ou cérebro. Onde você já viu um parecido?

Um amigo me mandou um artigo sobre um organismo até há pouco desconhecido e que vem intrigando a ciência. É o “Physarum polycephalum”, um primo em segundo grau das amebas e cujo nome, para quem matou aquela aula de latim, significa “mofo de muitas cabeças”. A classificação é instigante, mas enganadora. Não se trata de um fungo, nem animal ou planta, embora às vezes lembre um ou outro. E, mesmo já definido como inofensivo, está sendo chamado de A Bolha, numa referência a um filme Z de 1958, “A Bolha Assassina”, com o ainda anônimo Steve McQueen.

A Bolha —o organismo, não o filme— tem como habitat lugares úmidos e meio pantanosos, onde haja decomposição de cascas e folhas de árvores. É do que se compõe sua dieta, mas ela não se queixa. Algo dentro dela lhe ensina a descobrir esse alimento e se mover na direção dele, à razão de um centímetro por hora —velocidade quase olímpica, considerando-se que A Bolha não tem olhos, estômago e muito menos cérebro.

Mas tem outras características. Quando se aproxima de uma colega, por exemplo, dá-se uma espécie de fusão e o “conhecimento” de uma passa para a outra. Como A Bolha não tem cérebro, isso acontece de maneira acrítica —uma herda tudo que a outra “sabe” e sai repetindo pelo brejo como uma bobalhona, sem pensar e sem discutir. E, ah, sim, A Bolha tem nada menos que 720 opções sexuais para se reproduzir, o que a torna uma das maiores enciclopédias desse assunto na natureza.

No nosso próprio brejo, temos um equivalente aproximado desses organismos. São os seguidores de Bolsonaro. Eles também parecem não ter olhos, estômago ou cérebro, considerando-se as informações de que se alimentam e que saem repetindo acrítica e abobalhadamente, cegos para os fatos que insistem em desmentir as versões.

Só diferem nas 720 opções sexuais. Eles também as têm, mas não assumem.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.