Folha de S. Paulo

Yascha Mounk: Quanto mais tempo líderes populistas permanecem no poder, mais radicais se tornam

Na Índia, Modi causou mais danos nos primeiros meses de seu 2º mandato do que nos 5 anos anteriores

Quando passei um mês numa viagem de pesquisas na Índia, em dezembro de 2014, meio ano após a chegada ao poder de Narendra Modi, os escritores, acadêmicos e intelectuais que encontrei estavam mergulhados numa grande discussão sobre o futuro de seu país.

Todos rejeitavam Modi, nacionalista hindu fervoroso, devido ao seu desdém pela Constituição secular indiana. Mas estavam divididos quanto ao impacto que seu governo provavelmente teria sobre as liberdades fundamentais que eles desfrutavam.

Alguns temiam que Modi pudesse avançar rapidamente para sufocar qualquer dissensão. Outros faziam pouco-caso desses receios, que consideravam exagerados.

Modi causou danos consideráveis em seus cinco primeiros anos no poder, enfraquecendo tanto as liberdades desfrutadas por seus críticos quanto as minorias religiosas do país. Mas o pior ainda estava por vir.

Quando Modi foi eleito com maioria ainda mais expressiva na primavera do ano passado, seu governo começou a tomar iniciativas radicais para desmontar o secularismo da Constituição indiana; pode-se argumentar que ele causou mais danos nos primeiros meses de seu segundo mandato do que havia feito nos cinco anos anteriores. Algumas das preocupações levantadas sobre Modi que pareceram exageradas ao término de seu primeiro mandato agora começam a revelar-se prescientes.

Um grande movimento de protesto tomou forma nas últimas semanas para se opor a essas medidas radicais. Em cidades e universidades de todo o país, cidadãos de todas as religiões vêm protestando contra o governo de Modi. Sua reação tem sido brutal: em alguns estados o governo evocou estatutos da era colonial para proibir reuniões com mais de cinco pessoas. Outros estados fecharam o acesso à internet. Vídeos brutais mostram policiais agredindo estudantes suspeitos de ter protestado contra o governo.

Muitos observadores da Índia se surpreendem pelo fato de Modi ter ficado tão mais extremo em seu segundo mandato. Mas uma comparação traçada com governos populistas em todo o mundo sugere que a Índia está seguindo um roteiro previsível do que fazem candidatos a líderes autoritários quando são reeleitos.

Como já vimos em países que incluem a Hungria, Turquia e Venezuela, inicialmente os líderes populistas são limitados em sua capacidade de concentrar o poder nas próprias mãos. Muitas instituições essenciais, incluindo os tribunais e as comissões eleitorais, ainda estão dominados por profissionais de mente independente e que não devem sua nomeação ao novo regime. Veículos de imprensa ainda conseguem e se dispõem a noticiar escândalos, forçando o governo a agir com alguma cautela.

A partir do momento que esses governos são reeleitos, essas limitações à sua ação começam a desaparecer. Com a saída dos juízes e servidores públicos de pensamento independente, os líderes populistas se sentem fortalecidos para tentar concretizar seus sonhos despóticos.

Trata-se de um aviso para os Estados Unidos. Em seu primeiro mandato como presidente, Donald Trump causou prejuízos graves ao estado de direito. Mesmo assim, algumas das previsões mais extremas traçadas sobre seu governo mostraram-se infundadas até agora. Por exemplo, o aviso lançado por Madeleine Albright sobre fascismo iminente mostrou ser excessivamente dramático.

Talvez seja por isso que o medo e o repúdio que impeliram protestos tão grandes nos primeiros meses de 2017 pareçam ter se dissipado. Muitos americanos hoje supõem que a reeleição de Trump trará nada pior do que mais quatro anos do que estamos vendo até agora —terrível, sem dúvida, mas hoje um terrível que já conseguimos imaginar.

Mas o que vem acontecendo na Índia e Polônia deveria chocar os americanos, arrancando-os da complacência. O primeiro mandato de Trump é na melhor das hipóteses um indicativo imperfeito dos horrores que podem estar à espreita dos americanos se ele conseguir conquistar um segundo mandato.

Isto também é um aviso ao Brasil. Com Jair Bolsonaro agora no poder há pouco mais de um ano, é tentador supor que os acontecimentos dos últimos 12 meses constituem um indício confiável do que ainda vem pela frente. Mas a trajetória de outros líderes populistas sugere que supor isso seria um erro grave: quanto mais tempo líderes populistas permanecem no poder, mais radicais e perigosos eles se tornam.

*Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".

Tradução de Clara Allain


Vinicius Torres Freire: Sobrevida do governo Bolsonaro depende de arrochão de gasto em 2020

Sem aprovar emenda de talho emergencial de gastos, governo balança em 2021

A sobrevida política de Jair Bolsonaro depende de pelo menos uma votação no Congresso neste 2020. Trata-se da emenda constitucional que permite o arrochão do gasto com servidores federais, entre outras contenções de despesas obrigatórias, uma guerra política em potencial.

O talho de gastos começaria ainda neste ano, como previsto na emenda constitucional que foi ao Congresso em novembro passado, a “PEC Emergencial”, ora esquecida depois da ressaquinha da Previdência e do pilequinho da ideia do PIB “bombando na nova era”.

O arrochão é quase tão importante para a sobrevivência econômica do governo quanto a reforma da Previdência em 2019. Dado que não haverá aumento relevante de imposto, se algum, sem esse arrochão o gasto do governo vai bater no teto constitucional em 2021. Haveria então tumulto, da quase paralisação da máquina federal a alguma balbúrdia no mercado financeiro.

Sim, na hipótese de a economia e a receita crescerem 4% neste 2020 e no ano seguinte, o problema seria adiado. Mas fantasia grande é coisa de Carnaval.

Em seu primeiro relatório do ano, a Instituição Fiscal Independente (IFI) refresca a memória do tamanho crítico da pindaíba. A IFI é um órgão de análise das contas públicas, ligado ao Senado.

A dívida bruta do governo deve ter parado de crescer em 2019, perto de 77% ou 78% do PIB, mas graças a medidas e receitas extraordinárias. Para que não volte a crescer sem limite, ainda será preciso arrumar dinheiros extraordinários, além de contenções de despesas e aumentos de receitas regulares, duradouros.

A dívida parou de crescer porque: 1) o governo fez o BNDES pagar o que devia; 2) os juros baixaram; 3) o déficit diminuiu um pouco; 4) se venderam reservas em dólar.

Para que permaneça controlada, embora em nível alto, seria preciso: 1) fazer o BNDES pagar logo o resto do que deve; 2) aprovar o arrochão; 3) o governo mandar lei que reduza os benefícios tributários (reduções de impostos, grosso modo, para empresas e famílias, como desconto de saúde e educação no IR), prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias, coisa de R$ 35 bilhões por ano; 4) fazer muita privatização, o que não fez até agora; 5) talvez aumentar imposto.

Sim, a situação continua muito crítica, e as soluções para o problema são muito graves. O gasto discricionário (operação do governo e investimentos) cairá neste ano a níveis críticos, quase de paralisia. A gente não nota, distraída demais pelo disparate presidencial diário nas saidinhas do Alvorada.

O arrochão seria acionado sempre que o governo estivesse fazendo dívida em valor maior do que a despesa de investimento, acumulados em 12 meses; duraria por dois anos. Essa já é a situação do governo, faz tempo. Assim, aprovada a PEC, o arrochão entraria logo em vigor.

Ainda que as taxas de juros da dívida pública fiquem em nível historicamente baixo, em algum momento elas subirão (2021?). Ainda que a dívida pública se estabilize, seu nível é alto. Qualquer chacoalhada na economia, com queda de receita, do PIB e alta de juros, o endividamento voltaria a explodir.

Pelo menos essa é sabedoria econômica convencional. Goste-se ou não, para todos os efeitos práticos é a conversa dominante dentro e fora do governo. De resto, as alternativas na praça são malucas ou programas ainda mal explicados em números.

Logo, a conversa político-econômica de 2020 é o arrochão, ano dois, e seus efeitos sociais e político-partidários.


Bruno Boghossian: Em surto de estupidez, Bolsonaro se recusa a prestar contas ao país

Presidente tenta intimidar imprensa, mas jornais não são a única vítima desses ataques

Jair Bolsonaro sabia que seu secretário de Comunicação tinha negócios com empresas contratadas pelo governo? Vai pedir os nomes dos clientes de seu auxiliar para avaliar o caso? Enxerga o óbvio conflito de interesses no episódio? O presidente acha que os cidadãos não merecem essas explicações.

Numa jornada de evidente desequilíbrio, Bolsonaro tentou intimidar quem perguntava sobre o assunto. Disse a uma repórter da Folha que calasse a boca, deu berros durante uma cerimônia no Palácio do Planalto e lançou a outro jornalista uma provocação das mais apalermadas: “Tá falando da tua mãe?”.

Já se sabe que o presidente não acredita na liberdade de imprensa, mas o surto de estupidez mostra também que Bolsonaro se recusa a prestar contas ao país e esclarecer questões que o incomodam.

Pelo segundo dia seguido, ele foi incapaz de produzir uma justificativa para o fato de que Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação, gerencia contratos públicos com empresas que são suas clientes na iniciativa privada.

Bolsonaro mentiu, tentou mudar de assunto e fugiu de dar entrevistas sobre o tema. Numa explosão de sinceridade ao fim de um discurso no Planalto, confessou aos jornalistas seu desejo, aos gritos: “Deixem o nosso governo em paz!”. Foi aplaudido pela plateia de aduladores.

Ávido por uma imprensa subserviente, ele se queixou de que os jornais não publicaram “nenhuma linha” sobre vitórias do governo, como o apoio dado pelos americanos à entrada do Brasil na OCDE. O presidente sabe que isso não é verdade, já que seus próprios auxiliares deram entrevistas sobre o caso.

Bolsonaro jamais aceitará que a imprensa tem o papel de levantar informações de interesse público.

Goste ou não do que é revelado, ele deve à população transparência completa sobre esses fatos. Quando ataca repórteres, o presidente busca uma blindagem contra esses questionamentos. Engana-se quem pensa que os jornais são as únicas vítimas.


Bruno Boghossian: Caso da Secom mostra que vícios privados são parte da rotina do governo

Bolsonaro foge de explicações e dá guarida a episódio típico de conflito de interesses

Alguém deve ter entendido mal quando os liberais de conveniência da equipe de Jair Bolsonaro passaram a incentivar parcerias entre empresas e o poder público. Dentro do Palácio do Planalto, vícios privados já fazem parte da rotina.

Os repórteres Fábio Fabrini e Julio Wiziack revelaram que o chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência tem uma empresa que recebe dinheiro de emissoras e agências de publicidade que faturam milhões com a pasta comandada por ele.

Em outras palavras: quando assumiu o cargo, em abril, Fabio Wajngarten passou a ser o cara que assina contratos que rendem fortunas para seus próprios clientes. Ele se recusou a fazer o óbvio e romper relações comerciais entre sua empresa e os fregueses interessados na dinheirama que passou a controlar.

Seria difícil inventar um caso mais típico de conflito de interesses. Agentes públicos devem se manter afastados de transações privadas porque cabe a eles zelar pela coisa pública com rigor absoluto. Mesmo que o secretário não tenha favorecido essas empresas, seu vínculo com elas deixa brechas para questionamentos.

Wajngarten afirma que se afastou da administração da empresa. O problema é que ele continua lucrando com seus negócios. Para piorar, dois clientes antigos da firma são Record e Band, emissoras que tiveram um salto no faturamento publicitário com o governo depois que Bolsonaro assumiu o poder.

Diante de uma incompatibilidade tão evidente, o governo recorreu a sua arma mais comum, o ataque à imprensa. Afirmou que a Folha faz mau jornalismo, provavelmente por ter revelado uma relação que o presidente preferiria manter oculta.

Bolsonaro fugiu de uma entrevista coletiva quando ouviu uma pergunta sobre o tema. Na prática, deu guarida ao auxiliar. Já o ministro Luiz Ramos (Secretaria de Governo) disse que aquela era uma maldade contra Wajngarten. Ninguém explicou como um homem público pode ganhar dinheiro de empresas que são pagas com recursos do contribuinte.


Bruno Boghossian: Bolsonaro dá cores ideológicas a discussão sobre salário mínimo

Presidente tem crise de identidade e contamina decisão técnica com viés político

O presidente acordou em crise de identidade. Logo pela manhã, Jair Bolsonaro disse no Palácio da Alvorada que encontraria uma brecha para corrigir o salário mínimo pela inflação, para R$ 1.045. Minutos depois, saiu às redes sociais com uma crítica velada ao assunto.

"O nosso salário mínimo é pouco para quem recebe e muito para quem paga. Uma eterna discussão entre direitos e deveres", escreveu. Depois, emendou um ataque à esquerda e à Venezuela, que anunciou um aumento de 67% esta semana.

Bolsonaro conseguiu pintar mais uma medida burocrática com uma tintura ideológica desnecessária.

O governo só precisava definir se ajustaria o salário mínimo em R$ 6 para compensar o pico de inflação provocado pela disparada no preço da carne no fim do ano passado. Agiu, porém, como se aquela decisão estivesse necessariamente contaminada pela agenda da esquerda.

O presidente tentou renovar suas juras de fidelidade à agenda liberal. Ao apontar limitações na política de aumento do mínimo, Bolsonaro se agarrou mais uma vez a essa bandeira para fazer um aceno a seus apoiadores no mercado financeiro.

No fim da tarde, o governo finalmente confirmou o reajuste. O presidente participou da reunião em que o martelo foi batido e fez questão de dar a notícia aos jornalistas.

Bolsonaro não demorou a perceber que aquele seria um ganho político razoável, com custo financeiro reduzido. O peso do aumento será de apenas R$ 2,13 bilhões, ao passo que o prejuízo político de um veto a essa reposição seria desastroso para um presidente já marcado pela indiferença com questões sociais.

Depois de três décadas de vida política, ainda faltam a Bolsonaro os mais singelos fragmentos de sensibilidade nessa área. Em discursos na Câmara, o então deputado só falava de salário mínimo para defender mudanças na remuneração dos militares. Ao tomar posse como presidente, omitiu em um de seus pronunciamentos a única menção que havia no texto à redução da desigualdade.


Vinicius Torres Freire: Empresários estão animados com 2020, mesmo sem melhora maior e real

Gente de empresa e finança está animada com 2020, mas ainda espera melhora concreta

Gente graúda de empresas e finança parece animada com o governo de Jair Bolsonaro em 2020, a julgar por uma rodada de conversas e por declarações dispersas pelos jornais. Não é pesquisa, é “evidência anedótica”, mas a diferença de tom é notável em relação a meados do ano que passou e mesmo aos humores já melhorados de fins de 2019, depois de aprovada a reforma da Previdência.

Estão animados com o quê? As respostas sugerem um “bem-estar difuso”, para parafrasear com sinal trocado um clichê das explicações para a meia década de revolta popular, de 2013 a 2018. Falam em “continuidade das reformas”. Quais?

Há vagas menções à reforma tributária, à intenção oficial de talhar gastos com servidores, a privatizações “mais aceleradas”. Mas não há clareza sobre as prioridades do governo. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, é mais citado do que gente do governo como gerente-geral do barco reformista. Quase ninguém sabe dizer o nome de um negociador-geral de Bolsonaro.

Um motivo da desorientação parece ser o vazio do janeiro, a desinformação do recesso político. Outro, maior, é que o governo não parece ter mesmo prioridade além das sabidas.

A pauta econômica será decidida assim que líderes de Câmara e Senado voltarem de férias. O governo não sabe o que fazer da reforma tributária. Na Economia, não quer dizer seus planos, que envolvem a retomada de um imposto sobre transações e reforma em fases. No Planalto, há uma vaga ideia de “chegar a um acordo amplo” com Câmara e Senado, mas, francamente, as pessoas não sabem lá do que estão falando.

O núcleo sabido a pauta bolsonariana é bile paroquial com aparelhamento destrutivo e ideológico nas instituições de relações exteriores, educação, cultura, ciência e ambiente, o negócio habitual do primeiro ano da nova era. A diferença agora é que Bolsonaro terá mais poder e experiência para “quebrar o sistema”.

Quando se trata desses assuntos, certos empresários fazem cara de paisagem ou silêncios constrangidos nas conversas pelo telefone, além das declarações protocolares (“as instituições estão funcionando”). Quanto aos motivos materiais da animação, há menções à desmontagem da CLT, às taxas de juros em baixa recorde e à força do mercado de capitais.

Isto posto, a virada começou? Não propriamente, apesar da “melhora sensível”. Investimentos já estão saindo da gaveta ou o empresário ouviu tal coisa de colegas ou de outros setores? Não propriamente. É preciso “cautela”, “vamos ver o começo do ano, embora as perspectivas pareçam as melhores em muito tempo”. O pessoal da finança graúda parece mais animado que seus colegas de empresa, embora tenham menos simpatias pessoais pelo bolsonarismo.

Gente da indústria mais tradicional (têxtil, roupas, tecidos e mesmo comida, além do pessoal de máquinas) parece mesmo desanimada. Outros parecem escaldados pelo chabu da retomada em 2017, 2018 e 2019. Ainda assim, ressalte-se, o pessoal parece animado com as perspectivas de 2020. Animam-se também com aquilo que, de um modo ou de outro, dizem ser a estabilização política, embora o governo precise “investir mais na pauta da tranquilidade”.

Trocando em miúdos as observações impressionistas, trata-se em geral do seguinte: 1) governo e Congresso teriam chegado a algum modelo de convivência; 2) a “interlocução” dos congressistas com empresários seria “muito boa”; 3) não há oposição capaz de abalar esse esquema e há paz política “nas ruas”.


Elio Gaspari: A quitanda do INSS entrou em pane

Essas coisas só acontecem com gente do andar de baixo

Os çábios da ekipekonômica desprezaram o conselho do professor Delfim Netto para o bom funcionamento do governo: “Todo dia você tem que abrir a quitanda de manhã cedo, ter berinjela para vender e troco para a freguesa.” A reforma da Previdência está no mapa há um ano e foi aprovada em novembro. Como a quitanda não tem berinjelas nem troco, pela primeira vez em muitos anos reapareceram as filas na porta de agências do INSS. Estima-se que 1,3 milhão de pessoas estão com seus processos encalhados. Desde 13 de novembro nenhum pedido de aposentadoria foi atendido. O óbvio: essas coisas só acontecem com gente do andar de baixo.

A quitanda encrencou porque os doutores, mestres na arte de ensinar economia e modernidade, não fizeram seu serviço. Até aí, a ekipekonômica apenas conseguiu ressuscitar um velho problema, mas ela superou-se com um blá-blá-blá empolado na forma e empulhativo no conteúdo.

O presidente do INSS, doutor Renato Vieira, disse o seguinte: “A seguir o atual fluxo, a atual produtividade do INSS, que tem demonstrado resultados positivos, sobretudo no último semestre de 2019, nós esperamos que nos próximos seis meses a situação esteja absolutamente regularizada”.

Ganha uma ida a Davos (sem agasalhos) quem souber como um serviço pode ter se tornado mais produtivo se há uma fila de 1,3 milhão de pessoas na porta da quitanda. O doutor Vieira poderia ser submetido à experiência de ter que esperar seis meses por um serviço que deveria ser prestado em 45 dias, abstendo-se de receber seus salários até julho.

O secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, anunciou que os çábios revelariam medidas para reduzir as filas. Tudo bem que passados três meses da aprovação da reforma e três dias do anúncio da formação de uma segunda “força-tarefa” ele não pudesse anunciar o que seria feito. (Quem ouvir falar em “força-tarefa”, “grupo de trabalho” ou “gabinete de crise”, pode ter certeza, lá vem enganação.) As palavras de Marinho, contudo, exemplificam o uso da linguagem para embotar a compreensão:

“Estamos conversando com o ministro e estamos validando as propostas e possibilidades internamente. Estamos trabalhando desde a semana passada, porque envolve orçamento, estrutura organizacional. Precisamos ter essa responsabilidade de buscar respaldo técnico e jurídico.”

“Validando propostas” significa que os doutores ainda não decidiram o que fazer. “Estrutura organizacional” é aquilo que Delfim Netto chama de funcionamento da quitanda, ter berinjela para vender e troco para a freguesa.

Sua secretaria chama fila de “estoque” e ele já chamou a proposta de taxação do seguro-desemprego de “inclusão previdenciária”. Teria toda a razão se o desempregado que busca o dinheirinho do seguro pudesse optar entre a “inclusão” e a preservação da exclusão. Como essa alternativa não existe no seu projeto, o que ele faz é usar adereços verbais da moda para esconder roupa rasgada.


Ranier Bragon: Um Oscar para Eduardo Cunha

Subestimado em 'Democracia em Vertigem', ele merecia salvo-conduto para ir a Los Angeles

Habita Bangu 8 a nossa grande aposta para, enfim, faturar um Oscar. Personagem algo lateral em "Democracia em Vertigem" —concorrente a melhor documentário longa-metragem—, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB) está a merecer o devido crédito.

Com total domínio de cena, ele não só deu aval ao pedido de impeachment de Dilma Rousseff, como pode parecer ao gringo que assista ao documentário, mas conduziu de forma obsessiva todos os preparativos que culminaram na autorização da abertura do processo, em 17 de abril de 2016. Sim, a célebre sessão em que o até então inexpressivo Jair Bolsonaro exaltou um torturador e em que Cunha clamou aos céus por misericórdia à nação.

Daí em diante, não havia como retroceder. Foi jogo jogado. Dilma foi destituída, e Deus não teve misericórdia de ninguém, muito menos de Cunha, que foi parar na prisão, onde está há há mais de três anos.

Além do imerecido papel dado ao ex-deputado, o documentário também tem ingenuidades e alguns delírios esquerdistas, como o de sempre culpar a imprensa pelos males do mundo —quando convém, claro. Ao usar a gravação em que Romero Jucá fala em "estancar a sangria" provocada pela Lava Jato, por exemplo, a diretora Petra Costa narra ter sido "vazado um áudio" que lançou "luz" sobre o que ocorria nas sombras da República. Esqueceu-se apenas de dizer que o áudio foi revelado, olhe só, pela maldita imprensa golpista —no caso, em reportagem de Rubens Valente, nesta Folha.

Apesar disso, "Democracia em Vertigem" tem muita qualidade técnica, registros históricos de bastidor e, talvez o maior mérito, foge da comum armadilha de forjar equilíbrio onde há tudo, menos equilíbrio. A vida não é assim. O filme tem lado, e pode ser o mais condizente com a história toda. Seja como for, a Cunha deveria ser dado um salvo-conduto para ir a Los Angeles, onde poderia repetir as súplicas por misericórdia, agora em prol do mundo. Quem sabe Deus ouvisse dessa vez.


Joel Pinheiro da Fonseca: E o Oscar vai para... o PT

'Democracia em Vertigem' reproduz narrativa petista da história recente

Será que o primeiro Oscar brasileiro irá justamente para o PT? Confesso —como aliás já escrevi por aqui na época do lançamento— que não sou grande fã de “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, documentário que está entre os indicados para o Oscar deste ano.

É uma ilusão acreditar que um documentário seja, por sua própria natureza, uma descrição minimamente objetiva da realidade. A única diferença para com a ficção é que ele cria sua narrativa selecionando documentos (imagens, depoimentos) reais, e não construídos.

O documentário engajado, gênero consagrado por Michael Moore, não esconde sua parcialidade e seleção enviesada dos documentos que apresentará ao público. É o que temos aqui, e é uma pena.

O filme reproduz a narrativa petista da história recente: Lula e o PT chegaram ao poder e melhoraram a vida dos brasileiros mais pobres ao mesmo tempo que enfrentaram os interesses das elites. Infelizmente, no exercício do poder o PT se aliou à velha política brasileira, serva das elites, e acabou sendo derrubado por ela.

Em nenhum momento o documentário encara de frente dois problemas fatais para sua narrativa: o primeiro é a política econômica dos anos Dilma, que produziram a recessão da qual ainda não nos recuperamos.

A década de 2010-2019 foi a de pior crescimento desde 1900. Esse desastre legou ao país 13 milhões de desempregados, ao mesmo tempo em que a política econômica enchia os bolsos de grandes empresários, como os donos da construtora Andrade Gutierrez, família de Petra.

O segundo é uma discussão do mérito dos crimes de responsabilidade dos quais Dilma foi acusada, que revelaria pedaladas fiscais e liberação de créditos sem aval do Congresso bilionárias.

Mais do que uma grande conspiração envolvendo mídia e elites —o mesmo discurso usado por Bolsonaro hoje em dia—, esses dois fatores explicam o porquê da força política do impeachment (não só junto à classe política, mas também à opinião pública) e sua legitimidade formal.

A narração do documentário é feita pela própria diretora num tom de voz lamurioso, que reforça o vitimismo da histórica contada: o PT como pobre vítima de um sistema corrupto dirigido pelas elites.

Um documentário mais imparcial contaria uma história diferente: o PT, que ascendeu ao poder já com escândalos de corrupção às costas, implementou sim programas sociais importantes, ao mesmo tempo em que beneficiou aliados políticos e empresariais escolhidos politicamente para sustentá-lo no poder.

Na medida em que sacrificou as conquistas econômicas que recebeu do governo FHC (responsabilidade fiscal, metas de inflação) e apostou no crescimento via consumo e gasto do governo, minou as bases de um crescimento sustentável no país. O aparelhamento institucional e os esquemas de corrupção para financiar a máquina partidária, quando descobertos, selaram seu destino.

Tendo feito o que fez, e ainda assim se apresentar como vítima inocente do sistema, o PT sem dúvida merece Oscar de atuação.

Seja como for, o filme tem seus méritos também. O ritmo da narrativa mantém o espectador interessado na história, há imagens bonitas e muito bem escolhidas, e ainda conta com um material de arquivo inédito.

Enquanto filme —à parte a narração chorosa—, funciona. É o bastante para vencer o Oscar? Difícil saber. Mas já que a regra agora é Brasil acima de tudo, aos detratores do filme resta torcer: vai Petra!

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


Leandro Colon: O pobre espera a sua vez no governo Bolsonaro

O combate à pobreza é uma incógnita na Esplanada. Não se sabe qual a estratégia de Bolsonaro

O governo Bolsonaro se preocupa com os mais pobres? Tem políticas públicas para diminuir a miséria? Pensa em medidas para reduzir a desigualdade social?

Passado um ano de gestão, a única certeza é que, até agora, o Palácio do Planalto não contou o que quer e pretende fazer. O combate à pobreza é uma incógnita na Esplanada.

O presidente Jair Bolsonaro gastou, nos seus primeiros 12 meses, tempo com bobagens ideológicas nas redes sociais e vocabulário para atacar adversários e jornalistas.

A economia, de fato, deu passos (ainda que curtos) de retomada. No entanto, pouco se sabe qual a estratégia para aqueles que mais precisam de dinheiro e comida na mesa.

Bolsonaro não quer vincular seu governo de direita aos programas sociais da era petista, de esquerda, mas ele não apresenta alternativas. Como mostrou a Folha recentemente, os projetos estão empacados.

Contribuem para essa explícita falta de rumo as divergências entre as alas política e econômica do governo.

O Bolsa Família, principal bandeira social dos períodos de Lula e Dilma, é o maior exemplo. O programa de renda atinge sobretudo Norte e Nordeste, regiões em que Bolsonaro não esbanja popularidade.

O Planalto teve que se virar nos 30 para pagar a 13ª parcela prometida em campanha eleitoral. Tirou recursos das aposentadorias e pensões para tapar o buraco e evitar que as pessoas mais necessitadas ficassem sem o dinheiro no fim do ano.

Ao mesmo tempo, tenta arrancar do papel o que diz ser a reformulação do Bolsa Família. E aí surge outro problema. Uma ideia seria focar em aumento para os brasileiros em situação de extrema pobreza, que representam dois terços dos 13 milhões de famílias que hoje são atendidas.

Apoiado pelo núcleo político, o novo programa pode custar mais R$ 16 bilhões aos cofres públicos. A equipe econômica, sob a batuta do ministro Paulo Guedes, resiste ao plano.

Não está claro quando (e se) o governo vai anunciar as mudanças. E o pobre continua esperando a sua vez.


Celso Rocha de Barros: Nascido como 'zuero', radicalismo de Bolsonaro chega à censura

Estratégia importada finge ironia enquanto promove extremismo

No começo eram perfis de internet pró-Bolsonaro com nomes como "Bolsonaro zuero" e "Bolsonaro opressor". A ideia era que o radicalismo bolsonarista era "zuero", uma piada politicamente incorreta para, como dizem os trumpistas, "own the libs", sacanear a esquerda. A apologia a Brilhante Ustra não era fascismo, diziam, era provocação de um espírito "contrarian".

Termos como "opressor" passaram a ser usados como autodescrições que empoderavam os direitistas porque os libertavam da "ditadura do politicamente correto", a única ditadura de que os bolsonaristas não gostam, certamente por ser imaginária.

Essa estratégia nasceu na direita radical americana, e sua importação para o Brasil sempre foi problemática. A direita brasileira acusava a esquerda de ser um bando de perigosos guerrilheiros das Farcs colombianas. Como dizer isso e, ao mesmo tempo, dizer que a esquerda era também um bando de "snowflakes" cirandeiros preocupados com seus "safe spaces", como a direita americana chama seus adversários de esquerda na universidade? Uma das poucas críticas que não se podia fazer aos stalinistas, afinal, é que eles fossem excessivamente sensíveis e respeitadores das diferenças.

Mas nos dois casos houve uma tentativa de constituir o conservadorismo como contracultura, de dar à defesa dos valores tradicionais o charme da contestação de esquerda dos anos sessenta. O historiador Gabriel Trigueiro já notou repetidas vezes em seus artigos que a nova direita se apresenta como revolucionária. Me assusta que alguém acredite que os ricos e os militares eram oprimidos pelo coitado do gay lá da ONG, mas, enfim.

Começou com "Bolsonaro opressor" irônico e terminou com Bolsonaro opressor literal, com o clima político em que o Porta dos Fundos sofre atentado terrorista, o governo brasileiro não condena o ato, e um desembargador se vê no direito de censurar os humoristas. Não era "zuera".

Essa estratégia de fingir ironia enquanto se promove extremismo também é importada. Segundo matéria da revista norte-americana The Atlantic de dezembro de 2017, o extremista Andrew Anglin, que mantinha o site neonazista The Daily Stormer, descrevia sua abordagem como "nazismo não irônico mascarado de nazismo irônico". Há uma versão dessa estratégia na esquerda radical que é dizer "Stalin matou foi pouco" como piada.

Note que não é o debate sobre "limites do humor". Se o cara quiser assumir "opressor" como rótulo para provocar nas redes sociais, eu acho idiota, mas vá em frente, filho, não sou sua mãe. Só não dê o passo seguinte apoiando o fascismo de verdade na disputa pelo poder de verdade. No momento, o autor do perfil "Bolsonaro Zuero" é assessor do Palácio do Planalto, acusado de fazer parte do chamado "gabinete do ódio".

O debate é sobre tratar a política nos termos do humor, como fez o bolsonarismo da internet, para terminar censurando humoristas. Tentar tratar a política na lógica do humor, ou da religião, ou da filosofia marxista da história, sempre dá errado. Sempre termina com a política no comando, porque a política nunca perde jogo em casa. No fim de todos esses exercícios, só o que costuma cair são os poucos limites que a civilidade havia conseguido impor ao exercício do poder.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Vinicius Torres Freire: Amigos de Bolsonaro fazem festa demais no país do bife de ouro e da fábrica parada

Gente do mercado faz bullying contra quem observa os poréns

Ainda não há inflação, no sentido de alta persistente ou generalizada de preços, apesar do salto do IPCA no fim de 2019. Mas os preços da vaca, do frango, do feijão ou do ovo assustam o brasileiro comum, o habitante deste país em que a renda média do trabalho é de uns R$ 2.000, sempre convém lembrar.

A inflação da comida (“alimentação no domicílio”) voltou para perto de uns 8% ao ano, nível em que passa a incomodar o brasileiro médio de modo notável, com algum efeito político, a julgar por pesquisas de opinião. Não há inflação, pois, mas a vida é dura.

A produção da indústria decresceu 1,3% nos 12 meses contados até novembro, dado mais recente, divulgado na semana que passou. É um decréscimo regular desde meados de 2019, apesar das palmas para uma suposta recuperação industrial, festinha que se via fazia uns meses entre gente da finança e seus porta-vozes.

Os indícios do crescimento no fim do ano passado são de convalescença, de lenta recuperação. Como já se escreveu aqui tantas vezes, as condições para alguma recuperação são agora as melhores desde 2014. No entanto, trata-se de coisa ainda pouca, e falta muito o que fazer para que a economia se torne mais resistente a recaídas. Gente do mercado financeiro está fazendo uma algazarra juvenil e “bullying” contra quem observa os poréns.

A indústria continua mal pelos mesmos motivos desde janeiro do ano passado. O grosso da recaída na recessão industrial se deve:

a) à desaceleração violenta da produção de veículos, que crescia a 15,5% ao ano em novembro de 2019 e agora se arrasta ao ritmo de 1,4% ao ano. A recessão da Argentina, cliente dos nossos carros e peças, derrubou o que ainda é o centro da produção industrial brasileira;

b) ao desastre assassino da Vale em Brumadinho, que derrubou a indústria extrativa, ora em recessão de mais de 8%. A indústria extrativa e a de veículos têm, cada uma, uns 11% do total da produção industrial, embora o efeito das montadoras no restante da economia seja bem maior.

Há também algum problema ruim, faz pelo menos um ano, na indústria têxtil, de vestuário e móveis; fabricantes de bens de “informática” e eletrônicos também vão mal.

É possível que seja retomada em breve a produção de minérios; que a indústria de carros pelo menos pare de desacelerar. Mas não haverá Carnaval nas fábricas ou alegria maior antes da Semana Santa.

A carestia da comida parece recuar um pouco neste início do ano. Pelo menos, para de subir loucamente o preço do feijão, embora a arroba do boi gordo ainda aumente a 25% ao ano (em dezembro, 36,5%).

E daí?

Esses dados comezinhos da economia da mesa e do chão de fábrica ajudam a temperar de realismo delírios e propagandas sobre o que se passa nessa maçaroca imensa chamada de PIB.

Há gente, em especial de oposição, que acredita fanaticamente em estagnação ou degradação geral e ainda maior de condições de vida. Trata-se de desinformação e de análise errada, que tende a ter consequências políticas graves.

Na propaganda governista, oficial ou colaboracionista, há euforia política e financeiramente interessada.

Há recuperação e condições até para alguma aceleração maior, a depender dos ânimos insondáveis de empresários, das confusões da política mundial e da biruta bolsonariana. Mas ainda estamos lutando morro acima para fazer com que a economia avance meros 2,5%, o que ainda nem nos tira do buraco em que caímos na recessão.