Folha de S. Paulo

Elio Gaspari: Weintraub fez um Enem infernal

O que aconteceu foi inédito: erraram nas notas

É a mesma história, a quitanda abre tarde, sem berinjelas para vender, nem troco para a freguesa. Não bastassem as filas do INSS, o governo conseguiu azucrinar a vida da garotada que fez o exame no Enem e viu-se tungada nas notas. Aos aposentados disseram que fila é “estoque” e atraso é “empoçamento”. Aos estudantes dizem que erro nas notas é “inconsistência” e que o Inep “imediatamente adotou medidas”. A primeira afirmativa é empulhação, a segunda, mentira.

O vestibular sempre foi uma crueldade imposta aos jovens brasileiros. Em duas manhãs eles são obrigados a jogar um ano de vida, bem como suas expectativas pessoais e de seus familiares. Desde 2009 acontecem desgraças nesse exame. Num ano houve o furto de provas na gráfica, em três outros comprovaram-se vazamentos de questões. O que aconteceu com o exame de 2019 foi coisa inédita: erraram nas notas dadas a estudantes e em dois dias foram da onipotência à mistificação.

Aos fatos:

Vitor Brumano, 19 anos, candidato a uma vaga num curso de Engenharia, viu que sua nota não conferia. Tentou se queixar, mas não havia onde. Ligou para um 0800, e a atendente lhe disse que era isso mesmo. Registrou sua reclamação junto à Ouvidoria do Inep e recebeu a seguinte resposta:

“O edital que regulamenta o exame não prevê a possibilidade de recorrer da nota, pois o desempenho do participante na prova objetiva é calculado com base na TRI, a prova do Enem tem 180 questões objetivas. Portanto, a média não é exatamente proporcional à quantidade de acertos porque as perguntas têm grau de dificuldade diferente”. Conversa de educateca.

Vitor criou um grupo no WhatsApp. Começou com sete jovens tungados e em poucos dias teve dois mil comentários.

No sábado, o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, disse que “nós encontramos algumas inconsistências na contabilização da segunda prova do Enem. (...) Um grupo muito pequeno de pessoas teve o gabarito trocado. (...) Estamos falando de 0,1%”. Conta outra, doutor, foram pelo menos seis mil jovens, e nenhum deles seria lesado em 0,1% de seu desempenho mas, em muitos casos, em 100%.

Weintraub sabe o que é ralar como estudante. Em 1989 ele estava no primeiro ano de Economia na USP e tomou quatro zeros. Como ministro, explicou-se: “Foi um inferno. Meus pais se separaram, teve o Plano Collor, minha família desmanchou, eu tive depressão e sofri um acidente horroroso que eu tive que colocar um parafuso no braço.” O inferno do jovem Weintraub derivou de circunstância pessoais. O inferno da garotada do Enem de 2019 derivou da incompetência, agravada pela arrogância de seus educatecas. Se jovens como Vitor Brumano não tivessem botado a boca no mundo e se não existisse o tambor das redes sociais, eles seriam jogados num estoque empoçado de estudantes reclamões.

Jair Bolsonaro e Weintraub sempre trataram o Enem como uma questão ideológica. Que seja, mas como diz o seu nome, é um exame. Quem quiser, pode travar uma guerra cultural em torno dos tipos de berinjelas. Afinal, entre outras, há as italianas e as chinesas (comunistas e globalistas). Acima das ideologias, vale a lei do professor Delfim Netto: A quitanda do governo tem que abrir cedo, com berinjelas para vender e troco para a freguesa.


Vinicius Torres Freire: Burrice autoritária é o pior inimigo do meio ambiente

Economia padrão e ideias liberais tem ideias ambientais ignoradas por Bolsonaro

O crescimento econômico é o pior inimigo do ambiente, insinuou Paulo Guedes em debate em Davos. Na verdade, o ministro da Economia falou que a pobreza, pessoas que "precisam comer", destroem o ambiente, como o fizeram povos que têm outras "preocupações" porque já "destruíram suas florestas" e já lidaram com "suas minorias étnicas" (oi?).

Suponha-se então que o ministro tenha recorrido a uma metonímia (superação da pobreza etc.) para se referir ao fato de que o crescimento esteve associado à destruição da natureza, pelo menos até faz bem pouco tempo.

Que não estivesse se referindo a dano ambiental causado por indivíduos pobres ou ao genocídio de indígenas, o que já foi motivo de elogio de Jair Bolsonaro.

Ainda assim, não dá pé. É verdade que, mesmo no melhor dos mundos, de onde estamos cada vez mais distantes, crescimento provoca dano ambiental, embora cada vez mais o dano ambiental solape a possibilidade de crescimento econômico ou da vida. Além do mais, há alternativas para atenuar ou mesmo eliminar alguns desses problemas.

Para ficar apenas no universo da economia-padrão ou de ideias liberais, há destruição ambiental por falhas de mercado, falhas de coordenação e ineficiências em geral.

O custo de degradar o ambiente em geral não está no preço do produto degradante. Por exemplo, produz-se em excesso um bem que implica poluição porque o custo da degradação não aparece no preço de mercado, mas é pago por alguém não envolvido na transação.

É uma lição de primeiro semestre de curso de economia. Um sistema de preços que não funciona direito é um inimigo da natureza, pois.

Outro clichê: é possível recuperar pastagens degradadas para a agropecuária sem que seja necessário desmatar para plantar ou criar mais. Para que assim seja, é preciso assistência técnica e fazer com que o mercado de crédito funcione (nosso mercado de crédito é disfuncional e concentrado).

Podem ainda ser criados mercados de direitos de poluição, cotas de pesca, de madeira, de reservas florestais etc., o que torna mais eficiente de recursos ambientais.

A falta de método adequado de distribuição ("alocação"), um mecanismo que pode ser até de mercado, faz com que se use água como recurso infinito. A lista de ineficiências é imensa.

A desregulamentação ambiental, por meio da revogação de leis ou na marra, por meio de ocupação e uso ilegal do solo (grilagem, desmatamento) ou da destruição de instituições de controle, é inimiga da natureza.

Em suma, a captura do Estado por quem quer viver de "rendas" ambientais é inimiga da natureza. É o que fazem certos fazendeiros, mineradores e industriais que ficam com os ganhos da destruição e repassam os custos.

O descaso com a pobreza arrebenta todos os ambientes. A ocupação de margens de rios e lagos por gente sem casa, eira ou beira, causa poluição e aumenta o custo da oferta de água e o do saneamento.Essa desgraça múltipla resulta, por exemplo, do fato de que não há reforma urbana (oferta de habitação decente para gente pobre).

A burrice autoritária é inimiga da natureza. Ignorar dados e cálculos de impactos ambientais provoca mais destruição. Arrebenta o planejamento racional e a fiscalização dos danos. Destruir e desmoralizar a pesquisa científica impede a criação de tecnologias e de planos de desenvolvimento menos daninhos.

Em suma, é fácil perceber que políticas e propagandas de Bolsonaro são inimigas da natureza.


Bruno Boghossian: Denúncia contra Glenn manipula a lei para perseguir quem incomoda

Procurador distorce diálogo gravado para defender interesse de colegas da Lava Jato

A Polícia Federal ouviu as 1.285 palavras trocadas entre Glenn Greenwald e um dos hackers de Araraquara no último dia 7 de junho. O delegado não viu provas contra o jornalista e anotou que ele manteve na conversa “uma postura cuidadosa e distante”. Já o procurador Wellington Oliveira realizou a façanha de analisar o mesmíssimo diálogo e denunciar o repórter por três crimes.

O contorcionismo do Ministério Público Federal para alvejar Glenn mostra como uma corporação é capaz de manipular o sentido das leis para proteger seus próprios integrantes e perseguir quem incomoda.

O procurador ignorou o fato de que o jornalista não era sequer investigado pelo hackeamento de autoridades como Sergio Moro e a força-tarefa da Lava Jato. Preferiu distorcer diálogos que, na verdade, desmontam sua própria tese.

O responsável pela denúncia argumentou que Glenn recebeu material de sua fonte enquanto o grupo continuava acessando ilegalmente conversas de outros personagens. A investigação, porém, aponta que as mensagens utilizadas pelo jornalista haviam sido obtidas anteriormente.

A lei, aliás, não permite a responsabilização de qualquer pessoa por simplesmente ter conhecimento de um crime. Além disso, a gravação usada como única prova na denúncia indica que Glenn não estimulou ou direcionou o hackeamento.

A acusação é tão frágil que o procurador se obrigou a deturpar o trecho em que um dos integrantes do grupo pergunta a Glenn se deve apagar as mensagens roubadas.

O jornalista disse que não poderia orientá-lo e acrescentou apenas que ele poderia deletar o material para que seu papel como fonte fosse preservado. Trata-se de um preceito gravado na Constituição, mas o procurador forçou a barra e pintou o trecho como se fosse uma manobra para dificultar as investigações.

O autor da acusação atropelou princípios para defender os interesses corporativos de seus colegas da Lava Jato, atingidos pelas revelações feitas por Glenn. A tentativa de intimidação é a prova de que a liberdade de imprensa é essencial para evitar abusos de poder.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro e os judeus

Que meus correligionários atentem para o autoritarismo encabeçado por Bolsonaro

Num mundo em que versões prevalecem sobre fatos, criou-se a ideia de que a comunidade judaica brasileira em bloco apoia Jair Bolsonaro. A tese não procede. Como qualquer grupo razoavelmente heterogêneo, os judeus se dividiram em relação à candidatura do capitão reformado. Não existem pesquisas que permitam estimar números, mas é certo que a cisão foi acrimoniosa. Para dar uma medida do grau de polarização, basta lembrar que a direção da Confederação Israelita do Brasil praticamente entrou em guerra com o embaixador de Israel, que se tornou recentemente "amigo de infância" de Bolsonaro.

A ideia de que judeus estão com o presidente não surgiu, porém, do nada. Em sua origem está o apoio de primeira hora de alguns empresários judeus como Meyer Nigri (Tecnisa) e Elie Horn (Cyrella). O fato de Bolsonaro ter escolhido o hospital da comunidade, o Albert Einstein, para se tratar da facada que levou ajudou a criar a imagem de afinidade, que foi consolidada pela aproximação do já presidente com o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, e pela indicação de nomes com ascendência judaica para compor o primeiro escalão do governo.

É fato que, numa democracia, qualquer cidadão é livre para associar-se ao grupo político que preferir, sem precisar justificar-se. Isso dito, e na condição de membro relapso da comunidade judaica (não fiz bar-mitzvá e não acredito em Deus), confesso-me intrigado ao ver judeus apoiarem um político extremista, em especial um que minimiza a importância dos direitos humanos e de minorias e faz pouco das garantias do Estado de Direito. Até por razões epigenéticas, judeus deveriam manter-se tão longe quanto possível desse gênero de dirigente, situe-se ele à direita ou à esquerda.

Espero que a patacoada criptonazista encenada por Roberto Alvim sirva para lembrar meus correligionários da natureza autoritária do movimento político encabeçado por Jair Bolsonaro.


Ranier Bragon: A malinha de Wajngarten

Caso do chefe da Secom é teste para autonomia de Ministério Público e órgãos de controle

Na única vez em que se manifestou pessoalmente sobre suas relações público-privadas, o chefe da comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten, afirmou não ter apego mesquinho ao cargo. "Quando o Fabio tiver errado, eu pego a minha malinha e vou embora", afirmou. Disse ainda estar no governo por ter se apaixonado por um então deputado que se destacava pela ética, sinceridade e humildade. Como não revelou o nome, ficamos sem saber quem diabos era esse ser sublime.

Afetados por essa lacuna, nos confortamos, porém, ao ouvir que Wajngarten diz tratar a coisa pública com o máximo de "ética, transparência e modernidade". Se se manter dono de uma empresa com clientes que se beneficiam de verba liberada por ele insere-se nesse esforço ético e moderno, estamos mesmo lascados.

Longe de avaliar mover a sua malinha de lugar, o chefe da Secom chamou jornalistas na quarta (15) para um festival de arrogância só possível em uma era em que até neonazistas se sentem à vontade para colocar as asinhas de fora. Não, o tom indignado de Wajngarten não era contra a sua audácia de patrocinar um típico caso de conflito de interesses, era contra a Folha. Com notável destemor, o chefe da Secom diz que 100% das receitas de sua empresa estão à disposição de qualquer um. Ele só não se preocupou, até agora, em cumprir a bravata.

Também se negou a responder perguntas dos repórteres —como qualquer defensor da "transparência" agiria, é certo.

A sua incrível fala foi encerrada com uma ameaça. "Se determinados grupos de comunicação ou institutos de pesquisa tinham em mim a tentativa de uma construção de diálogo, essa ponte foi explodida hoje. Fica aqui o meu recado." Uma bela indicação de que trata o dinheiro da Secom como sendo dele ou do deputado por quem se apaixonou.

Falta-lhe noção clara do que é a coisa pública, a impessoalidade constitucional. Um campo fértil para o Ministério Público e os órgãos de controle cujas espinhas ainda não se dobraram. Fica aqui o recado.


Folha de S. Paulo: Moro chama mensagens de bobageirada e pede para Gilmar assumir responsabilidades

Em entrevista, ex-juiz diz que caso Telegram é 'episódio menor' e afirma obedecer 'cadeia de comando'

O ministro da Justiça, Sergio Moro, disse nesta segunda-feira (20) considerar uma "bobageirada" a publicação de reportagens sobre conversas suas com procuradores da Lava Jato e criticou declaração do ministro do Supremo Gilmar Mendes a respeito da divulgação, pelo então juiz federal, de áudio de telefonema entre o ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff em 2016.

Desde junho passado, o site The Intercept Brasil e outros veículos, como a Folha, têm publicado uma série de reportagens com mensagens de autoridades da Lava Jato que mostram que havia colaboração entre Moro e o chefe da força-tarefa, Deltan Dallagnol.

As conversas apontam, por exemplo, que o então juiz orientou a respeito da ordem de fases da operação, indicou uma prova para uma denúncia do Ministério Público e sugeriu uma testemunha.

Em entrevista ao Roda Viva nesta segunda, Moro disse que o tema é "um episódio menor" em seu primeiro ano no governo federal.

"Sinceramente nunca dei muita importância para isso. Acho que ali tem um monte de bobageirada, nunca entendi muito bem a importância [dada] para aquilo. Agora, foi usado politicamente para tentar, vamos dizer assim, soltar criminosos presos, pessoas que tinham sido condenadas por corrupção e, principalmente, tentar enfraquecer politicamente o Ministério da Justiça."

Moro foi questionado também sobre sua decisão, na época em que era o juiz responsável pela Lava Jato, de tirar o sigilo de conversas telefônicas entre Lula e Dilma em março de 2016, em uma iniciativa que acabou aumentando a pressão pelo impeachment da então presidente.

Após aquela medida de Moro, Gilmar Mendes concedeu uma liminar suspendendo a nomeação de Lula para a Casa Civil do governo, diante da suspeita de obstrução de Justiça.

Em entrevista no ano passado, também no Roda Viva, Gilmar afirmou que hoje tem "muitas dúvidas" sobre o assunto. "Muito mais dúvidas do que certeza e lamento muito esse tipo de manipulação."

Para a Lava Jato, o telefonema mostrava que a nomeação de Lula como ministro tinha como objetivo travar as investigações sobre ele, transferindo seu caso de Curitiba para o STF.

Mas registros inéditos obtidos pela Folha e analisados em conjunto com o site The Intercept Brasil indicam que outras ligações interceptadas pela polícia naquele dia, mantidas em sigilo pelos investigadores, punham em xeque a hipótese adotada na época por Moro, que deixou a magistratura para assumir o Ministério da Justiça no governo Jair Bolsonaro (PSL).

Nesta segunda-feira, Moro defendeu sua medida na ocasião, mas disse que é atribuída ao áudio uma importância que não existe.

"É muito facil [afirmar:] '2016, ah, não tenho culpa nenhuma, fui manipulado'. Não existe nada disso. Ele [Gilmar] tomou a decisão dele na época, ele assuma a responsabilidade pela decisão que ele tomou. Nada ali foi objeto de manipulação ou qualquer espécie de falsidade."

Caso haja entendimento de que Moro estava comprometido com a Procuradoria (ou seja, era suspeito), as sentenças proferidas por ele poderão ser anuladas. Isso inclui o processo contra Lula no caso do tríplex de Guarujá, que levou o petistas à prisão em 2018, está sendo avaliado pelo STF e deve ser julgado neste ano.

Segundo o Código de Processo Penal, “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes” se “tiver aconselhado qualquer das partes”. Afirma ainda que sentenças proferidas por juízes suspeitos podem ser anuladas.

Já o Código de Ética da Magistratura afirma que "o magistrado imparcial” é aquele que mantém “ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito".
Na entrevista, Moro falou sobre a possibilidade de ser nomeado para o Supremo por Bolsonaro, em vaga que será aberta neste ano. O presidente já defendeu que pretende indicar alguém "terrivelmente evangélico" para o cargo. Moro afirmou que a religião não é um fator fundamental para a escolha e disse ser católico.

O ministro da Justiça também foi questionado no programa a respeito de ataques do presidente Jair Bolsonaro a jornalistas. Disse que não falaria especificamente sobre o comportamento do presidente, mas afirmou que Bolsonaro "tem sido criticado e muitas vezes ele reage"

Em outros momentos da entrevista, que marcou a estreia da jornalista Vera Magalhães à frente do programa, disse respeitar uma "cadeia de comando" quando existem divergências com Bolsonaro.

Sobre a sanção pelo presidente do pacote anticrime, com diversos pontos sobre os quais Moro é crítico, disse que Bolsonaro entendeu que, se vetasse determinados trechos, acabaria sendo derrotado posteriormente na Câmara.

Para o ministro da Justiça, a implantação da figura juízes das garantias, magistrados que ficarão responsáveis apenas pelas investigações de casos na Justiça, só pode ser concretizada se for editada uma nova lei, com o texto atual sendo considerado inconstitucional. "Não é uma prioridade para a melhoria do nosso sistema judiciário."

Questionado sobre os motivos de não se manifestar acerca de assuntos como a defesa da ditadura militar por integrantes do governo ou o ataque à produtora do grupo Porta dos Fundos, no fim do ano passado, o ministro disse que não é um "comentarista sobre tudo".

Sobre a saída do secretário nacional da Cultura, Roberto Alvim, que foi demitido na sexta-feira (17) após discurso no qual parafraseou Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Moro chamou o caso de "episódio bizarro" e disse que não se pronunciou porque o presidente já havia decidido demitir o subordinado.

O ministro foi questionado sobre o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Gomes. Antes defensor da federalização do caso, Moro afirmou ter mudado de posição após declarações da família da vítima.

"Quando eu externei publicamente essa decisão, de que achava conveniente essa federalização, familiares da vítima, da Marielle, falaram também publicamente que não queriam que fosse federalizado. E ainda levantaram —aqui, com todo o respeito, eu acho que de uma forma não muito justa— que a ideia de federalizar era para que aí o governo federal obstruísse as investigações", afirmou ele.

Em novembro o ministro disse ser favorável à medida após menção ao nome do presidente Bolsonaro no depoimento de um porteiro durante as investigações. "Vendo esse novo episódio, em que se busca politizar a investigação indevidamente, a minha avaliação é que o melhor caminho para que possamos ter uma investigação exitosa é a federalização", declarou o ministro na época.

Bolsonaro também já se declarou contra a medida, que, segundo ele, poderia ser interpretada como tentativa de blindá-lo.


Ruy Castro: A Terra é chata

Estou a fim de concordar com os terraplanistas. Mas, antes, meu cérebro terá de virar uma pizza

Um novo planeta foi descoberto por um satélite da Nasa. Fica na primeira galáxia à direita depois do Sol, a cem anos-luz daqui. É um pouquinho maior que a Terra e, como se constatou, redondo, em forma de globo.

Também como a Terra, gira em torno de si mesmo e de uma estrela e é dilatado nos polos e achatado no equador, ou vice-versa. Eles o estão chamando de TOI 700 d, sendo TOI a sigla em inglês para “Objeto de Interesse do Tess”. Tess é a nova sensação das varreduras espaciais: um satélite caça-planetas. Desde que entrou em ação, em 2018, já achou três.

Para descobrir um planeta, o Tess passa 27 dias observando uma estrela, de olho em qualquer oscilação de seu brilho. O que, se acontecer, terá sido provocado pela passagem de um corpo celeste —um planeta— ao redor dela. A vida é meio parada no espaço, donde não há outras opções. Mas, para não restar dúvida, exige-se que tal oscilação se dê pelo menos três vezes. Cada operação congrega um batalhão de cientistas, quase todos nóbeis, fazendo cálculos fora do alcance da nossa aritmética escolar.

Pois é armado dessa aritmética de ábaco e de contar nos dedos que um grupo de novos pitecantropos afirma que a Terra é plana, não esférica. São os terraplanistas. Indiferentes a 2.500 anos de ensinamentos por gente como Pitágoras, Aristóteles, Copérnico, Kepler, Galileu, Newton e Einstein, seus argumentos são os de uma criança de babador. Para eles, a Terra é chata e em forma de pizza, como se pode constatar, dizem, olhando pela janela do avião.

Os cientistas de toda parte e de todos os tempos nos mentiram. As estações espaciais que, lá de cima, nos veem redondos e esféricos, não existem. A Nasa é um estúdio de efeitos especiais. A Lua também é chata. Marte, Vênus, Júpiter, idem. Eles acreditam nisso.

Estou propenso a concordar. Mas, antes, meu cérebro também terá de virar uma pizza.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Leandro Colon: Além de ministro denunciado, governo agora tem assessor em conflito de interesse

Presidente reage sob pressão; caso contrário, barco segue, como nos casos do Turismo e da Secom

As redes sociais amanheceram em chamas na sexta (17) com o nefasto vídeo de Roberto Alvim, então secretário de Cultura do governo, copiando discurso nazista.

Autoridades do Legislativo e do Judiciário repudiaram logo cedo. O mundo político, de esquerda e de direita, se manifestou imediatamente.

Por volta das 10h, a assessoria da Presidência informou por escrito que não comentaria. Somente minutos depois das 13h, Jair Bolsonaro anunciou a demissão de Alvim.

Ele titubeou em mandar embora quem, um dia antes, chamara de “secretário de verdade”. A demissão ocorreu mais em razão da cobrança de outros Poderes do que pela convicção do presidente de que não havia outro caminho a tomar. Bolsonaro só reage sob pressão política. Se demora a chegar, o barco segue.

Alvim, por exemplo, era subordinado ao ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, indiciado pela PF e denunciado à Justiça pelo envolvimento no esquema de laranjas do PSL, uma falcatrua com verba eleitoral. Por ora, para Bolsonaro, é como se nada tivesse acontecido.

Ele diz que pretende manter no posto o chefe da Secom, Fabio Wajngarten, flagrado pela Folha em um conflito de interesse explícito: gerencia as verbas destinadas a emissoras e agências que possuem contrato com uma empresa dele, a FW.

Não importa se Wajngarten se afastou da gestão da FW, tampouco se foram ou não ampliados os contratos de sua firma desde que assumiu o cargo de confiança em abril de 2019.

Fato é que o chefe da Secom tem negócios em andamento com empresas que dependem de sua caneta para receber milhões de dinheiro público. Aliás, antes de assumir a secretaria, ele informou o Planalto dessa relação comercial?

Foram 67 encontros do assessor de Bolsonaro com seus clientes em pleno exercício de um dos cargos mais estratégicos do governo federal. Assim como no caso do titular do Turismo, o presidente ignora dados concretos e prefere culpar a imprensa pelos malfeitos de sua equipe.


Bruno Boghossian: Lula reproduz teorias conspiratórias para mascarar dissabores do PT

Ex-presidente atribui aos americanos Lava Jato, quebra de empreiteiras e junho de 2013

Em 2008, ladrões abriram um contêiner da Petrobras e furtaram quatro notebooks e dois HDs com dados sigilosos sobre a exploração da bacia de Santos. A Polícia Federal tratou o caso como espionagem industrial. O ex-presidente Lula acredita que aquele foi o episódio inicial de um conluio estrangeiro para prejudicar o Brasil e o PT.

A teoria de um complô patrocinado pelo governo dos EUA contra a esquerda não é novidade entre os integrantes da legenda. O próprio líder petista, no entanto, passou a desenhar uma teia conspiratória cada vez mais larga para mascarar alguns dos grandes dissabores do partido.

Lula atribui aos americanos influência nos protestos de junho de 2013, na Lava Jato, na derrocada da Petrobras e na quebra de empreiteiras brasileiras envolvidas em corrupção. Mistura fatos com boatos das redes e junta casos isolados, ainda que não haja ligação comprovada entre eles. Tudo para perturbar a discussão política sobre esses episódios.

Em entrevista ao portal Diário do Centro do Mundo, o ex-presidente disse achar “absolutamente verdadeiro o fato de que os Estados Unidos têm forte influência em toda a política da Lava Jato”. Mencionou conexões entre agentes americanos e a força-tarefa da operação, além do assalto ao contêiner há 12 anos.

O petista reproduz uma teoria, difundida por sites de esquerda, que atribui o furto dos documentos a empresas do EUA e alega que Sergio Moro recebeu “treinamento” de agentes quando deu uma palestra no país em 2009. Não há provas para sustentar o suposto complô.

O ex-presidente também disse enxergar orientações estrangeiras nas manifestações de 2013, que derreteram a popularidade de Dilma Rousseff. “Acho que teve dedo de fora.”

Para Pablo Ortellado, professor da USP e colunista da Folha, “essa leitura conspiratória é irmã da miopia que o impede de reconhecer seus erros”, escreveu. “Lula prefere olhar para o lado e buscar os motivos dos protestos em delirantes indícios conspiratórios.”


Elio Gaspari: Bolsonaro precisa levantar o tapete

Comissão de Ética deveria dar alegrias, mas tem sido fonte de tristezas

No próximo dia 28 a Comissão de Ética da Presidência da República tratará do caso do secretário especial de Comunicação do Planalto, Fabio Wajngarten. Como se sabe, até ser nomeado para o cargo ele dirigia uma empresa que tinha contratos com emissoras de TV e agências de publicidade que vendem serviços à Secom. Depois que se desligou funcionalmente, foi substituído por pessoa de sua confiança que vem a ser irmão do seu braço direito na Secom. Ele continua dono de 95% das cotas da empresa.

A Comissão de Ética da Presidência tem um passado de tumultos e frangos. Dois de seus presidentes já se demitiram (Marcílio Marques Moreira, em 2002, e Sepúlveda Pertence, em 2012). Passou por baixo das pernas dos seus doutores a evolução patrimonial do comissário Antonio Palocci, e ela conviveu com a escalafobética prática dos ministros que tinham empresas de consultoria. Em 2011, eram cinco.

Instituição que deveria dar alegria aos contribuintes, a comissão foi fonte de tristezas. Em 2012, a presidente Dilma Rousseff dispensou legalmente 5 do seus 7 integrantes, e essas cadeiras ficaram vazias por cinco meses. No ano seguinte, a comissão deixou de publicar suas atas. Deu no que deu.

Wajngarten explicou-se na quarta-feira com um forte argumento: “Fui orientado pela SAJ [Subchefia de Assuntos Jurídicos do Planalto], pela AGU [Advocacia-Geral da União] e pela CGU [Controladoria-Geral da União]” para “que eu saísse do quadro de gestão” da empresa. Esse argumento terá a força de sua documentação.

Se existem uma consulta formal de Wajngarten a qualquer um desses órgãos e uma resposta informando que seu simples afastamento funcional eliminava qualquer conflito de interesses, será o jogo jogado. Se não existem papéis assinados, o argumento vira pó, entrando no mundo nebuloso das conversas do Planalto, nas quais todo mundo faz o que acha que pode e depois diz que não teve nada a ver com isso.

Como disse o presidente Bolsonaro, “se foi ilegal a gente vê lá na frente”. O que significa “lá na frente”, só ele sabe.

Olhando-se lá pra trás, ao primeiro ano de sua Presidência ele tem um espinho no pé. Em agosto do ano passado, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões, um trocado para um fundo que administra R$ 55 bilhões.

A Controladoria-Geral da União estudou o edital e, entre outras coisas, descobriu que uma só escola de Itabirito (MG) receberia 30 mil laptops (118 para cada um de seus 255 alunos). Outra, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG), receberia cinco laptops para cada estudante. Essa discrepância repetia-se em 355 escolas. O jabuti foi apanhado pela CGU, uma instituição do Estado, destinada a zelar pelo patrimônio da Viúva. Nada a ver com essa espécie desgraçada dos jornalistas.

O edital foi revogado em setembro e, desde então, jogou-se o jabuti para baixo do tapete. Passaram-se quatro meses e ninguém sabe quem concebeu o tal edital, quem tocou o assunto e quem chegou a justificar suas maluquices.

Isso tudo num caso em que o governo teria do que se orgulhar pela ação da CGU e pela decisão do presidente do FNDE de revogá-lo.

Cultura e Apocalipse
Antes de ser demitido da Cecretaria (à moda de Abraham Weintraub) de Kultura, Roberto Alvim disse que tinha convencido Bolsonaro de que sua repetição das palavras de Joseph Goebbels foi uma “coincidência retórica”. Como ele conseguiu isso não se sabe.

A apropriação foi mais que um plágio, foi uma identidade conceitual. Não são só os nazistas que pensam em arte “heroica”, mas a frase de Goebbels copiada por Alvim continha uma essência apocalíptica comum aos hierarcas do nazismo e do pós-nazismo. Em 1933, o ministro da Propaganda da Alemanha achava que a arte seria “heroica”, “ou então não será nada”. (E nada foi. Em 1945, Goebbels e sua mulher se suicidaram, depois de matar seus seis filhos de quatro a doze anos. A mais velha teria pressentido a execução, reagindo.)

O perigo das concepções pós-nazistas está na retórica apocalíptica infiltrada no cotidiano político: as coisas devem ser como eu digo, ou tudo se acaba. Nisso, Alvim foi apenas um desafortunado lambari.


Mario Sergio Conti: É abusivo Cristovam Buarque dizer que esquerda elegeu Bolsonaro

No livro 'Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018', senador acerta contas com a política democrata e progressista

Cristovam Buarque é um homem honrado. Ao ver uma foto de Lula com crianças em Toritama, Pernambuco, ele foi até lá. Quis conhecer aquelas meninas e meninos descalços e sem camisa, apartados do presidente por uma cerca de arame farpado. Um ano antes, em 2004, Lula o demitira, pelo telefone, do Ministério da Educação.

Visitou as crianças e falou com pais e professoras. Esteve na escola onde fazia um calor dos diabos. Viu o chão de terra batida, as carteiras desconfortáveis, a poeira, a pedagogia ineficaz. Escreveu uma carta a Lula contando o que vira.

Disse ao presidente que ele “não era culpado da tragédia que observei, mas seria se, uma década depois, a situação não melhorasse”. Cristovam, que assumira sua cadeira no Senado, deu-lhe também ideias para melhorar a educação em Toritama e em todo o Brasil.

Voltou lá dez anos depois, em 2015. Nenhuma criança que conhecera terminou a escola. Ticiana teve um filho aos 16 anos. Cambiteiro, vigilante, foi assassinado aos 19. Rubinho, que não aprendeu a ler, virou pai aos 17. Diego foi esfaqueado, fugiu do hospital, sumiu. A escola seguia péssima.

A narrativa das visitas a crianças e jovens pobres de dar dó rende as melhores páginas de “Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018” (Tema Editorial, 89 págs.), o novo livro de Cristovam Buarque.

Elas servem para lembrar o objetivo clássico da política: harmonizar a vida em sociedade. E, a partir da Revolução Francesa: agir para que os cidadãos sejam livres, iguais e fraternos.

Como a política nacional não gerou nada disso —e sim Toritama—, os governos de Itamar a Dilma desaguaram num bonapartismo bestial que esfola os pobres para enriquecer os ricos. Cristovam faz o balanço de um fracasso: o dos políticos “democratas e progressistas”, entre os quais se inclui.

O título do livro em inglês será outro, “Como a Esquerda Elegeu a Direita no Brasil”. Ocorre que Cristovam votou em Aécio (de direita) para presidente, pela destituição de Dilma (de centro-esquerda) e apoiou Temer (de direita). Esquerda quem, cara-pálida?

Mas fiquemos no livro em português: o PSDB e o PT falharam na construção de uma república moderna. Analisar a debacle é imperativo porque a ausência de autocrítica foi um elemento constitutivo dela.

Daí a dizer que eles “elegeram” Bolsonaro é abusivo. É não levar em conta a extrema direita. É esconder que o empresariado e seus prepostos a apoiaram na eleição e hoje a sustentam. Exagero? Eis o que dizem dois líderes da classe sobre o governo.

Abílio Diniz: “Minha avaliação é altamente positiva” (Folha, 12 de janeiro). Jorge Paulo Lemann: “O rumo do Paulo Guedes está correto. Poderia ter menos agito na parte política” (O Globo, 16 de dezembro.). Para eles, o que importa é ganhar dinheiro. O seu. Com ou sem “agito”.

“Por Que Falhamos” se recusa a considerar essas forças político-econômicas porque não tem método. Sem hierarquia, cada um dos 24 capítulos do livro enuncia um erro.

O que liga os erros entre si são as idiossincrasias do autor.

Elas vão da inconsequência à má-fé. Ele reclama duas vezes ter sido o verdadeiro criador do Bolsa Família, ao qual teria batizado de Bolsa Escola. Ninguém nunca defendeu isso, só Cristovam.

O título de um capítulo é “Adotamos o culto à personalidade”. Ora, o termo designa uma política específica do stalinismo. Não houve nada de parecido aqui. Se a intenção foi aproximar Lula de Stálin, o fez de maneira insidiosa, sem sequer citar o nome de um e de outro.

Dedicado ao período entre 1992 e 2018, o livro desdenha o que se passou nesses anos, a própria história.

Não se trata de prescindir da ordem cronológica. Mas de embaralhar os fatos, confundindo os definidores com os acessórios, para se concluir o que se deseja.

Fato definidor foi a emenda de Fernando Henrique que permitiu a sua reeleição. O personalismo em benefício próprio do príncipe dos sociólogos, digna de caudilhos bigodudos e de sombreiro, esculhambou a própria noção de república.

Fato definidor foi o planeta. Não basta dar a barretada de praxe à venda de matérias-primas brasileiras à China. Ou de repetir “sustentável” feito papagaio. Mas de investigar se o Brasil pode de fato ser autossustentável.

Fatos definidores foram os protestos de 2013 e a reação do PT a eles. A primeira coisa que Lula e Dilma fizeram foi procurar o marqueteiro João Santana, um corrupto confesso.

Cristovam não diz uma palavra sobre os três fatos. Não basta ser um homem honrado para escrever um livro útil.


Demétrio Magnoli: Haddad e os intermediários

Natureza indireta da interferência do MEC na escolha de livros didáticos não a tornou menos contundente

Fernando Haddad assina coluna na Folha, mas terceiriza a assinatura de cartas que escreve ao Painel do Leitor. Na cartinha dirigida a mim (13/1), Nunzio Haddad Briguglio simula não entender o que escrevi (em 11/1), desafiando-me a exibir um caso de ingerência do MEC na seleção de livros didáticos para a compra pública federal. Ofereço-lhe duas respostas: 1) Sob os governos do PT, o MEC interferiu em todos os processos de seleção; 2) Até onde sei, o MEC nunca vetou explícita e diretamente um livro específico.

O truque da cartinha firmada por intermediário tem finalidade óbvia: dependendo das circunstâncias, Haddad pode assumir ou renegar a responsabilidade pelo texto. Na coluna, descrevi a estratégia pela qual, indiretamente, o MEC passou a “esculpir as narrativas pedagógicas”. Expliquei que os agentes da seleção são comissões universitárias de “especialistas” colonizadas por professores-ativistas. Como no caso prosaico da cartinha, a intermediação desempenha seu papel, isentando o governo da função de promover a censura ideológica direta. Nunzio Briguglio, um jornalista experiente, sabe ler —mas ganha para escrever o que lhe solicitam.

A natureza indireta da interferência do MEC não a tornou menos contundente. No alvorecer da “era lulopetista”, em março de 2004, um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceu uma série de “princípios” a serem seguidos pelas escolas, entre os quais “o fortalecimento de identidades e de direitos”. Segundo o texto, tal princípio “deve orientar para o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Aí, na linguagem hermética típica das burocracias, encontra-se a semente de um programa político-pedagógico.

O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O parecer é a negação direta da Declaração de 1948. A rejeição da “identidade humana universal” forma a plataforma de uma pedagogia de identidades singulares, “culturais” ou “raciais” —e cria o argumento político e legal para o veto aos livros inspirados pela universalidade dos direitos humanos. A partir do parecer, o MEC publicou livros, resoluções e provas do Enem que conduzem à repulsa da (mal) denominada “história ocidental” e dos valores que sustentam as democracias. As comissões de “especialistas” plantaram no terreno arado pelo MEC.

O tema dos direitos humanos tem relevância fundamental na educação. A “reinterpretação” identitária dos direitos humanos esvazia-os de conteúdo. Dela, nasce o pretexto para classificar as liberdades políticas e individuais como artifícios “burgueses” ou “liberais”. Daí, num único passo, chega-se ao elogio das ditaduras “certas”.

Sob os governos lulopetistas, o MEC rezava no altar dessa estranha “reinterpretação” dos direitos humanos. Sob o governo Bolsonaro, o MEC denuncia a reinterpretação ideológica petista para fazer tábula rasa dos direitos humanos, preparando sua substituição por discursos reacionários e anticientíficos de matriz religiosa. Os dois, porém, compartilham a ideia de que a sala de aula é terreno legítimo para a pregação política.

A simetria é imperfeita. O MEC de Tarso Genro, Aloizio Mercadante e Haddad entrou nas salas de aula pela intermediação dos “especialistas”, num exercício sofisticado de hegemonia. Já o MEC de Weintraub não dispõe de intermediários, pois a extrema direita é repudiada quase unanimemente no meio universitário. Dessa fraqueza surge o impulso de invadir diretamente as salas de aula, num exercício tosco —e menos eficiente— de autoritarismo.

Nunzio Haddad Briguglio escolheu ignorar o que escrevi, propondo-me um “desafio”. Entendo: a gritaria partidária aquece a militância, abafando o diálogo substancial. Weintraub, penhorado, agradece.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.