Folha de S. Paulo
Vinicius Torres Freire: Governo Bolsonaro vive verão de fraturas e frituras de ministros
Um quarto da cúpula da gestão Bolsonaro foi frita neste verão de desesperança
Generais-ministros com salas próximas à de Jair Bolsonaro, amigos sem cargo do presidente e a filhocracia ajudam a preencher noticiário fraco do recesso político com frituras de ministros. A mumunha envolve quase um quarto do ministério.
Nem tudo é mera fofoca; a intriga não brota da cabeça dos jornalistas. Tem ministro e assessor graduado que telefona para espalhar o óleo quente. A gente não pode fingir que não ouviu ou não leu a mensagem.
Onyx Lorenzoni acaba de entrar nessa roda do infortúnio. Ministros que trabalham no Planalto querem que o chefe da Casa Civil volte oficialmente à sua irrelevância de costume na Câmara dos Deputados. Seu ministério já é uma casca vazia.
É apenas o caso mais recente de fritura, motivado pela demissão, readmissão e redemissão de um sub de Onyx, aquele que brincava no play dos Bolsonarinhos e viajou de aviãozinho para a Índia.
Note-se de passagem que é mais um “aliado de primeira hora” de Bolsonaro que vai ficando por último na apreciação presidencial (vide o caso dos escorraçados Magno Malta, Santos Cruz e Gustavo Bebianno).
A cadeira de Gustavo Canuto (Desenvolvimento Regional) é disputada desde fins do ano passado. Tentam passar-lhe a rasteira antes da volta dos trabalhos no Congresso. Aliados parlamentares de Bolsonaro acham que o cargo tem de ser “político” (deles).
Abraham Weintraub, aboletado no Ministério da Educação, não cai por birra de Bolsonaro e pela resistência da seita do orvalho de cavalo. Está desmoralizado a ponto de ser escarnecido com desprezo, em público, por dois dias seguidos, por Rodrigo Maia, presidente da Câmara e premiê informal da República das Reformas do Brasil.
“Desastre”, caso “grave”, “atrapalha o futuro” do Brasil e de milhões de crianças, disse Maia sobre o ministro, com razão.
Autoridades não têm mais pudor de chutar cachorro vivo. Não há mais pudor em geral, muito por inspiração da Nova República da Boca Suja.
Embora a palavra “desmoralizado” tenha sido desmoralizada no Brasil desta nova era desavergonhada, bárbara e cafajeste, o inepto Weintraub estaria na rua se fosse pelo gosto de ministros-generais. Mas a seita e seus sacerdotes da filhocracia querem controlar o processo. Se Weintraub cair, querem outro perturbado para chamar de seu.
Ricardo Salles, ministro do Mau Ambiente, deve ser tutelado pelo ainda misterioso Conselho da Amazônia, a ser presidido pelo vice-general Hamilton Mourão. Além de a equipe econômica passar carão ambiental lá fora, até para o dinheiro grosso do mundo o Brasil estava ficando grosso demais com essa história de rapar a floresta e trucidar indígenas.
Como também se recorda, amigos e filhos de Bolsonaro tentaram fritar Sérgio Moro e, ao menos, arrancar-lhe a Polícia Federal. Bolsonaro caiu na conversa e criou uma crise do nada com seu ministro da Justiça. A primeira família saiu queimada, pois a falange lavajatista dos apoiadores do presidente fez a ameaça velada, embora ainda remota, de virar concorrente ou oposição.
Por fim, por ora, lembre-se que caiu também aquela criatura da Cultura, que saiu do armário fantasiada de nazista. A sucessão de vexames fez até a gente esquecer do ministro do Turismo, aquele enrolado no laranjal da campanha do ex-partido bolsonarista, o PSL, mais um largado pelo presidente.
Tem gente graduada em ministérios “econômicos” e do Planalto que acha o governo disfuncional além da conta. Parte do ruído vem daí.
Hélio Schwartsman: Ilusão de controle
Brexit alimenta a narrativa de que britânicos decidirão seu futuro sem a interferência de estrangeiros
Às 23h desta sexta-feira (31/1), o Reino Unido se separa oficialmente da União Europeia (UE), pondo fim a uma novela que se estendeu por mais de três anos.
No plano econômico, o divórcio é um tiro no pé. Os britânicos estão abrindo mão de acesso privilegiado a um mercado de mais de 500 milhões de pessoas e criando “ex nihilo” sérias dificuldades para suas empresas. A aventura custará ao Reino Unido entre dois e oito pontos do PIB até 2034, segundo estimativa do próprio governo.
Se é tão ruim assim, por que os britânicos decidiram sair? Europeístas até podiam afirmar que os eleitores foram enganados no plebiscito de 2016, no qual a campanha pelo brexit abusou das fake news. Mas não vejo como insistir neste argumento após a vitória de Boris Johnson em dezembro. O brexit foi o tema dominante na eleição, que teve lugar após anos de debates. A matéria estava madura para ir a voto.
Minha hipótese para explicar o fenômeno é o desejo de controle. Seres humanos somos obcecados por nos sentir no controle. Há um experimento bem maluco da psicologia em que voluntários são colocados diante de luzes que piscam num padrão aleatório e instruídos a apertar um botão, que não faz rigorosamente nada —embora as cobaias não saibam disso. Em pouco tempo, a maioria jura que controla as luzes.
Esse viés, creio, alimenta a narrativa de que, com o brexit, os britânicos decidirão seu futuro sem a interferência de estrangeiros e voltarão a ter domínio sobre suas fronteiras. É pura ilusão, porque o eleitor só tem controle de fato sobre o seu próprio voto, cujo peso é irrisório em qualquer pleito maior que o para síndico de prédio. Sob essa perspectiva, não faz tanta diferença se as políticas são definidas em Londres ou em Bruxelas.
Curiosamente, essa ilusão de controle é um dos elementos de legitimação da democracia, ao criar a sensação de que cada voto conta.
Bruno Boghossian: Disputas de poder criam turbulência para o governo no Congresso
Atritos no Planalto e no MEC irritam parlamentares e podem dificultar vida de Bolsonaro
Não é pouca coisa o fato de que a crítica mais cortante ao caos no Ministério da Educação tenha partido do presidente da Câmara. Nem que o presidente do Senado tenha feito circular uma ameaça de retaliação ao governo diante do desmanche da Casa Civil. O Planalto já não tem apoio firme no Congresso, mas a situação sempre pode piorar.
Jair Bolsonaro assiste a disputas de poder em postos-chave de sua gestão, envolvendo diretamente os interesses de caciques políticos que podem facilitar ou dificultar sua vida. O presidente amplia o risco de turbulências a poucos dias do retorno das atividades parlamentares.
Dirigentes de siglas alinhadas à agenda do governo ficaram atônitos com a humilhação pública a que Bolsonaro submeteu Onyx Lorenzoni nos últimos dias. A decisão de esvaziar ainda mais a já debilitada estrutura da Casa Civil reacendeu insatisfações com o trabalho desastrado de articulação política do Planalto.
A fritura do ministro foi atribuída a um consórcio de diversos integrantes do primeiro escalão —entre eles o general Luiz Ramos, chefe da Secretaria de Governo. Onyx nunca foi unanimidade entre os líderes do Congresso, mas o militar também acumula desafetos. Sua relação é especialmente ruidosa com Davi Alcolumbre, presidente do Senado.
Em dezembro, Ramos descreveu o Planalto como "um serpentário". "Quanto mais próximo do presidente, mais você é alvo. Assim, se você me atinge, atinge o presidente", disse. Sua analogia será testada agora.
O governo também produziu atritos quando o ministro da Educação demitiu, sem aviso prévio, um aliado de Rodrigo Maia do FNDE —órgão com orçamento de R$ 55 bilhões. O presidente da Câmara aproveitou as barbeiragens do Enem e disse que Abraham Weintraub é "um desastre".
Perturbações como essas certamente não ajudam a agenda que Bolsonaro gostaria de aprovar na Câmara e no Senado. Aos poucos, o Planalto perde o controle da reforma tributária e vê suas medidas de aperto fiscal andarem com lentidão.
Bruno Boghossian: Bolsonaro conseguiu errar até nas demissões e trocas na equipe
Máquina pública continua refém de obsessões ideológicas e desavenças particulares
Dias antes de demitir Ricardo Vélez, o presidente disse achar “bastante claro” que as coisas não estavam dando certo no Ministério da Educação. Em três meses no cargo, o professor colombiano provocou um apagão na pasta e tentou obrigar crianças a recitarem o slogan de campanha do chefe. Até Jair Bolsonaro precisou admitir que faltava ao auxiliar capacidade de gestão.
Nenhuma lição foi aprendida naquele episódio, como se vê. O presidente exaltou a própria coragem ao se livrar de um ministro incapaz, mas decidiu substituí-lo pelo indivíduo que agora pilota o caos do Enem.
As demissões e trocas de comando executadas por Bolsonaro neste seu período inicial no poder foram tão improdutivas quanto muitas de suas nomeações. A máquina pública continua sequestrada pelas obsessões ideológicas e desavenças particulares do presidente.
Abraham Weintraub só está pendurado no posto até agora por ter se provado um antiesquerdista mais malcriado do que o antecessor. Ninguém ligou para o fato de que, num só dia, persistiram as falhas no cálculo das notas do Enem e surgiram novos problemas no sistema de inscrição nas universidades.
Se o departamento de RH do governo funcionasse, Bolsonaro não teria derrubado Joaquim Levy do BNDES. O presidente achava que o economista não queria abrir a caixa-preta do banco. Seu substituto, um amigo da primeira-família, precisou anunciar que uma auditoria milionária no órgão não encontrou nada e não tem “nada mais a esclarecer”.
Em junho do ano passado, Bolsonaro cedeu à ala do Planalto que brigava pelo controle da verba oficial de comunicação e demitiu o general Santos Cruz. Sem o militar, quem ganhou poder foi o secretário Fábio Wajngarten, hoje protagonista de um indecente conflito de interesses.
Algo parecido aconteceu na saída de Gustavo Bebianno, chutado quando estourou o escândalo das candidaturas laranjas do PSL. Já o ministro do Turismo, denunciado pelos investigadores, continua na cadeira.
Vinicius Torres Freire: Gasto militar aumenta com Bolsonaro
Bolsonaro engorda estatal da Marinha e gasto militar fica ainda maior
Investimento em Defesa é o maior do governo
O investimento em obras e compras de equipamentos do governo federal aumentou no ano passado.
Por fora, bela viola: foi surpresa grande, pois se esperava queda feia dessas despesas. Por dentro, pão bolorento: o investimento cresceu porque o governo aumentou em mais de R$ 10 bilhões o capital de três estatais: Emgepron, Infraero e Telebras. Em suma, porque os gastos militares cresceram bem.
A Emgepron é uma estatal da Marinha que, basicamente, faz navios. Em 2019, o governo colocou R$ 7,6 bilhões na empresa a fim de construir corvetas (navios de guerra) e um barco para uso na Antártida.
No total, o gasto federal em investimento foi de R$ 57,3 bilhões no ano passado, 2,3% mais do que em 2018, já descontada a inflação.
Desse total, o Ministério da Defesa ficou com 28,7% (R$ 16,5 bilhões, incluídas as “inversões financeiras” do aumento de capital da Emgepron), um aumento de 36% em relação a 2019. Em segundo lugar ficou o Ministério do Desenvolvimento Regional (R$ 10,5 bilhões), seguido pela Infraestrutura (R$ 9,2 bilhões).
Ressalte-se que se trata aqui do gasto em investimento, que equivale a apenas 3,9% do gasto federal total, que foi de R$ 1,47 trilhão (não inclui a despesa com juros, que desde 2014 nem é parcialmente paga, apenas rolada).
Para onde vai o gasto militar? Para a Aeronáutica desenvolver e comprar aviões de caça Gripen (R$ 1,3 bilhão) e o cargueiro da Embraer (R$ 805 milhões). Para a Marinha construir submarinos (R$ 918 milhões) e seus estaleiros (R$ 380 milhões), por exemplo. Para um blindado sobre rodas do Exército, o Guarani (R$ 410 milhões). Para helicópteros (R$ 344 milhões). Etc.
O maior pacote de investimento federal é em manutenção de estradas, R$ 3,6 bilhões (em construção, quase nada). Depois, em programas de construção e financiamento de casas, como o Minha Casa Minha Vida, R$ 3,4 bilhões.
Os gastos militares são pesados quando se leva em conta que as três maiores obras individuais do país são a adutora que leva água da transposição do São Francisco para o interior de Pernambuco (R$ 578 milhões), a Ferrovia de Integração Oeste-Leste, trecho na Bahia (R$ 361 milhões), e a transposição do rio São Francisco para Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte (R$ 251 milhões).
O valor é o das despesas empenhadas.
O restante em geral é de coisas picadas, que dão volume quando juntas. Hospitais, clínicas e laboratórios: R$ 1,8 bilhão. Obras em creches, pré-escola e escolas fundamentais: R$ 1,6 bilhão. Habitação, saneamento, transporte: R$ 2,8 bilhões. Etc.
O dinheiro para expansão, equipamentos e obras das universidades federais dá R$ 893 milhões. Para a melhoria de escolas (Programa Dinheiro Direto na Escola), R$ 529 milhões. Para Unidades Básicas de Saúde, R$ 578 milhões. Para comprar ônibus escolares, R$ 493 milhões.
É preciso notar também que quase todos esses projetos maiores, os militares em particular, vêm de outros governos (PT em especial), embora Jair Bolsonaro tenha colocado dinheirama extra na estatal da Marinha, pois entrou o tutu grosso da venda de campos de petróleo (“cessão onerosa”).
Certas despesas são definidas por contratos (caças, por exemplo). Mas há muitas coisas erradas, neste e noutros governos, quando 28% do pífio dinheiro do investimento vai para gasto militar.
Para que ter Forças Armadas sem armas? É uma questão. Mas faltam estrada, esgoto, água, mais energia limpa, cama de hospital, ultrassom, raios-X.
Fernando Schüler: Quem é Deirdre McCloskey, uma liberal em tempo integral
Livre fluxo de ideias e inventividade humana, não capital, geopolítica ou educação formal, estão na base da prosperidade
Deirdre McCloskey visita o Brasil nesta semana. Concorde-se ou não com suas ideias, é alguém que merece atenção. Ela é autora de uma trilogia monumental, “Bourgeois Virtues”, sobre a formação do mundo moderno, e recentemente lançou “Why Liberalism Works”, com um bom resumo de suas visões, ainda sem tradução no Brasil.
Não faço ideia da razão pela qual a palestra que daria na Petrobras foi cancelada. O que é irrelevante, visto que todos, como sempre, já sabem de tudo, não é mesmo? Mas o episódio me dá uma boa pista sobre como começar explicando quem é a sra. McCloskey.
Em primeiro lugar, é uma liberal em tempo integral. Não brinca com essa história de separar a liberdade econômica das liberdades na cultura e nos costumes. O liberalismo nasce do direito de dizer “não”. Ponto. Seu vértice é a “igualdade de consideração e respeito.”
Vem daí seu horror a qualquer forma de reacionarismo, à esquerda e à direita, e seu mau humor com o bolsonarismo. Em especial sua ideia de inflexionar políticas públicas para a “maioria cristã”, real ou imaginária.
O liberalismo, na sua visão, não se situa em algum ponto intermediário entre esquerda e direita. Socialistas e conservadores gostam do Estado, por diferentes razões. Liberais gostam do fluxo espontâneo da vida. Isso vale tanto para quem quer enquadrar aplicativos de transporte na CLT, padronizar as escolas ou dizer que tipo de arte vale e qual a estrutura “verdadeira” de uma família.
Sua visão do mundo atual contrasta com o catastrofismo reinante em boa parte do universo intelectual. Em 200 anos, diz ela, a renda média cresceu perto de 30 vezes, e a miséria foi virtualmente extinta no mundo avançado. Nos anos recentes, o avanço migrou para o mundo em desenvolvimento. A igualdade cresceu entre os países. Entre o início dos anos 1990 e 2015, segundo dados do Banco Mundial, caiu de 36% para 10% o número de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, sendo a China a maior responsável por esse resultado.
É no acesso a bens essenciais para o bem-estar, no entanto, que a qualidade de vida e um sentido básico de igualdade vêm avançando mais rapidamente. O Serviço de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostrou que “em 1901, um domicílio americano gastava em média 42,5% de sua renda com alimentação, contra apenas 13,2% em 2002”.
Os dados são amplamente conhecidos e deixam muita gente nervosa. Eles põem água fria na retórica de que estamos nos tornando uma enorme Gotham City, povoada por palhaços abandonados e bilionários malvados.
Deirdre vai na contramão desse discurso, argumentando que são exatamente políticas de abertura e inclusão ao mercado que vêm retirando milhões de pessoas da miséria, mundo afora.
Ela não vê problema na desigualdade econômica ou na multiplicação do número de bilionários, desde que sua riqueza venha da competição, da inovação, da melhora da vida dos outros, e não da captura do Estado.
Perguntei-lhe qual a sua ideia mais original. Ela não pensou muito para mencionar a tese de que é o livre fluxo de ideias e a inventividade humana, não o capital, a geopolítica ou a educação formal, que estão na base da prosperidade.
Seu foco são as ideias e a narrativa. A virada para o século 19 assistiu a uma mutação em vastas regiões da Europa e na América. O homem comum, o padeiro, o comerciante, o inventor de coisas ganhou dignidade, e sucessivas barreiras foram quebradas. Uma narrativa honrando o “inovismo”, termo que ela por vezes usa no lugar de capitalismo, cumpre aí um papel vital. Coisa que vai muito além do terreno econômico, invadindo a cultura, os direitos, o sexo e os estilos de vida.
Deirdre chamava-se Donald e resolveu trocar de sexo, no final dos anos 1990. Fez de si mesma um exemplo dessas coisas. Seus filhos não a perdoaram. Tem um neto que nunca conheceu. Em algumas noites tristes, costumava estacionar o carro perto da casa do filho mais velho e observar seus amores, solitária.
Com o tempo, parou de fazer isso. Tornou-se uma professora bem-humorada com um evidente gosto para desafiar o senso comum. Ela parece saber que, na vida pessoal ou intelectual, a liberdade cobra seu preço. E que é preciso seguir vivendo.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Elio Gaspari: Os indemissíveis são dispensáveis
Funaro e Golbery foram asfixiados e pediram demissão
As relações do presidente Bolsonaro com seu ministro da Justiça, Sergio Moro, estão estragadas, e não há sinal de que eles voltem a se encantar. Estão afastados pelos projetos e sobretudo pelos temperamentos. O que acontecerá se eles se separarem?
Marco Maciel, o sábio vice-presidente de Fernando Henrique Cardoso, já respondeu a esse tipo de questão. Pode acontecer isso ou aquilo, mas sobretudo pode não acontecer nada.
A ideia de que, como ministro do Supremo ou mesmo como candidato, o xerife da Lava-Jato sofreria as inclemências do sol e do sereno pode parecer estranha, mas, olhando-se para o outro lado, nenhum presidente pagou caro pela dispensa de um ministro indemissível. Pelo contrário, a conta ficou cara para o presidente que não usou a caneta.
Guardadas todas as diferenças, passaram por Brasília três ministros indispensáveis. O último foi Dilson Funaro, o herói do Plano Cruzado de José Sarney. Sua gestão começava a dar sinais de cansaço e ainda era o ministro mais popular do governo, quando um conhecedor do Planalto informou que ele seria docemente asfixiado. Funaro saiu e virou asterisco.
Indispensável mesmo era o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do presidente João Figueiredo, que lhe devia a arquitetura da própria nomeação. Em 1981, na crise do atentado do Riocentro, o presidente alinhou-se com a “tigrada”, e Golbery foi-se embora. Pensava-se que seria impossível substituí-lo. Esmeralda, a mulher do general, que lhe atribuía poderes paranormais, cravou: Ele vai chamar o professor Leitão de Abreu. Não deu outra, e o ex-chefe da Casa Civil do governo Médici manteve o barco à tona. Golbery afundou com a candidatura de Paulo Maluf à Presidência.
Funaro e Golbery foram asfixiados e pediram demissão, já o general Sylvio Frota, ministro do Exército do presidente Ernesto Geisel, foi mandado embora. Frota tinha o peso do cargo, invicto em todos os confrontos com a Presidência. O general supunha-se presidente de um conselho de administração (o Alto Comando do Exército), capaz de emparedar o CEO (Geisel). Quem sabe uma parte dessa história é o ministro Augusto Heleno, ajudante de ordens de Frota. Na tensa jornada de 12 de outubro de 1977, a pedido do chefe, o capitão Heleno fez uma ligação para o general Fernando Bethlem, comandante da tropa do Sul, em quem Frota via um aliado. Se os dois conversaram, é quase certo que Bethlem já soubesse que era seu sucessor. No dia seguinte, Frota estava em seu apartamento do Grajaú.
Nesses três casos, os indispensáveis foram dispensados. Houve outro, no qual o presidente medrou. Em 1965, Castello Branco manteve o general Costa e Silva no Ministério da Guerra, apesar de ele ter estimulado o lançamento de sua candidatura à Presidência da República. Castello cedeu, para contrariedade de seus mais diretos colaboradores. Quando se deu conta de que Costa e Silva levava o país para uma ditadura escancarada, preparou-se para desafiá-lo, mas foi ao Ceará, embarcou num aviãozinho, caiu e morreu.
Os ministros são indispensáveis até a hora em que são dispensados. Afinal, como também ensina Marco Maciel, as consequências geralmente vêm depois.
Hélio Schwartsman: Doenças infecciosas moldaram a história e a evolução humanas
Sucesso da ciência em controlar moléstias nos fez esquecer quão devastadoras elas podem ser
É preciso que surjam novos agentes patógenos como o coronavírus de Wuhan para que experimentemos uma pequena fração da angústia com doenças infecciosas que sempre acompanhou a humanidade. O sucesso da ciência em controlar as moléstias virais, bacterianas e parasitárias em vastas regiões do globo nos fez esquecer quão devastadoras elas podem ser.
A varíola, provavelmente a maior assassina da história, matou, só no século 20, entre 300 milhões e 500 milhões de humanos. A peste bubônica dizimou até um terço da população europeia no século 14. Uma parcela ainda maior dos grupos ameríndios sucumbiu ao blend de doenças infecciosas trazidas pelos europeus.
Aos que gostam de pintar as guerras como um flagelo comparável vale lembrar que, até a 1ª Guerra Mundial, a grande maioria dos soldados abatidos em conflitos morria por causa das doenças que acompanhavam as tropas e não devido à carga dos exércitos inimigos. Na Guerra Civil americana, dois terços dos 500 mil mortos foram vítimas primárias de patógenos. A situação só mudou depois que os militares incorporaram brigadas sanitárias, que, com barbeiros e serviços de lavanderia, limaram os ectoparasitas que transmitiam tifo e outras moléstias.
Doenças infecciosas moldaram a história e a evolução humanas. O vazio populacional deixado pela peste jogou o preço do trabalho nas alturas, desestabilizando o sistema feudal e abrindo caminho para o capitalismo. Ectoparasitas são a melhor hipótese para explicar a redução de pelos nos humanos. Isso para não mencionar a invenção do sexo, que também parece ser uma resposta a patógenos.
O curto e precário controle que conseguimos exercer sobre as moléstias infecciosas a partir do século 19 se deve exclusivamente à ciência —a mesma ciência que governos populistas ignoram quando desdenham especialistas e estudos técnicos. A população não faz melhor quando rejeita vacinas.
Vinicius Torres Freire: Por ora, risco maior é o Viabra, vírus da incompetência aguda brasileira
INSS e Enem são casos evidentes, mas há infecção em outras áreas do governo
O coronavírus pode diminuir de um quinto a um terço do crescimento da China neste trimestre, a gente lê por aí em relatórios financeiros e em textos de consultorias. É uma diferença brutal de estimativa (rir, rir, rir), ainda mais para um PIB grande como o chinês, equivalente a um sexto da economia mundial.
A tolice não para por aí, embora a doença seja séria e possa matar milhares de pessoas. Por ora, no entanto, a gente corre mais risco com o Viabra (“Vírus da Incompetência Aguda Brasileira”), que infecta evidentemente o INSS ou a Educação, para ficar só em dois exemplos, mas pode infectar até a medula da política econômica.
A gente não tem informação confiável nem sobre a doença, que dirá de seus efeitos na economia da China ou do mundo. Não se sabe bem o número de casos chineses, com o que não se conhece a velocidade de expansão da infecção nem quão letal é.
Cientistas de Hong Kong criticam os números da China (pode haver mais infecções). Há dúvidas sobre qualquer contagem porque, afora a confusão que esses surtos provocam, duvida-se que ora existam profissionais e testes em quantidade suficiente para fazer exames.
O coronavírus vai ter efeito pior do que seu primo que causava a Sars (síndrome respiratória aguda grave), epidemia de 2002-2003? Pelo que se tem registro, a Sars matou cerca de 800 pessoas e infectou umas 8 mil, de novembro de 2002 a julho de 2003. Uns estudos do efeito econômico da doença dizem que a epidemia tirou cerca de um décimo do crescimento do PIB chinês, que corria então ao ritmo de 10% ao ano. Além de Hong Kong e Singapura, no restante do mundo, o efeito foi na prática irrelevante, afora para os mortos, suas famílias e seus amigos.
Isto posto, o vírus parece bastante agressivo, escreve gente que estuda o assunto, em revistas científicas. Um baque significativo na economia chinesa pode ter efeitos diretos no Brasil (preços de minério e petróleo) e indiretos. Até a semana passada, o FMI e bancões pareciam animadinhos com alguma retomada da economia mundial. Para o FMI, o crescimento global passaria dos 2,9% estimados para 2019 para 3,3% neste 2020. Se houver desgraça maior na China, não vai rolar.
Enquanto seu vírus não vem, o nosso principal problema somos nós mesmos e o Viabra, o vírus da incompetência. Além de gente desclassificada, há gente desqualificada em postos-chave do governo.
Desgraçar a vida de gente na fila do INSS ou infernizar vestibulandos do Enem, no curto prazo nem causa danos econômicos, pode-se congratular barbaramente o governo. Mas o Viabra está espalhado pela administração federal, um risco enorme para a economia, doente grave que convalesce devagar. Nesse ano, seria preciso haver outra rodada de redução duradoura de gasto, um programa de obras na rua e algum conserto tributário, pelo menos. Se nem ao menos o pacotão rudimentar e antissocial de ajuste econômico for adiante, o caldo azeda.
Exagero? Note como o Ministério da Economia diz “a” e Jair Bolsonaro diz “não a” ou “b” sobre tantos assuntos. O governo cria crises políticas do puro ar, do nada. A maioria delas tem sido espuma tóxica, daninha, mas que se dissipa.
E quando não for? Esperar que Rodrigo Maia governe o grosso da economia com uns economistas de Bolsonaro e controle suas atrocidades maiores pode até ser uma expectativa razoável, mas o mero fato de que as coisas tenham funcionado assim, e olhe lá, não diz boa coisa sobre o nosso arranjo.
Bruno Boghossian: Defeitos de fabricação do governo Bolsonaro são cada vez mais evidentes
Falta de planejamento e articulação deram origem às falhas no Enem e no INSS
Ao anunciar a saída do chefe do INSS, o governo disse esperar "que não haja descontinuidade" nas atividades do setor. Seria um sinal de autoconfiança se não fosse a fila de 1,3 milhão de pedidos de aposentadoria encalhados no órgão. A equipe de Jair Bolsonaro age como se pudesse trocar uma peça e deixar o calhambeque rodando ladeira abaixo.
Os burocratas alegam que uma falha no sistema da Previdência acabou represando a concessão de benefícios. É mais honesto afirmar que esse é mais um dos defeitos de fabricação deste governo. A falta de planejamento, comunicação e articulação já foi vendida como item de série.
O governo tratou a reforma das aposentadorias como prioridade, mas não preparou as agências do INSS para a aplicação das novas regras. Encomendou planos megalomaníacos para dar nova cara ao Bolsa Família enquanto deixava cidadãos miseráveis na fila de espera. Bateu bumbo para a realização do Enem, mas não conseguiu garantir uma correção precisa de todas as provas.
Dez dias depois de admitir falhas no exame, o Ministério da Educação ainda não convenceu os estudantes de que os erros foram reparados. Nem o presidente foi capaz de dar um voto de confiança total ao chefe da pasta. Bolsonaro não quis responsabilizar o boquirroto Abraham Weintraub, mas emendou que ele continua no cargo "por enquanto".
Com tanta desordem, ineficiência e falta de controle, não é surpresa que tantos integrantes do governo pareçam estar pendurados por um fio —de um secretário de Comunicação em flagrante conflito de interesses ao presidente do BNDES.
Foi o presidente, aliás, quem reafirmou as dúvidas sobre um contrato de auditoria ampliado pela cúpula do banco. "Parece que alguém quis raspar o tacho", disse, chamando o chefe da instituição de "o garoto lá".
Bolsonaro talvez tenha passado a reconhecer os problemas do governo depois de alguma revelação espiritual durante sua viagem à Índia. Algumas coisas simplesmente não têm como dar certo.
Conrado Hübner Mendes: O STF inventou o ministro contramajoritário, que joga contra a maioria da corte
Falta palavra para classificar liminar monocrática que passa por cima de outra liminar monocrática
Uma suprema corte tem função indispensável na democracia. Impor contrapeso a eventuais arroubos de maiorias eleitorais e legislativas, preservar a institucionalidade e proteger valores constitucionais acima do conflito político cotidiano são papéis delicados. Para que sobreviva como instituição que se respeita e se obedece, precisa investir na fina construção e manutenção de sua autoridade.
O STF se autoliberou desse penoso exercício.
Prefere um tribunal libertino, leve e solto. Presume que sua autoridade brota da natureza, ou das palavras da Constituição, pouco importa o que ministros fazem ou deixam de fazer dentro ou fora da corte. A libertinagem procedimental põe em risco a liberdade de todos nós, à esquerda e à direita. Não descobrimos isso em janeiro de 2020, mas o mês inovou.
A figura do “juiz das garantias”, aprovada pelo Congresso um mês atrás, determina divisão de trabalho entre o juiz que conduz produção de provas e o juiz que toma a decisão final. Inspirada em outras cortes do mundo, o modelo tenta potencializar as condições não só para uma decisão imparcial, mas para a imagem de imparcialidade. Gerou gritaria pública, sobretudo em entusiastas do selo Lava Jato de combate à corrupção.
Você pode ser contra ou a favor do juiz das garantias. Há argumentos dignos do nome dos dois lados, ainda que uns sejam mais convincentes que outros (debate que fica para outra coluna). Mas você não pode apoiar a arbitrariedade judicial só porque ela atende sua opinião hoje. Amanhã o afetado por manobra monocrática poderá ser você. Atenção aos métodos, não só aos resultados.
Liminar de Toffoli durante o recesso judicial ampliou prazo legal para implementação do juiz das garantias de 30 para 180 dias. Fux, outro plantonista do recesso, revogou a decisão de Toffoli e suspendeu, sem prazo definido, esta e diversas outras disposições do “pacote anticrime”. Ressaltou que tomava essa decisão com “todas as vênias possíveis” a Toffoli.
É provável que esse caso não volte mais à pauta do tribunal nessa geração. Afinal, desde 2012 esperamos que a gaveta de Fux solte para plenário o julgamento dos penduricalhos de juízes fluminenses (que a lei chamou de “fatos funcionais”); desde 2014, sua gaveta sonega do plenário o caso do auxílio-moradia. Para ficar em dois exemplos. A história não tem registro de voto de Fux que contrarie a magistocracia.
Foi um “descalabro” que “desgasta barbaramente a imagem do STF”, nas palavras do ministro Marco Aurélio. Para Gilmar Mendes, Fux “deveria entregar a chave do Parlamento” à equipe da Lava Jato. Soa bem, mas sabemos o que Marco Aurélio e Gilmar Mendes fizeram em verões passados.
Liminar é decisão de urgência. Justifica-se à luz do risco de a demora judicial causar prejuízo irreversível.
Num tribunal, liminar deve ser concedida pelo colegiado. Apenas por razão excepcional, pode ser tomada de forma monocrática.
Em controle de constitucionalidade, nem por razão excepcional (a lei 9.868 não autoriza, mas o STF a ignora). Apenas por razão excepcionalíssima, pode ser tomada dentro do recesso judicial.
Liminar monocrática em recesso, portanto, é decisão triplamente qualificada.
Fux rompeu a barreira. No glossário dos abusos judiciais, falta palavra para classificar liminar monocrática que passa por cima de outra liminar monocrática, ambas dentro do recesso.
O pensamento constitucional emprestou o mito de Ulisses para simbolizar a tarefa de cortes. Democracia que se sujeita a limites agiria como Ulisses. No mito, Ulisses se amarrou ao mastro para resistir ao canto das sereias. Na política moderna, democracias se amarraram às barreiras constitucionais. No STF, Fux não resistiu e se amarrou às sereias. “O mastro às favas”, poderia ter dito.
Uma suprema corte também se diz “contramajoritária” porque busca represar impulsos de maiorias. O STF inventou o ministro contramajoritário: aquele que joga contra a maioria do STF. Isso só se conhece no STF. Não é jabuticaba, pois a saborosa fruta não merece ser metáfora de nossos vícios e patologias. É aberração mesmo.
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Ranier Bragon: Bolsonaro deveria explicar em uma agência do INSS a sua política de gestão pública
Apagões pipocam aqui e ali na máquina pública; não há Titanic que suporte tanta competência
A máquina pública é formada por tal engrenagem complexa e impermeável a solavancos que, digamos, mesmo que amanhã assuma a cadeira presidencial o Marinheiro Popeye, o país continuará a sua marcha. Ocorre que tudo tem limite.
Lentamente, a incompetência patente, a total falta de ideia sobre o que fazer, o brancaleonismo piorado pela prepotência, o pelotão da ignorância travestido de exército da salvação, enfim, tudo isso, misturado, haveria de cobrar a devida fatura.
Jair Bolsonaro, que gosta de dar voltinhas em Brasília para comer pastéis, visitar feiras, bem que poderia aproveitar algum desses momentos em que não tem, ou não sabe, o que fazer —e eles parecem ser muitos— e dar um pulinho nas agências do INSS. Lá não vendem pastéis, mas foi em uma delas que o repórter Bernardo Caram encontrou o trabalhador rural Paulo Novais de Jesus, que disse aguardar há três meses a liberação de um auxílio-doença. Devido a isso, tem feito incursões na mendicância. “Tive que perder a vergonha de pedir comida para a família.” Ao todo, 1,3 milhão de brasileiros estão em situação similar, no rol de vítimas de apagões que pipocam aqui e ali na máquina pública que Paulo Guedes quer pôr abaixo para o bem geral da nação.
Além de ouvir a história dessa gente, Bolsonaro poderia aproveitar a oportunidade e explicar a eles o que não deu certo na sua promessa de só levar os melhores, os mais competentes, para a sua equipe. Guedes poderia ajudá-lo a responder essa.
Além do cenário de deus-dará no INSS, os melhores estão à frente da balbúrdia que inferniza estudantes e sucateia a educação, órgãos do meio ambiente e o programa de casas populares, que retoma as filas e diminui a cobertura do Bolsa Família, que gera panes técnicas as mais variadas e que troca políticas públicas baseadas em fatos e ciência por bênçãos do caderno da tia-avó.
Por mais resiliente que seja esse trambolho chamado máquina pública, não há Titanic que suporte por muito tempo tanta competência.