Folha de S. Paulo
Ruy Castro: Tirem suas conclusões
Uma técnica de persuasão mais eficaz do que a pura e simples estupidez
A Polícia Federal concluiu que o senador Flávio Bolsonaro não cometeu os crimes de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica de que está sendo acusado pelo Ministério Público do Rio, por estranhas transações com lucros astronômicos, marotas declarações de bens, movimentações atípicas de dinheiro vivo e invejável evolução patrimonial —tudo isso para um então deputado estadual e dono de uma loja de chocolates próspera no ano inteiro, menos na Páscoa. Ao ser indagado a respeito por um repórter, o presidente Bolsonaro rugiu: "Pergunta pra Polícia Federal!".
Típico de Bolsonaro. Fala todos os dias com os jornalistas, mas, se um deles toca em algo mais delicado ou lhe pede para explicar uma de suas próprias declarações, vocifera cala-bocas como "Chance zero!", "Esquece!", "Ponto final!", "Assunto encerrado!" e "Próxima pergunta!". Ou põe fim de vez à conversa com o incisivo "Acabou, talquêi?" e o já clássico "Pergunta pra tua mãe!" —o primeiro presidente a botar a mãe no meio das ejaculações presidenciais. Mas, no caso das acusações a Flávio Bolsonaro, ele tem razão —só a Polícia Federal consegue explicar por que o livrou.
Já seu outro filho, o vereador Carlos Bolsonaro, usa tática mais sutil. Em suas postagens nas redes sociais, alinha os argumentos de que precisa para provar um ponto. Mas, em vez de levá-los à conclusão lógica, termina com "Tirem suas conclusões" —dando margem a que seus interlocutores cheguem exatamente à conclusão a que ele quer que cheguem, mas pensando que o fazem por conta própria.
É um coquetel retórico, combinando conceitos de persuasão de massas, técnicas de publicidade e estratégias de livros de autoajuda, tudo bem misturado e servido com uma cereja. Serve tanto para vender sabão em pó quanto para induzir um indeciso a se aproximar de um líder, converter-se a ele e pensar como ele.
Tirem suas conclusões.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Elio Gaspari: Bolsonaro deve estudar seus recuos
A ideia de deixar brasileiros numa área de risco era bobagem em estado puro
Precipitação e insônia os males de Bolsonaro são. Basta que se congelem duas situações irracionais nas quais teve que recuar. Primeiro, a nomeação do peripatético Vicente Santini, demitido depois de seu voo de Davos para Nova Déli e novamente defenestrado. Depois, a declaração de que não poderia resgatar os brasileiros confinados em áreas de risco da China: “Custa caro um voo desses”, disse o capitão depois ter ouvido quatro ministros. Novamente, recuou e fez o certo.
No primeiro caso (a recontratação de Santini), poderia ter ficado quieto por 24 horas, durante as quais ouviria pessoas em quem confia. No segundo (o dos brasileiros que estão na China), bastaria ficar calado, pedindo aos çábios que lhe sugeriram a omissão que pusessem a cara na vitrine.
Sempre houve ministros prontos para repetir bobagens ditas por presidentes. Apanham, mas colhem prestígio palaciano. Presidente repetindo bobagens ciclópicas de ministros é coisa rara. Esse foi o caso do “custa caro um voo desses”. A ideia de deixar brasileiros numa área de risco era bobagem em estado puro, e o presidente foi jogado aos leões por um infeliz palpiteiro (ou por felizes palpiteiros que preferiram ficar calados). Bolsonaro mexeu com a relevância do cargo que ocupa.
Não se pode pedir que ele siga os melhores exemplos de seus antecessores, mas pode-se lembrar a conduta de Dom Pedro II numa situação inversa, na qual ele poderia ser suspeito de trazer um micróbio indesejável. Em 1871 o imperador viajava para a Europa como Pedro de Alcântara, um cidadão qualquer, e seu navio aportou em Lisboa. Passageiros vindos do Brasil tinham que se submeter a uma quarentena, indo para o Lazareto. Ofereceram-lhe um passe livre e, em voz alta, ele o recusou, submetendo-se a uma quarentena de que durou oito dias. Escreveria: “Estou no Lazareto, uff!”
Dom Pedro passou para a História escondendo suas opiniões. Bolsonaro quer entrar nela, disparando-as como se fossem rojões de réveillon. Sabe-se que ele padece de um sono irregular. Em março passado, intitulou-se recordista brasileiro de apneia, com 89 interrupções do sono a cada hora. Tomara que resolva esse problema, pois ele mesmo reconhece que fica “saturado”, a ponto de não querer ouvir o que houve no Enem. Uma anomalia do sono pode explicar suas saturações, mas não consegue justificá-las, até mesmo porque, dando-se conta do erro, às vezes dá meia volta.
O exercício de uma presidência espetaculosa é um direito de seu titular e em algumas ocasiões funciona. Tendo nomeado Regina Duarte para a Secretaria da Cultura, Bolsonaro colocou-a debaixo dos holofotes. Por enquanto, a presença da atriz no governo é uma reaparição da Viúva Porcina, da novela “Roque Santeiro”, num cenário vetusto. Como Porcina agradou a uma geração, nada impede que ache um nicho na Secretaria de Cultura. Se não achar, o problema será dela, nem tanto dele. Seu êxtase durante a execução do Hino Nacional numa cerimônia militar em que tinha ao lado o doutor Paulo Skaf pode ter refletido a fé patriótica de uma nova dramaturgia.
Bolsonaro pode continuar fazendo o que acha melhor, mas evitará as cascas de banana que sai espalhando pelos lugares onde pretende pisar se tomar uma simples providência: diga o que quiser, mas espere entre seis e 12 horas.
Hélio Schwartsman: Lula e a verdade
É dever da imprensa conferir a consistência de suas declarações
“Que é a verdade?”, inquiriu Pôncio Pilatos. Ninguém respondeu. A pergunta é difícil. Ouso dizer que encerra um dos problemas mais cabeludos da filosofia. Mesmo a mais simplesinha e formalista das definições, que equipara a verdade à “adequação da proposição ao objeto”, já consumiu enorme quantidade de tinta e de argumentos e não há sinal de que os filósofos possam chegar a um consenso.
Apesar disso, ao contrário de alguns pós-modernistas, penso que não devemos desistir. Dá para afirmar que a proposição “a Terra é o terceiro planeta a contar do Sol” é verdadeira. Com qualquer outro número ordinal, será falsa. Obviamente, esse critério vale apenas para alguns tipos específicos de juízo, que nem são os mais interessantes —mas é o que temos.
Analisemos, à luz dessas ideias, a polêmica do ex-presidente Lula com a Folha a respeito da veracidade de declarações que ele deu após sua libertação. Por razões de espaço, fixo-me num único caso, o da Globo. Lula tem todo o direito de criticar a cobertura que a emissora fez da Vaza Jato, mas deveria medir melhor as palavras. Se ele diz que a Globo só mencionou o Intercept duas vezes, e essa afirmação —cujo conteúdo empírico é claro e facilmente verificável— não corresponde aos fatos, é forçoso concluir que o ex-presidente falseou a verdade.
É só força de expressão, dirá a turma do deixa-disso. Se um anônimo tivesse afirmado o mesmo que Lula numa conversa de botequim, poderíamos deixar passar. Mas o ex-presidente é o principal líder do maior partido de oposição e disse o que disse no curso de uma entrevista formal ao UOL. É dever da imprensa conferir a consistência de suas declarações.
Não se trata de mero capricho. A democracia convive bem com a divergência de opiniões, mas ela precisa que haja consenso ao menos em relação a juízos que descrevem fatos —ou a própria possibilidade de diálogo fica comprometida.
Ranier Bragon: Mensagem de Bolsonaro mostra pauta de costumes restrita às redes sociais
Texto mantém foco na economia e não aborda o que move o bolsonarismo raiz
Um fantasma rondava o Brasil no final de 2018. A eleição de Jair Bolsonaro e a vitória da onda conservadora também na escolha dos novos deputados federais e senadores representavam uma perspectiva de anos sombrios nos tapetes verdes e azuis do Congresso Nacional.
O Escola sem Partido, por exemplo, despontava com força aparentemente irresistível a sugerir uma era em que o “Deus acima de todos” seria mais do que uma mera retórica de palanque.
O ano de 2019 no Legislativo teve a economia como prioridade. A depender dos sinais dados nesta segunda-feira (3) na solenidade de retomada dos trabalhos do Congresso, 2020 irá pelo mesmo caminho.
Jair Bolsonaro não terá, tão cedo, se é que terá algum dia, espaço para emplacar no Congresso e no Judiciário a sua chamada “agenda de costumes”, que mobilizou sua campanha e ainda pauta aliados no Executivo e, é claro, nas redes sociais.
É o que se depreende da mensagem de 2020 enviada por ele aos parlamentares. O texto de introdução é recheado de autoelogios e de promessas totalmente desconectadas da realidade. Tais como a de que o viés ideológico deixou de existir na política externa. Ou de que o governo trabalha pela educação de qualidade, pela redução da pobreza, da desigualdade e pela sustentabilidade ambiental, tudo isso já resultando em um país mais fraterno.
Noves fora o palavrório à napoleão de hospício, o foco continua na área econômica —reforma tributária e outras propostas—, sem uma única menção ao Escola sem Partido e aos demais componentes da pauta obscurantista do bolsonarismo raiz. Menos do que um sinal de que o presidente abandonou seus ideiais de campanha, o texto representa mais a consciência de que não houve guarida a essa maçaroca no Congresso e no Judiciário, em 2019, e, pelo menos no futuro próximo, parece que assim continuará a ser.
Não sem razão o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), procurou frisar, em sua fala, a salvaguarda “inflexível, firme e vigilante” das garantias fundamentais da Constituição de 1988.
Leandro Colon: Os Brasis delirantes de Lula e Bolsonaro
O Brasil do ex-presidente parece tão ou mais surreal do que o de Bolsonaro
Há pelo menos três Brasis em andamento. Um de Jair Bolsonaro, outro de Luiz Inácio Lula da Silva e um Brasil mais real, sem os delírios bolsonaristas nem lulistas.
No Brasil de Bolsonaro, nada do que a imprensa faz presta, tudo não passa de perseguição a um governo perfeito. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, é um exemplo de gestor, e o Enem, um sucesso —só está sob ameaça de sabotagem.
Nesse Brasil, não há conflito de interesse no fato de o chefe da Secom, Fabio Wajngarten, receber dinheiro de emissoras de TV e agências que levam verba da própria Secom.
E qual o problema em ter trabalhando na Esplanada o ministro do Turismo denunciado por corrupção eleitoral? Para Bolsonaro, nenhum.
Readmitir um assessor que pegou um voo exclusivo da FAB para a Índia seria ok nesse país bolsonarista, se não fosse a reação imediata dos veículos de comunicação, ao noticiar a manobra do Planalto, e das redes sociais, repudiando a renomeação de Vicente Santini na Casa Civil.
O Brasil do ex-presidente Lula parece tão ou mais surreal do que o de Bolsonaro. Enquanto o país precisa de uma oposição serena e construtiva, para contradizer um governo caótico e ineficaz, Lula vive em um mundo de conluios e conspiratas.
Como bem mostrou a Folha neste fim de semana, o petista acumula declarações falsas e distorcidas desde que saiu da prisão, em novembro.
A sensação é a de que Lula fala sem preocupação com a precisão do que diz. O blá-blá-blá talvez seja intencional. Ele despreza a imprensa e insiste na narrativa sem pé nem cabeça de que um complô americano atuou na Petrobras para desgastar o PT.
Como se o seu governo e o de Dilma não tivessem entregue a estatal a petistas e peemedebistas, entre eles o presidiário Eduardo Cunha, para tomar de assalto os seus cofres.
O Congresso retorna hoje com uma agenda econômica de interesse do país. Bolsonaro continua sem uma base de apoio. A sorte dele é que a oposição, que tem o PT de Lula como principal força, nem faz cócegas.
Leandro Colon é diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso.
Folha de S. Paulo: General ex-ministro de Bolsonaro diz que 'fritura política é negócio de gente desqualificada'
Santos Cruz evita responsabilizar o presidente por sua saída do governo e defende ministro Moro
Ricardo Della Coletta, da FolhaEduardo Militão, do UOL
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, afirma que sofreu uma situação de fritura política que culminou com sua saída do governo, em junho de 2019. Para ele, esse tipo de processo é coisa de “de gente desqualificada” e da “escória da política”.
“É um processo de que participam pessoas que não têm qualidade nenhuma, moral e profissional. Para você demitir um ministro, ou qualquer pessoa em função de confiança, é só conversar e mais nada”, disse o ex-ministro, durante programa de entrevistas da Folha e do UOL, em estúdio compartilhado em Brasília.
Apesar das declarações, ele evitou responsabilizar ou criticar diretamente o presidente Jair Bolsonaro e disse não considerar que o mandatário tenha tentado submeter o ministro Sergio Moro (Justiça) a rito de desgaste semelhante.
Fritura política
Eu até fico constrangido de falar desse negócio de fritura política. Acho isso um negócio de gente desqualificada, é coisa da escória da política. O político que se comporta fritando outros é gente desqualificada.
Alvo de fritura
Nunca me afetou emocionalmente e não dou bola para isso. Mas acredito que sim, houve esse processo. É um processo de que participam pessoas que não têm qualidade nenhuma, moral e profissional. Para você demitir um ministro, ou qualquer pessoa em função de confiança, é só conversar e mais nada. Você não precisa desse processo. Para compensar a covardia de não querer falar com a pessoa, você vai criar mil situações para constranger. Para mim, não cola.
Bolsonaro x Moro
Não, posso até considerar que ele está fazendo um erro político. O Sergio Moro é um ícone, uma pessoa que liderou uma virada contra a corrupção histórica no Brasil. A Lava Jato, com Sergio Moro à frente, se tornou uma coisa que vai ficar para sempre.
Outra coisa é que ele [Moro] é uma pessoa com prestígio fantástico na sociedade brasileira. Qualquer modificação nas [suas] atribuições vai ter um custo político muito alto. É uma pessoa que inspira seriedade, firmeza e valores que são necessários. Para mexer nisso, você tem que pensar muito bem.
Em catástrofes no mundo inteiro as Forças Armadas participam. Queimadas, grandes incêndios, enchentes, furacões... Então a participação dos militares na Amazônia [durante as queimadas] foi absolutamente dentro da normalidade.
O caso do INSS é administrativo e não tem nada a ver com catástrofe. Você tem dentro do INSS pessoas que podem resolver a questão. Você pode convocar ex-funcionários do INSS que conhecem o sistema, pode terceirizar, fazer concurso, uma série de coisas.
Basicamente tem que ouvir e valorizar o INSS. Você vai ter que treinar os militares, [porque] eles não são treinados para isso. Não vejo o militar como solução para tudo.
Avaliação do governo
Hoje eu torço para que dê certo. Qualquer governo faz coisas boas e ruins. Eu vejo o governo como absolutamente normal em termos de resultado, não é nada espetacular. Talvez as expectativas hoje sejam bem maiores do que a realidade: teve um crescimento de PIB, uma redução pequena de desemprego.
Os resultados não são fantásticos, absolutamente normais. A gente vê que tem uma expectativa positiva para a frente, isso é bom em termos emocionais. Vai ter que esperar essa coisa se concretizar ou não.
Ambiente político
O ambiente politicamente não é bom. Um governo tem que transmitir tranquilidade, união, um ambiente de trabalho onde as pessoas possam esperar com tranquilidade o desenvolvimento da sociedade. Não no tumulto de todo dia você ter uma intoxicação enorme de fake news e de grupos ideológicos espalhando conflitos. Não se pode viver num estado permanente pré-eleitoral.
Verba da Secom
Essa distribuição tem que ser feita com bastante critério. Se você for colocar preferências políticas e ideológicas, você pode ter problema. Eu sou absolutamente contra posicionamentos ideológicos e preferenciais por questões políticas, seja para A ou para B, em termos de comunicação.
Caso Fabio Wajgarten
Isso tem que ser analisado, em primeiro lugar, pela Comissão de Ética [da Presidência]. Precisa ser analisado do ponto de vista jurídico e para isso tem a SAJ [Subchefia para Assuntos Jurídicos] para verificar, além da CGU [Controladoria-Geral da União] e TCU [Tribunal de Contas da União]. Tem que verificar do ponto de vista legal.
Relacionamento Brasil-EUA
Em qualquer situação, sempre quem perde é quem que se alinha automaticamente. Os EUA são um país que tem a liderança mundial em muitas coisas. Um país que nós temos muitas ligações culturais, mas a política americana é baseada nos interesses dos EUA. Com razão. Ser alinhado automaticamente não significa que você vai ter peso na condução da política americana.
Voto do Brasil a favor do embargo a Cuba
Quando ocorreu o voto contra o embargo [americano a Cuba], o Brasil quebrou uma tradição [de 27 anos]. Você votava [contra o embargo] não por causa de alinhamento ideológico, mas por princípios de não se tomar esse tipo de medida seja contra quem for.
Era um posicionamento que se tinha e que foi quebrado. Um posicionamento quebrado por só três países [EUA, Brasil e Israel]. É pouco, nós temos aí quase 200 países. E quando você tem só três tomando uma direção é porque tem alguma coisa que precisa ser considerada.
Grupo ideológico no governo
O presidente Bolsonaro foi eleito por um grupo de pessoas que simpatiza com ele; por um pequeno grupo altamente ideológico, que faz um escândalo muito grande, e por uma grande massa movida pelo sentimento anti-PT.
Após a eleição, toda essa massa anti-PT e todos os que são simpatizantes da maneira de ser do presidente querem resultados de governo. O grupo ideológico, que é muito pequeno, continuou com uma influência muito grande. Ele se comporta como se fosse haver uma eleição na semana que vem.
Bolsonaro e PT
Quem é que mantém o perdedor [das eleições] na primeira página da mídia desde desde aquela época? É o PT ou foi o vencedor [das eleições]? É uma insensatez. Aquele grupo perdeu, ele espera e se candidata na próxima [vez]. É normal. Agora eles têm que esperar, se reorganizar e mudar o discurso.
Mas quem é que mantém a chama acesa daquele grupo ali [oposição]? Eu acho que é um grupo, não é só ele [Bolsonaro]. É um grupo exacerbado e ideológico, que mantém o perdedor na mídia. Na realidade, o perdedor está se beneficiando de toda essa insensatez.
Carlos Alberto dos Santos Cruz, 67
General da reserva do Exército, foi ministro da Secretaria de Governo até junho de 2019. Foi secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça durante a administração Temer. Comandou as tropas da ONU nas missões para estabilização do Haiti e da República Democrática do Congo.
Bruno Boghossian: Lula e oposição ainda vacilam no embate cotidiano com Bolsonaro
Adversários hesitam até na hora de tirar uma casquinha da balbúrdia do governo
Lula parece ter dado uma folga a Jair Bolsonaro. Nos principais trechos de sua entrevista ao UOL na última semana, o ex-presidente citou o nome do rival apenas seis vezes. Nenhuma continha uma crítica incisiva. O petista chegou a concordar com os ataques do atual governante à imprensa e só recomendou que ele parasse de “falar bobagem”.
Trata-se do mesmo Lula que, há pouco mais de dois meses, saiu da prisão chamando Bolsonaro de miliciano e insinuando que o aumento patrimonial do adversário era fruto de atividades ilegais. “O PT tem que polarizar mesmo”, declarou.
Seja uma pausa estratégica ou uma tática duradoura, o tom do discurso do ex-presidente se soma a um comportamento relativamente tímido da oposição ao governo Bolsonaro. É verdade que o presidente e seus aliados criaram por si mesmos a balbúrdia desses primeiros 13 meses de mandato, mas seus adversários foram hesitantes até na hora de tirar uma casquinha do caos.
Parte dos opositores vacila por acreditar que qualquer exploração política da bagunça produzida pelo governo ajuda Bolsonaro. Basta uma provocação para que o presidente levante hipóteses fantasiosas de sabotagem ou lance alertas exaltados para o risco de volta da esquerda ao poder. É exagero, mas ele consegue mobilizar suas bases assim.
A cautela não disfarça o fato de que a oposição tem provocado pouco barulho até aqui. No ano passado, a esquerda ainda conseguiu surfar nas manifestações de professores e estudantes contra o bloqueio de gastos na educação, mas passou em branco na sucessão de micos do Enem.
Boa parcela desse grupo, como sempre, fica imóvel à espera de sinais de Lula. O ex-presidente, por sua vez, se mostra mais interessado em defender seu legado e reconstruir a imagem do PT em médio prazo do que em traçar estratégias para o embate cotidiano com o governo.
No mais, o petista passou a guardar a acidez de seus ataques para o ex-juiz Sergio Moro. Nesse ponto, ele e Bolsonaro têm algo em comum.
Vinicius Torres Freire: Peso econômico da China triplicou entre o vírus de 2003 e o de 2020
País leva um terço do crescimento mundial
No ano da praga de 2003, o PIB chinês equivalia a 4,3% da economia mundial. Neste ano do coronavírus, a economia da China deve equivaler a mais de 16% do PIB mundial —é menor apenas que a americana (24%). A China de 2003 cresceu um pouco menos por causa da SARS (síndrome respiratória aguda grave), que teve efeito desprezível no restante do planeta.
O crescimento chinês tem ainda mais peso no crescimento do planeta. Em 2003, o aumento do PIB da China equivalia a uns 16% da variação total do PIB do mundo. Em 2018, dado mais recente disponível, a quase 33% (ante 22% dos Estados Unidos).
Portanto, uma síndrome qualquer da China, peste, revolução ou recessão, é um risco para a economia mundial. Mas o problema vai além da aritmética dos parágrafos aí para cima: vai além de saber qual a proporção do aumento do PIB chinês em relação ao aumento do PIB do mundo. O impacto da contaminação chinesa pode ser maior ou até bem menor que o tamanho de sua economia ou de seu crescimento.
O desconhecimento da potência da epidemia do coronavírus e da capacidade dos governos de administrá-la torna ainda mais difícil estimar seu efeito na saúde e na economia mundiais.
Parece que a doença do coronavírus é menos letal que a SARS (mata 2,5% dos infectados, até agora, ante 10% da SARS). O coronavírus parece se espalhar mais rápido, mas esse não é um dado da natureza. A velocidade da expansão pode ser controlada por quarentenas, barreiras e diagnóstico mais eficiente. Mas domar a epidemia pode ficar mais difícil se a doença for assintomática por muito tempo, se o vírus for muito mutante ou se a letalidade menor incentivar comportamentos de risco. Sabe-se pouco, ainda.
A incerteza é um problema. Quanto mais durar, pior, pois tende a provocar aperto nas condições financeiras, aversão a risco e contenção de investimentos, o de sempre. O coronavírus pode até ter o efeito de Donald Trump e sua guerra comercial de 2019.
O pico do número de infecções vai ocorrer entre fevereiro e março, como dizem certos chutes informados? Caso assim seja e o conhecimento sobre a infecção se estabilize, a crise deve passar sem efeito maior. O crescimento perdido no primeiro trimestre seria então recuperado até o final do ano.
No caso de a epidemia ser mais séria, resta a questão de saber os canais de contaminação econômica. A incerteza e o aperto financeiro causam danos gerais, claro. Mas onde haveria problema específico mais sério? A doença derrubaria mais as commodities ou a produção industrial?
A China fica com mais de 10% das importações mundiais (atrás apenas dos Estados Unidos, com 13%); em 2003, ficava com 3,7%. Pesa muito mais no comércio, o que é claro em especial para o Brasil, que lá vende muito ferro, soja e petróleo.
A doença vai se espalhar pelo país? O tráfego de pessoas pela China era muito menor em 2003 (as estimativas vão de um quarto a um oitavo). Mas as pessoas podem produzir e consumir online hoje em dia; a infraestrutura que ajuda a espalhar o vírus podem fornecer meios para contê-lo. A gente sabe muito pouco.
Sabemos que a economia mundial andou frágil em 2019, sob risco de crise; a situação do Brasil é ainda mais precária. Sabemos que entre a SARS e o coronavírus, o peso relativo da Chinês na economia e no comércio mundiais cresceu em torno de três vezes. A ameaça potencial é grande. Seria mais um motivo, pela enésima vez, para o país e seu governo deixarem de fazer besteira.
Hélio Schwartsman: Como enfrentar a epidemia?
Em 2002-3, o democrático Canadá lidou melhor com a Sars do que a ditatorial China
Qual o melhor sistema político para enfrentar a epidemia provocada pelo novo coronavírus? O modelo centralizador-autoritário chinês, que faz as coisas acontecerem rapidamente, ou o das democracias ocidentais, que põem limites à atuação de autoridades e privilegiam o livre fluxo de informações?
Não há como não se impressionar com a capacidade de mobilização da China, que constrói um hospital de mil leitos em seis dias, ou com a assertividade de seus dirigentes, que não hesitam em pôr milhões sob quarentena. Mas o sistema chinês saiu em desvantagem. A forma arbitrária com que o poder é exercido ali estimula autoridades locais a esconderem problemas. Ao que tudo indica, foi o que fizeram inicialmente em Wuhan, retardando a percepção da gravidade do surto.
Quarentenas forçadas, embora sejam desde o século 14 a resposta automática de autoridades a epidemias, funcionam melhor ou pior dependendo das características da doença. Elas têm mais chance de conter a moléstia quando a capacidade do patógeno de gerar novas infecções a partir de um paciente (o R0, em epidemiologuês) é baixa e quando a transmissão só ocorre após o aparecimento dos sintomas.
O novo coronavírus, porém, vai dando indícios de ser contagioso mesmo em fase assintomática e espraiar-se com certa facilidade, provocando, na maioria dos doentes, quadros benignos ou até subclínicos. Aí, quarentenas tendem a ser inúteis, quando não contraproducentes.
A resolutividade chinesa seria útil num improvável cenário distópico, em que fosse preciso pôr tropas para caçar infectados e conter rebeliões. Mas, quando a perspectiva mais realista é a de que a epidemia não apresente letalidade muito maior do que a de uma má temporada de gripe, parece mais sensato apostar no bom fluxo de informações e num sistema de saúde no qual as pessoas confiem. Em 2002-3, o democrático Canadá lidou melhor com a Sars do que a China ditatorial.
Folha de S. Paulo: Após crise, Bolsonaro volta a sinalizar que pode indicar Moro para vaga no STF
Acelerar nomeação pode tirar ex-juiz da corrida em 2022 e dar ao presidente mais controle sobre a PF
Gustavo Uribe e Daniel Carvalho, da Folha de S. Paulo
A recente crise política com o ministro da Justiça, Sergio Moro, levou Jair Bolsonaro a colocar novamente o ex-juiz da Lava Jato como o seu preferido para substituir o ministro Celso de Mello no STF (Supremo Tribunal Federal).
O decano se aposentará em novembro, abrindo espaço para o presidente emplacar seu primeiro nome na corte.
Aliados de Bolsonaro veem no gesto de indicar Moro um movimento para blindar um cenário em que ele pode surgir como seu adversário nas urnas na disputa presidencial de 2022.
Segundo relatos feitos à Folha, o ministro tratou da possibilidade de ir para o STF em conversa com o presidente após a polêmica sobre a recriação do Ministério da Segurança Pública, hoje integrado à pasta da Justiça.
O diálogo reservado foi apelidado por integrantes da equipe de Moro como uma “DR”, uma discussão da relação.
A indicação para o Supremo abriria ainda espaço para que o chefe do Executivo tenha mais ingerência no Ministério da Justiça, algo que ele vem buscando desde o começo do governo.
Um dos pontos sensíveis é a Polícia Federal. Uma saída de Moro pavimenta um caminho para Bolsonaro mexer no seu comando, desejo já sinalizado por ele no ano passado.
Em um aceno à bancada evangélica, o presidente havia definido que escolheria para o Supremo um jurista com respaldo da comunidade religiosa.
“Poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal. Um deles será terrivelmente evangélico”, disse, em julho de 2019.
O ministro da AGU (Advocacia Geral da União), André Mendonça, surgiu então como primeira opção, tendo sido citado pelo próprio Bolsonaro.
Nos bastidores, no entanto, o presidente passou agora a cogitá-lo para a segunda cadeira a ficar no vaga no STF, a do ministro Marco Aurélio Mello, que tem aposentadoria prevista para 2021.
Para essa posição também está na lista de possibilidades o ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, que vem ganhando prestígio junto ao presidente.
Bolsonaro chegou a dizer que havia reservado uma das vagas a Moro, que deixou a magistratura para se tornar ministro do governo.
O presidente, porém, depois negou haver qualquer acordo e disse apenas buscar alguém com o perfil do ex-juiz.
Segundo assessores, a nova mudança de entendimento, a favor de uma indicação já este ano, se deu após o mal-estar surgido com a declaração do presidente de desmembrar a pasta da Justiça, criando um ministério separado para a Segurança Pública.
Bolsonaro articulou uma reunião com secretários estaduais de Segurança, sem a presença do ministro, que tem usado o tema como uma das suas bandeiras de gestão.
Na ocasião, Moro disse a aliados que, se a manobra ocorresse, deixaria o governo. O atrito provocou reação forte de apoiadores do ex-juiz, que passaram a pressionar o presidente nas redes sociais.
O presidente então recuou e disse que, por enquanto, a possibilidade de dividir a pasta está engavetada.
Se antes Bolsonaro pretendia segurar Moro no governo como hipótese de tê-lo como candidato a vice em 2022, agora passou a considerar que a indicação ao STF é uma maneira de evitar que ele se torne um adversário nas urnas. Ao mesmo tempo, é uma estratégia para ganhar mais autonomia sobre seu próprio governo.
Com uma popularidade maior que a de Bolsonaro, como apontou pesquisa Datafolha do fim de 2019, Moro ganhou o apelido no Palácio do Planalto de “ministro indemissível” e se tornou, na avaliação de auxiliares do governo, um contraponto ao presidente na Esplanada.
Então juiz da 13ª Vara Criminal da Justiça Federal em Curitiba e responsável pela Operação Lava Jato, Moro foi convidado por Bolsonaro logo após sua vitória na eleição de 2018. Ele chegou ao governo com a promessa de que assumiria um “superministério” com a missão de reforçar o combate à corrupção e ao crime organizado.
No início da semana, em entrevista ao programa Pânico, da rádio Jovem Pan, o ministro mandou um sinal ao Planalto ao se referir a uma eventual indicação como uma “perspectiva interessante”.
“Venho da magistratura, seria algo interessante. Mas a escolha evidentemente cabe ao presidente da República. Ele tem a possibilidade de me indicar, pode indicar outras pessoas”, disse Moro na entrevista.
Além de evitar o risco de Moro se tornar um oponente de Bolsonaro na próxima disputa presidencial, a indicação ao STF evita que ele entre novamente em conflito com o ministro neste ano, desta vez por causa do comando da PF.
O presidente pretende colocar à frente da força policial o atual diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alexandre Ramagem. Delegado da PF, ele atuou na segurança de Bolsonaro logo após as eleições de 2018 e se tornou seu amigo.
O nome de Bolsonaro, no entanto, não tem o apoio de Moro, que defende a permanência de Maurício Valeixo ou a escolha do diretor-geral do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), Fabiano Bordignon.
O presidente, que pretendia fazer a troca já em fevereiro, deve segurá-la para o final do ano, às vésperas da escolha do nome para o STF.
A possível indicação de Moro ao Supremo tem a simpatia do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e conta com o apoio da ala lavajatista do Senado, onde os indicados para o STF são sabatinados.
No entanto, enfrenta resistência junto a um grupo de parlamentares com processos em curso. Para eles, o ingresso de Moro no Supremo pode mudar o equilíbrio de forças na corte, prejudicando-os.
Também há questionamentos em razão de conversas vazadas entre Moro e o procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol. Os diálogos indicam que Moro, enquanto juiz, orientou o trabalho da Procuradoria, o que é barrado pela lei.
O receio da articulação política do Planalto é que uma indicação do ministro possa ter reação imediata no Legislativo, com ameaça de travamento da pauta do governo.
Alguns senadores têm propostas para alterar o critério de escolha de integrantes do Supremo. A presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), no entanto, já sinalizou que não pretende pautar nenhum texto que altere as regras do jogo imediatamente.
MINISTROS QUE SE APOSENTAM NO GOVERNO BOLSONARO
Celso de Mello
Decano do Supremo, foi indicado por Sarney em 1989. Sua aposentadoria compulsória ocorre em 1°.nov.2020, quando completa 75 anos
Marco Aurélio
Indicado por Collor em 1990, aposenta-se em 12.jul.2021, se mantidos os 75 anos como idade compulsória para aposentadoria no serviço público
Julianna Sofia: O latifúndio de Guedes
Com PPI, superministro administrará da fila do INSS à venda de parques nacionais e Eletrobras
Caso não seja apenas mais um arroubo retórico de Jair Bolsonaro seguido de recuo, o anúncio presidencial de incorporar o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) ao ministério de Paulo Guedes (Economia) será mais uma medida a expandir o latifúndio administrativo a cargo do superministro.
No ano passado, a fusão das pastas da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento e do Trabalho foi promovida com o argumento de dar coerência às ações da nova e ultraliberal equipe econômica. O que seu viu, por meses, foi a dificuldade de por em funcionamento uma máquina de proporções gigantescas e com tentáculos mui diversos.
Na reforma agrária ora em curso, o presidente desidrata a já esquálida Casa Civil para tirar poderes e tornar insustentável a permanência de Onyx Lorenzoni à frente do órgão —há uma semana, Bolsonaro impingiu ao ministro-herói Sergio Moro mesmo tipo de fritura, mas a reação contrária das redes à manobra do presidente garantiu blindagem ao ex-juiz da Lava Jato.
A prosperar a migração do PPI para a Economia, Guedes sai fortalecido e concretiza o que planejara na transição de governo, quando tentou absorver o plano de concessões. Uma das possibilidades em estudo é abrigar o programa na secretaria de Salim Mattar (Desestatização), aquele que seria o grande promotor das privatizações federais, mas que pouco entregou até agora.
Em 2019, nenhuma das estatais de porte foi privatizada —nem Correios, nem Eletrobras, nem Casa da Moeda— e menos de R$ 100 bilhões foram embolsados com a venda de alguns ativos de empresas públicas. Para explicar o fracasso, entre as justificativas de Salim está o próprio organograma ministerial, com o PPI alojado na Casa Civil de Onyx. Problema superado, Guedes ganhará autonomia para tocar o plano de concessões e privatizações no seu ritmo.
Sob a megalomania do superministro, o INSS voltou —como há muito não se via— a submeter os segurados à tortura das filas de espera.
Demétrio Magnoli: Democracia americana sairá menor do processo de impeachment de Trump
Líder republicano confessou perjúrio antes da primeira sessão
Os senadores americanos juraram, de acordo com a Constituição, fazer "justiça imparcial" no julgamento de Donald Trump. Mas Mitch McConnell, líder republicano no Senado, proclamou que conduziria sua bancada em "total coordenação" com o próprio Trump. Antes da primeira sessão, McConnell confessou perjúrio: "Não sou um juiz imparcial. Este é um processo político. Impeachment é uma decisão política". A democracia americana sairá menor do processo.
O instituto do impeachment deita raízes na Inglaterra do século 14. Michael de La Poe, ministro de Ricardo 2º, sofreu impeachment, em 1386, por nomear funcionários incompetentes. O bispo John Thornborough foi impedido, em 1604, por escrever um livro controverso sobre a união com a Escócia. Não faltaram casos de impeachment por ofensas como a demissão de bons magistrados ou oferecer conselhos ruinosos ao rei.
Nos EUA, a tradição britânica foi recolhida, mas conheceu restrições. O impeachment só atingiria autoridades acusadas de "crimes e delitos sérios". Contudo nunca foi circunscrito a atos criminosos, na acepção judicial do termo. O critério americano destina-se a evitar que uma alta autoridade tire proveito do cargo para, violando leis, expandir seu poder pessoal ou perpetuar o poder de seu grupo político.
O impeachment é uma ferramenta de última instância de defesa da democracia. Nos regimes presidencialistas, serve como vacina parlamentarista aos excessos do chefe de Estado. McConnell tem razão quando o qualifica como "uma decisão política": o Congresso tem a prerrogativa de avaliar quais atos ajustam-se à definição constitucional. Por aqui, sob esse aspecto, as coisas funcionam do mesmo modo: o impeachment de Dilma, assim como o de Collor, seguiu a Constituição, diga o que disser o PT.
Ao importarem o instituto do impeachment, os arquitetos da Constituição americana tinham em mente, precisamente, casos como o de Trump. O presidente é acusado de chantagear o governo ucraniano, usando a ajuda militar ao aliado como moeda de troca para obter uma declaração desabonadora sobre os negócios de Hunter Biden, filho de seu mais provável desafiante eleitoral. No Brasil, Dilma foi acusada de infringir a lei fiscal, um expediente que lhe propiciou mascarar desequilíbrios orçamentários e autorizar gastos capazes de melhorar suas perspectivas eleitorais.
O impeachment circula na esfera política, mas não é um jogo partidário. O juramento constitucional exige que, durante o julgamento, os representantes do povo suspendam suas lealdades partidárias. O perjuro McConnell, porém, orientou a maioria republicana a impedir a arguição de testemunhas —e quase toda a bancada o seguiu, bloqueando a convocação de John Bolton. O ex-conselheiro de Segurança Nacional testemunharia, como indicam vazamentos de um livro seu ainda no prelo, que Trump coordenou pessoalmente os atos de extorsão. A "justiça imparcial" foi substituída por um cínico processo de acobertamento.
A natureza política do impeachment tem uma dimensão que vai além dos textos legais: presidentes só sofrem impedimento quando perdem as condições para governar. O Congresso rotulou as "pedaladas fiscais" de Dilma como crime de responsabilidade porque as ruas e as pesquisas atestaram que seu governo convertera-se numa pilha de ruínas. Trump, pelo contrário, conserva o apoio de dois quintos dos americanos. As sondagens indicam que uma significativa maioria condena a chantagem contra a Ucrânia “mas, diante da proximidade das eleições, quase metade dos eleitores rejeita seu afastamento do cargo.
Trump fica, pois o impeachment é "um processo político". Deixa como herança a desmoralização do instituto do impeachment, rebaixado pelos republicanos à condição de disputa partidária. Os americanos decidirão, nas urnas, se aceitam a amputação de sua democracia.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.